Livro de Textos Completos do XVII Simpósio de Filosofia Moderna e

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Livro de Textos Completos do
XVII Simpósio de Filosofia Moderna e
Contemporânea da UNIOESTE
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Catalogação na Publicação elaborada pela Biblioteca
Universitária UNIOESTE/Campus de Toledo
Bibliotecária: Marilene de Fátima Donadel - CRB 9/924
Simpósio de Filosofia Moderna e Contemporânea (17. : 2012 :
Toledo – PR.)
S612a
Livro de textos completos do XVII Simpósio de Filosofia
Moderna
e Contemporânea, UNIOESTE – Toledo [recurso
eletrônico], realizada no período de 29 de outubro a 01 de
novembro de 2012 / Organização de Angelo Eduardo da Silva
Hartmann, Michelle Cabral, Luciano Carlos Utteich, e Remi
Schorn. – Toledo : UNIOESTE, 2012.
World wide web
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ISSN: 2176-2066
1. Filosofia moderna – Congresso 2. Filosofia contemporânea – Congresso I. Hartmann, Angelo Eduardo da Silva, Org. II.
Cabral, Michelle, Org. III. Utteich, Luciano Carlos, Org. IV.
Schorn, Remi, Org. V. T.
CDD 20. ed. 190.06
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Sumário
A AMEAÇA DA CATÁSTROFE PELO ÊXITO EXCESSIVO SEGUNDO H. JONAS – Adaiana
Pinto Orcheski ..........................................................................................................................................8
A CONCEPÇÃO ÉTICA E POLÍTICA NA OBRA “O PRÍNCIPE” DE MAQUIAVEL – Maria Paula
Fontana de Figueiredo ............................................................................................................................17
A CRÍTICA DE HEGEL AO FORMALISMO KANTIANO – Douglas João Orben ...........................23
A CRÍTICA DE NIETZSCHE AOS ELEMENTOS ESTÉTICOS DO DRAMA WAGNERIANO:
LEITMOTIV E UNENDLICHE MELODIE – Felipe Thiago dos Santos ...............................................30
A DOUTRINA DA CAUSALIDADE E O MÉTODO DE ANÁLISE EM DESCARTES – César
Augusto Battisti ......................................................................................................................................39
A ESCRITA COMO ENSAIO EM UMA FILOSOFIA DE FORMAÇÃO: A NARRAÇÃO PARA
ALÉM DA VIOLÊNCIA QUE IMAGEM E CONCEITO PRATICAM UM AO OUTRO – Leandro
Nunes......................................................................................................................................................46
A FILOSOFIA PRÉ-SOCRÁTICA DE KARL R. POPPER – José Provetti Junior .............................53
A FRONTEIRA DO CONSUMO: ENTRE A ABUNDÂNCIA E A INCLUSÃO PRECÁRIA – Luana
Caroline Künast Polon, Paulo Henrique Heitor Polon ...........................................................................69
A INTERPRETAÇÃO DO ARGUMENTO DO ‘ARGUMENTO DA ELEGIA DE GRAY’
SEGUNDO PETER HYLTON – Denise Borchate ................................................................................83
A JUSTIÇA NA PERSPECTIVA DA RAZÃO ÉTICA PRÉ-ORIGINÁRIA EM ENRIQUE DUSSEL
– Jessica Fernanda Jacinto de Oliveira ...................................................................................................89
A LEI MORAL COMO REFUTAÇÃO DO SOLIPSISMO PRÁTICO EM KANT – José Francisco
Martins Borges .......................................................................................................................................95
A NOÇÃO DE FELICIDADE EM ARISTÓTELES – Jaqueline Maria Leichtweis Ayala ................112
A NOÇÃO DE IMAGEM EM DELEUZE E A ABERTURA DE POSSIBILIDADES PARA A
CRIAÇÃO DE ESCRILEITURAS – Luana Borges Giacomini ..........................................................121
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A NOÇÃO DE SUJEITO EM AGOSTINHO E DESCARTES – João Antônio Ferrer Guimarães ....128
A POLÍTICA EM ARISTÓTELES E SUA RELAÇÃO COM A ÉTICA – Alfredo Batista ..............138
A PSICOLOGIA E O PROCEDIMENTO GENEALÓGICO EM NIETZSCHE – Maurício Smiderle
..............................................................................................................................................................148
A RAZÃO DESTRANSCENDENTALIZADA E O REALISMO LINGUÍSTICO: UMA PROPOSTA
HABERMASIANA – Kátia R. Salomão .............................................................................................155
A REDESCRIÇÃO COMO EXERCÍCIO DA DEMOCRACIA E DA SOLIDARIEDADE NA
FILOSOFIA DE RICHARD RORTY – Altair Alberto Fávero ...........................................................182
A RELAÇÃO ENTRE O CONCEITO DELEUZIANO DE FILOSOFIA E A ARTE LIVRE DE
CLICHÊS QUE POSSUI POTÊNCIA PARA CONTRIBUIR COM O ENSINO DE FILOSOFIA –
Luana Aparecida de Oliveira................................................................................................................189
A TEORIA DA MENTE OBJETIVA EM POPPER – Junior Antonio Fernandes ..............................196
A VONTADE DE POTÊNCIA COMO NEGAÇÃO DO SUJEITO EM FRIEDRICH NIETZSCHE –
Douglas Meneghatti .............................................................................................................................202
ARENDT: LIBERDADE POLÍTICA – Marcelo Barbosa ..................................................................209
AS CONCEPÇÕES HOBESSIANA ACERCA DO ESPÍRITO DO HOMEM – Luciana Vanuza Gobi
..............................................................................................................................................................215
AS CRÍTICAS FREGEANAS AO CONCEITO DE NÚMERO NOS FUNDAMENTOS DA
ARITMÉTICA – João Vitor Schmidt ....................................................................................................221
AS NOÇÕES DE AMOR (EROS) EM PLATÃO E DE AMIZADE (PHILIA) EM ARISTÓTELES –
Luiz Carlos de Abreu ...........................................................................................................................228
AUTENTICIDADE E SUPERAÇÃO DA EPISTEMOLOGIA MODERNA EM CHARLES
TAYLOR – Rogerio Foschiera ............................................................................................................233
AVALIAÇÃO EDUCACIONAL: PARADIGMAS E CONCEPÇÕES – Maria Dinora Baccin Castelli
..............................................................................................................................................................249
CONSCIÊNCIA E EGO: A ORIGINALIDADE NA FILOSOFIA DE SARTRE – Helen Aline dos
Santos Manhães ....................................................................................................................................256
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COSMOLOGIA, FILOSOFIA E EDUCAÇÃO – Remi Schorn .........................................................262
DA ARTE DE DIZER O OUTRO: A ALEGORIA NO DISCURSO LITERÁRIO – Toani Caroline
Reinehr .................................................................................................................................................270
Desigualdade, Liberdade Civil e Direito Político em ROUSSEAU – Luís Fernando Jacques ............277
DIZER E MOSTRAR E LIMITES DA LINGUAGEM NO TRACTATUS DE WITTGENSTEIN –
Bruno Senoski do Prado .......................................................................................................................283
EMANCIPAÇÃO INTELECTUAL EM “O MESTRE IGNORANTE”, DE JACQUES RANCIÈRE:
ÊNFASE NA PRÁXIS PEDAGÓGICA DE DOCENTES DE ENSINO SUPERIOR – Christiano
Tortato e Valderice Cecilia Limberger Rippel .....................................................................................290
HUME E O RESGATE DO CETICISMO EMPÍRICO – Donizeti Aparecido Pugin Souza ..............297
INDIVIDUAÇÃO E SOCIALIZAÇÃO NO PROCESSO EDUCATIVO DE REDESCRIÇÃO – Marta
Marques ................................................................................................................................................303
INTENCIONALIDADE E EPOCHÉ EM EDMUND HUSSERL – Devair Gonçalves Sanchez .......310
JUSTIÇA E FELICIDADE DAS “PARTES”, NA REPÚBLICA: O MÉTODO ‘SOCRÁTICO’ E A
OBJEÇÃO DE ADIMANTO – Thayla Gevehr ...................................................................................317
MEDO E OBRIGAÇÃO NA FILOSOFIA DE HOBBES – Clóvis Brondani ....................................327
MONTAIGNE, CONSELHEIRO DO PRÍNCIPE: O ÚTIL E O HONESTO – Gilmar Henrique da
Conceição .............................................................................................................................................335
NIETZSCHE E O NIILISMO: O COLAPSO DOS VALORES COSMOLÓGICOS E A NÃO
VALORAÇÃO DO DEVIR – Neomar Sandro Mignoni .....................................................................343
O CONCEITO DE EMOÇÃO EM SARTRE – Flávia Augusta Vetter Ferri ......................................351
O CONCEITO MORTE NO PREFÁCIO DA FENOMENOLOGIA DO ESPÍRITO: A MORTE E SEU
SENTIDO METAFÍSICO – Dennis Donato Piasecki .........................................................................358
O CONFLITO EM MAQUIAVEL E AS RECIPROCIDADES COM O PODER EM FOUCAULT –
Anemar Michaell Wanes Moraes Ansolin ...........................................................................................370
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O DESENVOLVIMENTO DE UMA ÉTICA AMBIENTAL SEGUNDO PETER SINGER – Victor
Mateus Gubert Teo ...............................................................................................................................377
O DIÁLOGO COMO UM INSTRUMENTO DE APRENDIZADO: POSSIBILIDADES PARA UM
ENSINO DE FILOSOFIA – Cosmo Rafael Gonzatto .........................................................................384
O FUNDAMENTO DA MORALIDADE EM HUME VEM DO SENTIMENTO OU DA RAZÃO? –
Luana Pagno .........................................................................................................................................392
O IMPASSE ENTRE POPPER E O CÍRCULO DE VIENA. A LINGUAGEM ENQUANTO
PROBLEMA FILOSÓFICO – Antônio Carlos Persegueiro ................................................................398
O PENSAMENTO COMPLEXO E A FORMAÇÃO CIDADÃ – Darlan Faccin Weide, Waldemar
Feller ....................................................................................................................................................407
O PODER DE MICHEL FOUCAULT – Jandrei José Maciel ............................................................412
O PONTO DE PARTIDA DA LÓGICA: O PENSAMENTO – Leandro A. Xitiuk Wesan ...............419
O PROBLEMA DA LIBERDADE SOB O ASPECTO DA QUARTA MOTIVAÇÃO DAS AÇÕES
HUMANAS – Felipe Cardoso Martins Lima.......................................................................................426
O PROGRESSO DA CIÊNCIA EM POPPER – Aristides Moreira Filho...........................................442
O SISTEMA PENAL E O PODER PUNITIVO – Daniel Salésio Vandresen.....................................449
OBJETIVAÇÃO DO LOUCO EM MICHEL FOUCAULT – Anderssieli Irion Boschetti ................456
OS PRINCÍPIOS DAS MEDITAÇÕES CARTESIANAS – Cristiane Picinini ..................................462
OS SIGNIFICADOS DE EMANCIPAÇÃO POLÍTICA E EMANCIPAÇÃO HUMANA EM KARL
MARX – Gerson Lucas Padilha de Lima .............................................................................................468
PARMÊNIDES E A VIA DA VERDADE: O PRIMEIRO MOMENTO DO SER HEGELIANO NA
HISTÓRIA - Maglaine Priscila Zoz.....................................................................................................475
PROBABILIDADE E PROPENSÕES À LUZ DOS TRÊS MUNDOS DE POPPER – Angelo Eduardo
da Silva Hartmann ................................................................................................................................482
PROBLEMA E MISTÉRIO EM GABRIEL MARCEL: PARA UM ENSINO DE FILOSOFIA NO
ENSINO MÉDIO – Nadimir Silveira de Quadros ...............................................................................492
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PROJEÇÃO E INTERPRETAÇÃO: CONSIDERAÇÕES SOBRE O COMPREENDER EM SER E
TEMPO DE MARTIN HEIDEGGER – Carine de Oliveira ................................................................499
REPÚBLICA E EDUCAÇÃO: PRINCÍPIOS DA EDUCAÇÃO LAICA – Denise de Almeida
Machado ...............................................................................................................................................506
SOBRE UMA POSSÍVEL APLICAÇÃO DA CRÍTICA DE WITTGENSTEIN A
IMPOSSIBILIDADE DE UMA LINGUAGEM PRIVADA AO ARGUMENTO DO ESPECTRO
INVERTIDO – Bianca Carraro Duda ..................................................................................................513
ADORNO LEITOR DE SCHELLING: CRÍTICA AO ABSOLUTISMO DA RAZÃO COMO
CONDIÇÃO DA DIALÉTICA – Rosalvo Schütz ...............................................................................520
SOBRE A INTUIÇÃO DE SI MESMO COMO BASE DA INTUIÇÃO INTELECTUAL DO
ABSOLUTO EM SCHELLING – Kayenne Cristine Ferigotti Santos Vosgerau ................................528
TEORIAS SUBSTANCIALISTAS E DEFLACIONISTAS DA VERDADE – Kariel Antonio Giarolo
..............................................................................................................................................................535
DA METAFÍSICA À “FILOSOFIA DA EFETIVIDADE (WIRKLICHKEIT)”: A
FISIOPSICOLOGIA DE NIETZSCHE EM ALÉM DE BEM E MAL – Marioni Fischer de Mello ..545
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A AMEAÇA DA CATÁSTROFE PELO ÊXITO EXCESSIVO SEGUNDO H.
JONAS – Adaiana Pinto Orcheski
UNIOESTE/PIBID – CAPES
[email protected]
Resumo: Nos últimos anos os problemas ambientais têm chamado a nossa atenção. O planeta
tem mostrado resultados negativos devido à crescente população e o progresso desenfreado. O
clima está mudando gradativamente, juntamente com a extinção de espécies, poluição das
águas, ar impuro, enfim, o planeta e todas as formas de vida têm passado por significativas
mudanças. Um grande problema humano sempre é um grande problema filosófico, por isso
tentaremos demonstrar nesse trabalho a abordagem da concepção teórica de Hans Jonas
refletindo a tese de que nosso sucesso é nossa ameaça.
Palavras-chave: Ética. Meio ambiente. Tecnologia.
O homem sempre desejou sua autossuperação, ser mais do que é em cada
instante, poder mais, entretanto, muitas vezes isso se tornou sinônimo de levar vantagens
em tudo o que fazia, ou seja, em todas as suas ações. Desde os tempos primórdios o
homem busca se superar, superar suas necessidades, para isso, ele criou ferramentas para
melhorar o êxito das suas tarefas. O homem luta desde a sua origem pelo progresso, para
tornar sua vida mais cômoda e pratica. A evolução do homem deu-se em grande mediada
pelo progresso, e ele luta até os dias atuais pelo seu próprio avanço. A redução da busca
pelo “ser mais” ao mero “levar vantagem em tudo” e com ânsia de dominação nos levou
a uma situação preocupante. Diante do crescimento populacional e o aumento dos bens
de consumo, o homem constituiu uma situação de insustentabilidade, o perigo de
esgotamento dos recursos naturais se tornou evidente. Nesse sentido, se levarmos a cabo
esses recursos devido o nosso consumo, todo o planeta estará ameaçado. Essa ameaça que
Jonas1 chama de apocalíptica, esta pairando sobre a humanidade de forma efetiva. O
resultado do desejo que o homem tem de dominar a natureza pode gerar consequências
negativas quer ultrapassam nossa capacidade contemporânea de prever e mesmo de
imaginar. Conforme o autor, a questão relevante não é sabermos o alcance da capacidade
1
Hans Jonas nasceu em 10 de maio de 1993 na cidade de Monchengladbach na Alemanha. Mais informações em
Bioethikos, V. 5, N°2 – Abr/jun 2011.
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humana no que diz respeito às suas ações, pois, elas podem ser sanguinárias, o
importante é buscarmos saber qual a resistência da natureza relativamente às ações
humanas. Em suas palavras: “Não se trata de saber precisamente o que o homem ainda é
capaz de fazer – nesse aspecto se pode ser problemático e sanguíneo –, mas o quanto a
natureza é capaz de suportar” (JONAS, 2006. p. 301). Segundo Jonas, o homem parece
não saber lidar com o progresso que ele mesmo construiu, estamos diante de um
progresso exacerbado e não sabemos o que seus reflexos podem causar. O ser humano
ainda é capaz de fazer muito, disso não temos dúvida, mas Jonas questiona, até que
pondo a natureza viva pode aguentar? Diante de toda essa problemática Jonas aponta
algumas limites existentes e diante dos quais nos convida a refletir: a crescente
população, bem como os problemas (a) da alimentação e (b) das matérias primas, (c) dos
recursos energéticos, e assim por diante. Vejamos alguns destes aspectos de forma mais
pormenorizada: a) O problema da alimentação. O que Jonas aponta em primeiro lugar é
a questão da alimentação, porque para ele tudo é dependente dela. Devido à dimensão
que se encontra a população do planeta e seu crescimento inevitável, os produtores
necessitaram mais fertilizantes para o solo, e se veem forçados à adição de mais químicos
na crosta terrestre produtiva. O que não é nada tranquilizador para Jonas é que o que
esses produtores conseguem fazer é apenas garantir a subsistência atual. As tecnologias
agrárias de maximização têm impactos cumulativos sobre a natureza que mal começaram
a revelar-se em âmbito local, por exemplo, na poluição química dos recursos hídricos e
das águas costeiras (para o que contribuem também as indústrias), com efeito s nocivos
transmitidos pela cadeia alimentar. A salinização dos solos pela irrigação constante, a
erosão provocada pela aragem de campos, as mudanças climáticas decorrentes do
desmatamento (e eventualmente até a diminuição do oxigênio disponível na atmosfe ra)
são outros castigos advindos de uma agricultura cada vez mais intensiva e expansiva.
(Jonas, 2006. p. 302). Diante de tudo isso tornam-se visíveis os limites do meio ambiente
diante das tecnologias agrárias que tem por objetivo o plantio mais rápido, p ara suprir a
demanda de uma população em acelerado crescimento. Os fertilizantes e defensivos
agrícolas são usados em larga escala, dessa forma, tornam-se causadores de inúmeros
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impactos. Estes fertilizantes podem vir a destruir, danificar e modificar o ar que
respiramos, a água que bebemos, pode chegar a exterminar algumas espécies de animais
devido às queimadas, o uso se agrotóxicos, o desmatamento e a constante agressão ao
solo. b) O problema das matérias primas. O segundo problema que Jonas aponta
encontra-se na superfície da terra e também se encontram em camadas mais profundas,
estas vem sendo exploradas até os dias de hoje. Essa matéria prima mais profunda
necessita de energia para ser retirada, ou seja, exigem um grande consumo de energia ao
serem exploradas. Dessa forma, a retirada de matérias primas do solo requer uma grande
quantidade de energia, necessitando um beneficiamento industrial, gerando prejuízos para
toda a biosfera do planeta. c) O problema energético. Quando Jonas refere-se ao
problema energético distingue entre duas fontes: renováveis e não renováveis. Aos
renováveis podemos destacar aqueles que são resultados “da sedimentação de milhões de
anos de síntese orgânica e atualmente fonte predominante do consumo energético do
planeta” (JONAS, 2006. p. 303). Podemos destacar o carvão, o petróleo e o gás natural.
Pode-se perceber que devido ao descontrole do seu uso estamos caminhando a passos
largos para seu esgotamento e re-introduzindo gazes na atmosfera que podem inviabilizar
muitas formas de vida:
O que o Sol armazenou no curso de milhões de anos no mundo vegetal terrestre os
homens estão consumindo em alguns séculos. Desses combustíveis fósseis
dependem também os fertilizantes químicos [...] A queima de combustíveis fósseis,
além do problema da poluição local do ar, traz o problema do aquecimento global,
que poderia entrar em uma curiosa competição mundial com a questão do
esgotamento das reservas. (JONAS, 2006. p. 304)
Deste modo, Jonas (2006, p. 304) aponta para as consequências indesejáveis para
a vida e o clima, como o derretimento das calotas polares, da elevação dos níveis do
oceano, das inundações de enormes extensões de planícies. Assim “a frívola e alegre
festa humana de alguns séculos industriais seria paga talvez com a alteração por milênios
da feição do planeta” (JONAS, 2006. p. 304). Quanto às energias renováveis, o filósofo
aponta a energia solar. Que se destaca por ser uma fonte de energia limpa, pois não
contribui para o superaquecimento do planeta, sendo que a utilização desta energia
pouparia a utilização das demais e não afetaria a ordem das coisas. Poderíamos citar
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ainda como energia limpa, a energia eólica, das ondas, das marés e da biomassa, e assim
por diante. O importante nos parece, é que Jonas indica para uma nova postura diante da
natureza e seus recursos. É curioso pensar que as atividades de pouco mais de 7 bilhões
de pessoas estão mudando a composição da nossa morada, o planeta terra. Segundo o que
relata Jonas, o crescimento populacional gera o aumento do consumo, que por sua vez
gera o aumento de fertilizantes no solo, a queima dos combustíveis fósseis e a extração
das matérias primas. Mas o que tudo isso pode causar no clima da terra? Segundo Paulo
Artaxo (2007) o nosso planeta corre grandes riscos, o que Jonas chama de ameaça
apocalíptica. Sabe-se que a terra é composta por inúmeros gases, dentre eles o oxigênio
que respiramos. Mas é sabido que existem outros que ajudam os seres humanos, as
plantas, os animais enfim, ajudam na manutenção do planeta, na conserva ção do nosso
clima.
Alguns deles – como o gás carbônico, o metano e o óxido nitroso – são chamados de
efeito estufa. Recebem este nome porque, assim como uma estufa, eles mantêm a
temperatura de nosso planeta em níveis adequados para a vida. Sem os gases de
efeito estufa naturais, a temperatura terrestre seria cerca de 17 graus Celsius abaixo
de zero. (Artaxo, 2007. p. 03)
Recordemos quando Jonas fala da queima de combustíveis fósseis e o uso de
fertilizantes e agrotóxicos, certamente estes são causadores do efeito estufa. É curioso
pensar que Jonas enumerou os principais fatores responsáveis pelo aumento natural do
efeito estufa, o gás carbônico ocasionado devido a queima de combustíveis fósseis e o
óxido nitroso decorrente do uso dos fertilizantes no plantio de alimentos. O ser humano
desde que se descobriu como possuidor da técnica e com a ajuda de máquinas, se colocou
a serviço dela. Para que estas máquinas funcionassem começou a extração do petróleo e
do carvão das profundezas da crosta terrestre, para transformá-los em combustíveis. Mas
a queima desses combustíveis “provoca a emissão de gases poluentes em excesso”
(Artaxo, 2007. p. 04). Quando os nossos automóveis queimam a gasolina o gás carbônico
que sai do escapamento aumenta o efeito estufa natural do nosso planeta. Outras fontes
de gás carbônico são as indústrias, as quais queimam combustíveis fósseis e estes são
jogados no ar pelas chaminés, também a criação de animais, queimadas e fertilizantes
aumentam o efeito estufa. Os impactos climáticos são em sua grande maioria advindas do
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aumento do efeito estufa ocasionadas pelo gás carbônico. A crescente temperatura pode
vir aumentar a temperatura do planeta. Esse aumento de temperatura pode acabar com as
calotas polares, inundando planícies, cidades e praias inteiras, pode vir a intensificar as
secas, levando a uma dificuldade maior de produzir alimentos. A tudo isso se soma a
escassez de água, a extinção dos animais, doenças, ar impuro, enfim a produção desses
gases afetará a sobrevivência da vida no planeta. Alguns diagnósticos do acelerado
desenvolvimento tecnológico tem ocasionando preocupação não só para os cientistas,
mas para todos aqueles que de alguma forma contribuem para o bem estar do planeta. O
consumo acelerado dos recursos naturais está gerando seu esgotamento. O ecossistema
está sendo levado a um colapso, o aumento progressivo da população mundial e ameaças
ambientais, estão cada vez mais em foco nas discussões. Jonas não exagerou ao afirmar
que “um espectro ronda o século XXI, a saber, o espectro do seu próprio extermínio”.
(SANTOS, 2011. p. 23). “A história das coisas” (The Story of Stuff) documentário da
americana Annie Leonard é bastante esclarecedor a este respeito , pois se preocupa em
demonstrar como nossos produtos chegam até nós, como são fabricados, vendidos e
porque são vendidos. De modo geral a autora quer demonstrar segundo suas pesquisas de
onde as coisas vêm e para onde vão e o que causam neste processo. Essa “história” é de
grande importância para que percebamos o descontrole do homem diante do seu poder,
diante da técnica. Ou, em outras palavras, a serviço de quem e do quê está à produção e o
consumo na atualidade. A autora diante de sua inquietação com a problemática atual do
meio ambiente percorre o mundo durante dez anos atrás de alguns vestígios referentes a
estas “coisas”. Jonas nosso filósofo em questão preocupou-se meio século antes com os
mesmos problemas e decorrente destas reflexões surge o Princípio Responsabilidade. O
objetivo de Jonas era demonstrar que a ética vigente não conseguia acompanhar os
avanços da tecnologia, os quais vem se intensificando ao
longo dos anos. Estamos
vivendo em um planeta finito. O planeta está sempre em funcionamento parece que ele
nunca para, há sempre algo para retirarmos dele, algo para destruir na natureza, recursos
naturais para serem sugados e produtos para serem fabricados, afinal o homem não se
contenta em só suprir necessidades básicas, ele cria necessidades. Annie com seu
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documentário faz com que percebamos um planeta prestes a “explodir”, não resistindo a
tanta pressão. Levando-nos a concluir que devemos nos preocupar com nossas ações, o
que fazemos e deixamos de fazer para melhorar o ambiente que vivemos. É sabido que
um produto até chegar ao seu acabamento passa por muitos processos e cada etapa é
prejudicial à natureza e as pessoas. Tudo esta de alguma forma relacionado. “História das
coisas” quer transmitir a preocupação com o bem estar do todo, demonstrando assim cada
processo que certo produto percorre para ser produzido e depois do seu uso o que
acontece com eles. Quando extraímos a matéria prima da natureza, que a autora chama de
“palavra pomposa para a destruição do planeta”, acabamos destruindo os recursos
naturais, pois devido à exploração desses, cortamos e queimamos as árvores, sugamos a
água, matamos e extinguimos os animais e as montanhas são arrebentadas devido a
extração dos metais. O planeta esta passando por gravíssimos problemas no que se refere
a sua estrutura natural e no modo de agir do ser humano. Segundo Jonas estas
dificuldades demonstram que “estamos vivendo a beira de uma situação apocalíptica, e se
deixarmos como está colocamo-nos as vésperas de uma catástrofe. Todo o perigo
corrente é causado devido à era tecnológica” (JONAS, 2006. p. 235). Para que um
produto seja fabricado ele passa pela produção, lugar onde essa matéria prima é
misturada com tóxicos. Estes tóxicos são muito prejudiciais à saúde, muitos deles saem
das fábricas em forma de poluição, afetando nosso ar, causando doenças e a naturez a fica
mergulhada em um caos profundo. Já no mercado estes produtos são dispensados o mais
rápido possível. O coração do sistema, nos EUA, país em que Annie vive, é chamado por
ela de “seta dourada”, ou seja, a ânsia pelo dinheiro, que move o sistema e faz com que o
homem sempre esteja comprando. Para a autora os EUA se tornou uma nação de
consumidores, os quais são medidos pela quantidade que compram. Certamente esta
conclusão não se restringe aos EUA podendo, em certa medida, ser aplicada à todas as
populações que se orientam por este modo de produção e consumo. A questão que a
autora se coloca é: como tudo isso aconteceu? Segundo Annie, tudo foi planejado. Depois
da segunda guerra mundial o governo e as corporações analisavam a melhor forma de
estimular a economia. Vitor Lebout, nos EUA, achou a solução baseada no consumo, ele
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disse: - a nossa enorme economia produtiva exige que façamos do consumo a nossa
forma de vida. Que tornemos a compra e uso de bens em rituais, que procuremos a nossa
satisfação espiritual, a satisfação do nosso ego no consumo. Precisamos que as coisas
sejam consumidas, destruídas, substituídas e descartadas a um ritmo cada vez maior.
Quase tudo que é produzido vai para o lixo muito rápido. Segundo Annie porque somos
levados a comprar, jogar fora e voltarmos a comprar novamente. Para a autora o que
muda é a aparência. Por exemplo, se na casa do Jorge tem uma TV grande e gorda e na
casa do vizinho uma brilhante e fininha, demonstra que Jorge não esta contribuindo para
o consumo, para a “seta dourada”. As propagandas tem fundamental importância nesse
processo, segundo Annie, afinal elas nos falam o tempo todo como estamos errados,
como nosso carro, nosso cabelo, nossa pele, nossa roupa, como nós estamos errados. Mas
as propagandas trazem a “solução”, é assim irmos às compras.
Temos mais coisas, mas menos tempo para as coisas que nos fazem felizes, amigos,
família e tempo livre. Mas sabe o que fazemos quando temos o pouco tempo livre?
Fazemos compras e vemos TV. Trabalhamos bastante, chegamos em casa exaustos e
sentamos no sofá novo para ver televisão, os anúncios dizem que não prestamos
então vamos as compras para nos sentirmos melhor. Depois trabalhamos mais,
vemos mais televisão e compramos mais. Apesar do tamanho das casas terem
aumentado de tamanho nos últimos anos a maioria das coisas vão para o lixo. Todo
esse lixo ou é jogado em um aterro ou incinerado e depois jogado nos aterros. As
duas formas poluem o ar, o solo a água sem esquecer que alteram o clima. A
incineração é realmente ruim. Recordemos daqueles tóxicos da faze de produção.
Queimar o lixo libera esses tóxicos no ar, pior ainda, produz super tóxicos novos,
como a dioxina. A dioxina é a substancia mais toxica feita pelo homem. E os
incineradores são as principais fontes de dioxina. (THE STORY of stuff, 2010).
É certo que a reciclagem ajuda, mas ela não é suficiente, porque afinal de contas
não reciclamos nem a metade do lixo que foi gasto para produzir nossos produtos em
todos os processos de fabricação que essa mercadoria passou. Mas Annie diz que existe
algo bom a ser destacado diante de todos esses monstros. Muitas pessoas já estão fazendo
acontecer, salvando florestas, lutando por uma produção limpa e um consumo consciente.
Poderíamos dizer com Jonas que a questão urgente é a mudança da postura ética. O que é
de mais importante para Annie é que devemos jogar fora a mentalidade do consumismo,
grande causador de conflitos, o que o mundo necessita é de um novo pensamento, que
vise o bem estar do todo. Baseando-se na ideia de sustentabilidade, equidade, química
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verde, energia renovável tudo pode vir a acontecer e ingênuo é aquele que pensa que
deve continuar pelo velho caminho. Annie diz que “a velha forma não aconteceu por
acaso, não é como a gravidade que temos de conviver, as pessoas a criaram e nós também
somos pessoas por isso vamos criar algo novo”(The Story of Stuff, 2010). Parece-me que
Annie relatou bem o que Jonas quer chamar a atenção na sua obra. Quando se refere a
criar “algo novo” preocupando-se com o todo. Jonas criou essa novidade diante de uma
ética que não esta conseguindo resolver as doenças da era tecnológica, pois a ética
tradicional tem uma centralidade antropocêntrica, ou seja, visa apenas o homem e seu
bem estar. Para Jonas o futuro é aquele que possibilita a condição da continuidade da
humanidade e das outras formas de vida. É diante dessas limitações encontradas hoje que
o autor valida a necessidade de uma nova ética, a saber,
Essa deve ter como horizonte de sua projeção o futuro desconhecido, incluindo nele
o direito dos que ainda não existem e ter como centro de referência não apenas o
homem, mas a vida do cosmos, isto é, a totalidade daquilo que vive (Santos, 2011. p.
27).
Jonas (2006. p. 229) preocupar-se com o futuro da humanidade admite que o dever
deve vir em primeiro lugar no nosso comportamento, ao passo que a civilização tecnológica
está se tornando cada vez mais “poderosa” quando nos referimos ao seu potencial de
destruição. O futuro da humanidade obviamente coloca em cheque o futuro da natureza e
vice-versa. Deve ser levado em consideração que o homem está se tornando cada dia mais
perigoso e ameaçador não só perante ele mesmo, mas para toda a biosfera. O interesse do
homem coincide com o dever diante de toda forma de vida, afinal a terra é sua “pátria”, não
se deve reduzir nossa concepção ao antropocentrismo. Para Jonas esse dever está estritamente
ligado à biosfera total do planeta, é um dever diante do humano e do extra-humano. Deve-se
deixar a vida prevalecer, preservar e proteger o direito de existir das futuras gerações.
Referências:
JONAS, Hans. Princípio Responsabilidade: ensaio de uma ética para a civilização
tecnológica. Rio de Janeiro: Contraponto, 2006.
ARTAXO, Paulo. Mudanças no Clima da Terra o que pode acontecer? Ciência Hoje, n.183,
02 – 05, setembro, 2007.
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SANTOS, Robinson dos. O problema da técnica e a crítica a tradição na ética de Hnas Jonas.
In: SANTOS, Robinson dos. Ética para a civilização tecnológica: em diálogos com Hans
Honas. 1. ed. São Paulo: Centro Universitário São Camilo, 2011. 21-40.
THE STORY of stuff, Fábio Gavi, São Paulo, Estúdios Gavi New Track – SP, Adaptação do
texto
Denise
Zepter,
2010,
Parte
<http://www.youtube.com/watch?v=7q_QhB3HQ70>
1.
Parte
Disponível
2.
Disponível
em:
em
<http://www.youtube.com/watch?v=jNpMRHgfqI8&feature=relmfu> Acesso em: 20, junho,
2012.
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A CONCEPÇÃO ÉTICA E POLÍTICA NA OBRA “O PRÍNCIPE” DE
MAQUIAVEL – Maria Paula Fontana de Figueiredo
UNIOESTE/PET Filosofia
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Resumo: O texto aqui apresentado se propõe a investigar a relação entre ética e política no
pensamento de Maquiavel, especificamente na obra O Príncipe. Para isso abordaremos alguns
conceitos principais da obra como o de virtù e o de fortuna. Discorreremos sobre de que
maneira o autor relaciona ambas as questões, e como isso vem sido interpretado ao longo dos
tempos. Por fim, tentaremos defender a posição de que, para Maquiavel, ética e política são
consonantes, e que em sua obra há um conceito de ética que é próprio da política, e que em
nada se aproxima das concepções tradicionalistas religiosas.
Palavras-chave: Ética. Política. Maquiavel.
São incontáveis os problemas filosóficos a que se dedicam estudiosos e
pensadores nos dias de hoje e provavelmente seja a política o campo que atrai mais
olhares. Política em si já é geradora de alguns desarranjos, mas quando relacionada às
questões éticas surgem os maiores questionamentos. Ética e política são áreas
convergentes ou divergentes? Os interesses políticos devem ultrapassar os valores morais
e de justiça?
Discutiremos esta temática sob a ótica de Maquiavel, considerado por muitos o
patrono das ciências políticas, em sua principal obra O Príncipe. O florentino é
constantemente alvo de polêmicas, na medida em que seus escritos e seu pensamento se
distanciam, conforme interpretações, de qualquer ordem moral. Termos como
“maquiavelismo” e “maquiavélico” são constantemente atribuídos à iniqüidade e a
maldade. Pretenderemos aqui refutar este senso buscando como se dá a dinâmica de
elementos como moral, justiça, ética e poder, comprovando assim a importância do tema
no âmbito da filosofia.
Sendo a sociedade uma instituição cujo crescimento não se dá de forma natural,
se fez necessário desde os tempos da renascença a intervenção do governante. Neste
sentido, O Príncipe é um claro retrato da vontade que tinha Maquiavel: viver em uma
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Itália imponente e una, como percebemos em suas próprias palavras a Lourenço de
Médici.
Receba, portanto, Vossa Magnificência este pequeno presente com aquele animo que eu
vos mando. Obra, se diligentemente considerada e lida, lhe fará conhecer um grande desejo
que está no meu interior: que o Senhor alcance aquela grandeza que a fortuna e as outras
qualidades suas lhe prometem. E se Vossa Magnificência, do ápice de sua grandeza,
alguma vez voltares os olhos para estes lugares baixos, entenderá como eu suporto
indignamente uma grande e continua maldade da fortuna (O Príncipe). 1
É não apenas sobre a ascensão ao poder, mas principalmente sobre a manutenção
e a perpetuidade do governo que versam as palavras do florentino. “É sobre a prática dos
assuntos públicos aos quais esteve constantemente vinculado, que se formaram pouco a
pouco os princípios que deviam dirigir sua obra teórica.” (LEFORT, 1972, p.6). Neste
sentido abordaremos, para fins contextuais, algumas características tidas por Maquiavel
como essenciais para que o príncipe obtenha êxito em bem governar e em manter-se no
poder.
Podemos dizer que há ao longo da obra um retrato pessimista do homem. Para
Maquiavel, “dos homens se pode dizer isto: que geralmente são ingratos, volúveis,
simuladores e dissimuladores, esquivos aos perigos, cobiçosos de ganho” (O Príncipe
cap. XVII). No que diz respeito ao príncipe, deve haver um equilíbrio entre as qualidades
ditas boas e más. Não é simples assim conseguir uma concordância, e é neste sentido que
as características devem ser aplicadas conforme a conveniência, de maneira operativa ao
governo.
A percepção da maldade humana é fundamental para os legisladores e não necessariamente
para todos os homens em todas as situações. Maquiavel não diz que todos os homens
devem levar em consideração a maldade de nossa natureza para conduzir suas vidas, mas
sim que os legisladores não podem se descurar desse lado. Abordando diretamente a
questão antropológica, devemos observar que nosso autor não diz que os homens são maus,
mas sim que o legislador deve supor que eles o sejam (BIGNOTTO, 2008, p.92).
Outro aspecto que podemos identificar nos escritos é a liberdade, porém, uma
liberdade marcada dentro dos limites da parcimônia. Ora, um príncipe deve ser
benevolente, mas não muito.
1
Deve-se expor que Maquiavel encontrava-se em exílio, sob tormenta emocional e tentando retomar sua posição
social. Nestas condições surgiram as primeiras palavras de “O Príncipe”.
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Se um príncipe não puder usar desta virtù de liberal sem dano para si, para que ela lhe seja
reconhecida, deve, se é prudente, não se importar com a fama de miserável; porque com o
tempo será considerado cada vez mais liberal, ao verem que, com a sua parcimônia, suas
receitas lhe bastam, podendo defender-se daqueles que lhe fazem guerra, podendo fazer
obras sem tributar o povo. De modo tal que se torna liberal para todos aqueles dos quais
não subtrai, que são infinitos, e miserável para todos aqueles a quem não dá, que são
poucos (O Príncipe cap. VXI).
Entre a bondade, a maldade, a benevolência, a parcimônia há mais uma série de
qualidades antagônicas às quais deve se atentar o príncipe, tendo sempre destreza e
usando-as na dose certa, a seu favor, a favor do bem governar e de manter-se insigne.
Desta maneira, é fundamental que o príncipe seja pró-ativo e multifacetado.
Na construção de todo o texto, ou manual 2, como é chamado muitas vezes sem
critério, Maquiavel cria uma teia argumentativa extremamente firme e, pela primeira vez,
estabelece uma política autônoma, separada do poder religioso. Estamos historicamente
localizados na Alta Renascença, onde grandes rupturas com a Idade Média já haviam sido
idealizadas e concretizadas, exceto a devida secessão entre as regras estatais e as
tradições cristãs de controle. Vale lembrar que no período medieval dois eram os
sinônimos de poder: a posse de feudos e o cristianismo. Sendo na Itália a Igreja a
detentora da maior parte das terras, logo restringimos nosso conceito apenas ao
cristianismo, especificamente ao Catolicismo, instituição que determinava toda e
qualquer norma e padrão de conduta do agir individual e coletivo. É imensurável o feito
maquiavélico, pois proporcionou ao Estado a plena autonomia de suas decisões, fazendo
com que a Política deixasse de ser uma conjunção de regras impostas pela igreja e
passasse a ser um elemento constitutivo da sociedade e dos homens.
Se o objetivo claro de Maquiavel é, como pensamos, estabelecer as regras da ação política,
ele não o persegue, contudo, pelo modo tradicional da instrução moral dos príncipes e
fortalecimento de suas disposições éticas. Ao invés disso, ele desvincula o âmbito do agir
político das determinações formais da moral tradicional, não subordinando a política nem
aos seus pressupostos, nem aos da religião (AMES, 2002, p.53).
2
Algumas editoras até mesmo publicam “O Príncipe” estampado por manual de poder, ou guia de dominação, o
que, apenas contribui para com esta imagem antiética. A leitura negligente de seus escritos pode, de fato, gerar
más interpretações, considerando principalmente o salto temporal.
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Lemos isso hoje como grande avanço, mas as consequências para Maquiavel
certamente foram mais controversas. Já identificamos aqui o primeiro grande
deslocamento conceitual de ética política. O que antes significava obedecer e seguir aos
dogmas, já representa agora pró-atividade para o bem comum, sem as barreiras da
salvação e da piedade católica, que na verdade buscavam também a dominação e apenas
velavam o interesse financeiro institucional. Mas não o discutiremos neste mo mento.
Entramos agora no cerne de nossa discussão. Com tudo que vimos anteriormente,
não é de se admirar a posição dogmática de alguns estudiosos, que afirmam que a obra
maquiavélica se afasta da moral. No entanto, arrisco afirmar que em grande parte, tais
conclusões se devem a más interpretações, principalmente na medida em que Maquiavel
propõe soluções deveras realistas para se enfrentar problemas referentes ao Estado,
baseadas em observações históricas e com pesada argumentação sobre o sucesso das
ações propostas.
Ainda sob a ótica de algumas interpretações, estudiosos refutam completamente
a existência de qualquer sentido ético e de justiça nos escritos maquiavelianos. Ou que
Maquiavel simplesmente não respeita qualquer condição moral. Os que afirmam iss o
talvez estejam com as lentes embaçadas. De fato as ideias maquiavelistas não visam
tratar da ética no principado, a ligação desta com a política se dá na medida em que a
ética desempenha uma função. Seja ela ser mantida a fins de aparência, seja para ser
transgredida por conveniência ao poder.
Atar-se a princípios éticos que se sobreponham aos interesses do Estado não
anula o sentido de moral e justiça, apenas o transpõem. Estamos defendendo aqui uma
ética própria à política. O príncipe que desempenha, assim, a função do bem governar
deve para isso, conforme já tratamos, dispor de uma série de qualidades. Entretanto, nem
tudo depende apenas das virtudes principescas. É com o mesmo senso de realidade que
Maquiavel observou a história para apontar os caminhos mais eficazes na política, que
ele projeta uma visão futura de governo. Ora, a sociedade é constante movimento e tanto
os homens governados, quanto o próprio príncipe, estão sujeitos a acontecimentos
inesperados. A isso chamou fortuna, e a disse sob a forma de muitas metáforas. Sobre a
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fortuna não se tem controle, como a sorte, mas cabe ao príncipe ser sagaz e hábil ao
empregar a estes acontecimentos as devidas atitudes de acordo com o interesse. Segundo
Ames (2002, p. 128) a inteligência desmitifica a fortuna descobrindo-a como causa
teórico-prática responsável pelas condições exteriores, as que independem da vontade
humana e às quais a ação se encontra vinculada.
Não desconheço como muitos tiveram e têm opiniões de que as coisas do mundo são, de
certo modo, governadas pela fortuna e por Deus; que os homens com a sua prudência não
podem corrigi-las não havendo, então, remédio algum; e por isso poderiam julgar que não
seria necessário cansar-se muito nessas coisas, mas deixar-se governar pela sorte. Essa
opinião tem muito crédito em nossos tempos por causa da grande mudança nas situações
que foram vistas e se veem todos os dias, que estão além de toda a conjectura humana.
Diante do que, pensando eu algumas vezes, inclinei-me de certo modo pela opinião deles.
Todavia, para que nosso livre arbítrio não seja extinto, julgo ser verdadeiro que a fortuna
seja arbitrária de metade das nossas ações, mas que ela ainda nos deixa governar a outra
metade, ou quase (O Príncipe cap. XXV).
É como se uma ação tivesse dois lados, às vezes dependentes, o de dentro e do
de fora. Do lado de fora está o incontrolável (porém previsível), a fortuna. Do lado de
dentro, a mais poderosa ferramenta, com a qual se pode trabalhar, medir, raciocinar,
aquela que depende estritamente do príncipe, à qual se ligam as características de bom,
mau, justo, liberal, entre outras: falamos da virtù.
Mais que medir e comedir as devidas qualidades, virtù é a capacidade de imporse, de ser enérgico, de lidar com as circunstâncias de forma astuta e de stemida. Sabendo
se adaptar às situações políticas no intuito, sempre, de manter-se no poder. É também
saber trazer para si, com o poder e a força, a simpatia dos governados, sabendo guiá -los
conforme o interesse do Estado.
La virtù que campea por la doble escena del poder, así como por las diversas situaciones
que en ambas tienen lugar, obtendrá el efecto deseado de preservar para su titular su
reino. El efecto supremo de su actividad habrá sido ganar para el príncipe la adhesión del
pueblo, sin la cual, no hay, a la postre, virtù que valga. (ANDÚJAR, 2009 , p.17).
A virtù seria, portanto, extremamente necessária ao príncipe para vencer as
indeterminações da fortuna e alcançar a glória. Assim, na busca por resultados efetivos, o
conceito de virtù se distancia do de virtude para os cristãos. A virtù há de ser qualquer
qualidade que deva ser empregada para se atingir um fim visando o Estado, seja aparente
ou efetivamente. Para BIGNOTTO (1992, p.10), Maquiavel aponta os limites da ética
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cristã mostrando que ela é incapaz de guiar os homens na construção de uma república
virtuosa. A tirania aponta para os limites da ética antiga, deveríamos dizer de toda ética,
que é incapaz de evitar a corrupção e, assim, a ruptura com a política.
Concluímos que, para Maquiavel, política é agir constantemente buscando
resultados, individualmente e através dos governados. Tais atitudes devem sempre visar à
manutenção do poder e à arte de bem governar. É responsabilidade do príncipe inclinar a
aplicação de sua virtù ao controle do agir comum e à contenção das adversidades ligadas
à fortuna, sem medir esforços e não atendo suas escolhas à já tratada moral
tradicionalista, sendo os meios a serem empregados para atingir seus objetivos,
independentes. Os objetivos são o que incitam o poder do governante e que exigem dele a
virtù em sua plenitude. É nos fins buscados pela ação política que os meios empregados
pelo príncipe se justificam, em um campo moral singular a ela.
Referências:
AMES, José Luiz. Maquiavel: A lógica da Ação Política. Cascavel: EDUNIOESTE, 2002.
ANDÚJAR, Antonio Hermosa. El poder de la virtù en El Príncipe de Maquiavelo. Dianoia.
Annali di storia della filosofia. Bologna, n. 14, 2009.
BIGNOTTO, Newton. As fronteiras da ética: Maquiavel. In: NOVAES, Adauto (org.) Ética.
São Paulo: Companhia de Letras, 1992, p. 113-125.
BIGNOTTO, Newton. A antropologia negativa de Maquiavel. Analytica, Rio de Janeiro, v.
12, p. 77-100, 2008.
LEFORT, Claude. Le travail de l’oeuvre Machiavel. Tradução para uso didático de José
Luiz Ames. Paris: Gallimard, 1972.
MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe (edição bilíngue). Tradução de José Antônio Martins.
São Paulo: Hedra, 2011.
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A CRÍTICA DE HEGEL AO FORMALISMO KANTIANO – Douglas João
Orben
PUCRS/CAPES – UDELAR - Montevidéu
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Resumo: O presente artigo analisa a crítica hegeliana ao formalismo moral de Kant. Com o
intuito de situar o contexto teórico da crítica hegeliana, analisa-se, inicialmente, alguns
aspectos da fundamentação filosófica da moral em Kant. Ao embasar a moral em princípios
puros, válido incondicionalmente, Kant estabelece um sistema prático essencialmente formal.
Para Hegel, a moral kantiana não passa de um formalismo abstrato. Por prescrever uma
simples fórmula, válida universalmente, a moral kantiana pode justificar qualquer coisa, pois
o seu princípio de validação é tão somente a não-contraditoriedade subjetiva. Segundo Hegel,
só é possível definir o valor moral de uma ação quando a mesma é considerada dentro de um
contexto determinado, pois o princípio do dever, ao contrário do que pensava Kant, modificase de acordo com o contexto histórico.
Palavras-chave: Kant. Hegel. Moral.
1.
A fundamentação da moral kantiana
A filosofia crítica kantiana nasce da pretensão investigativa de encontrar
fundamentos inabaláveis, de certeza apodítica, para os diversos problemas filosóficos
levantados, principalmente, pelo ceticismo moderno. Neste sentido, o empreendimento
kantiano ganhou destaque, sobretudo, na fundamentação transcendental do conhecimento
possível, bem como na sistematização dos princípios puros da moral. No que concerne ao
conhecimento, Kant estabelece um sistema de condições a priori que asseguram as
possibilidades e os limites do entendimento humano. A legitimidade crítica destas
categorias transcendentais é garantida por meio de deduções: uma dedução metafísica
que estabelece o inventário completo das categorias como condições a priori,
encontradas na própria natureza transcendental do entendimento humano; e uma dedução
transcendental que assegura, por sua vez, a aplicabilidade destas condições
transcendentais às condições puras (espaço e tempo) da sensibilidade. No que tange à
moral, e este é o problema fundamental a ser abordado neste ensaio, o objetivo kantiano é
encontrar um fundamento puro, totalmente “depurado de tudo o que possa ser somente
empírico” (KANT, 1992, p.15), para a filosofia moral. Sistematicamente articulada com a
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filosofia teórica apresentada na Crítica da Razão Pura, a filosofia prática pergunta-se
sobre o princípio supremo da moralidade 1. Na obra Fundamentação da Metafísica dos
Costumes torna-se evidente, pela primeira vez na filosofia crítica, o embasamento
apriorístico da moral kantiana. Os princípios fundamentadores do agir moral não podem
ter origem empírica, pois o âmbito da experiência somente expressa o que é, não o que
deve ser. O dever moral só pode apoiar-se em princípios totalmente puros, “as leis morais
com seus princípios, em todo conhecimento prático, distinguem-se portanto de tudo o
mais em que exista qualquer coisa de empírico, e não só se distinguem essencialmente,
como também toda a filosofia moral assenta inteiramente na sua parte pura” (KANT,
1992, p. 16). Num sistema em que a moralidade pretende ser essencialmente pura, a
questão a ser colocada por Kant é a seguinte: em que consiste o valor moral de uma ação?
Em outras palavras, como definir uma vontade moralmente boa 2? A resposta kantiana a
esta questão traz à ênfase a noção de lei moral como fundamento puro da ação
moralmente boa. Neste sentido, a máxima subjetiva da ação deve ter como único
interesse a lei moral, pela qual o simples “querer” subjetivo torna-se objetivamente
válido, ou seja, universalmente aceito.
Uma acção praticada por dever tem o seu valor moral, não no propósito que com ela
se quer atingir, mas na máxima que a determina; não depende portanto da realidade
do objecto da acção, mas somente do princípio do querer segundo o qual a acção,
abstraindo de todos os objectos da faculdade de desejar, foi praticada (KANT, 1992,
p. 30).
O dever, que Kant define como sendo “a necessidade de uma ação por respeito à
lei” (KANT, 1992, p. 31), faz da ação moral um princípio puramente formal, não
dependendo, portanto, da realidade do objeto da ação, nem muito menos dos efeitos
produzidos. O princípio do agir moral prescreve o simples dever pelo dever, eliminando
1
No prefácio da Fundamentação da Metafísica dos Costumes, Kant, ao reportar-se aos objetivos da obra, assim
expressa: “A presente Fundamentação nada mais é, porém, do que a busca e fixação do princípio supremo da
moralidade, o que constitui só por si no seu propósito uma tarefa completa e bem distinta de qualquer outra
investigação moral”. (KANT, 1992, p. 19).
2
“Neste mundo, e até também fora dele, nada é possível pensar que possa ser considerado como bom sem
limitação a não ser uma só coisa: uma boa vontade” (KANT, 1992, p. 21).
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totalmente qualquer influência ou inclinação externa à lei moral. A moral configura -se,
deste modo, como sendo o respeito à lei moral pelo simples dever.
O valor moral da acção não reside, portanto, no efeito que dela se espera; também
não reside em qualquer princípio da acção que precise pedir o seu móbil a este efeito
esperado. Pois todos estes efeitos (a amenidade da nossa situação, e mesmo o
fomento da felicidade alheia) podiam também ser alcançados por outras causas, e
não se precisava portanto para tal da vontade de um ser racional, na qual vontade —
e só nela — se pode encontrar o bem supremo e incondicionado (KANT, 1992, p.
31).
No trecho supracitado, é evidente que a ação moral não pode ser definida pelos
efeitos externos (mas somente pela máxima subjetiva da ação), como também não deve
ter qualquer interesse externo, pois as circunstâncias são sempre contingentes, não
podendo assim determinar necessidade alguma. A ação moral deve, portanto, seguir a
fórmula de um imperativo categórico que ordena incondicionalmente, a saber: “age
apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei
universal” (KANT, 1992, p. 59). A máxima subjetiva, na ação moral, pode ser tomada
como universalmente válida, pelo que a determinação subjetiva segue, como único
interesse, a simples forma da lei racional. A lei moral, por sua vez, encontra-se
relacionada com a liberdade transcendental. Segundo Kant, a liberdade é uma capacidade
pura da razão que, como tal, possibilita iniciar uma ação de modo totalmente
incondicionada. Esta capacidade da razão pura é o fundamento do conceito de autonomia:
uma ação é autônoma na medida em que é determinada livremente, sem influência de
fatores empíricos. A liberdade, assim entendida, só pode ser transcendentalmente
concebida, pois sua característica essencial é a capacidade de iniciar uma ação de modo
incondicionada, sem a influência de qualquer outro fator. De modo bastante simplificado,
pode-se perfeitamente dizer que a liberdade transcendental, relacionada à lei moral, é o
fundamento do sistema moral kantiano. Evidentemente, trata-se de uma concepção moral
essencialmente formal, a priori, na qual o valor moral relaciona-se imediatamente (e tão
somente) com a máxima do agente. Este assento estritamente formal e subjetivo, que
assegura a necessidade e a universalidade da moral kantiana, na análise de Hegel, pode e
deve ser duramente criticado.
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2. A Crítica de Hegel ao formalismo kantiano
Segundo Hegel, o sistema moral kantiano tem seus méritos por ter fundamentado
o dever na autodeterminação da vontade. Neste ponto, a teoria kantiana deve ser louvada
por ter sido a primeira a estabelecer a autonomia da vontade como critério de moralidade.
Porém, os louros de Kant terminam por ai. A insuficiência kantiana em superar os limites
entre conhecer e pensar, a posteriori e a priori, matéria e forma, que nada mais é do que
um reflexo da separação entre fenômenos e noumenon, converte todo o bônus da
autonomia moral em mero formalismo. Nas palavras de Hegel:
É de ressaltar que a autodeterminação da vontade é a raiz do dever. Por seu
intermédio o conhecimento da vontade alcançou na filosofia kantiana, pela primeira
vez, um fundamento e um ponto de partida firme com o pensamento de sua
autonomia infinita. Mas na mesma medida, o permanecer no mero ponto de vista
moral, sem passar ao conceito da eticidade, converte aquele mérito em um vazio
formalismo e a ciência moral em uma retórica acerca do dever pelo dever mesmo
(HEGEL, 1975, p. 166).
A insuficiência kantiana, em superar o limite entre matéria e forma, faz da
autonomia moral um “dever pelo dever”, uma simples fórmula analítica que não define a
matéria dos deveres particulares. Para Hegel, a investigação kantiana, acerca da
autonomia moral, limitou-se a uma mera análise transcendental (tão somente formal) das
condições subjetivas do agente. O que Kant faz, em sua teoria prática, é apenas
fundamentar filosoficamente (formalmente) princípios particulares, já existente s na moral
comum. O “dever” kantiano nada mais é do que uma simples concordância subjetiva. O
princípio da autonomia moral é regido pela pura não-contraditoriedade formal do agente,
não sendo assim um princípio sintético a priori, como imaginava Kant 3 (Cf. KANT,
1992, p. 85), mas tão somente analítico. Uma das críticas mais severas que Hegel tece ao
imperativo categórico, a qual pode ser enquadrada como uma das consequências nocivas
do formalismo kantiano, diz respeito à incondicionalidade do agir moral. Segundo Hegel,
3
Na Fundamentação da Metafísica dos Costumes, Kant defende que o Imperativo moral deve ser sintético a
priori: “que esta regra prática seja um imperativo, quer dizer que a vontade de todo o ser racional esteja
necessariamente ligada a ela como condição, é coisa que não pode demonstrar-se pela simples análise dos
conceitos nela contidos, pois se trata de uma proposição sintética; teria que passar-se além do conhecimento dos
objectos e entrar numa crítica do sujeito, isto é da razão prática pura; pois esta proposição sintética, que ordena
apodicticamente, tem que poder reconhecer-se inteiramente a priori” (KANT, 1992, p. 85).
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por ser uma simples fórmula, o imperativo categórico pode justificar toda e qualquer
ação: “não há nesse princípio nenhum critério que permita decidir se um conteúdo
particular que se apresenta ao agente é ou não um dever. Pelo contrário, todo modo de
proceder injusto e imoral pode ser justificado dessa maneira” (HEGEL, 1975, p. 166). O
problema levantado por Hegel questiona a incapacidade efetiva da moral kantiana. A
moral do “dever pelo dever” não considera, segundo Hegel, as circunstâncias 4 nem, tão
pouco, os efeitos ou consequências da ação. Este vazio formalismo converte a moral em
pura abstração, não possuindo assim nenhuma efetividade prática que possa determinar
ações particulares. Kant não se pronuncia quanto ao ser efetivo da ação moral, sua teoria
permanece ao nível do dever puro e incondicionado. Analisando sistematicamente o
projeto crítico kantiano, é notável que esta insuficiência, que se manifesta no âmbito
moral, na medida em que é um simples efeito da separação entre fenômenos e noumenon,
sustenta a estabilidade do empreendimento filosófico kantiano. É importante ressalta
isso, pois a acusação de formalismo moral, apresentada por Hegel, tem como pano de
fundo a insuficiência kantiana em superar os limites entre ser e pensar, mant endo-se num
sistema essencialmente dualista. Para Hegel, só pode-se definir o conteúdo moral de uma
ação se for considerado, além da autonomia subjetiva, o seu conteúdo efetivo. Neste
caso, as circunstâncias e as consequências da ação, que em Kant eram contrárias à
necessidade e universalidade do agir, agora se tornam determinantes. A moralidade se
define em contextos concretos, pois só nestes casos é que a contingência torna possível
uma contradição. Tento em vista os exemplos kantianos da aplicabilidade do imperativo
categórico, Hegel afirma:
Que não haja nenhuma propriedade não contem por si nenhuma contradição, nem
tão pouco o fato de que este povo singular ou esta família não exista, ou que em
geral não viva nenhum homem. E por outro lado se admite e supõe que a
propriedade e a vida humana devem existir e serem respeitadas, então cometer um
roubo ou um assassinato é uma contradição. Uma contradição só pode surgir com
algo que é; com um conteúdo que subjaz previamente como princípio firme (1975,
p. 167).
4
Para Kant, “o valor moral da acção não reside, portanto, no efeito que dela se espera; também não reside em
qualquer princípio da acção que precise de pedir o seu móbil a este efeito esperado” (KANT, 1992, p. 31).
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Não havendo determinação, então é impossível que haja contradição. Ao não
permitir a contradição, a moral kantiana assume uma postura analítica, insuficiente para
determinar o valor objetivo de uma ação. Para que uma ação possa ser apreciada como
moral, é necessário considera-la num contexto concreto, pois somente inserida em
determinadas circunstâncias, com conteúdo e consequências objetivas, é possível avaliar
o valor moral de uma ação. Para Hegel, o dever só pode ser determinado de acordo com o
contexto, ele é um conceito histórico e circunstancial: momentos e locais diferentes
podem apresentar diferentes concepções de dever. Deste modo, Hegel pretende superar a
subjetividade abstrata da moral deontológiaca e assim estabelecer uma moral objetiva.
Esta deve contemplar, além da determinação subjetiva, a inevitável eticidade
intersubjetiva. Neste sentido, a moralidade possibilita a determinação da ideia de
liberdade. Segundo Hegel, a concepção kantiana de liberdade, como uma simples ideia
transcendental, incondicionada e subjetiva, precisa ser superada. Mas, para superá-la,
antes é necessário negá-la: ao determinar a liberdade em instituições (família, sociedade
civil, estado) a simples ideia transcendental kantiana é negada, porém esta negação (que é
também uma conservação) é condição para a superação, pois, nesta dialética, a simples
ideia de liberdade subjetiva transforma-se em liberdade (intersubjetiva) efetiva. A crítica
hegeliana à filosofia prática de Kant, ao denunciar um formalismo moral que se
fundamenta num dualismo teórico, pressupõem uma nova concepção de verdade. Hegel
supera os limites sensíveis (espaço e tempo) da verdade kantiana, tornando assim o todo
verdadeiro. Esta superação de limites possibilita a articulação de um sistema no qual o
universal e o particular não estão separados, em domínios distintos, como em Kant. A
moralidade, portanto, supera o formalismo abstrato e efetiva-se na objetividade sem,
contudo, eliminar a subjetividade.
Referências:
ALLISON, Henry E. El idealismo trascendental de Kant: una interpretación y defensa.
Prólogo e tradução de Dulce María Granja Castro. Barcelona: Anthropos; México:
Universidad Autónoma Metropolitana – Iztapalapa, 1992.
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______. Kant‘s theory of freedom. Cambridge: Cambridge University Press, 1990.
ALMEIDA, G. A. de. Liberdade e moralidade segundo Kant. Analytica, v. 2, n. 1, p. 175-202,
1997.
HEGEL, G. W. F. Principios de la filosofia del derecho o derecho natural y ciencias
políticas. Trad. Juan Luis Vermal. Buenos Aires: Sudamericana, 1975.
______. Fenomenologia do Espírito. Trad. Paulo Meneses. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1992. 2
v.
______. Sobre las maneras de tratar cintíficamente el derecho natural. Trad. Dalmacio Negro
Pavon. Madrid: Aguilar, 1979.
KANT, I. Crítica da razão pura. Trad. Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique
Morujão. 2. ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1989.
______. Crítica da Razão prática. 3. ed. São Paulo: Publicações Brasil, 1959.
______. Fundamentação da metafísica dos costumes. Trad. Paulo Quintela. Lisboa: Edições
70, 1992.
MÜLLER, Rudinei. O Formalismo kantiano. In: Filosofazer. Passo Fundo, n. 31, jul./dez.
2007, p. 115-125.
WEBER, Thadeu. Hegel: liberdade, Estado e história. Petrópolis: Vozes, 1993.
______. Ética e filosofia política: Hegel e o formalismo kantiano. Porto Alegre: Edipucrs,
1999. (Col. Filosofia, 87).
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A CRÍTICA DE NIETZSCHE AOS ELEMENTOS ESTÉTICOS DO DRAMA
WAGNERIANO: LEITMOTIV E UNENDLICHE MELODIE – Felipe Thiago dos Santos
UNESP/FAPESP
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Resumo: Nosso objetivo nessa exposição é entender as críticas de Friedrich Nietzsche ao
compositor Richard Wagner a partir das obras musicais do compositor alemão. Assim, nossa
intenção é realizar uma “leitura” das partes internas constituintes dos dramas wagnerianos, a
saber, os motivos condutores e a melodia infinita (leitmotiv e unendliche Melodie).
Tentaremos compreender o que são as ideias musicais do compositor alemão, de modo que
essa leitura nos habilite entender qual a similaridade existente entre Wagner e a décadence, no
contexto do pensamento nietzscheano. Para o cumprimento de nossos objetivos nos
utilizaremos de fragmentos da partitura de O Anel do Nibelungo (Der Ring des Nibelungen),
de Wagner e, também, de O Caso Wagner (Der Fall Wagner) de Nietzsche.
Palavras-chave: Nietzsche. Wagner. Leitmotiv. Unendliche Melodie.
Introdução: O Caso Wagner
Escrito nos últimos anos da produção filosófica de Nietzsche (1888), O Caso
Wagner soa-nos, à primeira vista, quase como uma obra panfletária. Estilisticamente
divergente dos outros escritos do filósofo, esse “manifesto” tem um objetivo em toda sua
argumentação: atacar Wagner e tudo aquilo que se expandira na Europa na segunda
metade do século XIX como wagnerianismo. Porém, numa análise mais depurada do
texto, mostraremos que Wagner é apenas um “bode expiatório”, ou seja, um fio condutor
que
permite
Nietzsche
denunciar
outro
personagem:
a
modernidade.
Assim,
evidenciaremos aqui algumas similitudes que possam unir num único eixo problemático a
modernidade e a música de Wagner. A tarefa de reconhecer na música wagneriana um
sintoma de degenerescência estética que fosse análogo àquele embotamento moral que
Nietzsche salientara – no decorrer de suas obras - acerca da modernidade, foi possível,
pois um novo elemento conceitual permitira que Nietzsche unisse o núcleo de ambas as
críticas. Esse conceito unificador é o de décadence. Influenciado pelas leituras do crítico
literário Paul Bourget, Nietzsche faz uso do termo em questão para apontar um processo
por meio do qual uma dada organicidade da hierarquia vital é posta em um movimento de
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dissolução anárquica, ou seja: a décadence promove a degenerescência formal ao minar
toda base de coesão, como uma doença que toma o enfermo. A décadence pode ser
entendida tanto como um sintoma artístico como fisiológico. Tais possibilidades não se
anulam, mas se complementam. A décadence artística, que nos interessa agora, é
entendida por Nietzsche em termos análogos à fisiológica, mas aqui ela se concentra na
própria obra de arte, em outras palavras, na composição de cada elemento que permeia o
todo na criação. Portanto a acusação que perpassa todo O Caso Wagner refere-se ao
principio fragmentário que a música de Wagner toma para si, um princípio, portanto, de
décadence artística. Assim, “o fato de Wagner travestir em um princípio a sua
incapacidade de criar formas orgânicas” (NIETZSCHE. F. 1999, p, 23) encobre sua
verdadeira finalidade: “ele – Wagner – quer o efeito”. (IBID. p, 26).
Uma arte
fragmentada como esta nos impossibilita compor auditivamente um fluxo continuo e
consistente de seu interior, pois Wagner cria apenas “pequenas preciosidades” (IBID. p,
27), sendo por isso chamado por Nietzsche de mestre miniaturista. Cada som deixa de
relacionar-se organicamente dentro de uma dada estrutura, na medida em que eles não
mais se organizam hierarquicamente, mas sim arbitrária e desordenadamente. Desse
modo, a gramática sonora da melodia wagneriana abandona a subsunção à regra,
tornando-se, por isso, simples jogo anárquico de átomos. São inúmeros os elementos
inovadores que Wagner utilizou em seus dramas, e, sem exceção, todos são vistos por
Nietzsche como sintomas da décadence. São eles: os “motivos condutores” (leitmotive),
isto é, motivos musicais que agregam a si um sentido associativo dentro de uma
composição dramática ou cênica. A “melodia sem fim” (unendliche Melodie),
caracterizada por uma inconstância melódica, de forma que ela “iguala ao caráter
aparentemente ‘não-melodioso’ e amorfo de suas linhas vocais e instrumentais e com as
proporções ‘intermináveis’ de suas óperas” (MILLINGTON. 1995, p, 262).
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I. Leitmotiv
O primeiro recurso cênico-musical que iremos tratar aqui é o motivo condutor
(Leitmotiv). Sobre esse recurso estético musical, usaremos uma definição – ao menos
provisoriamente – de Thomas S. Grey:
A verdadeira inovação de Wagner, tendo inicio com O Ouro do Reno, foi a criação
de um “tecido” musical contínuo, urdido de forma mais ou menos consistente a
partir de ideias musicais em forma de motivos, introduzidas – seja na orquestra ou
na parte vocal – de forma a estabelecer certas associações dramáticas, emocionais,
visuais ou conceituais. (In: MILLINGTON. B, (org.) 1995, p. 92)
Portanto, os “motivos condutores” são como eixos que permitem um
reconhecimento da forma musical wagneriana. Sua importância consiste, assim, em
conceder a esse “tecido musical” certa coerência. Todavia, não falamos aqui de uma
coerência apenas musical, mas antes de tudo, dramática. Os motivos aparecem, pois
filiados a personagens, cenas, expressão de um sentimento, um objeto, um
acontecimento, entre outros. Wagner compõe, todavia, motivos que se fecham em sua
forma ordenadora dramática (não são fixos). Pode-se ouvir um motivo em O Ouro do
Reno (por exemplo, o motivo da Espada) se repetir fortuitamente no segundo drama da
tetralogia wagneriana, As Valquírias. Além disso, um motivo sofre, às vezes, uma
pequena variação melódica e adquire outra significação, assim, “o tema de Siegfried
como herói, por exemplo, seria uma variante do Toque da Trompa”. (DAHLHAUS. 1900,
p, 98). A variação motívica em Wagner está sempre agregada a um conteúdo semelhante,
de modo que uma ideia instrumental equivale ao seu significado dramático. Para efeito de
explicação: o tema da “Necessidade dos Deuses” 1, composto na tonalidade de mi menor
(Em) e metrificado em compasso quaternário (figura 2), se identifica com o tema de
“Erda” 2 (figura 3), que por sua vez mantém a estrutura de compassos em 4/4, tal como a
melodia em escala menor; mas sua tonalidade varia para o dó sustenido menor (C#m ).
1
2
As Valquírias. Ato II. Cena II.
O Ouro do Reno. Cena III.
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Figura 1: Tema da Necessidade dos Deuses
Figura 2: Tema de Erda
Assim, Wagner parece manter elementos musicais análogos para representar
Erda, deusa da terra 3, pois tal seria uma personagem “chave” para o desalento de Wotan.
Também um motivo pode ter sua ligação cênica modificada – às vezes um motivo que
num drama se filia a um estado emocional de alegria, vitória ou esplendor, adquire em
outro drama a expressão da raiva, fúria ou desalento. Portanto:
(...) a ideia de um Leitmotiv como uma forma musical fixa, recorrente, semelhante
às “fórmulas periódicas” em Homero, é simplista a ponto de ser falsa [...] os motivos
são variados incessantemente, isolados e fundidos entre si ou transformados um nos
outros, e se aproximam ou se afastam gradualmente na medida que se modificam”.
(DAHLHAUS. C, 1988, p. 96).
A essa variação na qual os motivos são imersos, Yara Caznók dá o nome
constelação de motivos. (CAZNÓK. Y. 2000, p, 30). Assim, os motivos não sendo –
como mostramos aqui – formas fixas, tampouco estruturas cênico-musicais imutáveis,
tem sua função organizadora fragmentada. Wagner utilizava esse recurso no intento de
possibilitar que o espectador formasse uma unidade auditiva enraizada nessas ideias
motívicas. Contudo, a recolocação dos leitmotive em momentos, situações, emoções e
personagens diferentes, elimina essa possibilidade, pois, o fato desses motivos “(...) não
se darem de forma previsível e direcional obriga-nos a quebrar, internamente, com a
3
Erde no alemão significa “Terra”.
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linearidade da audição concreta”. (IBID. p, 33) Voltemos, momentaneamente para
Nietzsche. Dentre os diversos caminhos argumentativos que poderíamos tomar aqui,
vamos retomar O Caso Wagner tendo em vista duas características acerca dos Leitmotive
que dão vazão para Nietzsche chamar a arte wagneriana de décadent e hipnótica: a
primeira seria a função dramática dos motivos condutores de Wagner e a segunda
característica se refere à fragmentação auditiva. Wagner se tornou – para Nietzsche –
mais um orador, um homem do teatro do que um músico. Buscar a “semiótica de sons
para os gestos” significa, justamente, transferir a legitimação do discurso musical para a
cena, ou seja, tirá-la da música. O leitmotiv, ou nas palavras de Nietzsche, as “pequenas
unidades”, são, inicialmente, substratos sonoros e musicais, mas, posteriormente elas
perdem essa característica. Enquanto matéria (o som instrumental propriamente dito) o
leitmotiv é reconhecido dentro da partitura musical como parte fundamental da estrutura
composicional wagneriana, mas seu fundamento modifica-se quando ele – o som do
motivo – se filia à cena. O sentido sonoro se legitima, aqui, num objeto cênico, assim, os
motivos “se tornam visíveis”. Mas os sons não se agregam semanticamente apenas aos
gestos, mas também ao enredo. A forma como cada célula musical é construída tem uma
relação diretamente vinculada ao sentido da estória mesma. Sabemos que os motivos
wagnerianos não são figuras de reconhecimento dramático – pois não são fixos – e que,
em verdade, existe uma determinada expansividade, progressividade e flexibilidade na
utilização quase arquetípica dos Leitmotive. Para Nietzsche, aquilo que faz da música
wagneriana um corpus coeso, é precisamente aquilo que elimina, isto é, ou compromete
sua coesão. Entendamos da seguinte forma: o sentido musical de um drama de Wagner é
articulado pelos motivos e atinge, assim, certo télos. Isso porque os motivos se
desenvolvem – orientados por metas – no intuito da correlacionar cenas, períodos e até
mesmo atos inteiros (talvez um drama todo). Esse método de Wagner possibilita a coesão
dramática. Mas ao mesmo tempo, segundo Nietzsche, essa coesão é transferida da música
para cena. Enquanto “homem do teatro” Wagner é um gênio, mas enquanto “homem da
música” ele é um anarquista musical. Tornar a cena, o ato e o drama coesos, significa
tornar a música apenas…
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II. A melodia wagneriana: a “melodia sem fim”
Para tratar da fragmentação da audição na música de Wagner, utilizemos o
compositor Bach (figura 4) como contraponto da música wagneriana. Tentemos “ju ntar”,
pois, argumentativamente, as três citações. No Minueto em Sol maior (G) de J. S. Bach –
“do Pequeno livro de Anna Magdalena Bach” - encontramos um método composicional
tão típico do compositor como do período em que está inserido: o Barroco. Aqui ve mos
uma composição relativamente “simples”. Expõe-se um tema (tema A: do compasso 1 ao
16), que sai de sua tônica, o sol (G: compasso 1), e termina num primeiro momento em
sua dominante, num ré (D: compasso 8). A dominante aqui, tem o papel de criar uma
tensão – dissonância - para que o tema seja reexposto, terminando, num segundo
momento, na tônica, resolvendo, assim, uma tensão que foi criada. Depois o Minueto
apresenta outro tema (tema B) fazendo o mesmo processo. Essa forma “simples” que
contém 16 compassos, subdivididos em 8 compassos em cada parte (forma AB), expressa
uma forma estrutural em que cada elemento e parte se relacionam diretamente com o
todo. Sua consequente apreciação, por sua vez, se estabelece na audição da hierarquia
formal existente entre esses elementos.
Figura 3: Minueto em Sol Maior (G) de J. S. Bach
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De modo geral, essa análise musical do Minueto bachiano pode nos ser útil para
entender como a audição da música de Bach nos leva a uma sensação de delineamento
temporal, que se desenvolve a partir de um som hierarquicamente mais fundamental (a
tônica), se abre num momento para a expectativa de resolução (dominante) e, por fim, se
contrai em sua resolução (volta para a tônica). Com ouvidos nietzscheanos: aqui – no
minueto - o “todo vive absolutamente”, a estruturação de um arco melódico guiado por
um estado de audição que se pauta em expectativa e satisfação nos fornece a
possibilidade de percepção de uma organização sonora. Uma música assim não nos soa
como uma anarquia sonora, do contrário, a harmonia da qual ela se utiliza “é um corpus
teórico extremamente coerente e sistematizado e encerra em si uma visão de mundo
hierarquizada”. (CAZNÓK. 2000, p, 21). Ou seja, o Minueto de Bach, seguindo a linha
de interpretação de Nietzsche, não é décadent, pois concentra em si uma unidade que nos
possibilita apreciar toda sua manifestação.
Figura 4: Entrada de As Valquirias (partitura para o Violino II)
A tão conhecida abertura de As Valquírias nos leva para outro estado de audição:
o fragmentado. Se lá em Bach acompanhamos temporalmente um fluxo de ideias
musicais estabelecidos pelo “jogo” hierárquico de notas, aqui experimentamos a dúvida,
o desconforto, o sobressalto. Se lá a dissonância tem momentos de aparecimento e
funções bem estabelecidos, aqui as dissonâncias se reafirmam, adiam a resolução, evitam
a previsibilidade, são – pela pulsação de sua metragem – rasgadas. O resultado,
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musicalmente falando, é de uma audição que se imersa paradoxalmente numa inconclusão. “Incapacidade de criar formas orgânicas” é o mesmo de tomar a
decomposição como um princípio de composição. Aqui reside, segundo Nietzsche, o
instrumento para que Wagner possa dar seu passe hipnótico. Entende-se hipnose como
um processo por meio do qual o ouvinte não pode mais “visualizar” o todo e, por isso,
fica preso ao instante, processo esse em que as notas não se deixam vincular mais a frase,
que a frase não se sujeita mais ao tema e que o tema não mais se atrela diretam ente a
forma. De uma maneira mais esclarecedora, a melodia sem fim seria a caracterização
amorfa de uma linha melódica. O resultado que se tem com ela é o rompimento de uma
espécie de superfície da audição. Na experiência auditiva da abertura de As Valquirias,
por exemplo, nos sentimos imersos num ambiente de incertezas e angústias. A
sustentação de uma única nota (aqui, o Ré, tocado pelo segundo Violino), arrastada por
mais de 4 minutos, seu ornamento caracterizado pela intensificação e enfraquecimento
num espaço curto de tempo, nos faz flutuar temporalmente, tira a possibilidade de uma
apreciação distanciada, por assim dizer. Isso porque a nota não apenas se arrastada, mas
também pelo fato dela se tornar gigantesca, uma vez que as pequenas preciosidades,
apresentadas pelo compositor seriam aumentadas e redobradas. Ora, a utilização vez ou
outra de uma mistura de compassos, seja a intercalações da rítmica binária, ternária ou
quaternária, ou mesmo utilizá-las ao mesmo tempo, mostra a fraqueza métrica, ou seja,
evidencia uma décadence rítmica, por assim dizer. Voltando, ainda, no livro de Fernando
de Moraes Barros: “Localizar-se no tempo musical implica, igualmente, relacionar-se de
forma projetiva com os sons de uma dada melodia...” (p. 131). Assim, como não
podemos agir ativamente frente ao objeto – a música -, temos nossos sentidos
confundidos, como um enfermo ou como um homem embriagado que não consegue mais
compor ativamente um delineamento temporal. O que nos viabiliza entender quando
Nietzsche nos fala: “Estou longe de olhar passivamente, enquanto esse décadent nos
estraga a saúde – e a música, além disso!”. (NIETZSCHE. 1999, p, 18).
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Referências:
BARROS. F. M. O pensamento musical de Nietzsche. São Paulo: Perspectiva, 2007.
BOURGET. P. Essais de Psychologie Contemporaine. Paris: Libraire Plon, 1924.
CAZNÓK. Y. B, NETO. A. F. Ouvir Wagner – Ecos Nietzschianos. São Paulo: Musa, 2000.
DIEMINGER. S. Musik im Denken Nietzsches. Essen: Die Blaue Eule Verlag, 2002.
HANSLICK. E. Vom musikalisch-Schönen: Ein Beitrag zur Revision der Ästhetik der
Tonkunst. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft. 1973.
JANZ. C. P. Die "Tödtliche Beleidigung”: Ein Beitrag zur wager-Entfremdung Nietzsches.
In: Nitzsche-Studien: Internatiolaes Jahrbuch für die Nietzsche-Forschung. Berlim: Walter de
Gruyter, 1975.
MASCHKA. R. Wagners Ring. In: Meisterwerke Kurz und bündig. Munique: Piper, 1999.
MILLINGTON. B. (Org.) Wagner, um compêndio. Rio de janeiro: Jorge Zahar. 1995.
NIETZSCHE. F. Der Fall Wagner. Berlin: Reclam, 1986.
_____. Humano demasiado humano. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das
Letras, 2000.
_____. O Caso Wagner. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
WAGNER. R. Beethoven. Trad. Anna Hartmann Cavalcanti. São Paulo: L&PM, 2000.
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A DOUTRINA DA CAUSALIDADE E O MÉTODO DE ANÁLISE EM
DESCARTES – César Augusto Battisti
UNIOESTE
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Resumo: A presente comunicação pretende apresentar as razões da preferência cartesiana
pela análise. Razões de natureza epistêmica, quando fornecidas, dizem respeito ao fato de que
a análise é um método de descoberta (contrariamente à síntese); e, portanto, voltada à
produção da verdade, ela satisfaz à exigência cartesiana de se pôr a serviço da construção de
um novo edifício do conhecimento. Contudo, permanece a questão de saber por que a análise
funciona como método de descoberta. Ora, a via analítica é um tipo de demonstração que
procede dos efeitos às causas, cuja justificativa última se encontra na tese de que tudo o que
existe, na medida em que simplesmente existe, deve ser considerado como efeito. Com efeito,
diz Descartes: “Não há coisa existente da qual não se possa perguntar qual a causa pela qual
ela existe” (AT IX-1, 127). Portanto, tudo o que existe clama por uma causa, porque é efeito.
Logo, o método deve ir do efeito para a causa, como faz a análise; e, procedendo assim, ele
descobre as relações determinantes da inteligibilidade das coisas.
Palavras-chave: Descartes. Análise. Causalidade. Primazia do efeito.
Descartes apresenta, em diferentes momentos de sua vida intelectual, o que seria,
segundo ele, o modelo ideal de uma ciência perfeita. A expressão “scientia
perfectissima”, utilizada no Art. 24 da Parte I dos Princípios, serve adequadamente para
sintetizar o ideal regulativo do empreendimento cartesiano segundo o qual a ciência
procede das causas aos efeitos, 1 isto é, procede de modo a priori. 2 O saber se organiza a
partir do que é mais simples e primeiro, das primeiras causas ou dos primeiros princípios,
de onde todo o conhecimento restante é derivado: essa tese tradicional é afirmada
inúmeras vezes pelo filósofo, cuja gênese se remete pelo menos às Regulae, por ocasião
da afirmação da primazia da intuição em relação à dedução (na Regra 3) e do caráter
absoluto da causa (na Regra 6). 3 Se, por um lado, essa tese dificilmente pode ser
contestada, por outro lado, Descartes elege como seu método o método de análise, cujas
1
Cf. o Art. 24, da parte I dos Princípios (AT IX-2, 35; VIII-1, 14).
Cf. AT I, 250-251; XI, 47; VI, 43; VI, 63-64.
3
Ver, por exemplo, Beyssade (1996, p. 22) : «La science la plus parfaite procède a priori, c’est-à-dire des causes
aux effets, et non point a posteriori, c’est-à-dire des effets aux causes : cette thèse traditionnelle est
inlassablement répété par Descartes ».
2
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características não se ajustam, pelo menos de imediato, a esse ideal de ciência perfeita: a
análise procede dos efeitos às causas, “mostra como os efeitos dependem das causas” e,
portanto, parece proceder de modo contrário ao preconizado pelo modelo supracitado. 4
Tendo isso presente, o presente texto pretende responder fundamentalmente à seguinte
indagação: se o procedimento a priori, isto é, da causa para o efeito, é a marca da ciência
perfeita, como podemos explicar a preferência cartesiana por um método, a análise, que
procede de modo inverso, do efeito para a causa ou a posteriori? Como pôde Descartes
defender simultaneamente o ideal de uma ciência perfeita e o método analítico, se o
primeiro procede da causa para o efeito e o segundo do efeito para a causa? Muitas vezes
tem sido dito que a escolha da análise em detrimento da síntese se dá fundame ntalmente
em razão do fato de a primeira ser um método de descoberta (e de demonstração),
enquanto a segunda é apenas um método de demonstração. Descartes efetivamente quer
construir um novo edifício do conhecimento e, portanto, precisa descobrir as verdad es
constituintes do edifício desde os seus fundamentos e, portanto, esse ponto de vista é
aceitável. Entretanto, essa resposta não dá conta das razões pelas quais a análise é um
método de descoberta (e a síntese não) e, portanto, não dá uma resposta defini tiva à
questão da escolha pela análise. Essa resposta será dada aqui a partir da doutrina da
causalidade. Embora o filósofo não tenha elaborado, de forma unitária, um tratado sobre
a causalidade, é possível afirmar que ele possui uma doutrina sobre o assun to, encontrada
principalmente nos textos de metafísica. É na Meditação Terceira, durante a primeira
prova da existência de Deus, que Descartes expõe, pela primeira vez, a elaboração mais
completa de sua doutrina da causa. Nesse texto, o autor apresenta o que se convencionou
chamar de “princípio de causalidade”, estabelecido pela luz natural: “é coisa manifesta
pela luz natural que deve haver ao menos tanta realidade na causa eficiente e total quanto
no seu efeito” e que, portanto, não apenas “o nada não poderia produzir coisa alguma,
mas também que o mais perfeito, isto é, o que contém em si mais realidade, não pode ser
uma decorrência e uma dependência do menos perfeito”. E, portanto, dado que o nada
4
Ver novamente Beyssade (1996, p. 14): «l’analyse peut partir du complexe donné pour aller, non pas vers un
autre particulier complexe, mais vers les notions premières et universelles enveloppés par le particulier donné».
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não pode produzir coisa alguma nem o menos perfeito produzir o mais perfeito, a
exigência da causa, positiva e atual, é universal: sua presença é necessária à produção de
todo tipo de realidade, sejam coisas (uma pedra), propriedades (o calor) ou mesmo
representações de coisas e de propriedades (a realidade objetiva da ideia de pedra ou de
calor). As Objeções e Respostas possibilitam uma melhor compreensão da doutrina da
causalidade. Nas Primeiras Respostas, diz Descartes que ele jamais afirmara ser
impossível que uma coisa seja causa de si. E, embora esse tema seja fundamental para a
discussão da noção de causalidade divina, ele é esclarecedor para a causalidade em geral.
Nesse contexto, o autor define o que entende por causa eficiente e desvincula causalidade
de anterioridade da causa em relação ao efeito. Para o filósofo, a eficiência da causa
significa tão somente a capacidade da causa de dar conta da produção do efeito, sem que
aí esteja envolvida qualquer questão relativa à sucessão temporal: não se encontra
presente na noção de eficiência a noção de anterioridade da causa em relação ao que ela
produz. E, assim, Descartes substitui a sucessão pela simultaneidade causal. Diz ele: “a
luz natural não nos dita que o próprio da causa eficiente seja preceder no tempo ao seu
efeito: ao contrário, falando propriamente, ela não tem o nome nem a natureza de causa
eficiente senão enquanto produz seu efeito; e, portanto, ela não é anterior a ele” (AT VII,
108; IX, 86). Essa mudança da doutrina da causa em relação à doutrina dominante na
época é reafirmada também em outros lugares e reconhecida pelos especialistas: a causa é
simultânea ao efeito; ela se faz causa na simultaneidade da produção do efeito. E isso não
vale apenas para Deus como causa de si (para evitar a contradição de que Ele é anterior a
si mesmo), mas é válido para todo tipo de relação causal. Nesse sentido, a tese da
simultaneidade, somada às outras já citadas, concretiza uma profunda alteração na
natureza da relação causal: ela imprime um sentido operatório à causalidade em
detrimento de um sentido voltado à compreensão da essência da causa: a causalidade se
limita à sua capacidade operativa e produtiva do efeito e revela a causa apenas na
proporção exigida pelo efeito. Dito isso, seguem duas considerações principais. A
primeira estabelece que a causa se revela apenas na exata medida exigida pelo efeito:
embora a causa possa ser eminente, isto é, exceder em realidade ou excelência ao efeito,
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ela se revela na relação causal apenas como realidade formal, dado que, na produção do
efeito, ela precisa ser apenas tão excelente quanto ele: ela não revela seu possível
excesso, dado que sua eficiência não exige isso. 5 A segunda estabelece que, não havendo
anterioridade temporal, a causa se faz causa apenas quando produz o efeito: uma entidade
pode existir antes, mas neste caso ela não é, ainda, causa. Essas duas condições
estabelecem os limites da inteligibilidade da causa: ela se limita ao que exige o efeito e
se institui como causa apenas na simultaneidade do efeito. Assim, a causa é a razão do
efeito, sem ser ela inteligível para além do que exige o efeito. O passo seguinte e
definitivo para os objetivos do presente texto diz respeito ao que afirma explicitamente o
Axioma I da Exposição Geométrica. Vejamos o que diz o Axioma I:
Não há coisa existente da qual não se possa perguntar qual a causa pela qual ela
existe. Pois isso se pode perguntar até mesmo de Deus: não que tenha necessidade
de alguma causa para existir, mas porque a própria necessidade de sua natureza é a
causa ou a razão pela qual não precisa de qualquer causa para existir.
Esse axioma tem cinco elementos principais: a) Descartes reafirma a
universalidade da abrangência da causa; b) a universalidade diz respeito muito mais à
exigência da causalidade do que a existência de uma causa: Deus se submete à
causalidade, mas efetivamente não tem causa (pelo menos distinta de si); c) e, portanto,
Deus é causa de si, porque é razão de si, ao contrário dos entes finitos, cuja razão é razão
por ser causa; d) assim, a identidade entre causa e razão vale para entes fin itos e para
Deus, mas com direção oposta: em Deus a noção prioritária é a de razão, contrariamente
ao que ocorre nos entes finitos, em que a primazia é da causa; e) finalmente – e o que
aqui é mais importante –, há essa afirmação aparentemente inofensiva que diz que “não
há nada sem causa”. Este Axioma I não afirma a mesma coisa que o princípio de
causalidade ou que os Axiomas 3 e 4 que vêm em seguida. Estes axiomas dão ênfase ao
que a causa deve satisfazer: a causa de algo não pode ser o nada nem algo meno s
perfeito. O Axioma I faz algo distinto: ele dá ênfase ao efeito, por afirmar que tudo o que
existe tem uma causa e, portanto que de tudo o que há podemos exigir uma causa. Em
outras palavras, ele diz que tudo o que existe é efeito; e, só por isso, podemos exigir uma
5
Assim, primeiramente Deus se revela como causa formal da ideia de Deus que tenho.
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causa. E, assim, parece que há aqui o coroamento da doutrina cartesiana da causa, na
medida em que, se ser causa é ser eficiente na produção do efeito e se ela se revela
apenas na proporção exigida pelo efeito, não apenas a causa não é causa sem efeito e não
pode ser dimensionada sem a medida proporcionada pelo efeito, mas, sobretudo, é o
efeito que acusa a existência da relação causal. Mais do que isso: não só todo
encadeamento causal se denuncia quando algo se institui como efeito, mas tudo q ue
existe é efeito. Por isso, existir é sinônimo de ser efeito; não há coisa alguma, nada
mesmo, da qual não se possa dizer que seja um efeito e, portanto, que não se possa
perguntar pela sua causa. É este o primeiro axioma cartesiano da causalidade: “Não há
coisa existente da qual não se possa perguntar qual a causa pela qual ela existe”. Esse
axioma estabelece a primazia metodológica do efeito sobre a causa. Ontologicamente, a
causa continua tendo primazia em relação ao efeito: ela lhe dá existência, o pr oduz e tem
independência frente a ele; o efeito não modifica a sua causa nem retroage
ontologicamente sobre ela. Epistemicamente, a causa é anterior e independente ao efeito;
ela é o absoluto e ele o relativo; ela é a razão do efeito; ela produz a inteligi bilidade do
efeito. Temporalmente, embora possa preexistir ao efeito, uma entidade se faz causa na
simultaneidade da emergência do efeito; eles são correlata. Metodologicamente, contudo,
é o efeito que clama pela causa; e, como tal, embora instituído simultaneamente à causa e
determinado por ela, é ele que denuncia a relação causal. Ou melhor, ele a denuncia
exatamente porque só existe ou é real por ter sido determinado por ela. A entidade -efeito
é uma relação aberta, enquanto a entidade-causa existe como preenchimento da relação
instituído pelo efeito. Uma entidade qualquer não se denuncia como causa (mas apenas
como causa possível). Como admite Carraud, para Descartes, “existir é admitir uma
causa” (p. 505), isto é, existir é ser efeito. Este é o primeiro axioma da Exposição
Geométrica. Embora seja evidente que é o efeito que é determinado pela causa, certo é
que a causa, pura e simplesmente, não facilita a apreensão do que dela se segue: uma
coisa não revela os seus efeitos. Parece que estamos autorizados a dizer que, embora a
causa seja suficiente para produzir o efeito – e, portanto, ela determina a natureza e a
existência do efeito –, o exame de alguma coisa qualquer (ainda que a postulemos como
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causa de algo) não revela os seus efeitos, visto que a compreensão de uma coisa não
implica compreendê-la como causa. Implica, contudo, compreendê-la como efeito. Em
outras palavras, pode-se compreender uma coisa sem compreendê-la como causa, mas
não podemos compreendê-la sem compreendê-la como efeito. É essa a consequência do
Axioma 1 da Exposição geométrica: “Não há coisa existente da qual não se possa
perguntar qual a causa pela qual ela existe”. Essa tese, dentro dos objetivos do presente
texto, implica duas coisas: 1) compreender algo ou dar a razão de algo é determinar a sua
causa, a causa eficiente; 2) embora a causa determine ou produza o efeito (uma
determinação no sentido da causa para o efeito), é o efeito que exige a causa como
elemento determinante de sua inteligibilidade (uma orientação no sentido do efeito para a
causa): compreender uma coisa é compreendê-la, antes de tudo, como efeito e como
efeito de uma causa. 6 Nesse sentido, a inteligibilidade de algo não implica a
determinação de seus efeitos; ao contrário, não só implica a causa, mas se reduz à
determinação causal. Por isso, a causalidade é a razão das coisas, é ela que produz a
inteligibilidade das coisas. Descartes institui, portanto, a causalidade como relação
responsável pela inteligibilidade das coisas. Explicar é dar a razão de algo; e dar a razão
é fornecer a causa; a inteligibilidade se resume nisso. Há equivalência entre causa e
razão, entre causalidade eficiente e razão: causa sive ratio; e, por isso, de tudo exige-se
uma causa, há uma exigência universal da causa. A causalidade é o âmbito da explicação
de qualquer coisa que seja. Assim, a causa eficiente (única e total) é suficiente para
produzir sozinha e adequadamente o efeito. Ela é também a razão das coisas: ela não só
produz as coisas, mas é o fundamento da compreensão das coisas. Por isso, as coisas
exigem que perguntemos pelas suas causas. Logo, as coisas são, antes de tudo, efeitos
que pressupõem causas e exigem que as determinemos. A pergunta pela causa é uma
pergunta que nos conduz em uma direção contra a corrente (de trás para frente), da coisa
axiomaticamente instituída como efeito em busca da causa. O movimento imposto pela
noção de inteligibilidade como determinação causal é um movimento que tem um ponto
de partida estabelecido: toda pergunta sobre algo pode assumir, de antemão, esse algo
6
Essa exigência é válida mesmo para Deus, a partir do que Descartes elabora a tese de que Deus é causa sui.
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como efeito. Tudo o que existe é efeito, é um algo-efeito. Compreender algo é
compreendê-lo como efeito, isto é, é determinar a sua causa. E, assim, tudo o que existe,
por mais desconhecido que seja, é dado e é dado como efeito. E, nesse contexto,
entendem-se as razões pelas quais a análise é escolhida como método por Descartes, na
medida em que ela parte dos efeitos e vai à procura das causas. Ela é um método que
procede de trás para frente fundamentalmente porque tudo o que existe é efeito e exige
uma causa.
Referências:
ADAM, C. & Tannery, P. (AT). (Ed.). Œuvres de Descartes. Paris: Vrin, 1996. 11 v.
BATTISTI, C. A. “O método de análise cartesiano e o seu fundamento”. Scientiae Studia, vol.
8, n. 4, out.-dez., 2010, pp.571-596.
BEYSSADE, J.-M. “Scientia perfectissima. Analyse et synthèse dans les Principia ” In : J.-R.
ARMOGATHE, G. Belgioioso (dir.), Descartes: Principia Philosophiae (1644-1994),
Napoli, Vivarium, 1996, pp. 5-36.
Carraud, V. Causa sive ratio: la raison de la cause, de Suarez à Leibniz. Paris: PUF, 2002.
DESCARTES, R. Discurso do método; Meditações; Objeções e respostas. 3. ed. São Paulo:
Abril Cultural, 1983. (Coleção Os Pensadores).
DESCARTES, R. Regras para a direcção do espírito. Lisboa: Edições 70, 1985.
LOPARIC´, Z. Descartes heurístico. Campinas, SP: IFCH/ UNICAMP, 1997.
PAPPUS DE ALEXANDRIA. La collection mathématique. Paris: A. Blanchard, 1982.
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A ESCRITA COMO ENSAIO EM UMA FILOSOFIA DE FORMAÇÃO: A
NARRAÇÃO PARA ALÉM DA VIOLÊNCIA QUE IMAGEM E CONCEITO
PRATICAM UM AO OUTRO – Leandro Nunes
UNIOESTE/Escrileituras – Ações Afirmativas
[email protected]
Resumo: Tendo como norte o gênero literário conhecido como romance de aprendizado ou
de formação, e a noção do cuidado de si postulada pelo filósofo Michel Foucault, o presente
trabalho intenta expressar aquilo que designamos como Filosofia de Formação. A filosofia de
formação pode ser compreendida como uma técnica que – assim como o romance de
formação – relata pormenorizadamente o aprendizado e a formação do homem, técnica
atravessada pela noção do cuidado de si. Entendendo técnicas de si a partir de Foucault, ou
seja, práticas pelas quais os indivíduos se constituem como indivíduos. Os escritores que
relatam a vida, não relatam a memória somente, mas fabulam devires passados ativados em
um presente perpétuo, uma vez que a própria filosofia é uma forma de vida, um elo entre
interior e exterior.
Palavras-chave: Filosofia de Formação. Escrita-leitura. Cuidado de si.
O romance de formação nasce com os escritos de Goethe, mais precisamente
com a obra Os anos de aprendizagem de Wilhelm Meister. Neste romance, Goethe relata
minuciosamente os acontecimentos que marcam o início da formação – psicológica,
espiritual e social – do jovem Wilhelm. O romance de formação é um relato histórico,
que enfoca os acontecimentos mais importantes da formação pessoal de um determinado
personagem. E partindo deste gênero literário é que propomos uma Filosofia de
formação. Pensando em trabalhar o conceito de formação pessoal, parece-nos necessário
levar em conta a noção do cuidado de si inferida pelo filósofo francês Michel Foucault. O
cuidado de si é entendido por Foucault como sendo tecnologias do Eu, modos de
subjetivação. Na obra intitulada A Hermenêutica do Sujeito, Foucault apresenta técnicas
do “cuidado de si”, modos de conectar-se consigo mesmo; técnicas que possibilitam um
modo de vida pleno em si mesmo. Segundo Foucault, o cuidado de si possui uma íntima
relação com a filosofia e o filosofar, sendo congruente à atividade filosófica: “a prática
de si foi um imperativo, uma regra, um modo de agir que teve relações muito
privilegiadas com a filosofia, os filósofos, a própria instituição filosófica” (FOUCAULT,
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2006, p.185). O que propomos neste trabalho é um modo de formação pessoal que
estabelece suas bases em um modo de filosofar; em uma filosofia que é pensada no
horizonte do romance de formação e atravessada pelas técnicas do cuidado de si. A
filosofia de formação nasce no que a difere do romance de formação, ou seja, no que
concerne à forma de relato que ambas empregam.
***
A formação de um indivíduo começa com um momento de agitação, geralmente
na infância ou na adolescência. E é nesta agitação que o ensaio filosófico formativo tem
seu início. Pois, parece-nos que a formação do homem é atravessada por uma forma de
escrita que se coloca no seio da própria formação:
O estilo de um escritor, é sempre também um estilo de vida, de nenhum modo algo
pessoal, mas a invenção de uma possibilidade de vida, de um modo de existência. É
curioso como os filósofos são entendidos como homens que não têm estilo, ou que
escrevam mal. Deve ser porque não se os lê (DELEUZE, 2010, p. 130).
Como supracitado, o romance de formação relata acontecimentos que permeiam
o aprendizado e a formação de um determinado personagem. Usualmente, este relato
ocorre de forma superficial e prevê intrinsicamente, que o leitor acompanhará os
acontecimentos narrados. Não há preocupação em adentrar nos anseios e afetos que
impulsionaram tais acontecimentos formativos. Segundo Deleuze, existem duas formas
de considerar e relatar um acontecimento:
Há duas maneiras de considerar o acontecimento, uma consiste passar ao longo do
acontecimento, recolher dele sua efetuação na história, o condicionamento e
apodrecimento na história, mas a outra consiste em remontar o acontecimento, em
instalar-se nele como um devir, em nele rejuvenescer e envelhecer a um só tempo,
em passar por todos os seus componentes ou singularidades (Idem, p. 215).
O romance de formação segue a primeira maneira, narra os as efetuações
decorridas em um determinado momento da história de um determinado personagem;
para isso, faz uma leitura superficial dos fatos, deixando de lado sutilezas que constituem
ou propiciam os acontecimentos narrados. O que propomos como filosofia de formação
se aproxima da segunda maneira de considerar um acontecimento inferido por Deleuze.
Na obra Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, Goethe narra de uma forma
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histórico-filosófica as aventuras de um jovem rapaz em processo de formação; tal obra,
tem como tema central “a reconciliação do indivíduo problemático, guiado pelo ideal
vivenciado, com a realidade social completa” (LUKÁCS, p. 138). O foco principal da
narração é mostrar os conflitos que assolam Wilhelm em sua necessidade perturbada de
“reconciliação entre interioridade e mundo” (Idem, p. 138). No fundo, os conflitos que
movimentam a jovem alma de Wilhelm estão intrincados em uma profunda solidão que
somente é superada por meio de vínculos estabelecidos nas estruturas da sociedade. A
narrativa em torno da figura de Wilhelm Meister reflete as convicções políticas e sociais
de Goethe, que “caracterizam a permanência hesitante de Goethe nos vestíbulos do
idealismo, do iluminismo alemão, que ele transpôs mais tarde na direção de um
humanismo ecumênico” (Idem, p. 158). Em última instância, o que o leitor pode retirar
da obra de Goethe – e de toda obra do romance de formação – é um relato histórico e
superficial da formação de um homem inserido num determinado contexto histórico, um
relato que raramente pode ser atualizado. Em suma, não é possível imaginar uma ruptura
com a tradição que engessa o movimento formativo narrado no romance, tornando -o
assim inoperante fora das condições que a própria narrativa determina.
***
O cuidado de si é um imperativo que leva o homem a uma compreensão dos
problemas do mundo e das potencialidades que lhe são inerentes. Uma noção que parece nos ser o elo que Goethe procurava encontrar entre a interioridade e o mundo. O
preocupar-se consigo é um modo de vida, um modo de vida formativo, é uma agitação,
uma inquietação que marca o ponto de partida da formação pessoal do homem:
O cuidado de si é uma espécie de aguilhão que deve ser implantado na carne dos
homens, cravado na sua existência, e constitui um princípio de agitação, um
princípio de movimento, um princípio de inquietude no curso da existência
(FOUCAULT, 2006, p. 11).
Mas o que é cuidar-se de si? Para Platão é ocupar-se com Alma. É conhecer-se a
si mesmo, e conhecer-se a si mesmo é ter um modo de vida que se aproxima do que é
divino. Por outro lado, nos Estoicos, o cuidar-se de si toma outro sentido, tornando-se um
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princípio geral e incondicional, uma máxima levada por todos os homens sem exceção. Já
no período cristão, cuidar-se de si é renunciar-se a si. Essa renúncia de si é uma prática
de salvação, uma prática que visa outra vida, uma vida que requer uma renuncia da vida
terrena. Segundo Foucault, no período cristão, o renunciar-se a si é um movimento que
passa necessariamente “pela objetivação de si num discurso verdadeiro” (Idem, p. 401).
***
Entendemos que a formação do homem passa por uma forma de discurso, um
discurso que por si só é uma técnica formativa. Formar é definir: uma marcação de
limites, uma descrição dos afetos que movem o espírito, pois entendemos que a formação
pessoal é um exercício da alma, um exercício a ser descrito, uma descrição “de tudo que
se apresenta ao espírito.” (Idem, p. 355). O que intentamos é estabelecer uma narração
formativa, uma narração em devir. A escrita na filosofia de formação possui um papel de
outro, um papel reflexivo, que por si só é formativa, pois é a anotação de movimentos,
movimentos que podem ser ativados pelo leitor. A escrita circula “por toda parte, sem
saber a quem deve ou não falar, a escrita destrói todo fundamento legítimo da circulação
da palavra, da relação entre os efeitos da palavra e as posições dos corpos no espaço
comum.” (RANCIÈRE, 2009, p. 17). A escrita carrega em si uma potencialidade, uma
forma de ligação entre homens, entre o vivido e o que se pode viver. Os escritores
precisam mais do que memórias para criar, pois eles relatam a vida, e não a memória
somente. Os escritores fabulam devires passados sob uma ativação do presente:
A fabulação criadora nada tem a ver com uma lembrança mesmo amplificada, nem
com um fantasma. Com efeito, o artista, entre eles o romancista, excede os estados
perceptivos e as passagens afetivas do vivido. [...] Ele viu na vida algo muito grande,
demasiado intolerável também, e a luta da vida com o que a ameaça, de modo que o
pedaço de natureza que ele percebe, ou os bairros da cidade, e seus personagens,
acedem a uma visão que compões, através deles, perceptos desta vida, deste
momento, fazendo estourar as percepções vividas numa espécie de cubismo, de
simultanismo, [...] que não têm mais outro objeto nem sujeito senão eles mesmos.
[...] trata-se sempre de liberar a vida lá onde ela é prisioneira, ou de tentar fazê-lo
num combate incerto (DELEUZE, 1992, p. 222).
A escrita é uma forma de ver e pensar – no sentido de criar – a existência, é uma
forma de aprendizado, uma técnica de formação pessoal. Segundo Peter Haidu (2006), a
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narrativa é um modo pelo qual o homem compreende e constitui sua existência, uma
narração dos desejos e sentidos que norteiam sua vida e constituem sua subjetividade. A
escrita é formativa no sentido de que por si mesma já é um processo de formação, um
emaranhado de rascunhos e de anotações, de pensamentos cuidadosamente selecionados:
Pode-se dizer que a escrita de um incomparável escritor, [...] está mais entremeada
por rasuras, artifícios da forma, mas quer constituir-se na e pela rasura. Adota a
rasura como um estatuto paradoxal para a própria escrita, uma escrita na qual seus
procedimentos, operações, mecanismos, voltam-se à composição de textos com fins
e expressá-los para produzir o máximo de efeito ao leitor-ouvinte, leitor que se ouve
e hesita a significar o lido entre o som e o sentido (ADÓ, 2011, p. 9).
Um homem em formação pessoal por uma escrita em formação, essa é a base
daquilo que nomeamos de filosofia de formação. Na filosofia de formação, o que é
narrado é apagado pelo que é lido, deixando apenas “uma mancha de sentido, uma
tentativa de deliberar todo um orbe por meio de qualidades próprias, negar-se ao afirmarse, atuar por meio de cortes e desvios, [...] reescritas, [...] atualizações, por fim,
incompletudes.” (Idem, p. 9). A filosofia de formação é um tipo de narração em que a
história narrada é apenas um subsídio para a narração de outras histórias. Mas, a narração
não deve ser compreendida como uma simples rasura ou um simples esboço, ela carrega
em si um “esforço de pensamento e, [...] indicativos de questões; o que acontece, enfim,
antes do começo.” (BIATO e OLINI, 2011, p. 9). Em suma, a narração filosófica
formativa, traz em si, o que vêm antes do começo (da formação). De uma vida vivida e
relatada pela escrita filosófica formativa, não se escapa nem “o silencioso “estar -imersoem-si-mesmo” [...] nem [...] os conteúdos factuais da própria vida.” (BENJAMIN, p. 52).
No fundo, viver é narrar “o medo perante o poder da vida e de sua amplitude, motivado
pela reflexão; o medo de que a vida possa fugir do controle.” (Idem, p. 52). Em última
instância, o que pretendemos estabelecer é uma filosofia formativa de significação, que
signifique ao leitor os passos da formação pessoal de um homem através da escrita:
Escrever é o ato que, aparentemente, não pode ser realizado sem significar, ao
mesmo tempo, aquilo que realiza: uma relação da mão que traça as linhas ou signos
com o corpo que ela prolonga; desse corpo com a alma que o anima e com os outros
corpos com os quais ele forma uma comunidade; dessa comunidade com a sua
própria alma (RANCIÈRE, 1995, p. 7).
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No ensaio filosófico de formação fala-se de lugares, de coisas, de pessoas, de
história, mas, sobretudo, fala-se da construção e formação solidificada que é o homem.
Na filosofia de formação narra-se para além da “violência que imagem e conceito
praticam um ao outro, [...] no qual as palavras vibram de comoção, enquanto se calam
sobre o que as comoveu.” (ADORNO, 2008, p. 21), pois, é justamente o que comove o
ponto de partida para a formação pessoal de um sujeito, e, assim sendo, este é o começo
da filosofia de formação. Na filosofia de formação, o ensaio filosófico formativo pode ser
entendido como um ensaio em que “a descontinuidade é essencial [...] seu assunto é
sempre um conflito em suspenso.” (Idem, p. 35), uma busca por um elo entre alma e
realidade fragmentada:
O ensaio pensa em fragmentos, uma vez que a própria realidade é fragmentada; ele
encontra sua unidade ao busca-la através dessas fraturas, e não ao aplainar a
realidade fraturada. [...] Escreve ensaisticamente quem compõe experimentando;
quem vira e revira o seu objeto, quem o questiona e o apalpa, quem o prova e o
submete à reflexão; quem o ataca de diversos lados e reúne no olhar de seu espírito
aquilo que vê, pondo em palavras o que o objeto permite vislumbrar sob as
condições geradas pelo ato de escrever. O caráter aberto do ensaio não é vago como
o do ânimo e do sentimento (Idem, p. 35 – 36).
O ensaio filosófico formativo deve ser entendido como “a forma da categoria
crítica de nosso espírito.” (Idem, p. 38). Em suma, a necessidade de uma filosofia de
formação está contida na compreensão da existência, uma compreensão subjetiva e não
essencial, reflexiva e profunda, uma compreensão de técnicas de si, do cuidado de si, de
processos de subjetivação.
Referências:
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2009.
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Janeiro: Editora 34, 2006.
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A FILOSOFIA PRÉ-SOCRÁTICA DE KARL R. POPPER – José Provetti Junior
UNIOESTE /Bolsista CAPES
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Resumo: Esse texto almeja apresentar a fundamentação teórica sobre a qual o filósofo e
espistemólogo Karl R. Popper estruturou sua teoria do conhecimento e teses correlatas a ela
partindo da hipótese de trabalho que diferentemente do que se pensa, seus referenciais
teóricos se encontram nos inícios do pensamento racional, com os chamados filósofos présocráticos em detrimento do que se supõe estar ancorado nas vertentes do pensamento
moderno e contemporâneo, para cumprir o que Popper assinala como sendo a revivescência
da criatividade, liberdade e originalidade racional que supostamente estaria soterrada nos
variados comentários técnicos dos especialistas no âmbito da História da Filosofia e
metodologicamente com a adoção da indução no exercício da ciência.
Palavras-chave: Karl R. Popper. Epistemologia. Filosofia Pré-socrática.
No curso de mestrado em Filosofia Moderna e Contemporânea, desenvolvido
pelo programa de Pós-graduação stricto sensu de Filosofia na Universidade Estadual do
Oeste do Paraná – UNIOESTE fora apresentada uma proposta de projeto de dissertação
que tinha como objetivo investigar as bases histórico-filosóficas do pensamento de Karl
R. Popper, eminente filósofo e epistemólogo do século XX cuja perspicaz e audaciosa
filosofia desmitificou a capacidade de distinção definitiva entre metafísi ca e ciência,
proposta pelo então Círculo de Viena, no início do referido século, através do que
chamou de “princípio da falsiabilidade” ou “de refutabilidade”. Além do referido feito,
Popper adotou uma postura extremamente ativa no exercício filosófico, participando de
diversos eventos técnicos, atuando como parecerista de periódicos especializados em
teoria do conhecimento e filosofia em geral, lecionou na Inglaterra vários cursos e
palestras através das quais sempre posicionou-se humildemente enquanto quem espera
uma conjectura mais aguçada que a dele para avançar no conhecimento. Essa curiosa
postura, aberta às críticas e reavaliações constantes de seus trabalhos assinalaram um
comportamento incomum a maioria dos filósofos, pois no geral, tende-se a instituir certo
parâmetro teórico e conceitual e ao estabelecer-se dodo arcabouço teórico, a maioria dos
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praticantes de filosofia se encastela na segurança de suas proposições, pouco afeitos a
revisões, em especial, no que tange a pontos axiomáticos de suas teses. Popper, ao
contrário, aventurava-se em seus cursos, exposições e eventos à provocação temática,
instigando os ouvintes e/ ou seus interlocutores a não aceitarem passivamente sua
argumentação, mas que tentasse refutá-la, de modo a exercerem a crítica racional e a
ampliar o conhecimento conjectural a respeito do assunto. No sítio denominado “domínio
público” (BRASIL, 2004) observa-se a ocorrência de apenas três referências que versam
sobre partes do pensamento de Popper, a saber: “A democracia e seus inimigos: um
estudo sobre os conceitos de bonapartismo e totalitarismo” (LUIZ, 2008), “A
objetividade do conhecimento: interação entre os três mundos popperianos” (SILVA,
2008) e “Teoria e História na Geologia” (ODY, 2005). Em outras instituições de Ensino
Superior constatou-se uma dissertação na UFRGS, intitulada “Avaliação de performace
organizacional segundo a gestão de qualidade: um estudo de caso em um sistema de
produção de energia elétrica” (GONÇALO, 1995), “O problema da verdade no
conhecimento no racionalismo crítico” (SCHORN, 2008), “Popper, Hayek e a
(Im)Possibilidade de predições específicas nas Ciências Sociais” (FERNANDES, 2000),
“A indução e a demarcação na epistemologia de Karl Popper e Rudolf Carnap” (LISTON,
2001), “Explicação causal e indeterminismo na filosofia de Karl Popper” (STUBERT,
2007) dentre assinalam o caráter moderno e contemporânea do pensamento popperiano.
Contudo, acredita-se que em sua radicalidade, a filosofia de Popper se esteia nas
reflexões dos seguintes pensadores: Tales e Anaximandro de Mileto, Heráclito de Éfeso,
Xenófanes de Cólofon, Parmênides de Eleia, Demócrito e Leucipo de Abdera e de Platão,
uma vez que o próprio Popper o assinala em sua obra “The World of Parmenides: Essays
on the pressocratic enlightenment” (POPPER, 2002) em processo de versão pelo autor
deste artigo e de revisão da versão por seu orientador, o professor de Filosofia Remi
Schorn, no Programa de Pós-graduação, mestrado em filosofia moderna e contemporânea
da Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE. Embora aparentemente
surpreendente tal afirmação, constata-se por meio da leitura de Popper acima descrita
(2002) que o filósofo se mostra declaradamente amante dos pensadores pré -socráticos e
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enquanto tal, mostra uma faceta nova de seu perfil filosófico que ao menos
superficialmente, não se constata enquanto objeto de pesquisa em qualquer dos
programas de especialização stricto sensu atualmente em operação no Brasil. Portanto, a
escolha dessa temática de pesquisa deu-se devido à originalidade da investigação no
campo filosófico, devido à relevância de um reenquadramento teórico de Popper não
necessariamente
enquanto
um
pensador
estritamente
relacionado
à
filosofia
contemporânea num viés moderno kantiano, mas como um pensador contemporâneo que
tem seus referenciais teóricos fundamentados no racionalismo crítico das escolas de
Mileto e de Eleia, tanto quanto, em certa medida, no atomismo e na tradição platônica.
Além disso, percebeu-se que enquanto historiador da filosofia, Popper assinala uma
descoberta algo perturbadora que em certa medida faz refletir sobre a metodologia da
investigação científica, problematizando a questão da criação e vera aplicação do método
indutivo por Aristóteles de Estagira e a ratificação moderna daquele método, enquanto
base elementar e estrutural do método científico ratificado por Francis Bacon. Segundo
Popper (2002) a invenção de Aristóteles seria a responsável pela abafamento do impulso
criativo e ousado do pensamento cosmológico e racionalista crítico dos pré-socráticos, na
medida em que a Lógica, agindo por indução na busca do estabelecimento da episteme,
enquanto “conhecimento verdadeiro” por ser demonstrável; ao ser ratificado enquanto
método por Bacon posteriormente, obliterou a percepção tradicional helênica e fil osófica
do conhecimento conjectural ser vivencialmente racionalizado (no sentido de logos e não
de ratio (cfe. Provetti Jr, 2012) e crítico, instaurando certa circularidade que limita e
estorva as práticas da filosofia e da ciência, uma vez que a maior parte das descobertas
desses campos é de ordem hipotético-dedutiva, em detrimento da indução. Aos leitores de
Popper, basta esse breve apresentação para se notar o embasamento teórico sobre o qual
Popper instaurou sua reflexão levada a efeito em sua “A lógica da investigação
científica” (2008) na qual a preocupação básica é estabelecer um critério de demarcação
entre metafísica e ciência. Ao realizar o convite para se retornar aos gregos, Popper
corresponde e transmite o chamado levado a efeito por Z. Barbu, citado por Vernant
(1990, p. 16) que incitava a: “Back to the Greeks!”, isto é, “Volte aos gregos!”, no
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sentido de que são os helênicos a fonte original da cultura ocidental e enquanto tal,
percebe-se que alguns transtornos culturais se deram ao longo dos aproximadamente dois
mil e quatrocentos anos que separam a criação e implementação do pensamento racional
helênico (logos) à atualidade e, embora preservando-se muitos de seus aspectos, certas
distorções precisam ser corrigidas para a ampliação do conhecimento sobre o mundo e
sobre o homem. Nesse sentido, Popper (2002, p. 7-33) corresponde ao convite de Barbu e
demonstra que por mais de quarenta e dois anos empreendidos na elaboração do “The
world of Parmenides: Essays on the presocratic enlightenment” (Idem) não só investigou
os primeiros pensadores helênicos, mas de suas reflexões saltam as indicações do
aproveitamento das teses pré-socráticas em sua portentosa filosofia contemporânea, tanto
quanto em seu comportamento filosófico pessoal, ressaltando a aplicação da atitude
crítica recomendada por Tales de Mileto a seus discípulos em si mesmo, na medida em
que pôs o racionalismo crítico como o escopo teórico de seu filosofar. Nesse sentido,
Popper acredita que a filosofia, tanto quanto a ciência tem muito a ganhar em retornando
aos antigos, pois uma das consequências da aplicação do método indutivo na teoria da
ciência é a circunscrição observacional ou ainda, experiencial, enquanto critério de
verdade decorrente da aplicação da indução nos procedimentos científicos; contudo,.
Assinala Popper que ao agir assim, a ciência restringe muito suas possibilidades de
alcançar algum conhecimento real a respeito do mundo e da humanidade. Tal limitação se
dá pela firme convicção de Popper (2002, p. 7-33) quanto à impossibilidade de se
universalizar uma tese a partir de dados observacionais decorrentes de um fenômeno
particular, enquanto análise lógica do procedimento teórico e, nesse particular, reforça
que a indução, a observação e o experimento servem como critério de validação crítico ao
conhecimento proveniente do exercício dedutivo, mais amplamente recorrente no
exercício filosófico e científico. Ao mesmo tempo, Popper (Ibidem) assinala que a
adoção do procedimento indutivo dá margem à setorização incomunicável do
conhecimento, particularizando-o e restringindo a capacidade de percepção do mundo
transdisciplinar e, portanto, deve-se resgatar uma visão cosmológica do mundo, no
sentido pré-socrático e a uma teoria do conhecimento simples na qual logicamente se
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aplique a dedução enquanto fonte de possibilidades ousadas e arrojadas para a
instanciação de um conhecimento do mundo algo mais próximo da verdade. Tal
indicação se fundamenta na crença popperiana de que o problema filosófico de interesse
geral gira em torno de três temáticas básicas, a saber: entender o mundo, entender a
humanidade e o conhecimento que temos da gnosiologia; pois tudo o mais seriam
variações ou particularizações e variantes interpretativas destas questões e correlatas a
elas. Para Popper (Ibidem) a ciência, embora a tentativa do Círculo de Viena em
estabelecer uma clara distinção entre metafísica e ciência fracassar e apenas ser viável
por meio do princípio da falseabilidade, é objeto de interesse filosófico, pois enquanto
ciência, esta é em sua totalidade, cosmologia, portanto, objeto de investigação da teoria
do conhecimento enquanto teoria da ciência. No exercício tradicional tanto da filosofia
quanto da ciência, Popper (Ibidem) crê que ambos os campos perdem seus atrativos na
medida em que se tornam “especialidades”. Ora, é consequência natural do método
científico, a delimitação de certo assunto, tema e problema(s) enquanto objeto de
investigação para especificar certa abordagem para ageração do conhecimento. No
entanto, essa prática decorre do caráter indutivista do método científico que sob aplicação
positivista ou neo-positivista instaura a segmentação do saber, impossibilitando uma
visão ampla e comunicativa entre os campos gerados por seu exercício. Nota-se
perfeitamente tal fato instituído como padrão em todo o sistema educacional, na
estruturação curricular, mesmo na pós-graduação, exigindo-se o fatiamento do assunto,
tema e problema(s) enquanto critério de cientificidade e exiquidade da proposta
investigativa a ser empreendida. Essa segmentação estabelece uma divisão do mundo tão
obtusa que impossibilita, mesmo sob árduos esforços, o planejamento e execução de
trabalhos transdisciplinares, multidisciplinares ou paradisciplinar entre os campos do
saber e, simultaneamente, cria um volume de conhecimento tão amplo que ao reles mortal
torna-se inviável versar sobre uma quantidade avultada de campos de possibilidades. Ato
contínuo, tal procedimento tradicional em filosofia e ciência implica numa incapacidade
de seus usuários trasitarem efetivamente entre perspectivas diferenciadas da de sua
especialização. Portanto, para Popper (Ibidem) torna-se necessária a restauração da
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filosofia e da ciência enquanto propostas cosmológicas de conhecimento sobre o mundo,
a humanidade e sobre o próprio conhecimento e para tanto, o uso exclusivo da indução no
exercício desses campos não permite vislumbrar os enigmas do mundo. Sobre a validade
dessa assertiva popperiana, basta um olhar de relance nos editais de concurso para o
magistério filosófico do Ensino Médio, Técnico, Tecnológico ou Superior para se
assegurar quanto a inviabilidade de um saber enciclopédico de qualidade, caracterizando se tais pleitos como um vero esforço pessoal, dado o curto prazo de preparação ou um
maravilhoso golpe de sorte, ter seus estudos e predileções pessoais condizentes com o
programa estabelecido pelos colegiados das instituições! Para efetivar esse regaste da
visão cosmológica da filosofia e da ciência, Popper (Ibidem) levou a efeito uma ampla
investigação que durou quarenta e dois anos de pesquisa, interlocuções críticas e
experimentos teóricos em seus livros e apresentações técnicas, bem como em versões dos
originais em grego dos pensadores que são apresentados como matrizes de resgate na
referenciação teórica do filósofos, a saber: Tales e Anaximandro de Mileto, Xenófanes de
Cólofon, Heráclito de Éfeso, Parmênides de Eleia, Demócrito e Leucipo de Abdera e a
tradição platônica. No entanto, aplicando parte do que auriu desses estudos,
modestamente Popper se apresenta como um “amador” e não se aventura à crítica
minuciosa aos especialistas do campo da História da Filosofia Antiga, mas apenas a
alguns particulares comentários que julga serem fundamentais na interpretação que
empreende só pensamento pré-socrático e, em especial, da cosmologia filosófica antiga.
Assinala ainda, que essas teorias cosmológicas tendem a se direcionar a um problema que
considera central nessa perspectiva de revisão dos campos filosófico e científico, a saber:
a questão da mudança. Popper (Idem, p. 8) crê que investigar como os primeiros filósofos
ou pré-cientistas estabeleciam prática e teoricamente suas questões possibilita uma
retomada de seu espírito investigativo.
(…) A sua não era uma teoria do conhecimento que partia da pergunta “Como sei
que isto é uma laranja?” ou “Como sei que um objeto que agora percebo é uma
laranja?” Sua teoria do conhecimento partia de problemas do tipo de “Como
sabemos que o mundo está pleno de água?” ou “Como sabemos que o mundo está
pleno de deuses?” ou “Como podemos saber algo acerca dos deuses?
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É curioso perceber tal citação de Popper quanto à maneira com a qual os pré socráticos estabeleciam seus problema, pois é pouco falado fora do campo de História
Antiga e História da Filosofia Antiga no Brasil e mesmo assim, inexistente for a do eixo
Rio-São Paulo-Belo Horizonte, que os gregos ignoravam a sua interioridade, isto é, o seu
Eu e enquanto tal, a noção de subjetividade atuante no processo de conhecimento
inexistia. Além disso, os helênicos tinham uma estruturação e paradigma exist encial em
relação ao mundo, sua participação neste, enquanto homem e sobre o conhecimento sobre
o saber, que em muito os distancia dos atuais, levados a efeito na filosofia e na ciência.
Então, quando Popper informa que os antigos filósofos não se punham questões do tipo
“como sei”, mas ao contrário, estruturavam suas perguntas com “como sabemos” ou
“como podemos” não é uma simples questão declinativa em termos verbais que é posta,
mas sim uma distinção paradigmática de mundo, de “sujeito do conhecimento” e de
postura quanto ao conhecimento e a capacidade humana de se conhecer algo que está em
jogo. O homem helênico arcaico e parcialmente o clássico até meados do século V a. C.,
com os indícios linguísticos implícitos na lírica dos poemas de Safo de Lesbos, conforme
se vê em Zeller apud Mondolfo (1970, p. 28), a instituição do testamento personalizado
com livre transmissão de bens e a prática do banquete entre amigos privados e não mais
os banquetes civis, na polis, como afiança Vernant et al (1995, p. 14; 1987, p. 34, 35), os
cultos do Lar e dos mortos, como se vê em Coulanges (1998, p. 7-34) e os indícios do
conceito de subjetividade estudados por Provetti Jr (2000, p. 17, 19, 20, 22, 26, 27, 28,
29, 30, 32, 33, 34, 36, 37, 38, 40, 46, 63, 68, 69 e 70) dão-nos claramente a configuração
e estruturação de mundo que os antigos possuíam e que Popper tentar resgatar em sua
filosofia. Nesse sentido, em que consiste então, a proposta popperiana de retorno aos pré socráticos? Essencialmente, os helênicos arcaicos e clássicos até meados do século VI a.
C. não viam a si mesmos enquanto uma subjetividade que tem certa história de vida, tais
peculiaridades existenciais caracterizadas por sua trajetória pessoal e não desconfiava da
existência do Eu enquanto interioridade ativa no processo do conhecimento. Sua visão
geral de mundo tratava-se de um todo existencial, interativo, orgânico cuja distribuição
espacial centrava-se no Lar (lareira doméstica), desta para a Lareira Civil, na acrópole
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das polis e por conseguinte, caracterizava um perfil psicológico centrado na fogueira
doméstica enquanto portal dimensional de contato entre os vivos, os mortos e os deuses,
por meio dos cultos do Lar e dos mortos, cuja a divisão social e sexual do trabalho se
dava através dos mitos de Héstia (lareira doméstica) e de Hermes, o deus ladrão e
comerciante; respectivamente correspondentes às funções sociais da mulher (mãe de
família) e do homem (pai de família), conforme se vê em Vernant (1990, p. 27, 30 -35,
66, 69, 80-81, 88, 95-98, 103, 113, 119, 120, 126, 143 e nota 53, 144, 297 e 345), em
Coulanges (1998, 7-34), Burkert (1993) e Provetti Jr (2007, p. 50). O que hoje é chamada
de “natureza” denominava-se phýsis e esta, por sua vez, instaurava-se no mundo
compreendido enquanto kosmos, isto é, “ordem”, “organização”. A phýsis era
compreendida como um ser vivo, orgânico, cujos o cerno motor era a alma humana,
compreendida enquanto psyché, conforme Provetti Jr, (2007, p. 16, 39, 84, 103, 104, 105,
106, 107 e 112; 2000, p. 11), isto é, um ser natural, preexistente ao corpo humano,
modelador do corpo humano, vitalizador do corpo humano, sobrevivente à morte do
corpo humano e que transmigra em várias personalidades humanas ou pelos reinos
animal, vegetal e mineral em ciclos de dez mil anos, conforme dados relativos à
metempsicose, estudados em Taylor (1970), Kirk, Raven & Schofield (1994), Giordani
(1972), Eliade (1978), Coulanges (1998, p. 7-34), Vernant (1990), Provetti Jr (2007, p.
60; 2000, p. 13 e 66) e Platão (1996; 1980 e s/ d). Vale ressaltar que nesse paradigma
existencial originador da razão enquanto logos, o que aqui se convencionará chamar de
“dimensões existenciais da phýsis” ainda dispunha da dimensão dos deuses que segundo
Detienne & Sissa (1990) se dispunham na compreensão helênica como partícipes
simultaneamente naturais, isto é, forças da natureza e, forças políticas, pois o espaço
natural representado pela polis não era radicalmente oposto a phýsis e tinha seu lugar no
kosmos, sendo, inclusive, objeto de disputa dos olímpicos. No entanto, o que vale
ressaltar nisso é que a alma humana era considerada semelhante aos deuses, segundo
Platão (s/ d), engendrada pelo Deus na mesma época que os deuses olímpicos e de
materiais parcialmente semelhantes, isto é, os deuses teriam sido feitos de m atéria divina
e esta, quase ao findar-se, fora utilizada na composição da alma humana e o restante, isto
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é, o corpo, de matéria perecível. Portanto, segundo Barkert (1993) a alma humana
transmigraria com o objetivo de alcançar a areté (excelência) existencial de seu papel na
vida, divinizando-se para atingir a ruptura dos ciclos da metempsicose, conforme atesta
Platão, no “Fedro” (s/ d). Para se completar o enquadramento paradigmático sobre o qual
a filosofia grega foi criada e segundo o qual Popper (2002, p. 7-33) assinala como
passível de restitui a filosofia e ciência sua vitalidade e originalidade, sendo mais uma
das diferenças paradigmáticas em relação a atual compreensão dos campos acima
descritos, expor-se-á a respeito da visão do tempo à época. Para os helênicos o tempo era
eterno, circular, degenerativo e auto-iniciante, a partir do que chamavam de “Idade do
Ouro”, seguida da “Prata”, “Bronze”, do “Ferro”, dos “Heróis” e finalizado pelo “Caos”
que tudo desfazia para ser reiniciado pela “Idade do Ouro”, conforme se vê em Vernant
(1990, p. 23-104) e em Hesíodo (2007) com seu “mito das raças”. Dessa maneira,
percebem-se as diferenças paradigmáticas da concepção de mundo helênica como o que
Popper (2002, p. 7-33) assinala enquanto “cosmológica” aqui deixando-se de
problematizar a visão cosmogônica que servirá de matéria-prima à modelagem do
pensamento racional por adaptação e elemento de distinção da sabedoria oriental,
conforme se vê em Cornford (1989), em Jaeger (1995), em Kirk, Raven & Schofield
(1994) em Vernant (1998), em Snell (1992) e em Lévêque (1967). Portanto, a atitude
originária dos criadores da razão estava submetida a esse paradigma existencial e
cognitivo, valendo lembrar que oriundos de uma cultura oral recém reinserida nas
práticas e questões inerentes à escrita, conforme se vê em Havelock (1996) os gregos
tinham na palavra-eficiente cantada e dançada, na memória sacralizada (culto de
Mnemosýne e das Musas) e nos efeitos visuais projetados pela audição no intelecto visto
enquanto Eu aberto na e pela phýsis uma visão cosmológica do mundo, de sua
participação enquanto sujeito que vem a conhecer-se somente através do olho do outro e
do que este diz sobre ele e na firme convicção de que sobre tudo isso nada se sabe com
certeza, a não ser que se conjectura sobre a verdade, pois Alétheia (a Verdade) é apenas
acessível aos deuses e as Mousai (Musas) podem ou não falar a verdade a respeito de
todas as coisas, como se vê em Detienne (1998 e 1988) e em Provetti Jr (2011) a respeito
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do papel dos rapsodos e historiadores na Hélade. Logo, o pôr questões como as que
Popper (2002, p. 7-33) indicou na citação acima, sobre “como sei” eram inimagináveis à
época e, portanto, não cabíveis a uma filosofia e ciência que pretendam se aproximar da
verdade sobre o mundo, sobre a humanidade e sobre a possibilidade de como se sabe algo
sobre essas coisas de maneira ampla e irrestrita. Isso se justifica devido a ser impossível
aos helênicos daquela época se observar enquanto “sujeito do conhecimento” atuando
ativa e conscientemente diante de um “objeto de conhecimento” e mais, tal
comportamento só pode ser viável na medida em que além de ter consciência da
subjetividade, da interioridade ou do Eu, este percebe-se enquanto distinto da natureza e
em tal condição, capaz de vê-la enquanto “um outro” diferente de si. Por outro lado,
percebe-se que a instauração do método indutivo enquanto procedimento essencial à
prática científica e filosófica contemporânea, enquanto método de demonstração da
episteme, compreendida como “conhecimento verdadeiro e demonstrável” e, portanto,
possibilitador de questões semelhantes às assinaladas por Popper infere a possibilidade
de coisificação da natureza e de si, enquanto simultaneamente sujeito-objeto do
conhecimento, além de uma nova modalidade de compreensão da razão, não mais no
sentido crítico como o logos helênico, mas razão no sentido calculador, como se vê no
conceito de razão utilizado hodiernamente que tem sua base etimológica no termo latino
ratio. Ao meu ver (Provetti Jr, 2012, p. 4 e 15) em estudo a respeito do significado e usos
dos termos logos e ratio, respectivamente usados pelos helênicos, criadores da razão, da
filosofia e outros modos de expressão racional, no sentido acima enunciado quanto à
maneira específica dos gregos se verem e se relacionarem com a phýsis e com o kosmos;
e, por outro lado, os romanos, que após se apropriarem da razão helênica a seu modo, por
meio de seu peculiar modo de existência e caprichos históricos por meio dos quais o
ocidente se consolidou como atualmente se percebe, a razão passou a uma função que
coisifica o homem e a natureza, agora sob o viés de elementos distintos com a
proeminência e privilégio por dignidade do uso da razão ao homem, enquanto
instrumento, atributo ou função exclusiva mediante a natureza. Ora, para Popper (2002,
p. 7-33) a tradição racional que decorreu da criação da indução enquanto instrumento
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lógico e, portanto, linguístico do homem, um atributo de sua alma, de seu espírito que o
ajuda a ter bom senso, a desenvolver a habilidade de julgar as coisas e situações segundo
os princípios da “luz natural” e que afiança a possibilidade do homem enquanto sujeito
do conhecimento gerar conhecimento por uma espécie de “enciclopédia conceitual” que
objetiva quantificar e descrever os elementos da natureza com base na observação e na
experiência só é possível na medida em que a conexão do sujeito do conhecimento em
sua dignidade o torna diferente e superior à totalidade natural. Assinalar essa distinção
entre os usos da razão helênica e romana-judaico-cristã-islamizada-cientificizada é um
dos objetivos de Popper (2002), em se considerando que o filósofo afirma que a crença
ocidental na possibilidade da razão proporcionar um conhecimento sobre o mundo, a
humanidade e sobre o próprio conhecimento não emergir de observações sobre “como sei
que isto é uma laranja” ou “Como sei que um objeto que agora percebo é uma laranja?”,
mas sim de questões propostas por homens que se enxergavam na razão diretamente
proporcional do que seus feitos condizentes para com a areté estimulavam os rapsodos a
cantarem e dançarem seus feitos, preservando-os a serem engolidos pelo Tempo
(Chronos) e que se sentiam ligados intimamente a uma visão ampla e irrestritamente una,
interativa, orgânica e indistinta com a phýsis e o kosmos, geradora “(...) de teorias
audazes a cerca do mundo” (POPPER, 2002, p. 8). Segundo Popper (Idem) a ciência está
profundamente comprometida nos níveis epistemológico e historiográfico quanto ao que
denomina “mito baconiano” de que a ciência é feita através de observações para que
destas, lentamente se passe às teorias. O que é exatamente ao contrário, como se observa
em Cornford (1989), em Hipócrates de Cós apud Cairus e Ribeiro (2005, p. 43) em seu
“Da natureza do homem” e no meu texto (Provetti Jr, 2011, p. 33-34) e Koyré (1991, p.
271-88) que afiançam que o homem antigo e segundo Koyré (Ibidem) até meados da
introdução do relógio mecânico, nos séculos XVI-XVII d. C. e a consequente
matematização do tempo sugerida por Galileu, o hábito do experimento controlado não se
dava, pois partia-se do princípio da conceptibilidade apresentado à reflexão por
Mondolfo (1970, p. 97-120) para a elaboração material e experimental dos projetos
intentados, no que Koyré denomina “o mundo do mais ou menos”. Portanto, n ão havia
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uma preocupação efetiva por parte dos antigos e mesmo no período cristão moderno, pré mecanicista de levar a efeito experimentações para se validarem teorias, dando -se, como
atesta Popper (2002, p. 7-33) de maneira dedutiva, racional e crítica em nível linguístico
e lógico, não empírico experimental. Por exemplo, se necessário a montagem de uma
catapulta, concebia-se o projeto, mas não havia preocupação matemática quanto à
execução da obra; desde que funcionasse estava provada a veracidade da teori a. Como
alegado acima, Hipócrates de Cós, médico-filósofo, ao meu ver (Provetti Jr., 2011, p. 3334) foi o primeiro a criticar esse procedimento epistemológico que emergiu do exercício
racional (logos) dos helênicos, pois a medicina antiga, profundamente influenciada pela
razão pré-socrática teve que elaborar uma nova epistemologia de base empírica e, de
certa maneira hipotético-indutiva, baseada na terapia aplicada aos enfermos e em se
tratando de filiação teórica para a proposição da indução enquanto método para se
consolidar um pensamento verdadeiro e demonstrável e, portanto, seguramente isento de
sofismas, conforme explicitado em meu texto (Provetti Jr, 2009, p. 39 -53), possibilitou a
Aristóteles de Estagira a construção da Lógica e do método indutivo para a estruturação
de um conhecimento descritivo com pretensões de verdadeiro. Portanto, para Popper
(2002, p. 7-33) nos inícios da filosofia e da ciência grega a dedução era o procedimento
padrão dos pensadores de então e em alguns casos, as teorias provenientes dessa teoria do
conhecimento foram admiráveis antecipações de resultados modernos da ciência, nada
tendo a ver com a observação. O filósofo atesta não se esquecer que o mito baconiano de
explicar a razão dos enunciados científicos serem verdadeiros se sustenta sob a afirmação
de que a observação é o verdadeiro critério de verdade do conhecimento científico. Mas
tal crença só é possível a partir do momento que Aristóteles fechou-se à compreensão
tradicional helênica da verdade ser apenas certa conjectura e que mesmo que essas teorias
tenham certo embasamento empírico ou observacional, não dá conta da totalidade de
teorias aceitas na ciência contemporânea, tidas como de origem indutiva. Uma das
conjecturas que Popper (Ibidem) indica como a mais genial, audaz e anti-indutiva que ele
conhece é a teoria de Anaximandro de Mileto a respeito da sustentação da Terra por meio
da ação equidistante de todos os pontos do kosmos. Essa conjectura seria um das
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inúmeras demonstrações de que a maneira de filosofar e produzir teorias científicas dos
pré-socráticos é interessante de ser retomada parte da consequência que esta teoria de
Anaximandro teria possibilitado as reflexões de Aristarco, de Galileu e até mesmo de
Newton e, em nada, teria relação com a observação e/ ou a experiência. Para Popper
(Ibidem) o raciocínio foi a única fonte inspiradora desse conjectura de Anaximandro e
que em si, se constituiu como uma espécie de crítica à conjectura de Tales de Mileto de
que a Terra seria suportada pela água, à semelhança de um pedaço de madeira que flutua
sobre a água, o que viria a ser uma conjectura um tanto quanto proveniente de
observações no que se refere aos terremotos e à madeira flutuante na água. No entanto,
Popper é coerentemente crítico quanto às colocações feitas em favor dos pré-socráticos e
reconhece que nos inícios da razão ocidental os filósofos mesclavam inspirações
observacionais e racionais, tanto que indica a teoria observacional de Anaximandro sobre
a superfície da Terra ser semelhante a um tambor como um dos exemplos de que mesmo
sendo genial com a conjectura anterior da sustentação da Terra, Anaximandro não foi
capaz de imaginar a esfericidade do globo terrestre, apesar de segundo Popper (Ibidem)
inconscientemente tal conjectura possibilitou a abolição dos conceitos de “em cima” e
“em baixo” quanto às faces da superfície do tambor (Terra) que em si é uma experiência
racional, isto é, não observacional. Portanto, para Popper (Ibidem) a experiência e a
observação não são fontes verdadeiras do conhecimento e, por conseguinte, o método
indutivo não é capaz de produzir um conhecimento inovador. Ao contrário, limita -o e
restringe a criatividade e ousadia crítica dos filósofos e cientistas. Nesse sentido, Popper
propõe a postura hipotético-dedutiva como a forma original dos primeiros filósofos
elaborarem suas conjecturas cosmológicas, não deixando ao abandono a indução
experimental
e
observacional
enquanto
critério
de
verdade
a
ser
aplicado
metologicamente pelo método científico, mas em termos lógicos, da observ ação nenhum
conhecimento se produz, mas das teorias e hipótese que se tem a respeito do mundo, isto
é, a totalidade do arcabouço linguístico e lógico que viabilizam a relação da subjetividade
com o mundo físico e o patrimônio teórico de nossa cultura.
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A FRONTEIRA DO CONSUMO: ENTRE A ABUNDÂNCIA E A INCLUSÃO
PRECÁRIA – Luana Caroline Künast Polon, Paulo Henrique Heitor Polon
UNIOESTE/CAPES
[email protected]
UNIOESTE
[email protected]
Resumo: Devido às proporções que o ato de consumir tomou na sociedade contemporânea,
esta pode ser definida como uma “sociedade de consumo”. Como consequência do sistema
capitalista que está na base desta sociedade, há uma fronteira subjetiva entre os indivíduos
pertencentes a esta. A fronteira em questão separa os homens que possuem as condições
financeiras necessárias para consumir e aqueles que buscam formas de adquirir tais condições
de consumo, pois não às têm. São os ricos e os pobres da sociedade de consumo que, apesar
de dividirem um mesmo espaço físico, são separados por uma fronteira perversa, embora
muito tênue. A desigualdade social é uma marca do modo de vida aderido pelas sociedades
capitalistas, onde os indivíduos são induzidos a atos de consumo, mas nem todos possuem as
condições financeiras necessárias para comprar tudo quanto querem, acirrando, assim, as
desigualdades sociais já existentes.
Palavras-chave: Consumo. Sociedade. Desigualdades.
Introdução
A fronteira a qual se refere este artigo, não é aquela a qual se referia
originalmente o termo, caracterizada pela delimitação física dos territórios. Mas, à
fronteira subjetiva que permeia a sociedade de consumo. Uma delimitação que não se
mostra observável aos olhos de muitos indivíduos, talvez por não desejarem enxergar
devido à alienação sofrida, consequência da ideologia que mascara a realidade. Em
síntese, fronteira essa que separa aqueles homens que podem consumir conforme os
padrões impostos, daqueles que querem consumir, mas não podem. Na sociedade de
consumo, o trabalhador é sujeitado à exploração, e por vezes não tem acesso ao produto
de seu trabalho. A mão de obra do trabalhador é o que gera ao mesmo tempo o produto e
o lucro, características do sistema capitalista. Porém, a inclusão na sociedade de consumo
não é plenamente acessível a estes, que, em muitos momentos ficam marginalizados na
sociedade, incluindo-se de forma precária.
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O consumo desigual
Na sociedade de consumo, os homens não só consomem, como também são
consumidos. Conforme reflexão de Bauman (2008, p. 22), “numa sociedade de
consumidores, tornar-se uma mercadoria desejável e desejada é a matéria de que são
feitos os sonhos e os contos de fadas”. E ainda de acordo com Marx (2005) quando há um
contingente de trabalhadores maiores que o necessário, a parte restante dos homens acaba
sendo excluída e há uma desvalorização sobre o trabalhador. Neste caso, Marx vê o
trabalhador transformado em uma mercadoria disponível conforme demanda do capital.
Estratégias são criadas para que o indivíduo/mercadoria torne-se desejável o suficiente
para ser consumido. E nesse sentido, as empresas de produtos estéticos estão sendo bem
sucedidas. Os padrões de beleza impostos pelo sistema são irreais, e muitas pessoas têm
investido altos custos, tempo e saúde para se enquadrar nestes padrões. A internet tornase um meio essencial na venda dos homens/mercadorias. Nas redes sociais pode -se
parecer aquilo que não se é. Cada qual busca exaltar aquilo que possui de melhor em si,
na constante procura de um “comprador” interessado. A questão relevante nesse sentido é
que o homem não percebe que está sendo manipulado (ou finge que não percebe), e se
expõe no mercado como produto comercializável. Se for realizada uma análise detalhada
da sociedade de consumo, pode-se perceber que os próprios sentimentos se
materializaram. Quando presentes são “sinônimos” de amor, e a felicidade pode ser
comprada com bens materiais. “Na sociedade de consumo, ser feliz deixou de representar
um meio como se vai e passou a ser percebido como um fim a que se chega” (VOLPI,
2007, p. 90). Os objetos têm o poder de satisfação, curando as frustrações do dia a dia –
mesmo que momentaneamente. Uma das consequências do modelo de vida adotado na
sociedade de consumo é que os homens são movidos pelo tempo veloz, conforme
Gonçalves (2006, p. 101), “a vida concreta dos indivíduos inseridos nas relações sociais
capitalistas passou a ser cada vez mais controlada pelo relógio”. A era da velocidade
serve perfeitamente às exigências do sistema capitalista, acelerando os fluxos e o descarte
das mercadorias e, consequentemente aumentando o ritmo da produção e do lucro,
escravizando o trabalhador. “Quanto mais desejam ganhar mais têm de abrir mão do
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tempo e realizar um trabalho escravo, em que a sua liberdade se encontra totalmente
alienada e a serviço da mesquinhez” (MARX, 2005, p. 67). O homem da sociedade de
consumo tem tempo delimitado para todas as coisas, move-se velozmente, pois precisa
cumprir horários e regras. É induzido a consumir, e para que possa comprar algo precisa
trabalhar muito, para pagar aquilo que comprou, trabalha ainda mais. Já os ricos, mesmo
que não aceitem ou percebam, vivem uma pressão constante. A tensão se mostra
principalmente nas grandes cidades, onde a criminalidade é mais intensa. Fecham-se os
vidros dos carros para evitar o contato com aqueles que estão marginalizados na
sociedade, e que são as vítimas do sistema. Os muros altos nas casas, os edifícios com
segurança ou os condomínios fechados, são as formas encontradas para criar mais uma
fronteira entre os ricos e os pobres, em detrimento de uma economia que proporciona o
enriquecimento daqueles que já possuem um status superior, pois nas cidades com
grandes empreendimentos capitalistas ocorre um fluxo populacional e desse mod o
deliberam uma elite que desfruta as ocasiões oportunas da economia de mercado, e ao
decorrer disso cria uma base periférica, pobre, e muitas vezes no estado de
miserabilidade, degradadas e excluídas do plano social, político e simbólico. A metrópole
com sua fartura de muros tenta se proteger da própria violência cotidiana que ela mesmo
gera, “e não há senão uma tênue fronteira, à qual facilmente se fecham os olhos, entre a
carícia suave e gentil e a garra que aperta, implacável” (BAUMAN, 2004, p. 23). Um a
fronteira que exclui e esconde aquele que o sistema não quer que seja visto, o homem
marginalizado. Entre ricos e pobres há uma relação de desejo e medo. Os pobres desejam
ser como os ricos, consumir tudo quanto quiserem e sentir-se incluídos nessa sociedade.
Porém essa fronteira é difícil de ser transposta. Já os ricos têm medo de ser como os
pobres, pois sabem que a fronteira que os separam é tênue, e qualquer um pode perder
seus bens e status se for mal sucedido em algo e por fim cai no indesejável plano
excludente da sociedade capitalista. Para o bom andamento da sociedade capitalista, a
população não deve compreender claramente as questões econômicas, como a produção
do dinheiro. Conforme analisa o filme “Zeitgeist Addendum” lançado em 2008, sob
direção de Peter Joseph:
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De todas as instituições sociais nas quais nascemos, que nos guiam e condicionam...
parece não haver nenhum sistema tão subestimado e mal compreendido como o
sistema monetário. Tomando proporções quase religiosas, a instituição monetária
estabelecida existe como uma das formas mais incontestadas de fé que existem.
Como o dinheiro é criado, as políticas que o governam, e como ele realmente afeta a
sociedade, são interesses desconhecidos da grande maioria da população (JOSEPH,
2008).
A intenção, principalmente dos bancos e das corporações, é fazer com que a
economia pareça algo chato e de difícil entendimento. E assim, os indivíduos não
buscarão conhecer o dinheiro, seguindo apenas aquilo que o sistema determina. Essa
alienação permite que o capitalismo se perpetue, sem maiores conflitos. “É predominante
em Marx a ideia de que o homem encontra-se alienado em sociedade, e, como tal, não se
dá conta das condições materiais nem simbólicas segundo as quais vive” (ALCÂNTARA,
2008, p.57). Para o sistema capitalista é importante manter uma massa de alienados, para
que o exército de reserva de trabalhadores dispostos a se sujeitar a todo tipo de emprego,
não se esgote. E, para manutenção do sistema é relevante que os indivíduos não percebam
que estão sendo manipulados ou explorados, de modo a concordar com todas as situações
desagradáveis a que estão expostos, greves e revoltas podem ser uma ameaça. Ramos
(1998, p. 246) atenta para tal discussão, “o sistema capitalista tem contradições internas
insuperáveis, a taxa de lucro depende diretamente da taxa de exploração da força de
trabalho”. A perpetuação do lucro é o alvo do sistema capitalista, e os trabalhadores são
os responsáveis pela criação deste lucro. Portanto, a situação exploratória do trabalh o
deve ser mantida para a perpetuação desse sistema. Os trabalhadores também vivem na
sociedade de consumo e por isso precisam consumir, mesmo que para isso, tenham que
sacrificar os momentos com a família ou o lazer. Endividados correm o risco da reclusão
social, então, o que resta é aceitar as condições impostas pelo sistema. Sabem que, se não
trabalharem conforme exigido, haverá outras pessoas que possam os substituir. O
processo de exploração trabalhista sem aumento dos salários é caracterizado como “ma isvalia”. A lucratividade acontece quando há um acréscimo das mercadorias produzidas –
pode ser com aumento das horas trabalhadas (mais-valia absoluta) ou com a intensidade
do trabalho (mais-valia relativa) – e aliado a isso não há um incremento aos salários dos
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trabalhadores. No entanto, esse sistema de exploração mantido pelo capital gera em seu
interior a sua própria crise. Quando há uma diminuição na quantidade de produtos
consumidos, há também uma crise no sistema. Pois, existem produtos à disposição, mas
os trabalhadores não podem consumir devido aos baixos salários. Quanto a isso, Harvey
(1992) analisa o modo de “acumulação flexível”, que foi uma forma encontrada pelo
capitalismo para amenizar suas contradições. Uma nova configuração encontrada para
aumentar os lucros e superar as crises foi acabar com os estoques, de modo que, a
procura determina os custos. Quanto menor a quantidade de um produto no mercado,
maiores serão os custos ao consumidor. Cabe ainda nesta forma de produção, a
flexibilidade geográfica das empresas e os contratos de trabalho instáveis. As empresas
podem instalar seus empreendimentos em lugares do globo ainda não desenvolvidos,
aproveitando-se das vantagens da mão de obra barata e abundante destes lugares,
revertendo os lucros ao lugar de origem da empresa. Sem que haja uma responsabilidade
das empresas com os lugares onde instalam suas filiais, Bauman (1999, p. 15) analisa
sobre o papel dos empresários e as consequências ao social.
Cabe a eles, portanto mover a companhia para onde quer que percebam ou prevejam
uma chance de dividendos mais elevados, deixando a todos os demais – presos como
são a localidade – a tarefa de lamber as feridas, de consertar o dano e se livrar do
lixo. A companhia é livre para se mudar, mas as consequências da mudança estão
fadadas a permanecer. Quem for livre para fugir da localidade é livre para escapar
das consequências.
Isso reflete diretamente na qualidade de vida dos indivíduos dos países onde as
companhias atuam. Em um primeiro momento há uma promessa de bons investimentos e
ganhos para o social, porém, o que se vê na realidade é um descaso com a população, em
nome do lucro. Pois, geralmente os investimentos são enviados para os países onde as
matrizes das empresas se encontram. Também, os salários pagos aos funcionários são
inferiores e a promessa de prosperidade não se efetiva. Há ainda, uma “guerra fiscal”. As
empresas migram suas instalações para os países, estados e cidades onde recebem
maiores incentivos por parte dos governos, ou onde encontram maior abundância de mão
de obra barata. Quando percebem maiores vantagens em outro país, podem facilmente
migrar. E, deixam para trás inúmeros trabalhadores desempregados, possíveis excluídos
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da sociedade de consumo. Esta é mais uma prova de que na sociedade de consumo os
trabalhadores são os maiores prejudicados. O sistema é perverso em suas bases, “o
capitalismo tem de preparar o terreno para uma expansão do produto e um crescimento
em valores reais [...] pouco importam as consequências sociais, políticas, geopolíticas ou
ecológicas” (HARVEY, 1992, p. 166). Para que o trabalhador insira-se no sistema de
consumo, conforme os padrões exigidos desta sociedade, ele irá se submeter ao
endividamento. O endividamento será constante, já que para que se produza o dinheiro, é
necessário que existam as dívidas. Essa é uma das características do capitalismo
financeiro que se configura a base do atual sistema capitalista. (O capital industrial – que
se reproduz por meio da força de trabalho – necessita do capital financeiro para o
financiamento de sua produção e cria-se um laço dependente desse último). Portanto, os
empréstimos provenientes do capital financeiro irão estender seus braços aos diversos
setores que constituem a sociedade de consumo: os trabalhadores, que são a base da
produção, sob a forma de crédito individual para a inserção destes dentro dos padrões
estabelecidos na sociedade de consumo. Também a Indústria, pois financia a produção de
bens de consumo, serviços e comércio e por último os empréstimos aos Estados
Nacionais. Assim, o capital financeiro fecha o seu círculo de domínio, dita e estabelece
as regras para a sociedade que tem por base a produção e o consumo. “Há dois modos de
subjugar uma nação: um é pela força, o outro é pelas dívidas” (John Adams, Apud
JOSEPH, 2008). São as dívidas criadas através do consumo e dos empréstimos que
movem o sistema financeiro. E, o pobre é o que mais sofre nesse processo. A
desigualdade presente na sociedade não se esgotará enquanto o sistema for o mesmo, o
capitalismo tem em suas bases o consumo e a produção em larga escala. E, os que
possuem o domínio sobre os meios de produção também são os que podem consumir. Já,
aqueles que se submetem ao trabalho, terão condições inferiores de consumo. Esses ficam
a margem do sistema consumista, pois na situação de explorados o nível de consumo é
inferior. E, nesse sentido, o trabalhador torna-se escravizado pelo sistema, dependente de
empréstimos e de horas excessivas de trabalho, na busca por quitar seus endividamentos.
Consequentemente, há um aumento da criminalidade. Quando aqueles que estão
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marginalizados na sociedade, buscam através da violência obter os bens que não
conseguem comprar. Coerente é a análise de Bauman (2004, p. 87), quando analisa a
sociedade de consumo:
À medida que consumir (e gastar) mais do que ontem, porém (espera-se) nem tanto
quanto amanhã, se torna a estrada imperial para a solução de todos os problemas
sociais, e que o céu se torna o limite para o poder de sedução das sucessivas formas
de atrair o consumidor, as empresas de cobranças de débitos, as firmas de segurança
e as unidades penitenciárias tornam-se importantes.
O conflito acentua-se quando as condições de consumo são o que determinam o
pertencimento ou não a um determinado grupo. Isso acontece principalmente entre os
jovens, quando aqueles que não podem consumir um tênis de marca, um celular moderno
ou uma roupa descolada, são rejeitados em determinados grupos. Os objetos consumidos
possuem, portanto, uma simbologia embutida. Não são apenas coisas, mas representam
algo para quem pode ou não consumir. Conforme Lipovetsky (Apud MIGUELES, 2007,
p. 147),
Jamais se consome um objeto por ele mesmo ou por seu valor de uso, mas por seu
valor de troca signo, isto é, em razão do prestígio, do status, da posição social que
confere. Para além da satisfação espontânea das necessidades, é preciso reconhecer
no consumo um instrumento da hierarquia social e nos objetos um lugar de produção
social das diferenças e dos valores estatutários.
Na sociedade de consumo, os bens consumidos representam o status do
indivíduo. A marca do carro, o tamanho da casa ou o tempo gasto em práticas de
consumo, são o que vão caracterizar o indivíduo perante a sociedade. Para aqueles que
podem consumir, o pertencimento à sociedade se faz de maneira mais simplificada, pois
possuem instrumentos que facilitarão essa inserção (facilidade em adquirir crédito,
possibilidade maior de compra, condições de pagamento viáveis). Porém, para aqueles
que não possuem condições financeiras de acompanhar o ritmo de compras ditado pela
sociedade de consumo, a exclusão é frequente. Como método, talvez inconsciente, de
fugir dos excluídos, muitas pessoas optam pela vivência em um mundo virtualizado,
disponível inclusive em aparelhos móveis, como os celulares. Assim, usam os fones de
ouvidos e mantêm sua visão direcionada à tela, escapando de qualquer imagem incômoda
que possa surgir nas ruas. E neste sentido, “a proximidade física não se choca mais com a
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distância espiritual” (BAUMAN, 2005, p. 33). Não há qualquer culpa em si pela
miserabilidade do outro, seguindo o ditado “o que os olhos não veem o coração não
sente”. A fronteira entre ricos e pobres se acentua quando se trata de questões como
saúde e entretenimento. Em alguns consultórios médicos existe uma hierarquia nos
atendimentos aos pacientes, primeiramente são atendidos aqueles que irão pagar
particular sua consulta, posteriormente aqueles que possuem algum plano de saúde e, por
último, os que receberam auxílio público (Sistema Único de Saúde, convênios através de
empresas, ou ajuda através de prefeituras). Quanto ao entretenimento, a televisão é um
símbolo da desigualdade existente. De um lado, aqueles que podem pagar por uma
televisão a cabo, escolhendo (em parte, pois também estão expostos às artimanhas da
mídia em favor do sistema) o tipo de programação que querem ver. E de outro lado, os
indivíduos que não possuem muitas escolhas, são induzidos a aceitar a programação da
televisão aberta, e consequentemente, expostos a manipulação da mídia. Bauman (2008,
p. 176) reflete que na sociedade de consumo, o indivíduo nunca é o maior beneficiado,
“cara você perde, coroa eles ganham. Para os pobres da sociedade de consumidores, não
adotar o modelo de vida consumista significa o estigma e a exclusão, enquanto abraçá-lo
prenuncia mais a pobreza do que impede a chegada dela”. Quando não aderem aos
padrões de consumo impostos, são rejeitados. Porém, quando o aderem, sofrem com as
consequências. Pois, para quitar suas dívidas, precisam trabalhar mais de forma a adquirir
maior quantidade de dinheiro. Quanto aos padrões, “pretende-se que o standard de
consumo da minoria da humanidade, que atualmente vive nos países altamente
industrializados, seja acessível às grandes massas de população em rápida expansão que
formam o chamado Terceiro Mundo” (FURTADO, 1974, p. 15). A intenção, portanto, é
levar os padrões de consumo dos países desenvolvidos aos países em desenvolvimento,
algo que não há de obter total êxito. Os fatores que impedem os países em
desenvolvimento de atingir os padrões de consumo dos países industrializados são: a
própria estrutura do sistema capitalista, que se reproduz por meio das desigualdades
sociais e a insustentabilidade ambiental do sistema capitalista. “A crise ambiental veio
questionar a racionalidade e os paradigmas teóricos que impulsionaram e legitimaram o
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crescimento econômico, negando a natureza.”(LEFF, 2001, p. 15). E, de acordo com
reflexão de Furtado (1974, p.17), “a evidência à qual não podemos escapar é que em
nossa civilização a criação de valor econômico provoca, na grande maioria dos casos,
processos irreversíveis de degradação do mundo físico”. Tendo como base tais reflexões,
é possível afirmar que além dos pobres, a natureza também é uma das vítimas da
sociedade de consumo. Isso se deve, pois quanto maior a produção de bens necessários
para suprir as demandas de consumo, maiores são as consequências causadas aos recursos
naturais, lembrando-se que alguns destes recursos não são renováveis. Uma questão
relevante e que precisa ser mencionada é que, na sociedade de consumo, todos os
indivíduos são alvos. A diferença entre os ricos e os pobres, e que fortifica a fronteira
entre eles, é o tipo de consumo realizado. Algumas pessoas consomem apenas aquilo que
é considerado como o básico, como alimentos e vestimentas. Outras pessoas consomem
para além do básico, e quando há um consumo excessivo de coisas supérfluas, pode -se
falar em “consumismo”. Bauman (2008, p. 41) analisa que “pode-se dizer que o
‘consumismo’ é um tipo de arranjo da reciclagem das vontades, desejos e anseios
humanos rotineiros, permanentes e, por assim dizer, ‘neutros quanto ao regime’,
transformando-os na principal força propulsora e operativa da sociedade”. O consumismo
é a parte perversa do sistema, pois ao homem exige-se que esteja constantemente
consumindo coisas, mesmo que não haja uma necessidade concreta para tal ato.
Consumir coisas excessivamente tornou-se uma forma de aliviar a tensão cotidiana, de
livrar-se do rotineiro, eliminando aquilo que já é conhecido. Pode-se exemplificar isso
através da troca de objetos usados (mesmo que seminovos), por outros novos, pois a
sensação de obter coisas diferentes é gratificante (apesar dos custos financeiros
embutidos nessa ação). Tal ato pode ser caracterizado como “obsolescência”, que é a
condição de que algumas coisas deixam de ter utilidade para o homem, mesmo estas
estando em perfeito estado de funcionamento, é uma característica marcante da sociedade
de consumo. São coisas trocadas por novas simplesmente por serem consideradas
desatualizadas. Um exemplo disso são os automóveis, surgem constantemente novos
modelos e os antigos vão sendo desprezados, mesmo sem ter grandes problemas. Em
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suma, é o ato de trocar coisas quando alguma versão atualizada surge no mercado, muitos
produtos são criados justamente com a finalidade de substituir as versões antigas, mesmo
tendo ambas a mesma finalidade funcional. O consumismo é incentivado através dos
meios de comunicação. O indivíduo está permanentemente exposto às artimanhas do
sistema, e diariamente inúmeras mensagens de caráter consumista são emitidas a ele, sem
que se perceba em muitos casos. São propagandas na televisão, revistas e jornais e nos
outdoors que invadem a paisagem urbana. Torna-se praticamente impossível fugir das
imagens e frases atrativas que permeiam as propagandas. E, querendo ou não, tudo isso
interfere nos desejos de consumo dos homens. Resumidamente, “os meios de
comunicação são uma indústria que vende serviços de publicidade [...] os meios de
comunicação, em sua estrutura funcional, são um apêndice do sistema produtivo”
(FARAONE, 1979, p. 164, 165). Portanto, os meios de comunicação não estão puramente
à serviço do povo, nem levam uma informação digna de confiança, mas, existe sim a
manipulação do que é transmitido aos receptores através das mensagens emitidas. E,
sendo assim, os meios de comunicação disseminam a ideologia 1 dominante. E como
complemento a tal reflexão, uma análise de Santos (2008, p. 48, 49) enquadra-se
perfeitamente:
Atualmente, as empresas hegemônicas produzem o consumidor antes mesmo de
produzir os produtos. Um dado essencial do entendimento do consumo é que a
produção do consumidor, hoje, precede à produção dos bens e dos serviços. Daí o
império da informação e da publicidade. Tal remédio teria 1% de medicina e 99% de
publicidade, mas todas as coisas no comercio acabam por ter essa composição:
publicidade + materialidade; publicidade + serviços, e esse é o caso de tantas
mercadorias cuja circulação é fundada numa propaganda insistente e frequentemente
enganosa.
Nesse aspecto, ricos e pobres, ambos são alvos do sistema e da mídia. Mas, para
cada grupo existe uma proposta diferenciada, pois, existem coisas que os mais pobres não
podem consumir. E, neste momento a fronteira ressurge (se é que sumiu em algum
momento). Muitos acreditavam que a globalização seria capaz de acabar com as
1
Karl Mannheim, no livro Ideologia e Utopia (1929), conceitua duas formas de ideologia, a particular e a total.
Sendo que a total é a visão de mundo de uma classe social dominante que visa à estabilização da ordem sobre as
classes oprimidas.
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desigualdades e aproximar as pessoas, mas, o que pôde ser observada é uma inversão
desse quadro. A possiblidade de fazer as coisas sem precisar sair de casa, tornou as
pessoas mais individualizadas (acirrado pela competitividade do sistema, que coloca os
indivíduos em posição de conflito). Para os ricos, há uma globalização, pois podem
locomover-se pelo mundo. Já os pobres, continuam vivendo no “local”, sem acesso ao
“global”. Bauman (1999, p. 24) explica que com a globalização “alguns podem agora
mover-se para fora da localidade – qualquer localidade – quando quiserem. Outros
observam, impotentes, a única localidade que habitam movendo-se sob seus pés”. Na
sociedade de consumo, apenas os mais fortes sobrevivem. As pequenas empresas
mostram-se impotentes frente à hegemonia das multinacionais. E nisso reside a
perversidade do sistema, não há qualquer forma de piedade pelo próximo quando o lucro
está em jogo. Conforme Santos (2003, p. 49), “consumismo e competitividade levam ao
emagrecimento moral e intelectual da pessoa”. Não deixando margem para os
sentimentos de auxílio aos demais. Cada qual se preocupa apenas com seu próprio bem
estar. “a perversidade deixa de se manifestar por fatos isolados, atribuídos a distorções da
personalidade, para se estabelecer como um sistema” (Ibid., p. 60). Em alguns momentos,
podemos pensar que as desigualdades estão menos intensas. Pois, devido às facilidades
de compra, os pobres podem comprar bens antes disponíveis somente para os ricos. Mas,
o problema torna-se aparente quando analisadas as condições para tal consumo e, o
quanto precisam sacrificar-se para pagar o que compraram. Portanto, neste sistema, ricos
e pobres não terão nunca os mesmos privilégios. Os financiamentos são uma forma de
permitir o consumo para aquelas pessoas que não dispõem de dinheiro “em mãos” para
consumir, portanto, sujeitam-se a pagar anos por algo que desejam. Sendo que, ao final
do financiamento, o bem comprado perdeu grande parte de seu valor de mercado.
Uma marca da sociedade de consumo é que os bens possuem um valor de troca e
não de uso. Os objetos são feitos com a finalidade da troca, e para isso, constantemente
novos modelos (dos mesmos produtos) são criados. Um exemplo prático disso são os
computadores ou celulares, existem diversos modelos no mercado, sendo que muitos
possuem as mesmas funções. Os celulares hoje novos, em pouco tempo são considerados
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desatualizados e precisam ser trocados por outros de modelagem mais moderna, porém
com as mesmas funções do antigo. Alguns objetos não possuem mais conserto, portanto,
quando estragam devem ir ao lixo, pois as peças necessárias para consertar tal coisa são
caras e, vale mais a pena comprar um objeto novo. E, quanto a isso, pode-se novamente
pensar sobre a questão ambiental. As coisas descartadas precisam ser depositadas em
algum lugar, e algumas áreas do planeta estão se tornando grandes depósitos de lixo
tecnológico. Não somente a poluição visual se faz presente, mas, tais objetos poluem os
solos e as águas, causando danos ao meio. Uma análise sobre a aceleração do ritmo de
produção e consumo dos bens é feita por Harvey, sendo esse aspecto algo importante na
constituição da acumulação flexível, “a meia vida de um produto fordista típico, por
exemplo, era de cinco a sete anos, mas a acumulação flexível diminuiu isso em mais da
metade em certos setores” (HARVEY, 1992, p. 148). Quanto a essas transformações, o
autor comenta que, foram acompanhadas de uma “mobilização de todos os artifícios de
indução de necessidades e de transformação cultural que isso implica” (Ibid., p. 148). Na
sociedade de consumo todas as coisas se tornam mercadorias. “O próprio saber se torna
uma mercadoria-chave, a ser produzida e vendida a quem pagar mais” (Ibid., p. 151).
Ainda assim, o conhecimento pode ser manipulado, de modo a não incentivar uma visão
crítica sobre a realidade social. Inúmeros são os cursos que, mesmo pagos, possuem uma
formação vaga, apenas visam a lucratividade. A fronteira do consumo é perfeitamente
percebida quando observadas as diferenciações feitas entre os pobres, que sofrem nos
corredores dos hospitais à espera de uma vaga para consulta e, aqueles que pagam e são
prontamente atendidos. Ou então, os ricos que em seus momentos de ócio, optam por
viajar para este ou aquele lugar do mundo. Enquanto os pobres ficam a mercê dos
programas televisivos, como forma de entretenimento. Dentre outros fatores, como as
permissões e rejeições em determinados lugares públicos ou privados. A possibilidade de
obter determinadas coisas que permitam um maior conforto ao indivíduo, e tantos outros
exemplos. A fronteira debatida, por vezes é negligenciada (principalmente por aqueles
que querem mascará-la). Por ser uma fronteira subjetiva, não é aparente sua delimitação e
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devido à isso, os indivíduos em muitos momentos, não percebem o quão desigual é o
sistema.
Considerações finais
O indivíduo da sociedade de consumo é induzido a viver segundo os padrões
estabelecidos pelo sistema, mas, a desigualdade social não permite que todos tenham
direitos de consumo igualitários. E, devido a isso, os pobres são os que mais sofrem as
consequências por não poder consumir tanto quanto desejam. Diversas são as artimanhas
criadas para manter o trabalhador como inferiorizado e submisso aos ricos. Mantendo
assim, uma massa de indivíduos disponíveis ao trabalho exploratório. São ainda,
alienados a não se manifestar contra o sistema que os escraviza, mas aceitar aquilo que é
imposto, devido ao desconhecimento do sistema em sua totalidade. E, quando se rebelam
são punidos, perdendo a liberdade que antes julgavam ter. A sociedade líquida
contemporânea permite os discursos criadores de identidades individuais aos sujeitos,
identidades estas que fragmentam a sociedade e definem as posições das pessoas. Em
polos opostos estão àqueles indivíduos que podem optar pela identidade que gostariam de
incorporar e àqueles que são oprimidos a aceitar a identidade que lhes é definida.
Algumas pessoas afirmam ser boa a sociedade de consumo, mas a questão que se coloca
é: “boa para quem?”. Para aqueles que possuem as condições necessárias para consumir
tudo quanto desejam, a sociedade de consumo pode até parecer agradável. Mas, mesmo
estes, são manipulados. O homem perdeu a noção do que é realmente necessário em sua
vida e o que é supérfluo. O sistema faz justamente isso. Quando se aliam corporações e
os meios de comunicação, facilmente os desejos dos homens pertencentes à sociedade de
consumo são moldados/ampliados/modificados. E o ciclo do “comprar, consumir,
descartar” inicia. Onde todos são alvos.
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Referências:
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1999.
_________. Amor Líquido: Sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2004.
_________. Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.
_________. Vida para o consumo: a transformação das pessoas em mercadoria. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 2008.
FARAONE, Roque. Meios de comunicação de massa na América Latina. In: WERTHEIN,
Jorge (org.). Meios de comunicação: realidade e mito. São Paulo: Ed. Nacional, 1979.
FURTADO, Celso. O mito do desenvolvimento econômico. São Paulo: Circulo do Livro,
1974.
HAESBAERT, Rogério; GONÇALVES, Carlos Walter Porto. A nova des-ordem mundial.
São Paulo: Editora UNESP, 2006.
HARVEY, David. Condição Pós-Moderna. São Paulo: Loyola, 1992.
JOSEPH, Peter. Zeitgeist Addendum. Vídeo Documentário. Produção e Direção de Peter
Joseph. Estados Unidos, 2008. Color, 123 min.
LEFF, Enrique. Saber ambiental: sustentabilidade, racionalidade, complexidade, poder.
Petrópolis: Vozes, 2009.
MANNHEIM, Karl. Ideologia e Utopia: Introdução à Sociologia do conhecimento. Madrid:
Aguilar, 1973.
MARX, Karl. Manuscritos Econômicos Filosóficos. São Paulo: Martin Claret, 2005.
MIGUELES, Carmen (org.). Antropologia do Consumo: Casos Brasileiros. Rio de Janeiro:
Editora FGV, 2007.
RAMOS, Alexandre Luiz. Acumulação flexível, Toyotismo e desregulamentação do direito
do trabalho. In: Globalização, neoliberalismo e o mundo do trabalho. Curitiba: IBEJ, 1998.
SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência
universal. Rio de Janeiro: Record, 2003.
VOLPI, Alexandre. A história do consumo no Brasil. Rio de Janeiro: Elsevier, 2007.
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A INTERPRETAÇÃO DO ARGUMENTO DO ‘ARGUMENTO DA ELEGIA
DE GRAY’ SEGUNDO PETER HYLTON – Denise Borchate
UFSM
[email protected]
Resumo: O objetivo deste trabalho é apresentar a interpretação de Peter Hylton no livro
Idealism and the Emergence of Analytic Philosophy (1992) do “argumento da Elegia de
Gray”. Esse argumento está presente no artigo “On Denoting” (1905), onde B. Russell faz
uma crítica à distinção entre significado e denotação. B. Russell desenvolve essa distinção na
teoria dos conceitos denotativos no livro The Principles of Mathematics (1903) e tinha como
objetivo explicar como conceitos denotativos relacionam-se a objetos. O princípio de
dependência do valor de verdade de proposições estaria implícito na explicação da noção de
aboutness presente na teoria dos conceitos denotativos. B. Russell mostraria a
incompatibilidade entre a teoria dos conceitos denotativos e o princípio de dependência do
valor de verdade no “argumento da Elegia de Gray”.
Palavras-chave: significado, denotação, teoria dos conceitos denotativos.
Bertrand Russell apresenta uma crítica à distinção entre significado e denotação
da teoria dos conceitos denotativos no argumento da Elegia de Gray segundo Peter
Hylton. A fim de se expor a interpretação de Hylton sobre a crítica de Russell a distinção
entre significado e denotação, apresentar-se-á brevemente a semântica nos Principles of
Mathematics 1 (1903). A seguir, se abordará a razão que levou Russell a adotar e depois
abandonar a teoria dos conceitos denotativos. Para Russell “[...] quando nós entendemos
uma sentença sobre algo, nós estamos diretamente em acquaintance com o objeto que
nós falamos sobre e com a proposição que tem esse objeto como constituinte”
(HYLTON, 2003, p.209). Aqui está presente o princípio de que a compreensão de uma
sentença está relacionada a acquaintance com as entidades do mundo que a constitui e
com a proposição que a sentença expressa. Russell teria implícito nos PoM (PoM,§52) o
princípio de que toda proposição que se pode compreender ou estar em acquaintance tem
como componentes objetos conhecidos por acquaintance. Como já se abordou
anteriormente a compreensão de uma sentença está relacionada à acquaintance com o
1
Daqui em diante PoM
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termo sobre o qual se fala, no entanto, cada termo pode ocorrer o sujeito de uma
proposição sobre ele. A proposição é constituída de dois tipos de termos: termos ‘coisas’
que só podem ocorrer como sujeito e os termos ‘conceitos’ que podem ocorrer como
sujeito e predicado de uma proposição. Por exemplo, em ‘Sócrates é humano’, Sócrates
só pode ocorrer como sujeito porque o verbo ser está na forma predicativa. Mas o
conceito humanidade além de ocorrer como predicado também pode ocorrer como sujeito
das proposições como em ‘humanidade é um conceito’. Com isso, estaria implícito na
semântica dos PoM que todos os constituintes de toda proposição que se pode
compreender são objetos da acquaintance. Termos sobre totalidades infinitas como a
classe dos números naturais não podem ser constituintes de proposições, pois esses
termos são sobre infinitos objetos. Se todos os números naturais fossem constituintes de
uma proposição, dever-se-ia compreender uma proposição de complexidade infinita. No
entanto, a acquaintance, ou seja, a compreensão desse tipo de proposição é impossível,
visto que a capacidade de entendimento humana é finita. Mas, ainda assim, elaboram -se e
compreendem-se proposições sobre classes infinitas. Assim, deve ser explicado como é
possível a compreensão de proposições daquela espécie. Russell tenta preservar a
concepção de que a compreensão de uma proposição estaria relacionada contato direto e
imediato (acquaintance) com proposições, admitindo exceções a concepção de as
próprias entidades do mundo são constituintes das proposições na teoria dos conceitos
denotativos (HYLTON, 2003, pp.215-6). Proposições sobre classes infinitas não tem
como constituinte os infinitos objetos que constituem essas classes na teoria dos
conceitos denotativos. Porque, por exemplo, a expressão ‘Todas as pessoas’ não é um
nome, seria uma frase denotativa que denota, representa o objeto sobre o qual se fala.
Frases denotativas são expressões constituídas de palavras como ‘todos’, ’cada’,
‘qualquer’, ‘um’, ‘algum’ ou ‘o’ seguida de um conceito-classe 2. A expressão ‘todos os
homens’ expressa o conceito denotativo ‘todos os homens’ e este denota a classe dos
homens. O fato de sermos capazes de empregar um conceito para designar algo que não é
2
O conceito de classe é semelhante ao predicado. Uma classe é a combinação dos termos que são determinados
pelo conceito de classe (predicado).
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um conceito deve-se a natureza lógica do conceito denotativo. Há uma relação lógica
entre alguns conceitos e alguns termos, em virtude da qual tais conceitos inerentemente e
logicamente denotam tais termos (PoM,§56). Portanto, a proposição ‘Todas as pessoas
são mortais’ contem o conceito denotativo todas as pessoas, mas não é sobre esse
conceito denotativo, e sim sobre certa combinação de termos que são denotados pelo
conceito todas as pessoas. Abordou-se anteriormente que a capacidade de um conceito
denotativo ser sobre algo que não ele mesmo deve-se a propriedade lógica de denotar.
Mas a questão que surge é: Por que uma proposição que contém um conceito denotativo é
sobre algo que não é constituinte da proposição? Russell explicaria a noção de aboutness
(ser sobre) por meio do que Hylton (HYLTON, 1994, p.209) chamou de princípio de
dependência do valor de verdade de proposições. Segundo este princípio, a proposição o
professor de Platão é sábio é sobre Sócrates porque o valor de verdade dessa proposição
depende do valor de verdade da proposição que tem como constituinte a entidade
denotada pelo conceito o professor de Platão, a saber, Sócrates. Nesse caso, a verdade da
proposição ‘Todas as pessoas são mortais’ dependeria da verdade de muitas proposições,
ou de uma combinação de proposições, isto é, a conjunção de ‘Sócrates é mortal’ e
‘Xantipa é mortal’ e ‘Platão é mortal’, e assim por diante (HYLTON,1994, p.209). Agora
se estabelecerá a relação entre o que Hylton chamou de princípio de dependência do
valor de verdade de proposições e a rejeição de B. Russell da teoria dos conceitos
denotativos. A rejeição da distinção entre significado e denotação tem a ver com a
relação entre o conceito denotativo, ou significado e o objeto denotado. Russell (2005, p.
486, grifo meu) afirma que a relação do significado para com a denotação envolve
certas dificuldades bastante curiosas, que parecem por si sós, suficientes para provar que
a teoria que conduz a tais dificuldades deva estar errada. O tipo de relação que conduz
a tais dificuldades é a relação em “que o significado denota a denotação”. Por exemplo, a
relação expressa pela proposição o professor de Platão denota Sócrates. Fatos da forma
‘x denota y’, em que x é um conceito denotativo e y é o objeto denotado, por exemplo, o
professor de Platão denota Sócrates são cruciais para uma teoria da denotação
(HYLTON, 1992, p.249). Vale observar que proposições verdadeiras expressam fatos à
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época dos PoM. Desse modo a proposição verdadeira o professor de Platão denota
Sócrates é o fato o professor de Platão denota Sócrates. Agora se considere os
constituintes da proposição o professor de Platão denota Sócrates. Os constituintes dessa
proposição seriam o conceito denotativo o professor de Platão, a relação de denotar, e o
homem Sócrates. No entanto, quando o conceito denotativo ocorre em uma proposição, a
proposição é sobre o objeto denotado pelo conceito. Nesse caso, a proposição o professor
de Platão denota Sócrates não pode ter como constituinte o conceito denotativo o
professor de Platão para ser sobre este conceito. Caso se fale sobre o conceito denotativo
ou significado da expressão denotativa “o professor de Platão”, ter-se-á o significado (se
existe algum) da denotação da expressão lingüística. Para Hylton (1994, p.250), Russell
(2005, p.487) afirmaria que para haver fatos da forma ‘a denota b’ frases denotativas não
devem nomear, mas denotar o significado. Russell considera que a expressão ‘o professor
de Platão’ não funciona como um nome, mas como uma expressão denotativa que denota
o significado da expressão ‘o professor de Platão’. A expressão denotativa “o professor
de Platão” expressa um conceito denotativo de segunda ordem que denota o conceito
denotativo o professor de Platão. No entanto, parece que o conceito denotativo de
segunda ordem “o professor de Platão” e o conceito denotativo de primeira ordem o
professor de Platão são entidades diferentes, tal que “o professor de Platão” denota o
professor de Platão; porém isto não pode ser uma explicação, porque a relação entre “o
professor de Platão” e o professor de Platão permanece completamente misteriosa. A
relação entre significado e denotação, em “que o significado denota a denotação” é
problemática, porque para se ter proposições como o professor de Platão denota
Sócrates, o significado não pode ocorrer na proposição, mas algo que denote o
significado. Isso nos coloca diante de uma hierarquia infinita de conceitos denotativos,
pois para se ter a proposição verdadeira ou o fato o professor de Platão denota Sócrates,
deve haver uma proposição que expressa que um conceito denotativo de segundo nível
denota um conceito denotativo de primeiro nível. Mas, para haver uma proposição que
expressa que um conceito denotativo de segundo nível denota um conceito denotativo de
primeiro nível, deve-se ter uma proposição expressando que um conceito denotativo de
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terceiro nível denota um conceito de segundo nível. Assim, se está diante de uma
hierarquia infinita de proposições contendo conceitos denotativos, porque para a
denotação ocorrer em qualquer nível ela deve ocorrer em um nível superior, e assim ad
infinitum... Isso seria um problema para a teoria da denotação nos PoM, pois a hierarquia
de conceitos denotativos geraria um regresso ao infinito de análise (HYLTON,1992,
p.251). Russell distingue o regresso de análise, que é do tipo maligno, do regresso de
implicação, que é benigno nos PoM (§50-1,§55). O regresso de análise surgiria na análise
do significado de uma proposição. Ele ocorre quando duas ou mais proposições
constituem o significado de outra proposição. Por exemplo, na análise do significado da
proposição ‘o professor de Platão’ denota Sócrates estariam envolvidas as proposições
“o professor de Platão” denota ‘o professor de Platão’ e ‘“o professor de Platão”’
denota “o professor de Platão”. Esse mesmo tipo de análise deveria, por sua vez, ser
aplicada a proposição ‘“o professor de Platão”’ denota “o professor de Platão”, e assim
ad infinitum. O regresso, no AEG, seria de análise, somente se, o conceito “o professor
de Platão” seja considerado um constituinte da denotação ‘o professor de Platão’. E, por
sua vez, ‘“o professor de Platão”’ seja constituinte da denotação “o professor de Platão”.
Portanto, onde quer que o significado de uma proposição esteja em questão, um regresso
ao infinito é objetável, visto que nós nunca alcançamos uma proposição que tem um
significado definido. Mas muitos regressos ao infinito não são desta forma. caso se
considere que a proposição ‘o professor de Platão’ denota Sócrates tenha um significado
definido, o regresso será de implicação e benigno, o que não afetaria a teoria da
denotação nos PoM. “Se A é uma proposição cujo significado é perfeitamente definido, e
A implica B, B implica C, e assim por diante, nós temos um regresso ao infinito de uma
espécie que não é objetável” (PoM, § 329). Portanto, caso se considere que a expressão
‘o professor de Platão’ possui um significado definido, a proposição ‘o professor de
Platão’ denota Sócrates, somente implicará que deve existir a proposição “o professor de
Platão” denota ‘o professor de Platão’, e assim por diante. Hylton (1992, p.250-51)
considera que o regresso presente no argumento da Elegia de Gray é de análise. E aplica
o princípio de dependência de valor de verdade de proposições a esse regresso, para
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apresentar o que ele considera ser a crítica de Russell a distinção entre significado e
denotação. Hylton conclui que o problema apresentado por Russell no argumento da
Elegia de Gray é ontológico, pois se a relação de denotar for entendida de acordo com o
princípio de dependência do valor de verdade, não há proposições da forma a denota b.
Como já se sabe o significado o professor de Platão é sobre Sócrates porque a proposição
que contém um conceito denotativo depende do valor de verdade de uma proposição que
contém o objeto denotado. Mas, como se viu anteriormente, só se pode falar sobre o
conceito denotativo o professor de Platão por meio do conceito denotativo de segunda
ordem designado entre aspas duplas por “o professor de Platão”. O valor de verdade da
proposição “o professor de Platão” denota Sócrates, contendo um conceito denotativo
de segunda ordem, depende do valor de verdade da proposição o professor de Platão
denota Sócrates, contendo o conceito denotativo de primeira ordem. Por sua vez, a
proposição que contêm o conceito denotativo o professor de Platão denota Sócrates
depende do valor de verdade da proposição Sócrates é Sócrates. Portanto, seguindo com
o princípio de dependência do valor de verdade, não há proposições da forma ‘o
professor de Platão’ denota Sócrates, fundamentais para uma teoria da denotação.
Referências:
HYLTON, Peter. Russell, Idealism and the Emergence of Analytic Philosophy. Oxford:
Oxford University Press, 1992. 440 p.
HYLTON, P. The Theory of Descriptions. In: GRIFFIN, N. (Ed.). The Cambridge
Companion to Bertrand Russell. Cambridge: Cambridge University Press, 2003. p. 202-240
KREMER, Michael. The Argument of “On Denoting”. The Philosophical Review, vol. 103, nº
2, pp. 249-297, Abr. 1994.
RUSSELL, B. On Denoting. Mind. vol.114, 456, pp.479-493, Out. 2005.
___. Da Denotação. In:___. Ensaios Filosóficos. Trad: Pablo Rúben Mariconda. São Paulo:
Abril Cultural, 1978(a). (Col. Os Pensadores)
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A JUSTIÇA NA PERSPECTIVA DA RAZÃO ÉTICA PRÉ-ORIGINÁRIA EM
ENRIQUE DUSSEL – Jessica Fernanda Jacinto de Oliveira
UNIOESTE/PIBIC
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Resumo: A partir da defesa dos vitimados pelo processo de modernidade, neste trabalho
poder-se-á identificar o momento atual da sociedade que revela as necessidades do sujeito
ético e aclama por justiça. Ao passo que verifica desde a concepção da totalidade opressora
até a proposta de libertação realizada por Dussel, a fim de encontrar um ideal de justiça, bem
como a definição de razão ética pré-originária.
Palavras-chave: Alteridade. A priori. O bem.
Enrique Dussel é um filósofo latino-americano que realiza seus diálogos a partir
da Filosofia da Libertação. Na obra “Filosofia da Libertação: uma crítica a ideologia”
ele afirma que tal filosofia é um "escrito desde la periferia para hombres de la
periferia". Isto significa dizer que a Filosofia da Libertação se direciona para os nãolibertados e provém dos não-libertados, configura-se um processo de libertação que não
compreende intervenções externas. Assim, Dussel apresenta elementos capazes de
repensar o problema do justo, a partir da perspectiva do injustiçado, isto é, do negado em
sua exterioridade, do oprimido, da vítima, que se reúnem no sugestiva elaboração ética
do Outro. A figura do filósofo surge da necessidade de um mestre que respeitosamente
atenda e escute ao Outro, que critique a ideologia totalitária e suas for mas de alienação e
o ocultamento da dominação. Justo porque neste processo de libertação está presente a
afirmação de um discurso filosófico de caráter eminentemente ético, isto é, para além de
sua dimensão formalista e lógica. Assim sendo, acredita-se que a posição da filosofia e
seu iminente discurso seja válido não apenas por sua logicidade, mas também por seu
acordo ou desacordo com a Justiça em situações específicas. A Justiça, neste caso, é
compreendida na perspectiva de um processo analético, e sendo este vertido para
questões conterrâneas, contemporâneas e ético-práticas, não é somente evolutivo, porém,
realiza um voltar-se a si da humanidade, recorrendo-se a uma espécie de lógica histórica.
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Deste modo, neste trabalho 1 poderá ser notado que o projeto filosófico de Enrique Dussel
considera uma responsabilidade ética sem reciprocidade, ou seja, de alteridade pura e
pré-ontológica. E isto significa que as experiências empíricas são conhecidas somente
após a afirmação do reconhecimento da vítima, que se revela como Outro. A importância
do reconhecimento ético maximiza-se da seguinte forma:
A ética torna-se, assim, o último recurso de uma humanidade em perigo de autoextinção. Só a corresponsabilidade solidária com validade intersubjetiva, partindo do
critério de verdade vida-morte, talvez possa nos ajudar a sair com dignidade no
tortuoso caminho sempre fronteiriço, como quem caminha qual equilíbrio sobre a
corda bamba, entre os abismos da cínica insensibilidade ética irresponsável para
com as vítimas ou a paranoia fundamentalista necrófila que leva a humanidade a um
suicídio coletivo. (DUSSEL, 2012, p.574).
E nesta estrutura de uma filosofia de confrontos e perigos iminentes, a eticidade
se constitui a partir de um respeito a algo outro. E esta constituição faz com que a
Totalidade seja evitada em todas as formas, pois segundo Dussel, o último horizonte da
Totalidade não é ético ou moral, mas é simplesmente assim: como é. Isto porque, a
Totalidade denota a ausência de novidade, uma vez que nela tudo já está pretensamente
presente, portanto, não há criação tampouco há liberdade. O que impede a instauração de
uma nova ordem ética, de maneira que a razão dominadora e opressora será constante.
Como paradoxo, a liberdade fruto da negação da Totalidade, também permite o
nascimento do mal, pois, ao contrário da ontologia da Totalidade em que o mal é
originário, na metafísica da Alteridade o mal não é originariamente divino nem
ontologicamente não-ético, mas originariamente humano. Inicialmente, o bem ou o justo
pode ser compreendido como o reconhecimento ao Outro, isto, é, o sim-ao-Outro, ou
seja, afirmar: “não me creio como absoluto ou totalidade porque reconheço ao Outro”.
Neste ponto, indicar-se-á que o ouvir-a-voz-do-Outro consiste também em uma atitude
de doação, o doar-se. Para isto, retomamos o fato de que a ética da libertação expressa
uma ética da vida, da carnalidade e dignidade, pois que trata-se de uma ética de conteúdo
em oposição a ética formalista. Próximo ou semelhante ao sentido bíblico: “Porque tiv e
fome, e me destes de comer; tive sede, e me destes de beber; era forasteiro, e me
1 Esta pesquisa compõe parte do Trabalho de Conclusão de Curso da autora, a ser apresentado no Colegiado de
Filosofia da Unioeste, no mês de novembro de 2012.
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hospedastes; estava nu, e me vestistes; enfermo, e me visitastes; preso, e fostes ver -me.”
(Mateus, 25:35-40). Esta relação de servir-ao-Outro, Dussel conceitua como o amor-dejustiça, que está além de toda a ontologia da Totalidade, e por isso, incompreensível pela
lógica do sistema. Com efeito, traduz-se pela metafísica da Alteridade que apregoa: um
amor que ama primeiro alterativamente: o amor-de-justiça.
O oprimido, não enquanto oprimido mas enquanto fora do sistema como pobre,
como outro, ama o outro oprimido com um amor extra-sistemático, fora das regras
do jogo da Totalidade. Este amor não é amor a “o Mesmo” (éros), nem sequer amor
de amizade dentro do Todo na igualdade (filía), mas é o amor que é nada para o
Todo, é amor gratuito, amor criador. […] Isto não é um irracionalismo, mas a
descoberta que quer ser pós-moderna de que a identidade do ser e do pensar é falsa,
já que há ser além do âmbito do pensar. Há ser e pode ser amado, já que nos dói a
ausência do amado ainda pressentido, desconhecido, incompreensível atualmente
como Outro livre e com futuro. (DUSSEL, 1977, p. 136).
E mais adiante o autor complementa
Esse amor-de-justiça que o oprimido tem pelo pobre como Outro, que não é somente
compaixão mas comiseração, isto é, amor ao Outro pobre como único, sem
referência ao horizonte de identidade ontológica do sistema ou à Totalidade, mas
acima de tal horizonte; este amor metafísico é o que exerce povo, o profeta, o
filósofo diante do pobre, fora do sistema e nada de sentido nem valor para a
Totalidade e a Pátria antiga; é o amor realizado pelo político libertador em vista de
uma nova Pátria. (DUSSEL, 1977, p. 138).
Diante disto, não se deve agir pela necessidade, mas pelo serviço gratuito. Este
serviço denota um trabalho libertador e justo, no sentido de justiça desde de uma ética
primeira. Ou seja, paradoxalmente o amor-de-justiça 2 está primeiro que a própria justiça
no sentido histórico do ocidente, originado pelos ensinamentos do imperador romano
Justiniano e perpetuados até os dias atuais, quais seja
Justiça é a vontade constante e perpétua de dar a cada um o seu direito. (D.1.1.10 pr)
Os preceitos de direito são estes: viver honestamente, não lesar outrem, dar a cada
um o que é seu. (D.1.1.10.1)
Justiça é a vontade constante e perpétua de dar a cada um o que é seu. (Institutas,
2000, p.22.)
Em um primeiro momento o filósofo argentino parece concordar com este
conceito de Justiniano e filósofos romanos, pois, ele traduziria o desapego como atitude
2 O filósofo Emannuel Levinas o denomina désir.
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libertadora, na medida que justiça seria a gratuidade misericordiosa como disponibilidade
no “dar” ao Outro o que é seu, ou seja, a liberdade diante de riquezas. Contudo, em um
segundo momento o autor afirma que esta justiça igualitária consistiria no resultado 1X1
(dar o equivalente), quando a ética primeira e metafísica, fundamentada no amor -dejustiça, se encontra no 0x1. Posto que a injustiça seria o pecado cristão: dê a sua face 3.
Deste modo, a primeira consequência poderia ser aceitar que toda lei é justa, como por
exemplo, apedrejar a prostituta. E a segunda consequência, por sua vez, seria o perdão,
isto é, perdoar em nível ético primeiro, seria mais justo que afirmar “se me deve um,
pague um”. Por isto, somos levados a afirmar que a justiça (1x1) não é o único caminho,
sendo que o primeiro e principal caminho é o perdão (0x1), visto que quando se consegue
perdoar, então se é justo. Afirma-se, portanto, o serviço-ao-Outro4, o doar-se – dar a
face.
(Justiça é o) hábito que dispõe e tende a dar efetiva e ôntico-serviçalmente ao Outro
o que lhe corresponde, não pela lei do Todo mas enquanto tal: enquanto Outro,
enquanto pessoa inalienável, enquanto origem de todo direito positivo. Justiça aqui é
disponibilidade diante dos entes, não-fetichismo nem absolutização das
possibilidades do projeto da Totalidade; é um colocar à disposição do Outro e os
entes que podem saciar sua fome, mediar sua libertação cultural e humana
integralmente. Justiça é desapego ou liberdade, “pobreza” como atitude libertadora,
que permite entregar ao Outro o que é seu. (DUSSEL, 1977, p. 149)
Note-se que não é justiça comutativa ou distributiva. É da alteridade. Amor-dejustiça, que no sentido levinasiano consiste no dizer metafísico; além do siste ma. Justiça,
portanto, poderia ser “quero sua realização e não a minha; solidariedade e não
fraternidade.” É a afirmação do Outro como outro. E isto pode ser representado pela
parábola do Bom Samaritano que é constantemente relembrada por Enrique Dussel:
Um homem descia de Jerusalém a Jericó, e caiu nas mãos de salteadores que, depois
de o despirem e espancarem, se retiraram, deixando-o meio morto. Por uma
coincidência descia por aquele caminho um sacerdote; quando o viu, passou de
largo. Do mesmo modo também um levita, chegando ao lugar e vendo-o, passou de
largo. Um samaritano, porém, que ia de viagem, aproximou-se do homem e, vendoo, teve compaixão dele. Chegando-se, atou-lhe as feridas, deitando nelas azeite e
vinho e, pondo-o sobre o seu animal, levou-o para uma hospedaria e tratou-o. No dia
3 Este segundo momento caracteriza-se por uma conversa realizada com o autor no evento Fé e Política na
América Latina, nos dias 25 a 27 de maio de 2012, na cidade de Curitiba-PR.
4 Nos termos em hebraico hebed ou habodáh - “serviço”, o que não se relaciona com o termo grego doûlos “escravo”.
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seguinte tirou dois denários, deu-os ao hospedeiro e disse: Trata-o e quanto gastares
de mais, na volta eu to pagarei. Qual destes três te parece ter sido o próximo daquele
que caiu nas mãos dos salteadores? Respondeu o doutor da lei: Aquele que usou de
misericórdia para com ele. Disse-lhe Jesus: Vai-te, e faze tu o mesmo. (Lucas 10:3037)
Assim, não é preciso perguntar quem é o Outro, quem é o próximo, pois, os
pobres interpelam a região universal. E a proximidade significa aproximar-se na
fraternidade, de modo que a distância com o Outro (que pode nos esperar, nos rejeitar,
nos dar a mão, nos ferir, nos beijar ou nos assassinar) seja diminuída. Por isto, entende -se
que aproximar-se na justiça é sempre um risco porque é encurtar distância para uma
liberdade distinta, visto que o amor-de-justiça ocorre pelo fato do Outro ser alguém,
independente do conhecimento sobre ele, independente da razão ou da inteligência. Justo
porque, o princípio da misericórdia é a cordialidade do amor ao miseráveis, por isso,
fazer justiça está além da lei, além da política, por um pobre. E a partir da parábola
Dussel explica que
[...] aquele que a beira do caminho, fora do sistema, mostra seu rosto sofredor e
contudo confiante: “- Estou com fome!, tenho direito de comer”. O direito do outro,
fora do sistema, não é um direito que se justifique pelo projeto do sistema ou por
suas leis. Seu direito absoluto, por ser alguém, livre, sagrado, funda-se em sua
própria exterioridade, na constituição real de sua dignidade humana. (DUSSEL,
1977, p. 49).
O mesmo raciocínio está presente na hermenêutica dusseliana referente a
parábola do filho pródigo, apresentada no Evangelho de São Lucas. Nesta estória o filho
mais novo de um homem após pedir sua parte na herança vai para longe da família, e lá,
de maneira extravagante desperdiça todo o dinheiro que possuía. Para não passar
necessidades, o jovem resolve, então, voltar para a casa de seu pai, e estando ele ainda
longe, seu pai o viu e teve compaixão dele, e correndo o abraçou e o beijou. O pai
imediatamente resolveu fazer um belo jantar em homenagem ao filho pródigo que havia
voltado. E nisto, o filho mais velho indignou-se sob o argumento de que sempre
trabalhara junto ao pai, e jamais recebeste qualquer iguaria, sendo que, era ele quem
merecia as honras por jamais ter sido desobediente. Com isto Dussel pretende mostrar
que a verdadeira justiça está em reconhecer a dignidade do Outro enquanto exterioridade:
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“porque este teu irmão era morto e reviveu, estava perdido e se achou” (Lucas 15:11-32).
E de modo algum a justiça igualitária deve prevalecer, como pleiteava o filho mais velho:
“dê a cada um o que merece”. O pai soube ouvir as necessidades do filho que clamava
por piedade, e agiu de acordo com o amor-de-justiça. Deste modo, o bem ético é
entendido como justiça na medida em que para o justo a vítima, o dominado, o filho
pródigo ou o sofredor da parábola do Bom Samaritano, consiste no advento de um mundo
novo, distinto, mais justo, isto porque o Outro, aclama a todo momento por justiça. E
portanto, passa a ser um inferno para o sistema de injustiças – um inferno para o irmão
que requeria a igualdade sistêmica. E ao passo que o sim-ao-Outro pode ser
compreendido como o bem comum, é este bem comum que, na comunidade de vítimas,
progride para servir-ao-Outro no justiça. Pode-se constatar, portanto, que mediante a
justiça primeira, isto é, na perspectiva do amor-de-justiça, os ideais burgueses de justiça:
igualdade, fraternidade e liberdade, devem ser revistos, e reafirmados como: alteridade,
solidariedade e libertação.
Referências:
DUSSEL, Enrique. Ética da Libertação: na idade da globalização e da exclusão. Petrópolis:
Vozes, 2012.
______. Para uma ética da libertação latino-americana. V. II. São Paulo: Loyola, 1977.
JUSTINIANO I. Digesto de Justiniano. Tradução de Hélcio Maciel França Madeira. 2° Ed.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000.
______. Institutas do Imperador Justiniano: manual didático para uso dos estudantes de
direito de Constantinopla. Tradução de J. Cretella Jr. e Agnes Cretella. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2000.
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A LEI MORAL COMO REFUTAÇÃO DO SOLIPSISMO PRÁTICO EM
KANT – José Francisco Martins Borges
IFC
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Resumo: O presente trabalho possui o objetivo de mostrar, apoiando-se no pensamento de
Kant a relação que se estabelece entre a consciência da lei moral e os desejos oriundos das
inclinações sensíveis. Mais notadamente, procura-se mostrar como é possível romper a
barreira do solipsismo prático, entendido como a tendência do ser humano agir baseado
somente no seu interesse individual de ser feliz, e buscar uma felicidade que possa coexistir
com a felicidade das demais pessoas.
Palavras-chave: Lei Moral. Inclinações. Paixões. Solipsismo Prático. Felicidade.
1 - A relação existente entre lei moral e inclinações sensíveis
Em sua busca por um princípio supremo para fundamentar a moralidade,
Immanuel Kant termina por encontrar o princípio da autonomia da vontade. Esse
princípio se caracteriza pela obediência à lei que a razão apresenta para si mesma. Em
outras palavras, podemos afirmar que, a partir da autonomia da razão prática pura é
instaurada uma lei necessária e universal válida também para a vontade de todo ser
racional. Enquanto seres afetados pelas inclinações sensíveis, isto é, por desejos que tem
sua origem na sensibilidade, a lei moral nos é representada na forma de um imperativo,
isto é, um mandamento categórico da razão que não admite exceção alguma e
fundamentalmente se contrapõe aos desejos egoísticos, às paixões e inclinações pessoais
de cada indivíduo. Pois essas inclinações têm por base a sensibilidade que, segundo Kant
no “máximo pode dar regras gerais mas não universais” (Cf. KANT, 2002, p. 63). No
entanto, o homem não pode escapar da influência da sensibilidade naquilo que lhe
promete felicidade, pois “ser feliz é necessariamente a aspiração de todo ente racional,
porém finito e, portanto, um inevitável fundamento determinante de sua faculdade de
apetição” (Idem, p. 45). O homem em sua inevitável procura de felicidade própria é
assim constantemente afetado por inclinações sensíveis que lhe acenam com essa
possibilidade. Se o homem não pode escapar da consciência da lei moral, e também não
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pode prescindir de ser feliz, então, inevitavelmente, haverá um choque entre os
fundamentos que concorrem nele para a determinação de sua vontade para a ação. De um
lado, iremos encontrar a lei moral, que expressa o imperativo categórico e somente é
possível pela autolegislação de todo ser racional; e de outro lado, o objetivo de se atingir
a felicidade através da satisfação plena de seus desejos. Em outras palavras, temos em um
extremo um princípio prático meramente formal, que é produto da razão prática pura, e
no outro extremo um princípio prático material que é produzido por uma razão
empiricamente condicionada, sendo que “todos os princípios práticos materiais são,
enquanto tais, no seu conjunto de uma e mesma espécie e incluem-se no princípio geral
do amor de si ou da felicidade própria” (Idem, p. 40). No entendimento de Kant, “todas
as inclinações em conjunto (que certamente podem também ser compreendidas em um
razoável sistema e cuja satisfação chama-se então felicidade própria) constituem o
solipsismo <selbstsucht> (solipsismus)”1 (Idem, p. 129). O solipsismo moral está assim
ligado às inclinações que vão na direção da satisfação da felicidade individual. Essa
satisfação própria pode ocorrer de dois modos, como o autor imediatamente vai
esclarecer:
o solipsismo consiste ou no solipsismo do amor de si, como uma benevolência para
consigo mesmo sobre todas as coisas (philautia), ou no solipsismo da complacência
em si mesmo (arrogantia). Aquele se chama especificamente amor-próprio e este,
presunção (Idem, p. 129, grifos de Kant).
Resulta oportuno destacarmos aqui o pensamento de Crampe-Casnabet que em
seu estudo sobre Kant declara:
Contradizer as inclinações é atacar de frente o egoísmo, busca natural da felicidade
pessoal que Kant vai especificar como amor a si ou amor próprio (indulgência
excessiva para consigo mesmo) e presunção (o fato de estar contente consigo =
arrogantia) (1994, 77).
1
Adotamos aqui a tradução do termo alemão Selbstsucht como solipsismo seguindo a tradução da Crítica da
razão prática elaborada pelo Prof. Valério Rohden. Outras versões em língua portuguesa, como por exemplo a
tradução feita por Artur Morão na Edições 70, traduzem Selbstsucht como egoísmo, embora o próprio Kant tenha
colocado o equivalente desse termo em latim (solipsismus).
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A pureza dos ditames da razão prática instauram, por conseguinte, uma batalha a
ser travada no interior do homem entre sua faculdade de apetição inferior, que coloca sua
vontade e desejos pessoais egoísticos como sendo a medida de todas as coisas, e a
faculdade de apetição superior, que coloca para o homem não fins meramente subjetivos,
isto é, ao gosto de cada um, mas sim os fins objetivos da razão prática pura que devem
ser perseguidos por ele. Aqui caberia uma pergunta: qual é a causa desse choque entre os
desejos pessoais e a lei moral? A resposta para essa questão é dada da seguinte maneira
por Kant:
Ora, nós encontramos nossa natureza de entes sensíveis constituída de modo tal que
a matéria da faculdade de apetição (objetos da inclinação, quer da esperança ou do
medo) impõe-se em primeiro lugar, e o nosso si-mesmo <Selbst> determinável
patologicamente, embora por suas máximas seja totalmente inapto à legislação
universal, não obstante, como se constituísse todo o nosso si-mesmo <unser ganzes
Selbst>, empenha-se por tornar antes válidas suas exigências como se fossem as
primeiras e originais (KANT, 2002, P. 131).
Quer esse parágrafo dizer que nosso ser, do ponto de vista da sensibilidade, se
esforça para que seus desejos e paixões sejam atendidos de uma maneira prioritária,
melhor dizendo, nosso eu patológico (carregado de paixões) empenha-se com todas as
suas forças para que seja saciada a sede de seus desejos. No entanto, o eu patológico não
constitui todo o eu humano, pois se assim o fosse o homem não precisaria de razão,
bastar-lhe-ia o instinto dos animais para que ele alcançasse seus objetivos. Além do eu
patológico existe o eu racional, traço distintivo do homem em relação aos animais, pois
se num ser dotado de razão e vontade a verdadeira finalidade da natureza fosse a sua
conservação, o seu bem-estar, numa palavra a sua felicidade, muito mal teria ela
tomado as suas disposições ao escolher a razão da criatura para executora destas
suas intenções. Pois todas as ações que esse ser tem de realizar nesse propósito, bem
como toda a regra do seu comportamento, lhe seriam indicadas com muito maior
exatidão pelo instinto, e aquela finalidade obteria por meio dele muito maior
segurança do que pela razão (KANT, 1986, BA 4).
Melhor dizendo, a subjetividade de todos os desejos do homem deve estar
adequada a uma ordem objetiva imposta pela razão, a saber, a lei moral. Pois segundo
Kant,
a lei moral, a qual, unicamente é verdadeiramente ( a saber, sob todos os aspectos)
objetiva, exclui totalmente a influência do amor de si sobre o princípio prático
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supremo e rompe infinitamente com a presunção, que prescreve como leis as
condições subjetivas do amor de si (KANT, 2002, p.131).
2 – Felicidade e Dignidade de ser Feliz
Como já foi afirmado anteriormente, sob o ponto de vista sensível o homem
naturalmente tende à felicidade, e em virtude disso sua razão prática pura não pode lhe
obrigar a ser feliz. Pois nesse caso ela seria uma razão totalmente subordinada aos
reclames da sensibilidade. A razão somente lhe obriga que obedeça a prescrição da
moralidade, isto é, que obedeça a lei moral e cumpra dessa maneira com seus deveres
éticos. Por conseguinte, se o homem busca naturalmente sua felicidade, isto é, a
satisfação de seus anseios, essa felicidade deve poder existir em conjunto com a
felicidade dos demais homens. Novamente entra em cena o papel da razão, é claro que
não uma razão condicionada à satisfação das inclinações sensíveis, mas sim a razão
prática pura. Kant parece estar apontando na direção de uma universalização da
felicidade, que está baseada na consciência de agir segundo os princípios puros da razão
prática. Algumas de suas reflexões sobre filosofia prática, podem nos dar uma melhor
compreensão daquilo que ele pensava sobre a relação entre uma felicidade pessoal,
baseada no egoísmo individual, e a verdadeira felicidade, que é somente encontrada na
consciência do homem submisso à lei moral. Nesse sentido, Kant começa afirman do que:
A primeira e principal observação do homem sobre si mesmo é a de ver-se
determinado por natureza a ser o forjador de sua própria felicidade e inclusive até
das inclinações e destrezas que tornam possível a mesma. Daqui se segue que não
tenha de ordenar suas ações conforme a instintos, mas sim de acordo com os
conceitos de felicidade que se fabrica, apresentando como sua máxima preocupação
não possuir uma concepção errônea ou desviar-se dela em vista de uma
sensibilidade embrutecida, sobretudo ante a tendência de atuar habitualmente contra
essa ideia. Ter-se-á, portanto, como um ser que atua livremente, considerando esta
independência e autodomínio as coisas mais excelsas, por lhe permitirem fazer
coincidir os desejos com o seu conceito de felicidade e não com os instintos, forma
de conduta que convém à liberdade de um ser racional. Em primeiro lugar, terá de
ajustar sua ação ao fim universal da humanidade em sua própria pessoa de acordo
com conceitos e não conforme a instintos, com o fim de harmonizar estes entre si, já
que coincidem com o universal, isto é, com a Natureza (KANT, 1991, Reflexão
7199).
Agir com base em conceitos e não em instintos é a primeira condição para se
atingir a felicidade. A palavra “instintos” significa nesse contexto um agir cego baseado
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apenas na voz das inclinações sensíveis. Se o homem fecha-se em si mesmo e escuta
somente os apelos de sua sensibilidade, isto é, de suas paixões, torna-se egoísta e
persegue sua felicidade não se importando com o estado ou com a felicidade d os demais
homens. Parece que Kant está clamando com toda força contra todos aqueles que só têm
olhos para seu próprio bem-estar: não é digno ser feliz às custas da infelicidade alheia.
Em virtude disso, a conclusão de Kant:
Não é, pois, o egoísmo, que se encaminha do particular para o geral, quem deve
trabalhar como a motivação de um ser racional, mas sim essa vertente racional que
parte do universal e extrai daí a regra para o concreto.De igual modo, advertirá que a
sua felicidade depende da liberdade de outro ser racional e que atender unicamente a
si mesmo não se compadece com o amor próprio, restringindo o conceito de
felicidade própria à condição de propiciar a felicidade universal ou, pelo menos, a
de não se opor a que outros fomentem a sua. A autêntica moralidade se cifra nas leis
da criação da verdadeira felicidade a partir da liberdade (Idem, Reflexão 7199).
Como já foi colocado em destaque anteriormente, a minha felicidade individual
deve poder coexistir juntamente com a felicidade alheia. Trata-se aqui não da satisfação
de uma felicidade empírica, mas sim da posse de uma dignidade de ser feliz baseada na
livre escolha de todo homem. Kant, para aclarar um pouco mais seu raciocínio, declara
que:
A matéria da felicidade é sensível, mas sua forma é intelectual: não é possível
conceber essa forma a não ser como liberdade submetida a leis a priori que a façam
coincidir consigo mesma, sem dúvida não para realizar efetivamente a felicidade,
mas sim a possibilidade e ideia da mesma. Pois a felicidade consiste no bem-estar,
se esse não depende de circunstâncias empíricas, externas e casuais, mas sim que
descanse em nossa própria escolha. Essa escolha tem que determinar sem depender
por sua vez de determinações naturais, tratando-se aqui de uma liberdade bem
ordenada (Idem, Reflexão 7202).
Por conseguinte, Kant entende a verdadeira felicidade como um bem-estar que é
produzido a partir do uso livre de nossa faculdade de apetição superior, e não um bem estar, ou deleite, meramente sensível que se segue após a satisfação dos desejos. Se o
homem obedece apenas suas paixões torna-se um escravo da sensibilidade e jamais
encontra repouso, pois como afirma o provérbio latino: Post coitum omne animal tristis
est2. Ao contrário, se o homem submete todo o seu querer aos mandamentos puros da
2
Tradução: “Passado o coito, todo animal é triste”.
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razão então ele pode esperar um autocontentamento, isto é, uma espécie de auto satisfação, que nada mais é do que um efeito da determinação de sua vontade pela lei
moral. Em outras palavras, a paz de espírito e a felicidade somente sã o encontradas nos
homens que possuem a consciência de perseguirem a virtude, como atestam as palavras
do Gênio de Königsberg:
Só é suscetível de ser feliz quem resiste em utilizar seu livre arbítrio conforme aos
dados relativos a felicidade que lhe proporciona a Natureza. Essa propriedade do
livre arbítrio é a conditio sine qua non da felicidade. A felicidade não consiste
propriamente na maior soma de prazeres, mas sim no gozo proveniente da
consciência de alguém se achar satisfeito com seu autodomínio; pelo menos essa
é a condição formal da felicidade, ainda que também sejam necessárias (como na
experiência) outras condições materiais (Idem, Reflexão 7202, grifo meu).
A felicidade não deve partir da sensibilidade, a qual é rainha e mestra dos
prazeres sensíveis, apaixonados e ilusórios no homem. Ela deve partir do próprio sujeito
e basear-se em um princípio a priori, pois
achar grato o próprio estado apoia-se na felicidade, mas tomar essas alegrias por
felicidade não corresponde com o valor dessa, senão que a felicidade procederá de
um princípio a priori sancionado pela razão. Sentir-se infeliz não é uma
consequência inexorável dos infortúnios que acontecem na vida (Idem, Reflexão
7202).
A verdadeira felicidade, por conseguinte, provém unicamente da consciência
humana, segundo ele:
O homem encontra na sua consciência a causa de estar satisfeito consigo mesmo.
Possui a predisposição para todo tipo de felicidade e de fazer-se feliz ainda
carecendo das comodidades da vida. Este é o aspecto intelectual da felicidade (Idem,
Reflexão 7202).
Mas de que espécie é essa consciência que Kant está falando? Trata-se aqui,
evidentemente, da consciência moral. Pois é através da consciência da moralidade,
presente em todos os seres racionais finitos, que nasce aquilo que conhecemos como
sendo nossos deveres morais. Como já expresso anteriormente, para Kant
a felicidade não é algo sentido senão pensado. Tampouco é um pensamento que se
pode obter a partir da experiência, pois é precisamente esse pensamento que
possibilita essa experiência. Certamente, não se trata de algo assim como chegar a
conhecer todos os elementos constitutivos da felicidade, mas sim de conhecer a
priori a única condição que nos habilita para a felicidade (Idem, Reflexão 7202).
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Qual seria, então, essa condição que nos habilita à felicidade? Simplesmente
obedecer à lei moral que é produzida por nossa própria razão, isto é, a partir do princípio
da autonomia da vontade.
3 – Considerações Finais
A felicidade do homem, do ponto de vista individual, nunca deve estar em
contradição com os mandamentos da razão prática pura, posto que o homem pode até
alcançar uma felicidade agindo imoralmente, no entanto esse homem não será digno
dessa felicidade por ele alcançada. Por conseguinte, uma pessoa que defenda a p osição do
egoísmo ético 3, segundo a qual todas as pessoas devem fazer tudo aquilo que lhes
prometa a felicidade e se colocarem a si mesmas como o centro de toda a ação, está
colocada em uma posição antagônica à sua própria razão. Toda pessoa que pregue, so b o
ponto de vista da moralidade, uma posição solipsista ou egoísta deixa de ter uma conduta
autônoma e passa a agir heteronomamente, posto que não se deixa determinar pela
representação da legislação universal. A moralidade, portanto, deve prevalecer sobre
todos os desejos e anseios humanos para que se possa produzir efetivamente um estado
de felicidade para o próprio homem. Um homem que respeita a lei moral, segundo Kant,
“é digno de ser feliz, isto é, de chegar a possuir todos os meios que possam propici ar sua
própria felicidade e a dos demais” (Idem, Reflexão 7202). Alerta-nos, entretanto, Kant
que:
Para que a moralidade convenha por cima de tudo e em termos absolutos, é
necessário que resulte conveniente, não desde o ponto de vista do proveito
individual e particular, mas sim desde uma perspectiva universal a priori, isto é, aos
olhos da razão pura, já que a moralidade é universalmente necessária para a
felicidade, assim como também digna dela. Contudo, a complacência causada pela
moralidade não apoia-se nessa última, dado que não promete o aspecto empírico da
felicidade; por conseguinte, não contém dentro de si móvel algum, pois para isso se
requer sempre condições empíricas, a saber, a satisfação das necessidades. A
moralidade é a ideia da liberdade tomada como princípio da felicidade (princípio
regulativo a priori da felicidade). Daí que as leis da liberdade tenham de ser
independentes do propósito relativo à própria felicidade, ao mesmo tempo em que
contenham a condição formal a priori da mesma (Idem, Reflexão 7202).
3
Para o presente trabalho adotamos a concepção de egoísmo ético apresentada no livro de Maria de Lourdes
Borges, Darlei Dall’Agnol e Delamar Volpato Dutra (2002).
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Do ponto de vista kantiano, a felicidade não pode se constituir em um princípio
de fundamento para a ação moral, como Aristóteles propõe em sua Ética 4. A felicidade
não deve anteceder no homem sua escolha para a ação, mas ela pode surgir nele a partir
da determinação de sua vontade pela lei moral.
Um
outro
aspecto
da
felicidade
assinalado por Kant diz respeito ao caráter de não contingência que está presente na
dignidade de ser feliz. Se inúmeras vezes o homem busca a satisfação de seus des ejos
pessoais, isto é, sua felicidade empírica e encontra apenas decepção, com a determinação
de sua vontade pela lei moral, ele necessariamente produz sua dignidade de ser feliz, isto
é, encontra em si o autocontentamento moral por ter obedecido às prescrições da razão
prática pura. Por conseguinte, o homem é o construtor de sua própria felicidade. Somente
em suas mãos está o poder de ser o autor mesmo de sua bem-aventurança. Para tanto, fazse mister que ele empregue todas suas forças na superação dos obstáculos que barram sua
determinação para a ação moral. Sendo que esses obstáculos nada mais são do que as
inclinações e paixões oriundas da sensibilidade.
Referências:
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. São Paulo: Nova Cultural, 1982.
BORGES, M.L., DALL’AGNOL, D., DUTRA, D. V. Ética. Rio de Janeiro: DP&A, 2002.
CRAMPE–CASNABET, M. Kant: uma revolução filosófica. Tradução de Lucy Magalhães.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1994.
KANT, I. Antologia. Edición con Introducción y selección de Roberto Rodriguez Aramayo.
Barcelona: Ediciones Península, 1991.
_____. Crítica da razão prática. Tradução com introdução e notas de Valério Rohden. São
Paulo: Martins Fontes, 2002.
______. Fundamentação da metafísica dos costumes. Tradução de Paulo Quintela. Lisboa:
Edições 70, 1986.
4
Ver, por exemplo, o papel da eudaimonia na Ética a Nicômaco (1982).
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A MEMÓRIA E AS POSSIBILIDADES DE CONHECIMENTO EM WALTER
BENJAMIN – Kathlen Luana de Oliveira
Fac.EST/CAPES
[email protected]
Resumo: Este texto consiste em um ensaio que busca situar a compreensão de memória em
Walter Benjamin na epistemologia contemporânea. Partindo da tipologia proposta por
Jonathan Dancy, o antirrealismo fenomenalista parece trazer elementos que auxiliam a
sistematizar as características da memória existentes em Benjamin. Todavia, o pensamento
benjaminiano não pode ser reduzido ou meramente enquadrado dentro das teorias modernas,
pois seu pensamento acontece por fragmentos e possui uma densidade epistemológica que
ultrapassa os limites estabelecidos à atividade do pensar de um modelo racionalista e
positivista. Em Benjamin, a crítica à modernidade, possibilita uma compreensão de memória
que não corrobora com a instrumentalização da vida humana. Assim, neste ensaio, o diálogo
com a epistemologia contemporânea almeja identificar que a compreensão de memória é
polissêmica e não pode ser banalizada.
Palavras-chave: Benjamin. Memória. Epistemologia.
Introdução
As impossibilidades de se dizer a realidade parecem, na contemporaneidade,
mais persistentes e insistentes do que as possibilidades de dizê-la. A pluralidade de
posturas e modos de pensar parecem coexistir num emaranhado que ora parece pender ao
relativismo ou ceticismo, ora ao dogmatismo. O desafio é constantemente pensar, e
pensar sobre as formas de se construir conhecimento sem cair tanto no descrédito das
perpétuas dúvidas, nem cair nas imóveis certezas. De um lado, com o excesso de
desconfiança, tem-se a impressão de que o conhecimento não “sai do lugar”. É como
enxergar uma ponte sobre um rio pela frente, cheia de furos, frágil, e, apesar de uma
urgência em atravessá-la, não se dá nenhum passo. De outro lado, o excesso de confiança
também cristaliza conceitos, que sofrem de uma mesma imobilidade. Nessa mesma ponte,
a confiança faz com que se atravesse sem olhar para onde se está pisando, sendo
eminente cair nas fragilidades do chão, por não desconfiar um pouquinho do lugar onde
se pisa. Afinal, o movimento do conhecer está em relação direta à descoberta ou mesmo,
em redescobrir conhecimentos deixados pela tradição. Neste ensaio, o objetivo é
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investigar, de forma extensiva, a memória como componente da construção de
conhecimento. Trata-se de um exercício que pergunta como a memória é compreendida e
como ela é considerada nas possibilidades de conhecimento. Nesse exercício, Walter
Benjamin é um referencial em seu entendimento específico acerca da memória. Assim,
num primeiro momento, apresentar-se-ão fragmentos benjaminianos acerca da memória.
Num segundo momento, essa compreensão será comparada com a tipologia de Dancy
acerca das teorias da memória, situando, a compreensão de Benjamin. Buscar-se-á, por
fim, avaliar a contribuição, os desafios e os limites da compreensão de memória em
Benjamim. Claro, que se estabelece uma distinção entre uma análise epistemológica e
uma preocupação benjaminiana com uma memória além da racionalidade. Porém, de
qualquer forma, compreender a memória benjaminiana dialogando com a teoria do
conhecimento, possibilita visualizar de que memória se está falando, ou então, o quanto
memória é uma compreensão polissêmica.
1. Alguns aspectos da Compreensão de Memória em Benjamin
Como em Benjamin, há uma crítica contundente da modernidade, da razão
instrumental, uma contestação dos rumos liberais e positivistas da Modernidade que
culmina no esfacelamento do ser humano e do social, não é possível r ealizar um sistema
de seu pensamento. Todavia, assim como ele realiza, o pensar é em fragmentos, em
alegorias. Alegoria que é compreendida como um mergulhar as palavras na experiência e
ai buscar outros dizeres. É uma preocupação constante em não deixar com que a
modernidade subtraia o ser humana de sua experiência, que para Benjamin é o que está
acontecendo. Nesse sentido, como ponto de partida e como pano de fundo, já existe uma
contestação em Benjamin contra qualquer positivismo, contra a instrumentalida de do
conhecimento e contra o progresso. O que se constata é de que memória sofre uma
banalização conceitual. Geralmente, ela é considerada sinônimo de decorar, assumindo
um lugar inferior no fazer histórico. Em continuidade e rupturas com a Escola de
Frankfurt, Benjamin utiliza o marxismo, somado a uma tradição literária para pensar seu
tempo. Um primeiro fragmento que aqui é recolhido, assim reflete:
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Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo como ele foi de fato.
Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de
um perigo. Cabe ao materialismo histórico fixar uma imagem do passado, como ela
se apresenta, no momento do perigo, ao sujeito histórico, sem que ele tenha
consciência disso. O perigo ameaça tanto a existência da tradição como os que a
recebem. Para ambos, o perigo é o mesmo: entregar-se às classes dominantes, como
seu instrumento. Em cada época, é preciso arrancar a tradição ao conformismo, que
quer apoderar-se dela. Pois o Messias não vem apenas como salvador, ele vem
também como vencedor. O dom de despertar no passado as centelhas da esperança é
privilégio exclusivo do historiador convencido de que também os mortos não estarão
em segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessado de vencer.1
Sob o contexto do totalitarismo, Benjamin também critica o marxismo. O que
fundamentalmente é o perigo é o descompromisso com a vida. E da mesma forma como
constrói sua crítica a uma racionalidade positivista, não há garantias de que o futuro seja
melhor. De qualquer forma, o passado é importante para se pensar o presente. E esse
pensar é um despertar de uma apatia e é uma oportunidade de dizer não a determinadas
tradições culturais e epistemológicas. A memória, aqui, assume uma importância de
pensar. E pensar é produzir experiência, dizer experiência. A tradição e a epistemologia
contestada são aquelas que desapropriam as pessoas de suas experiências, que edificam
seres partidos. Não há como definir uma memória e uma racionalidade benjaminiana que
seja separada de uma totalidade se sentir, de dizer as vivências. Há, pois,
entrecruzamentos de visões, da individualidade, da coletividade, do pensar, do afeto. O
conhecimento, enfim, não é algo apático, mas é algo que compromete o ser humano com
o seu habitar.
Igual a quem forma para si, a partir da casa onde mora e da cidade que habita, uma
ideia de sua própria natureza e índole: eu fazia o mesmo com os animais do jardim
zoológico. [...] Porém do todos os habitantes dessa área, a lontra era o mais notável,
[...] esse canto do zoológico trazia em si feições do porvir. [...] Era o animal sagrado
das águas da chuva. [...] Naquela chuva boa sentia-me totalmente desprotegido. E o
meu futuro vinha ao meu encontro rumurejando à semelhança da cantiga de ninar
entoada ao lado do berço. Facilmente percebi que aquela chuva fazia crescer. Em
tais horas, atrás da janela embaçada, sentia-me com em casa da lontra.2
Refletindo sobre as próprias memórias, Benjamin estabelece um elo entre o
passado, presente e futuro. Nesse fragmento, em empatia com a Lontra, a chuva é
1
2
BENJAMIN, Teses sobre a Filosofia da História, 1994 [1940], p. 156.
BENJAMIN, 1987 [1932/1933], p. 93-95.
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identificada com a água que envolve a criança em sua gestação. É o pensar sobre a vida.
De forma semelhante, no fragmento há a alusão a experiência da morte, do porvir que se
apresenta como algo em aberto, ameaçado, mas que com a ênfase na chuva, permanece
sempre a possibilidade de crescer. O que aqui quer se focar é a compreensão de memória
enquanto
fundamental
à
continuidade
e
transmissão
do
mundo,
através
da
comunicabilidade. A preocupação benjaminiana é com o fim da narração, com o declínio
da experiência, com a redução da experiência do tempo. Nesse sentido, a memória é
qualitativamente distinta para Benjamin. A memória é ligada a um tempo e a atividades
partilhadas que são posta em narração. E a atividade narrativa é rememorar e recolher o
passado esparso sem, no entanto, assumir a forma obsoleta da narração mítica universal.
Todavia, o que ocorre é um processo de silenciamento imposto pelas experiências de
sofrimento. Igual um soldado que volta de uma guerra mudo, ou mesmo, em um shopping
sem janelas, caracterizado da mesma forma em qualquer lugar, as pessoas não têm a
possibilidade de dizerem algo de si, mas são expropriadas de seu tempo e de seu lugar.
Com essa preocupação, e o exacerbamento da violência, não há mais experiências
partilhadas e ditas. Há um sofrimento tal que não pode depositar-se em experiências
comunicáveis, que não pode dobrar-se à sintaxe de nossas proposições. Por isso, a
percepção benjaminiana é de que é preciso pronunciar uma palavra corrosiva e
impetuosa, que subverte o ordenamento tranquilo do discurso estabelecido - subversão
tanto mais violenta quanto ela é também o lembrar de uma promessa e de uma
transformação radical do futuro. Paradoxal lembrar, pois funda a visão do futuro e não a
nostalgia do passado. Todavia, Benjamin não cai num pessimismo. Ainda aposta num
despertar, aposta na linguagem e na comunicação como se isso desenhasse ainda a figura
frágil de uma possível humanidade. Há ainda que nomear aquilo que nunca
conseguiremos realmente dizer e, por isso mesmo, aquilo que nos proíbe de nos calarmos
e de nos esquecermos. Há ainda essa exigência paradoxal de transmissão sem
inteligibilidade, há ainda que tentar criar as condições de uma experiência comum. 3 Não
3
ALVES, Karina Valença. Experiência, Pensamento, Educação: Uma reflexão a partir de Hannah Arendt e
Walter Benjamin. Disponível em<http://elogica.br.inter.net/ferdinan/karinamirian_com1.pdf>. Acesso em: 20
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se trata de um historicismo, mas o Agora recebe outra qualidade em sua relação com o
passado e o futuro. O “tempo da verdade” é aquele que restitui aos acontecimentos a sua
historicidade, que entrega o passado a uma humanidade redimida, para a qual ele se
tornou, por fim, citável. Para tal ser atingido, Benjamin propõe uma “revolução
coperniciana na visão da história”, ancorada na Rememoração como categoria que
preside a uma refundação da atividade histórica – não enquanto ciência que encara o
outrora como passado cristalizado disponível para a apropriação, mas enquanto exercício
de presentificação anamnésica que interrompa o fluxo contínuo do tempo através de um
“salto de tigre para o passado”. A historicidade de um acontecimento, o que permite que
ele se torne citável, não existe nele como dado a priori, é-lhe outorgada posteriormente,
se o “índice secreto” que ele contém for reconhecido e fixado no momento da sua
irrupção na superfície do presente.
A imagem verdadeira do passado passa num clarão. Só podemos reter o passado
numa imagem que surge e desaparece para sempre no próprio instante em que ela se
oferece ao conhecimento [Tese V]. O resgate do passado não consiste, então, no
esforço intencional da sua restituição integral mas na apreensão rememorativa do
momento em que, através da abertura de uma brecha do contínuo temporal, uma
imagem do Outrora colide brevemente com o Agora. Institui-se, assim, uma relação
dialética entre dois planos temporais distintos, sincronizados em “Constelação” 4.
2. Relações: Benjamin um Antirrealista?
Seguindo o mapeamento teórico de Dancy, teorias da memória podem seguir
uma classificação entre realistas e antirrealistas. O realismo que pode classificar -se em
realismo direto e indireto e antirrealismo classificado como fenomenalismo e ide alismo.
O realismo direto postula que o mundo real subsiste independente do ser humano
lembrar, ou seja, o passado possui um status objetivo. Não há necessidade de ser
lembrado, ou tornado consciente. O realismo indireto já advoga por uma memória que é
uma recordação indiretamente consciente do passado. Há uma representação da memória,
e não o acesso ao fato em si. 5 Para Dancy, memória possui estreitas relações com
jun. 2012.
4
BENJAMIN, Sobre o conceito de História, 1994, p. 478.
5
DANCY, J. Epistemologia contemporânea. Lisboa: Edições 70, 1990. p. 228.
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percepção, inclusive traz a mesma exposição didática desta. Para o Realismo indireto –
“recordar é estar indifectamente consciente do passado. Quando recordamos, há um
objeto directo de consciência que funciona como intermediário; é a imagem da memória.
A imagem da memória é nosso objeto interno” 6. Para o Realismo direto – “Memória
como a nossa consciência do passado é directa. Não há objecto ‘interno’ intermediário
em virtude da consciência do qual estejamos indirectamente conscientes de outras coisas.
As imagens da memória, se e quando ocorrem, [...] não são um objeto de consciência,
mas (parte de) o modo como estamos conscientes do acontecimento passado” 7. Como é
expresso pelo senso comum, a memória é entendida como memória factual. Dancy assim
a define como é conhecimento factual, conhecimento adquirido no passado, que pode ser
retido, recuperado ou perdido. 8 Para o fenomenalismo, a memória possui distinções para
1) o fenomenalismo eliminativo que defendem que passado não existe, apenas há a
ocorrência presente de certo tipo de experiência e o 2) fenomenalismo redutivo para o
qual o passado existe, mas não é mais que um complexo de experiências presentes desse
tipo. Passado consiste na acessibilidade de experiências da memória. 9 Geralmente, a
memória é contrastada com a recordação. Há uma clara distinção para entender a
dissociação funcional entre manifestações da capacidade de lembrar: memória (mime) e
recordação (anamnhseos). Para Cunha e Silva, a memória seria uma função da faculdade
primária de senso-percepção, constitui um modo especial de representação após um lapso
de tempo percebido. A recordação consiste na reiteração dos objetos da memória e é um
estado especial da consciência. 10 Dancy cita Bertrand Russell (em The Analysis of Mind),
que ressaltou a influência generalizada da memória no processo de conhecer o mundo,
considerando que praticamente toda forma de conhecimento pressupõe alguma
modalidade de memória. Russel iniciará suas discussões a partir dos impactos da
6
DANCY, 1990, p. 228.
DANCY, 1990, p. 232.
8
DANCY, 1990, p. 232.
9
DANCY, 1990, p. 236.
10
CUNHA, Andrea V S.R. da; SILVA, Mariluze F. de A e Silva. Sobre o conceito de memória em Bertrand
Russel. Μετάνοια, São João del-Rei/MG, n.12, p.45-60, 2010. Disponível em: <http://www.ufsj.edu.br/portalrepositorio/File/revistalable/andrea.pdf>. Acesso em 16 abr. 2012, p. 48.
7
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memória no conhecimento, sendo que uma questão importante sobre os limites do
conhecimento é: se o conhecimento pode ser atingido de coisas que estão além da nossa
própria experiência pessoal, o que para ele só ocorre pelo fato de que podemos relembrar
e agrupar vários fragmentos de nossas experiências pessoais. 11 Memória é uma relação
em que um sujeito se lembra de um conhecimento passado com um objeto específico,
onde fica explícito que a sensação e a memória estabelecem relações temporais entre
sujeito e objeto, enquanto a simultaneidade e a sucessão estabelecer relações temporais
entre um objeto e outro objeto. Já imaginação é uma relação que, ao contrário da
sensação ou memória, não depende de qualquer relação temporal entre o sujeito e o
objeto. Russell enfatiza a necessidade de distinguir a “memória verdadeira” de outras
manifestações como o hábito. 12 Assim, em Russel, memória coincide com a recordação
consciente de eventos únicos do passado, sendo que essa capacidade implica em dois
fatores: a formação da imagem do evento e uma crença de que a imagem refere-se a algo
que ocorreu no passado. Nesse sentido, as imagens que constituem a memória verdadeira,
diferem daquelas possíveis pelo simples exercício da imaginação, justamente por serem
acompanhadas do sentimento de acreditar na existência passada do evento a que a
imagem se refere, traduzida na expressão “isto aconteceu”, ou “isto existiu”. A crença na
existência passada é determinada não pelo conteúdo da imagem (aquilo que se está
lembrando), mas pelo ato de acreditar em si, que é um sentimento.
13
Partindo dessa
rápida distinção, poder-se-ia dizer que Benjamin não é realista direto. Como ele mesmo
expressou: “Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo como ele foi de
fato”14. E a ideia de representação, de um realismo indireto, já poderia ser polemizada.
Como na tese V, ele cita: “Só podemos reter o passado numa imagem que surge e
desaparece para sempre no próprio instante em que ela se oferece ao conhecimento [Tese
V]”. Nem sempre há intencionalidade na memória, pois ela irrompe o presente quando o
conhecimento é construído. Claro que pode se dizer que há uma distinta compreensão de
11
12
13
14
CUNHA, SILVA, 2010. p. 53.
CUNHA, SILVA, 2010. p. 53.
CUNHA, SILVA, 2010. p. 55.
BENJAMIN, Teses sobre a Filosofia da História, 1991 [1940], p. 156.
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imagem, mas, ao mesmo tempo, é como se o passado tivesse uma breve autonomia, pois
ele pode se presentificar não porque se quer que ele se presentifique, mas porque ele se
faz necessário. Claro que a ideia de representação, implica em ser algo distinto do que é.
Na lógica heideggariana a representação também se consolida com um tipo de
expropriação de si, e do mundo. Na compreensão benjaminiana, a memória entra como
elemento importante de um novo pensamento sobre a história, vista não mais como
representação do passado, e sim como apresentação. Graças ao conceito de memória, é
possível trabalhar no campo da apresentação como construção a partir do presente, tempo
que possibilita a deflagração de correlações passadas. O historiador se identifica então
com a figura do arqueólogo; nesse trabalho arqueológico, a imagem aparece no centro da
vida histórica por se constituir como um objeto dialético, produtor de uma historicidade
anacrônica. De qualquer forma, o passado não é determinado para Benjamin, na medida
em que ele pode ser constantemente revisitado e resignificado. Todavia, a experiência
também é composta por fatos e pela presença da experiência coletiva em Benjamin, nem
tudo é reduzido a um perspectivismo. Claro, que não se trata de um fato absolutizado,
pois ele precisa estar articulado com a experiência. Então, resta a suspeita de que, em
Benjamin, exista a percepção de uma memória antirrealista fenomenalista no sentido de
que o passado não existe sem o sujeito lembrar-se dele. Entretanto, a memória não é
reduzida ao sujeito, ao individual. O que atravessa Benjamin é uma preocupação com o
sentido e o significado da memória. Afinal, o passado não pode ser algo estranho ou não
constituinte dos sujeitos no presente, pois seria a desapropriação da própria memória e da
capacidade de narrar. O que se pode suspeitar é de que a memória em Benjamin seja
fenomenalista, pois inclui a compreensão de que não percebemos as coisas como são,
mas como nos aparecem. Benjamin não nega a existência do passado, mas é a ocorrência
presente de certo tipo de experiências que importa. E o que reforça um pouco mais essa
suspeita é de que a memória é tão relevante para Benjamin quanto o esquecimento.
Para o autor que recorda, o principal não é o que ele viveu, mas o tecer de sua
recordação, o trabalho de Penélope da rememoração. Ou seria preferível falar do
trabalho de Penélope do esquecimento?15
15
BENJAMIN, A Imagem de Proust, 1994 [1929], p. 37.
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O esquecer também é necessário para a memória. Para Benjamin, há memórias
voluntárias e involuntárias. Em Benjamin, a memória é posta no horizonte de
contestação, é uma crítica à aparência da constância e repetição do tempo na história,
uma reivindicação de um “despertar”, como instante da dissolução do equívoco
narcotizante do historicismo.
Referências:
ALVES, Karina Valença. Experiência, Pensamento, Educação: Uma reflexão a partir de
Hannah Arendt e Walter Benjamin. Disponível em
<http://elogica.br.inter.net/ferdinan/karinamirian_com1.pdf>. Acesso em: 20 jun. 2012.
BENJAMIN, Walter. A imagem de Proust. Obras Escolhidas: Magia e Técnica, Arte e
Política. 7ª edição. São Paulo: Brasiliense, 1994. [1929]
______. Sobre o conceito de história. Obras Escolhidas: Magia e Técnica, Arte e Política. 7ª
edição. São Paulo: Brasiliense, 1994.
______. Teses sobre a filosofia da história. In: Kothe, Flavio (Org.); coord., Fernandes,
Florestan (coord.). Coleção Grandes Cientistas Sociais. São Paulo: Editora Ática, 1991.
[1940]
______. A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica. In: História das grandes
idéias do mundo occidental. vol. XLVIII. São Paulo: Abril Cultural (Col. Os Pensadores),
1975. [1936]
________. Infância em Berlim por volta de 1900. São Paulo: Brasiliense, 1987. [1932-1933]
CUNHA, Andrea V S.R. da; SILVA, Mariluze F. de A e Silva. Sobre o conceito de memória
em Bertrand Russel. Μετάνοια, São João del-Rei/MG, n.12, p.45-60, 2010. Disponível em:
<http://www.ufsj.edu.br/portal-repositorio/File/revistalable/andrea.pdf>. Acesso em 16 abr.
2012, p. 48.
DANCY, Jonathan. Epistemologia contemporânea. Lisboa: Edições 70, 1990.
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A NOÇÃO DE FELICIDADE EM ARISTÓTELES – Jaqueline Maria
Leichtweis Ayala
UNIOESTE/PIBID-CAPES
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Resumo: A felicidade é segundo Aristóteles, a finalidade das ações humanas, e para tal,
podemos perceber que a obra Ética à Nicômaco de Aristóteles pode ser entendida como um
tratado do viver feliz, uma vez que, segundo ele, todas as nossas ações têm um fim que possui
um valor nele mesmo, ou seja, para tudo que fazemos há uma finalidade. Neste sentido a ética
de Aristóteles define-se teleológica, pois suas especulações indicam uma noção de finalidade.
Palavras-chave: Bem. Felicidade. Sumo Bem.
Do conceito de Bem à Eudaimonia
Para Aristóteles, o homem é um ser racional, moral e político, essas três
características fazem parte da sua natureza humana, pois, segundo ele “existem três tipos
de conhecimento: o teórico, o prático e o produtivo” (ROSS, 1987, p.193). Entendemos
que o homem na sua essência é racional, o que denota o caráter teórico; é também
prático, pois o indivíduo de acordo com Aristóteles, deve se preocupar com as suas
ações, pois, são elas que irão determinar a ética coletiva dentre da polis. A natureza
política é um elemento do qual o ser humano não pode dissociar-se, pois, segundo o
filósofo, o homem é um animal político por excelência. O estar em comunidade faz parte
da busca essencial do ser humano para viver. A obra Ética à Nicômaco de Aristóteles
pode ser entendida como um tratado do viver feliz, uma vez que, segundo ele, todas as
nossas ações têm um fim que possui um valor nele mesmo, ou seja, para tudo que
fazemos há uma finalidade. A ética de Aristóteles define-se teleológica e eudaimonista,
porque suas especulações além de indicar a uma noção de finalidade, denota-se o sentido
substancialista do conceito de felicidade na obra. Conforme diz o filósofo aqui estudado,
nas ações humanas não é diferente, há o mesmo propósito, ou seja, a busca por um fim
que fundamente esse itinerário; segue-se então que o objetivo final de toda e qualquer
ação humana é a Eudaimonia ou, Felicidade. Ademais vamos perceber que a natureza da
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felicidade está intimamente ligada à natureza da virtude, pois, ser feliz, segundo
Aristóteles, é viver conforme as virtudes e a razão, para assim, bem agir e bem viver.
1. O conceito de bem
No primeiro livro da Ética à Nicômaco Aristóteles já inicia afirmando o conceito
de bem: “Admite-se geralmente que toda arte e toda investigação, assim como toda ação
e toda escolha, têm em mira um bem (agathon) qualquer; e por isso foi dito, com muito
acerto, que o bem é aquilo a que todas as coisas tendem 1. (ARISTÓTELES, 1979, p.49)”.
No entendimento do filósofo tudo aquilo que fazemos, é visando algum fim, e este fim é
o bem alcançado mediante a atividade. Nota-se, portanto que o bem está ligado
diretamente ao agir humano. Agir este que é um predicado relativo ao seu objeto – que é
o fim -, e o sujeito agente do bem é o sujeito ético, pois, o fim da ação se torna
naturalmente algo bom para o homem. (cf. SPINELLI, 2007, p.16)
A ideia de Aristóteles não se trata apenas de uma abstração sem consequências
na realidade. Ao contrário, quando o filósofo esclarece o conceito de bem, ele demonstra
também, que há uma via duplamente concebida entre teoria e prática, ou seja, é com
muito acerto que para tudo que fazemos visamos um fim. Para deixar claro, o conceito de
bem vem associado à essa ideia de atividade, pois é uma tendência à idéia de fim, ou seja,
sempre estará nessa relação. Se essa estrutura primeira não permanecesse, a finalidade
que buscamos, quando iniciamos uma ação, se tornaria caótica. A noção de finalidade é
necessário nas nossas ações. Nessa estrutura teleológica, Aristóteles considera duas
proposições sobre o sentido das nossas ações. A primeira proposição pode ser entendida
da seguinte forma: quando fazemos uma ação por ela mesma está incluído o sentido de
bem da ação e fim da ação, ou seja, existem ações cujo fim residem na própria atividade;
como por exemplo: a música. A segunda proposição é quando, através da nossa atividade,
buscamos por algo externo, como uma obra, um produto, um resultado final; como por
exemplo: a construção naval, onde o fim desejável está para fora, no objeto pronto; o
navio. Muitas são as ações nas artes (tekhne) e nas ciências, e cada uma delas
1
Grifo nosso.
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correspondem à uma finalidade, e portanto, cada uma das atividades realizadas quer seja
nas artes, quer seja nas ciência, nas ações especificamente humanas há um bem. Então há
uma diversidade de fins e uma diversidade de bens, em virtude da diversidade de coisas
que o homem realiza, quer seja a nível produtivo, quer seja a nível do conhecimento, quer
seja a nível da práxis. Para Aristóteles existe uma hierarquia de fins e bens, ou seja,
existem bens e fins que são subordinados a outros, e nesse caso entendemos que o fim é
ao mesmo tempo meio para outra atividade; uma ordem que dá fundamento as ações
humanas. Se buscarmos tais atividades com um determinado fim, pode muito embora, ser
meio para outro fim; como o próprio filósofo exemplifica:
Mas quando tais artes se subordinam a uma única faculdade – assim como a selaria
e as outras artes que se ocupam com os aprestos dos cavalos se incluem na arte da
equitação, e esta, juntamente com todas as ações militares, na estratégia, há outras
artes que também se incluem em terceiras -, em todas elas os fins das artes
fundamentais devem ser preferidos a todos os fins subordinados, porque estes
últimos são procurados a bem dos primeiros. [...] (ARISTÓTELES, 1979, p.49).
Da diversidade de fins e bem, dada a hierarquia deles, há um propósito; o fim
maior desejável, ou seja, é necessário postular um bem último, senão o nosso desejar
seria vazio. Se na diversidade de bens e fins, não houver um que unifique essa
multiplicidade, os nossos desejos, seriam desejos de nada. O que completa a totalidade
dessa série é considerado pelo próprio filósofo como fim final, ou seja, é
metaforicamente o ponto final das nossas ações, é aonde nos auto-realizamos. Como
podemos notar nas considerações de Aristóteles:
Se, pois, para as coisas que fazemos existe um fim que desejamos por ele mesmo e
tudo o mais é desejado no interesse desse fim; e se é verdade que nem toda coisa
desejamos com vistas em outra (porque, então, o processso se repetiria ao infinito, e
inútil e vão seria o nosso desejar), evidentemente tal fim será o bem, ou antes, o
sumo bem. (ARISTÓTELES, 1979, p.49)
O bem supremo é soberano, não depende de nada e tudo é feito para atingi -lo,
portanto ele não é meio para nada, ele é o fim maior em si mesmo, o fim a que visam
todas as ações humanas. A nossa vida seria incompleta senão tivesse nada que coroasse
aquilo que fizemos durante a nossa vida inteira, por isso, o sumo bem é importante nas
nossas ações. Depois de entendermos que o bem supremo é aquilo pelo qual desejamos
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no fim de todas as nossas ações, resta-nos pensar, qual é a melhor ciência que pode
investigar o fim de nossas ações e determinar o que seja o bem supremo? Esse
pensamento faz eco na outra obra de Aristóteles, a Política, pois é a ciência política que
estabelece quais as ciências que devemos estudar dentro da polis e quem deve estudá-las;
“cabe à ciência política dizer-nos o que devemos, ou não, fazer” (ROSS, 1987, p.194).
Na política, buscamos o bem viver e é na polis que alcançamos a felicidade que
Aristóteles estabelece na EN 2. No meio aristotélico entende-se a Política como uma
progressão da Ética à Nicômaco. Com efeito podemos afirmar que no Livro X da EN,
capítulo nove, onde Aristóteles fala sobre a figura do legislador, ele está introduzindo o
tema da política. Segundo o filósofo “os nossos antecessores nos legaram sem exame este
assunto da legislação. Por isso, talvez convenha estudá-lo nós mesmos, assim como a
questão da constituição em geral, a fim de completar da melhor maneira possível a nossa
filosofia da natureza humana.” (1979, p. 253).
Nota-se então, que esse estudo,
Aristóteles deixou para uma próxima obra que é a Política. Podemos constatar também,
que o sentido de bem que Aristóteles trabalha na obra Ética à Nicômaco, é comum à
Política: “Vemos que toda cidade é uma espécie de comunidade, e toda comunidade se
forma com vistas a algum bem, pois todas as ações de todos os homens são praticadas
com vistas ao que lhes parece um bem (ARISTÓTELES, 1985, p. 13)”. Na EN, o filósofo
enfatiza que o papel da política é sempre de ordenar as ações humanas para que todos ali
alcancem um bem comum, pois para ele, é mais louvável alcançar na pólis o bem de
todos do que o bem individual. Nota-se que há essa distinção técnica entre a Ética à
Nicômaco de Aristóteles e a Política, pois, enquanto uma estuda o caráter do indivíduo
isoladamente, a outra obra tem como objeto de estudo, entender o indivíduo inserido na
pólis, ou seja, na coletividade. Visto que não podemos esquecer que “o homem individual
é essencialmente um membro da sociedade” (ROSS, 1987, p.193), ou seja, o homem se
realiza como ser ético no seu bem próprio na pólis.
2
EN: Abreviação para Ética à Nicômaco. Como a obra será citada muitas vezes no decorrer do texto, optei por
abreviar. Esse recurso é utilizado por alguns comentadores do Aristóteles.
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2. O sumo bem como eudaimonia
Voltando nas indagações a respeito do sumo bem; teremos de estabelecer a sua
natureza. Que sabemos que o bem é aquilo para o qual todas as coisas tendem; resta -nos
saber no que consiste este sumo bem que dá fundamento a todos os outros bens.
Aristóteles começa por trabalhar esse tema já afirmando a noção de felicidade como
sumo bem. Inicia o filósofo, com a seguinte afirmação: “verbalmente, quase todos estão
de acordo, pois tanto o vulgo como os homens de cultura superior dizem ser esse fim a
felicidade e identificam o bem viver e o bem agir como o ser feliz” (1979, p.51). Dada
essa afirmação, percebemos que o filósofo considera como ponto de partida a opinião,
“[...] não só a opinião dos sábios, mas também a opinião do senso comum ou do saber
ético pré-científico” (GAMBIM, 2012, p.157). Como foi mostrado, há uma concordância
em relação ao bem próprio do homem consistir na felicidade, porém, existem vários
conflitos em relação ao que venha ser felicidade. Uns pensam que a felicidade está no
prazer, outros na riqueza, ou nas honras, enfim, várias considerações são tomadas à
respeito do tema. Com isso, surge a pergunta: no que consiste a eudaimonia? Para não
cair num erro, Aristóteles analisa os modos de vida que seriam capazes de produzir a
eudaimonia, pois segundo ele, é necessário unificar essas opiniões referentes ao tema da
felicidade. Nisso o filósofo analisa os três modos de vidas principais, visto que ser feliz é
bem viver, a saber: 1) a vida dos prazeres; 2) a vida política; 3) a vida contemplativa, e
que num desses modos deve conter o sumo bem, ou seja, o modo de vida que realiza o
sumo bem. A idéia é contrapor as opiniões a fim de mostrar qual modelo de vida, seria
mais supremo ao homem para se atingir a felicidade. Na contra argumentação, Aristóteles
define que “[...] homens de tipo mais vulgar, parecem (não sem um certo fundamento)
identificar o bem ou a felicidade com o prazer, e por isso amam a vida dos goz os” (1979,
p.52). A vida identificada aqui é a dos prazeres, ou seja, segundo o filósofo, essa vida
não leva à auto-realização do ser humano, pois, ele a considera como sendo uma vida
“bestial” e semelhante à vida dos animais. Em segundo momento, o filósofo já afirma
que: “[...] as pessoas de grande refinamento e índole ativa identificam a felicidade com a
honra; pois a honra é, em suma, a finalidade da vida política” (1979, p.52). No entanto,
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considerar a vida política como um modelo a ser seguido, em se tratando do sumo bem é
“superficial”, diz Aristóteles. Porque a honra é um mérito, e por isso, entende -se que
depende mais de quem concede do que de quem aceita. Além do mais, os indivíduos
buscam a honra para o reconhecimento das suas capacidades; só que d esejam isso “pelos
indivíduos de grande sabedoria prática, (...) em razão da sua virtude” (ARISTÓTELES,
1979, p.52), ou seja, neste sentido, percebemos que a virtude se torna, numa escala
hierárquica, superior as honrarias; e isso, no que confere à essência do bem supremo, não
poderia haver algo que fosse superior à sua auto-suficiencia, posto que o próprio sentido
de bem seja superior às virtudes. A terceira vida analisada por Aristóteles é a vida
contemplativa, que para examiná-la, temos que atender a outras questões pertinentes ao
momento. Devemos assim, considerar a natureza do sumo bem. Percebemos então que as
características fundamentais do Sumo Bem é a auto-suficiência e o sentido absoluto e
incondicional que estão presentes na sua natureza. O Sumo Bem no entanto, não pode
dissociar-se da atividade, pois é um atividade por excelência. Se o bem é uma atividade,
não pode manifestar-se solitário, tem que ter um sujeito. Segundo Aristóteles “[...] se
existe uma finalidade para tudo que fazemos, esse será o bem realizável mediante a ação;
e, se há mais de uma, serão os bens realizáveis através dela.” (ARISTÓTELES, 1979,
p.55). Portanto há um fim absoluto, e o raciocínio tende ao resultado único e absoluto,
que é a auto-suficiência do homem. O que é essa auto-suficiência? Para o filósofo é
aquilo “[...] que, em si mesmo, torna a vida desejável e carente de nada [...]”
(ARISTÓTELES, 1979, p.55). Como ele mesmo nos aponta, várias virtudes procuramos
por elas mesmas, como por exemplo: a honra. Segundo ele, na vida política o homem
tende a procurar a honra como o fim maior da sua realização. Porém, Aristóteles
considera que mesmo assim escolhemos no interesse de algo a mais. Esse algo a mais é
determinado por ele como sendo a felicidade, ou, Eudaimonia. “[...] A felicidade,
todavia, ninguém a escolhe tendo em vista algum destes, nem, em geral, qualquer coisa
que não seja ela própria.” (ARISTÓTELES, 1979, p. 55). A questão principal é que
considerar a felicidade como o bem próprio do homem é “truísmo”, ou seja, sabem os de
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fato. O importante é ressaltar no que consiste o sumo bem, para verificar se a felicidade
(eudaimonia) contém as características inerentes ao sumo bem.
2.1 Da Felicidade na Ética à Nicômaco I
O caminho que Aristóteles segue para encontrar as características da eudaimonia
é analisar a função própria do homem. Segundo o filósofo cada coisa exerce uma função
específica; e a partir disso quer analisar se o homem possui uma função própria e
encontrar a residência da felicidade nesta função específica. Aristóteles elenca três
princípios vitais no homem que caracteriza como sendo função própria, a saber; nutrição
e crescimento, percepção e o princípio ativo. No primeiro princípio vital (nutrição e
crescimento), notamos que não se configura como sendo peculiar ao homem, pois
participam dela, todos os demais seres vivos. Tampouco o modelo segundo de princípio
vital (a percepção), pois essa é comum ao cavalo, ao cachorro, ao boi e aos demais
animais. Resta então, o princípio vital ativo, que seria a vida racion al, ou seja, a parte
destinada ao exercício do pensamento, essa de fato pertence somente ao homem, pois, só
ele é possuidor de logos. A função própria do homem é a razão, e ele visa o
desenvolvimento pleno dessa razão e para Aristóteles essa relação que há entre a essência
do homem e o exercício dela, leva ao conceito de felicidade. Essa estrutura é fundamental
no pensamento aristotélico, pois, como Aristóteles mesmo ressalta “[...] afirmamos ser a
função do homem uma certa espécie de vida, e esta vida uma atividade ou ações da alma
que implicam um princípio racional; e acrescentamos que a função de um bom homem é
uma boa e nobre realização das mesmas [...]” (1979, p. 56). Com isso podemos notar que
Aristóteles pressupõe que podemos utilizar a razão não somente para o bem, por isso que
ele deixa claro que é na atividade do ‘bom homem’ a partir de uma ‘boa e nobre’
realização, ou seja, é preciso usar a razão a serviço do bem, para encontrar a felicidade
completa. No mesmo momento Aristóteles nos contempla com o conceito principal de
felicidade, que é “[...] atividade da alma em consonância com a virtude, e, se há mais de
uma virtude, com a melhor e mais completa. Mas é preciso ajuntar ‘numa vida completa’
[...]” (ARISTÓTELES, 1979, p.56). Podemos perceber que a felicidade é algo absoluto e
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que o pensamento de “momentos felizes” que muitas vezes nós possuímos não participa
da idéia de felicidade para Aristóteles. Seria um erro, pensar numa felicidade fugaz, pois,
o conceito aqui entendido, é categoricamente antagônico ao que corriqueiramente
atribuímos ao sentido de ser feliz. Viver feliz, segundo o filósofo, é viver de acordo com
a razão e as virtudes; é ter hábitos virtuosos, éticos, morais. A vida que se apega somente
aos vícios é uma vida contrária ao bem próprio do homem. O Estagirita concebe a
felicidade como o bem maior a qual todos nós buscamos:
E, com base no que poderíamos chamar de metafísica cosmológica da finalidade, ele
apresenta a felicidade como um dever, porque o homem só é feliz quando realiza o
fim para o qual existe, o fim que lhe prescreve a razão como tarefa de ser homem.
Com efeito, a tarefa de um ser é aquela para qual ele é feito e que, sendo o seu fim,
define a sua essência (PERINE, 2006, p.13).
Ao interpretar desse modo, nos remete à essa idéia de função própria do homem,
ou seja, a felicidade aqui é entendida como causa final. Causa final, pois é a finalidade
das ações humanas. Também como uma reflexão de Aristóteles, a felicidade
conceitualmente é uma atividade da alma, em conformidade com a razão e com a virtude.
Um dos pontos centrais da filosofia aristotélica é a felicidade, mas, uma felicidade que
tem como método a razão e uma vida virtuosa. Entender a felicidade como fim, exposto
no capitulo 1 do primeiro livro da EN é de certo modo convincente, porém, o problema
que Aristóteles percebe é os vários conceitos em torno do tema felicidade. Buscando
entender esse sentido de felicidade para Aristóteles, muito embora, nos leva a pensar que
é difícil e muitas vezes, quase impossível ser feliz nessas condições estabelecidas pelo
filósofo. Para o nosso pensamento atual, a felicidade é muito ligada ao prazer, ou seja,
aquilo que me satisfaz me torna feliz. No entanto, segundo Aristóteles, não
necessariamente prazer e felicidade andam juntos. Muitas vezes temos que tomar atitudes
justas e nobres que não nos são prazerosas. Porém, é como o próprio filósofo diz: “[...] as
coisas nobres e boas da vida só são alcançadas pelos que agem retamente”
(ARISTÓTELES, 1979, p.58), ou seja, o sentindo de prazer pensado por Aristóteles é
também um prazer nobre, pois, agir retamente é difícil, porém contemplar a felicidade no
final será deveras prazeroso.
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Referências:
ARISTÓTELES. Ética à Nicômaco. São Paulo: Abril Cultura, 1979
SPINELLI, Priscilla Tesch. A prudência na Ética Nicomaquéia de Aristóteles. São
Leopoldo/RS: Editora Unisinos. Coleção Premio ANPOF, 2007
ROSS, David. Aristóteles. Trad. Luís Felipe Bragança S. S. Teixeira. Lisboa: Publicações
Dom Quixote, 1987.
PERINE, Marcelo. Quatro Lições Sobre a Ética de Aristóteles. São Paulo: Edições Loyola,
2006.
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A NOÇÃO DE IMAGEM EM DELEUZE E A ABERTURA DE
POSSIBILIDADES PARA A CRIAÇÃO DE ESCRILEITURAS – Luana Borges
Giacomini
UNIOESTE/Escrileituras – CAPES-OBEDUC
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Palavras-chave: Cinema. Criação. Imagem.
Deleuze sempre foi fascinado pelo cinema. Usou esta expressão do pensamento
criativo para criar conceitos e compor a sua filosofia. Suas amplas análises
cinematográficas foram publicadas durante os anos 80 em dois tomos: A imagemmovimento, em 1983, e A imagem-tempo, em 1985, neles o filósofo desenvolveu uma
classificação das imagens e dos signos, nomeada taxionomia. Nesta classificação, o
cinema é dividido em dois momentos, duas eras cinematográficas: o cinema clássico e o
moderno. O marco da cisão entre as eras teve como testemunhas Roberto Rosselini, o
inventor de um cinema do imprevisto e Orson Welles “inventor da profundidade de
campo, opondo-se à tradição da montagem narrativa” (Rancière, 2001, p.2). Para
Deleuze, haveria uma modernidade cinematográfica, a qual se oporia ao cinema clássico,
conservador, “aquele da ligação narrativa ou significante entre imagens, o poder
autônomo de uma imagem que se marcaria duplamente: por sua temporalidade autônoma
e pelo vazio que a separa das outras” (Idem,
p.1). O estudo deleuzeano acerca do
cinema, contudo, não se apresenta como uma história do mesmo. Ao invés disso, na
medida em que funda o corte entre essas duas eras, cria uma “ontologia da imagem
cinematográfica”. O corte se dá pela separação de dois tipos de imagens: a imagemmovimento e a imagem-tempo. Conforme Rancière (2001, p.2):
A imagem-movimento seria a imagem organizada segundo a lógica do esquema
sensório-motor, uma imagem concebida como elemento de um encadeamento
natural com outras imagens dentro de uma lógica de montagem análoga àquela do
encadeamento finalizado das percepções e das ações. A imagem-tempo seria
caracterizada por uma ruptura dessa lógica, pela aparição – exemplar em Rossellini
– de situações óticas e sonoras puras que não mais se transformam em ações.
Apesar de Deleuze negar fazer uma história do cinema, afirma produzir uma
história natural, o que é diferente de uma história comum. É uma história natural, pois o
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procedimento é o mesmo que se dá na classificação dos animais, em suas palavras:
“Trata-se de classificar os tipos de imagens e os signos correspondentes como se
classifica os animais” (Deleuze, 1992 p.64). Todavia, o significado atribuído ao conceito
de imagem por Deleuze, diz respeito a cortes instantâneos, que podem ser abstratos,
invisíveis ou imperceptíveis. O conceito de signo, por sua vez, se refere aos componentes
da imagem, seus elementos genéticos, “os traços de expressão que compõem as imagens
e não param de recriá-las, portá-las ou carregá-las pela matéria em movimento”
(Rancière, 2001, p.3). A fim de elaborar a taxionomia, Deleuze diz considerar o domínio
do cinema em seu conjunto, uma vez que ele é construído na base da imagem movimento. As imagens podem ser classificadas como: imagens-percepção, imagens
ação, imagens afecção, entre muitas outras. O filósofo afirma existirem signos internos,
próprios ao cinema, que caracterizam cada uma dessas imagens: “ao mesmo tempo do
ponto de vista de sua gênese e de sua composição. Não são signos lingüísticos, mesmo
quando são sonoros ou até vocais” (Deleuze, 1992, p.65). Não obstante, Deleuze afirma
que os tipos de imagens, evidentemente, precisam ser criados, e que as imagens em sua
totalidade combinam os mesmos elementos diferentemente, ou seja, os signos. A criação
de diferentes tipos de imagens pode ser relacionada ao conceito de ideia concebido por
Deleuze. Segundo o filósofo, criar é ter uma ideia, o que é algo demasiado difícil e raro.
“As ideias são uma obsessão, elas vão e voltam, se afastam, tomam formas variadas, e
através destas variadas formas elas são reconhecíveis” (2001, Letra I de Ideia). Para
Deleuze a imagem cinematográfica é mais do que uma representação do mundo. Todavia,
o momento em que o cinema se apresenta como arte, rompendo com o modelo
conservador, é quando ocorre um desvio em diferentes níveis de criatividade, no qual ele
exibe sua essência, como inter-relação entre o mundo e as coisas. Em nossa interpretação,
os conceitos relacionados ao cinema de Deleuze seguem a mesma linha de Adorno,
filósofo alemão, o qual diz que uma arte-autônoma não imita a realidade e sim a
questiona:
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que as obras de arte, como mônadas sem janelas, representem o que elas próprias
não são, só se pode compreender pelo fato de que sua dinâmica própria, a sua
historicidade imanente enquanto dialética da natureza, não é a mesma essência que a
dialética exterior, mas se assemelha sem imitar (Adorno, 1970, p.16).
Geralmente, o cinema é considerado uma arte que inventa os encadeamentos de
imagens visuais. Rancière diz que a tese deleuzeana é de que a imagem existe por si, logo
não foi constituída: “ela não é uma representação do espírito. Ela é matéria-luz em
movimento” (Rancière, 2001, p.5). Para a produção de sua ontologia da imagem
cinematográfica, Deleuze analisa o trabalho cinematográfico realizado por Bergson, um
dos primeiros filósofos a incorporar o cinema em um discurso filosófico. Conforme
Deleuze, a primeira tese de Bergson sobre o cinema é a de que ele “é uma imagem média
à qual o movimento não se acrescenta, não se adiciona: o movimento pertence pelo
contrário à imagem média como dado imediato. Dir-se-á que o mesmo sucede com a
percepção natural” (Deleuze, 1983, p.15). Ou seja, o cinema nos dá imediatamente uma
imagem-movimento e não uma imagem à qual se acrescentaria movimento (Ibidem). É
esta a descoberta de Bergson: a do corte móvel ou imagem-movimento. Segundo Deleuze
a essência de uma coisa não aparece imediatamente, mas no entre, no meio, quando as
forças estabilizam-se. Bergson transformou a filosofia ao explanar algo completamente
novo, realizou uma revolução:
Ora, qual é o princípio dessa revolução? É abolir a oposição entre o mundo físico do
movimento e o mundo psicológico da imagem. As imagens não são o duplo das
coisas. São as próprias coisas, “o conjunto de tudo o que aparece”, ou seja, o
conjunto daquilo que é. Deleuze, segundo Bergson, definirá assim a imagem: “o
caminho pelo qual passam, em todos os sentidos, as modificações que se propagam
na imensidão do universo” (Rancière, 2001, p.4).
Para a antiguidade, entretanto, “o movimento remete aos elementos inteligíveis,
Formas ou Ideias que são em si mesmas eternas e imóveis” (Deleuze, 1983, p.16 -17). Em
uma reconstituição acerca do movimento, é necessário captar essas formas “o mais pe rto
possível da sua atualização numa matéria-fluxo” (Idem, p.17). Inversamente, o
movimento faz uma síntese ideal que lhe dá ordem e medida, e assim, compreendido o
movimento, será a passagem regulada de uma forma para outra.
As formas ou ideias são “supostas caracterizar um período cuja quinta-essência
exprimiriam, sendo todo o resto desse período preenchido pela passagem,
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desprovida em si mesma de interesse, de uma forma a outra forma... Nota-se o termo
final ou ponto culminante (telos, acme), erige-se esse momento em momento
essencial, e este, que a linguagem reteve para exprimir o conjunto do fato, basta
também à ciência caracterizá-lo” (Ibidem).
Para Deleuze, quando referimos o movimento a qualquer momento, devemos nos
tornar capazes de pensar o novo, ou seja, pensar o singular. Isto implica em uma total
mudança da filosofia, sendo isto o que Bergson se propôs a fazer: “dar à ciência moderna
a metafísica que lhe corresponde, que lhe falta, como a uma metade falta a outra metade”
(Idem, p.21-22). Não obstante, Deleuze defende que no estudo do cinema pensado em
relação com a filosofia, as ideias utilizadas, que sempre são criadas, devem ser
específicas para o mesmo, devem ser “ideias cinematográficas”:
ter uma ideia em cinema não é a mesma coisa que ter uma ideia em outro assunto.
Contudo há ideias em cinema que também poderiam valer em outras disciplinas, que
poderiam ser excelentes em romances, por exemplo. Mas elas não teriam,
absolutamente, os mesmos ares. Além disso, existem ideias no cinema que só podem
ser cinematográficas. Não importa. Mesmo quando se trata de idéias em cinema que
poderiam valer em romances, elas já estão empenhadas num processo
cinematográfico que faz com que elas estejam predestinadas (Idem, 2003, p.286).
Deleuze ao comparar a narração do cinema ao imaginário, não vê o imaginário
como irreal, mas sim como um conjunto de trocas entre uma imagem real e uma virtual,
ou seja, uma indiscernibilidade entre o real e o irreal, “é uma conseqüência muito
indireta, que decorre do movimento e do tempo, não o inverso” (Idem, 1992, p.80).
Sendo assim: “O cinema sempre contará o que os movimentos e os tempos da imagem lhe
fazem contar” (Ibidem), ou seja, se haverá histórias no cinema, ou mais que histórias, isto
depende de que regra o movimento recebe. Dito de outro modo, no cinema clássico, ou
seja, na imagem-movimento, “as imagens não se encadeiam sem se interiorizarem num
todo, que se exterioriza ele mesmo em imagens encadeadas” (Idem, p.85), o todo muda
nesse momento em que as imagens se encadeiam. Segundo Deleuze, Bergson mostra que
a imagem é luminosa ou visível nela mesma, precisando apenas de uma “tela negra” que
a impeça de se mover com as outras imagens. Entretanto com relação a grande invenção
do neorrealismo, que foi um movimento cinematográfico em torno de um conjunto de
filmes produzidos na Itália entre os anos de 1944-1948, os quais a dramaturgia era
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voltada para temas do cotidiano, Deleuze diz que já não se acredita tanto na possibilidade
de agir sobre as situações ou de reagir a elas. Isto porque algo intolerável revela-se, não é
mais possível que o expectador permaneça passivo, mesmo na vida mais cotidiana, sendo
esse um tipo de cinema que Deleuze chama de “vidente”, na medida em que “a descrição
substitui o objeto” (Idem, 1992, p.71). Quando se está diante de situações ópticas e
sonoras puras, não é somente a narração e a ação que acabam, mas também as percepções
e as afecções que mudam de natureza, o filósofo diz que isso se deve ao fato de que
passam para um sistema totalmente diferente do sistema sensório-motor, propriamente
característico do cinema “clássico”. O que Gilles Deleuze coloca em questão é toda a
imagem-movimento, pois para ele, uma imagem nunca está sozinha, o que vale é a
relação entre as mesmas:
Ora, quando a percepção se torna puramente óptica e sonora, com o que entra ela em
relação, já que não é mais com a ação? A imagem atual, cortada de seu
prolongamento motor, entra em relação com uma imagem virtual, imagem mental ou
em espelho. Vi a fábrica, pensei estar vendo condenados... Ao invés de um
prolongamento linear, tem-se um circuito em que as duas imagens não param de
correr uma atrás da outra, em torno de um ponto e indistinção entre o real e o
imaginário. Dir-se-ia que a imagem atual e sua imagem virtual cristalizam. É uma
imagem-cristal, sempre dupla ou reduplicada... (Ibidem).
O que importa para Deleuze é a distinção entre os conjuntos e o todo. Segundo o
filósofo se ambos forem confundidos, o todo perde seu sentido “e se cai no paradoxo
célebre do conjunto de todos os conjuntos. Um conjunto pode reunir elementos muito
diversos: nem por isso ele é menos fechado, relativamente fechado ou artificialmente
fechado” (Idem, p.77). Esse todo para Deleuze é de outra natureza, a qual é da ordem do
tempo. Bergson diz que o Tempo é o Aberto, o que muda e não pára de mudar de
natureza a cada instante: “o todo atravessa todos os conjuntos, e os impede precisamente
de se fecharem ‘totalmente’” (Idem, p. 76). Por outro lado, Deleuze diz que um clichê é
uma imagem sensório-motora da coisa. Contudo sensório-motora é nossa capacidade de
criar ações ou histórias encadeadas, ou seja, nessa imagem percebemos sempre menos,
sempre aquilo que nos interessa perceber. O projeto Escrileituras 1 intenta fugir desse
1
Projeto Escrileituras: um modo de ler-escrever em meio à vida, integrante do Observatório da Educação
CAPES/INEP, vigente de janeiro de 2011 a dezembro de 2014. Articulando professores de Educação Básica,
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esquema
sensório-motor
e
com
isso
podemos
utilizar
de
experimentações
cinematográficas nas oficinas de Transcriação, na qual a imagem deve provocar um
choque sobre o pensamento. Com isto, produzir linhas de fuga, forçando o pensamento a
pensar, para que a novidade surja da diferença imanente às relações estabelecidas:
A experimentação é entendida como algo que força o pensamento a pensar, com
potência suficiente para o esfacelamento daquilo que impede outros modos de
relações, outras formas de expressão, outras aprendizagens e conexões (Dalarosa,
2011, p. 17).
A força do método proposto pelo Escrileituras, com a utilização do cinema que
provoque essa violência ao pensamento, nos lançará à experimentação de terras
desconhecidas, uma aventura que nos convida a traçar novos caminhos, ou seja, a criar
novos modos de existência.
Referências:
ADORNO, Theodor W. Teoria estética. São Paulo: Martins Fontes, 1970.
DELEUZE, Gilles. O ato de criação. In.: DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Deux
régimes de fous. Paris: Minuit, 2003.
_____. O abecedário de Gilles Deleuze. Vídeo. Editado no Brasil pelo Ministério de
Educação, “TV Escola”, 2001.
_____. Conversações. Tradução de Peter Pál Pelbart. São Paulo: Editora 34, 1992.
_____. A Imagem-movimento Cinema 1. Tradução de Sousa Dias. Lisboa: Editions Minuit,
1983.
DALAROSA, Patrícia Cardinale. Escrileituras: um modo de ler-escrever em meio à vida:
Observatório da Educação/CAPES/INEP. In.: HEUSER, Ester Maria Dreher. (org) Caderno
de notas 1: projeto, notas & ressonâncias. Cuiabá: EdUFMT, 2011.
estudantes de Iniciação Científica, Mestrado, Doutorado e Pesquisadores Participantes, radica em quatro
Núcleos, nas seguintes universidades: UFRGS, UFPel, UFMT e UNIOESTE/PR. Desde a Pesquisa, o Ensino e a
Extensão, trabalhados na perspectiva do Pensamento da Diferença em Educação, desenvolve variadas Oficinas
de Escrileituras, que produzem competências de leitura e de escritura, a partir da coautoria entre leitor e escritor.
Operando com a Didática da Tradução, articula os planos filosóficos, científicos e artísticos; para realizar
processos vitalistas de transcriações, que são transdisciplinares, translinguísticos e transculturais.
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RANCIÈRE, Jacques. De uma imagem à outra? Deleuze e as eras do cinema. Tradução de
Luiz Felipe G. Soares, da obra: La fable cinématographique. Paris: Le Seuil, 2001.
Disponível em: http://www.intermidias.com/txt/ed8/De.pdf, último acesso em 06 de out.
2012.
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A NOÇÃO DE SUJEITO EM AGOSTINHO E DESCARTES – João Antônio
Ferrer Guimarães
UNIOESTE
[email protected]
Resumo: O presente texto pretende, ao mostrar pontualmente similaridades e diferenças entre
o cogito agostiniano e o cogito cartesiano, defender a tese de que a noção de sujeito que
emerge da reflexão cartesiana é original. Tal originalidade, primeiramente, encontra-se na
concepção forte de sujeito enquanto estrutura independente cujo atributo principal, o
pensamento, constitui o ponto de partida para encontrar as bases de uma ciência universal; em
segundo lugar, e como consequência, a fundamentação do conhecimento somente é possível a
partir do surgimento desse sujeito.
Palavras-chave: Sujeito. Filosofia agostiniana. Cartesianismo. Metafísica. Fundamento.
Conhecimento.
Introdução
Tornou-se consenso que a obra que contém a chave para a compreensão do
pensamento cartesiano ostenta o título de Meditações Metafísicas (AT, IX-1). Sem que
tenhamos a pretensão de relegar as importantes implicações ontológicas nela contidas, ao
tomarmos contato com o conjunto de argumentos dispostos neste texto verificamos que
os mesmos são de cunho essencialmente epistemológico. Ou seja, tais argumentos
implicam a reflexão sobre as condições de validade da certeza nas ciências, bem como
apontam para a gênese do conhecimento em geral. Neste cenário, a importância que é
conferida ao cogito ganha vulto na medida em que o mesmo é tomado como uma
substancialidade – manifestando-se como um sujeito na primeira pessoa do singular –
cujo atributo revelador de sua natureza, o pensamento, determina o ponto de partida para
a sustentabilidade de toda a verdade. Tendo isto em mente, como proposta inicial a essa
reflexão sobre a natureza da noção de sujeito no sistema metafísico cartesiano,
gostaríamos de introduzir uma pergunta: o que, de fato, significa ser sujeito para
Descartes? E acrescentaríamos: podemos afirmar que tal noção tem força para constituirse como basilar quanto à coerência de seu pensamento? Sem dúvida, estas são questões a
que devemos atentar se queremos delimitar sua importância no sistema; mas, quando nos
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debruçamos sobre a questão do sujeito em Descartes, aos poucos vamos compreendendo
que nos encontramos frente a uma noção que remete a uma tradição bem anterior ao seu
pensamento, mas cuja resposta não pode ser encontrada pelo simples ato de perquirir a
história desta tradição. A tradição aristotélica do conceito em questão, como sabemos, foi
extensa e profundamente desenvolvida no período medieval, incorporando-se à tradição
tomista. A hegemonia do pensamento aristotélico-tomista, ou seja, da metafísica
escolástica, nos leva a aceitar a tese de Gilson (1984) segundo a qual, para Descartes, os
argumentos desenvolvidos pelo conjunto das Meditações Metafísicas abrem caminho
para, além de produzir um esforço para fundar sua epistemologia – mais especificamente
a nova ciência como vemos manifestado no início da Primeira Meditação – em bases
seguras, portanto, metafísicas, também, e principalmente, abrem caminho para propor
uma substituição da metafísica centrada na concepção aristotélica por uma nova
metafísica do fundamento. Mesmo que, numa primeira observação mais apurada da
definição cartesiana de sujeito, possamos perceber ecos da compreensão apresentada pela
tradição, devemos sempre relativizar a importância que tomam esses reflexos. Para saber
se as definições da tradição tiveram bom acolhimento por parte da metafísica cartesiana,
devemos identificá-las. Assim, se tomarmos como sujeito, num primeiro momento,
aquele definido pela tradição aristotélica – na qual sujeito é identificado como aquilo de
que podemos falar ou a que são atribuídas qualidades e determinações que, no mais das
vezes, são inerentes à sua própria natureza 1 –; e, num segundo momento, aquele definido
pela tradição agostiniana – que apresenta o sujeito num âmbito existencial identificado
com um ego, o que faz esta tradição guardar muito mais similaridade com a enunciação
cartesiana – teremos que admitir que Descartes impõe um viés absolutamente novo a essa
definição – e tal viés, por sua força e relevância, tornar-se-á hegemônico no período
moderno. Ou seja, embora possamos apontar semelhanças entre Descartes e Aristóteles
quanto ao tema do sujeito, e, entre Descartes e Agostinho, quanto ao ego cogito,
1
“Sujeito”, desse modo, pode se referir a todos os entes, na medida em que estamos nos referindo àquilo que
subjaz à multiplicidade das propriedades que aparecem; isto implica uma noção muito mais ampla de sujeito.
Para mais detalhes, conferir ARISTÓTELES. Metafísica. Livro VII, 1-3, em especial as passagens 1028 b 3 –
1029 a 1; 1029 a 7-9.
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defendemos a tese de que é possível afirmar a originalidade da posição cartesiana. Não é,
no entanto, como a princípio pode parecer, fácil determinar as diferenças e, portanto,
determinar tal originalidade. Como contribuição para ajudar a clarificar esta questão,
pretendemos tratar nesta comunicação, de forma breve, as similaridades e discordâncias
da noção cartesiana de sujeito frente àquela enunciada por Santo Agostinho. Mais
precisamente, tentaremos apontar, em relação a seu caráter substancial, a relevância do
cogito agostiniano na formação da noção de subjetividade como proposta por Descartes
em seu sistema.
1. O cogito em Agostinho
Muito embora, como sustentamos acima, possamos traçar paralelos e apontar
divergências importantes no que se refere à tradição aristotélica, quando nos debruçamos
sobre o legado Agostiniano encontramos simetrias com a proposição cartesiana do cogito
de tal modo consideráveis, que quase somos tentados a afirmar que nos encontramos
diante do mesmo cogito. Mas será que estamos frente a uma simples variação de uma
premissa agostiniana quando postulamos o enunciado que inaugura a filosofia moderna?
Será correto afirmar que o princípio arquimediano que sustenta a construção da teoria
cartesiana do conhecimento é um mero plágio da formulação agostiniana? Aqui, faz -se
necessária uma discussão mais aprofundada se queremos determinar semelhanças e
delimitar discordâncias que apontam, para a originalidade do cogito cartesiano.
Primeiramente devemos ter presente que a investigação metafísica de Agostinho consiste
na busca da verdade de Deus e da alma, inicialmente pela fé e depois pela razão 2; trata-se
de encontrar a realidade do Criador – pois sua busca pressupõe a ideia, dogmatizada pelo
cristianismo, de criação a partir do nada, inclusive do tempo. Deve-se salientar também
que essa realidade espiritual, em Agostinho, traduz-se na possibilidade de penetrar em si,
2
Ou seja, a razão deve se submeter integralmente à fé. Embora, com afirma Gilson (2007: 33-35), seja suficiente
a todo ser racional observar o mundo, a realidade, para assim reconhecer que Deus é o autor de sua grandeza e
complexidade e que, portanto, é na fé que a razão encontra a si mesma, isto, por si só, não desmerece o esforço
da razão na construção de suas demonstrações. A fé, na verdade, tem o mérito de traduzir mais claramente a
racionalidade dos argumentos que demonstram a existência de Deus. “Uma fé inabalável não dispensa a razão de
exigir argumentos evidentes” (Gilson, 2007: 35).
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perscrutar reflexivamente o “eu” na busca pela verdade maior da Criação 3. Portanto, na
busca por provar essa realidade maior, a existência de Deus, o primeiro instrumento
utilizado pelo intelecto será a fé e só posteriormente a investigação centrar -se-á na razão.
Desse modo, como afirma Gilson, “o primeiro conselho que Agostinho dá para quem
quer provar a existência de Deus é crer nele; o segundo momento da prova assim
entendida consistirá na demonstração do fato de que o homem não está condenado ao
ceticismo” (GILSON, 2007: 83). A busca da realidade do Criador e a superação do
ceticismo são, portanto, as metas que, através da autorreflexão resultarão no enunciado si
fallor, sum (se me engano, existo), que caracteriza o cogito agostiniano. Podemos
vislumbrar o processo de descoberta da certeza do “eu” agostiniano – processo este
bastante similar ao cartesiano, tendo em vista seu caráter meditativo –, através da
autorreflexão, inicialmente no texto dos Solilóquios:
Razão: tu que queres conhecer-te a ti mesmo, sabes que existe?
Agostinho: sei.
R: de onde sabes?
A: não sei.
R: sabes que te moves?
A: não sei.
R: sabes que pensas?
A: sim.
R: portanto, é verdade que pensas?
A: sim.
R tu queres existir; viver e entender, mas existir para viver e viver para entender.
Portanto, sabes que existes, sabes que vives, sabes que entendes. (AGOSTINHO,
1998: 55-56)
Fica claro aqui que a natureza do sujeito que passa a investigar a si mesmo – que
certamente corresponde ao sujeito pensante, mas não a uma substância determinada, uma
res cogitans, como acontece em Descartes, muito embora isso não esteja explicitamente
formulado no texto – torna-se um instrumento eficaz para a refutação do ceticismo. Como
afirma Gilson, “Agostinho quer descartar da nossa rota a dificuldade imprevista na qual
ele mesmo tropeçou; o antigo acadêmico quer nos libertar do pirronismo do qual ele
mesmo sofreu” (GILSON, 2007: 84). A constatação da existência do sujeito advém da
3
É importante notar – e talvez seja decisivo para a compreensão da distinção e da implicação do cogito nos dois
sistemas – que a busca de Deus através da autorreflexão não implica, em Agostinho, a descoberta de uma ideia
ou qualquer conteúdo inato, como tentaremos deixar claro na sequencia do texto.
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certeza do pensamento, que se torna a primeira de todas as certezas e não pode ser
contestada pelo sujeito que a percebe. Para a formulação de uma teoria do conhecimento,
esta é uma constatação fundamental, muito embora ainda não possamos dizer que
estamos diante do mesmo cogito. Por quê? Bem, para responder, teremos que ir adiante e
comparar os argumentos aplicados pelo doutor de Hipona, na construção desse sujeito
autorreflexivo, com os argumentos apresentados por Descartes, na Primeira Meditação,
identificando a natureza de ambos em suas similaridades e discrepâncias. Primeiramente,
a estratégia para superação do ceticismo em Agostinho é semelhante àquela usada por
Descartes na Primeira Meditação. Partem os dois pensadores da crítica ao conhecimento
sensível, mostrando quais são seus limites, buscando uma certeza que se autorregule e
que dê sustentação às verdades alcançadas pela reflexão da razão 4. O ceticismo, portanto,
que parte da constatação de que erramos constantemente ao nos servir dos sentidos, é o
obstáculo a ser superado; para tanto, faz-se necessário pensar “por ordem”, como afirma
Gilson5; pensar “por ordem” significa orientar a reflexão em busca de uma evidência que
estabeleça uma certeza mais geral, a qual, por fim, esteja fundada num conhecimento
que, dentre todos, constitua-se como o mais manifesto. No presente caso, pensar
ordenadamente, adotando um método, é partir do que mais se evidencia: a existência do
sujeito. Aquilo que se contrapõe entre ele e a verdade deve ser superado pela reflexão do
próprio sujeito. O primeiro passo, portanto, é a crítica ao conhecimento sensível,
instância onde mais claramente se manifestam os enganos. Para Agostinho os sentidos
detêm status de infalibilidade apenas se os entendemos dentro de seus limites próprios, o
que, do ponto de vista da investigação sobre a verdade universal, reduz seu alcance à
4
No caso de Agostinho, como afirma Gilson, há uma contraposição com os chamados céticos acadêmicos, os
quais apresentam argumentos cujo princípio fundamental é que “nunca se chega a saber nada em filosofia”
(GILSON, 2007: 86). A estratégia em Agostinho, no entanto, não parece ser tão radical quanto aquela usada por
Descartes, como tentaremos mostrar a seguir.
5
Ao apresentar a estratégia de Agostinho para superar o ceticismo dos chamados Acadêmicos, que afirmam a
impossibilidade de qualquer certeza, Gilson constata que “o parentesco que une o pensamento de Agostinho ao
de Descartes é aqui dos mais impressionantes; nas duas doutrinas é sublinhada a necessidade de pensar ‘por
ordem’, a existência do pensamento é apresentada como a primeira e mais evidente de todas as certezas. Tal
certeza é a primeira de todas porque ela continua evidente mesmo no caso de o pensamento que se conhece ser
um erro. Enfim, nas duas doutrinas essa primeira evidência oferece suporte para a prova da existência de Deus”
(GILSON, 2007: 90-91).
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mera aparência. Nesse sentido, como aponta Gilson, os argumentos de Agostinho nos
levam a constatar que o conhecimento sensível é, por um lado, infalível se o reduzirmos a
sua natureza mais primária, ou seja, a simples aparência e, por outro lado, o
conhecimento sensível é fonte de nossos erros se, desconsiderando sua natureza, nós o
tomarmos como critério de verdade de nossos juízos 6. Até aqui verificamos semelhança
com a posição cartesiana na medida em que Descartes considera, num primeiro momento,
todo dado sensível como aparência. Também podemos vislumbrar uma confluência com a
doutrina cartesiana considerando, como o faz Agostinho, que o erro é causado por nossa
insistência em afirmar que as coisas são em si como aparecem para nossos sentidos. Esse
erro, que nós a todo o momento verificamos em nossos juízos sobre o mundo, seria a
justificação para a existência do ceticismo. Ao emitirmos juízos sobre o mundo a partir
da percepção sensível que temos dele, sistematicamente incorremos em erro – pelos
próprios limites apresentados pela percepção sensível –, o que inviabiliza os sentidos
como instância de certeza de qualquer ciência, bem como da verdade metafísica
considerada por Agostinho. Desse modo, o conhecimento sobre o que quer que seja é
impossível, pois todo juízo será sempre determinado por aquilo que parece ser e não por
aquilo que efetivamente é. Ou seja, a verdade será sempre confundida com a aparência e
isso, por fim, legitima o ceticismo. Também o sonho e a loucura são apontados por
Agostinho como fontes de erros, mas essas instâncias servem para consolidar o
argumento sobre a insuficiência dos sentidos na busca da verdade, na medida em que elas
enfatizam a percepção do mundo como aparência. Assim, como afirma Agostinho, “mas
se dormísseis, dir-se-á, esse mundo que vedes existe? – Sim, pois se chamo de mundo o
que aparece para mim, não paro de perceber aparências, mesmo quando durmo ou se sou
louco 7”. Verificamos assim que todas as possibilidades da experiência sensível devem se
6
“Quando se quer definir com precisão a atitude adotada por Santo Agostinho em relação ao conhecimento
sensível, podemos reduzi-la às duas teses seguintes: considerando-o como uma simples aparência, ou seja,
tomando-o como isso que ele realmente é, o conhecimento sensível é infalível; alçado a critério da verdade
inteligível da qual é especificamente diferente, ele necessariamente nos induz ao erro”. (GILSON, 2007: 88).
7
Nota-se aqui a proximidade com o argumento cartesiano do sonho, principalmente na sequência do parágrafo,
no que se refere à certeza matemática, onde Agostinho afirma “esteja dormindo ou insano, quando penso que, se
há seis mundos mais um mundo, há sete mundos, ou que três vezes três são nove, ou que o quadrado de um
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restringir ao domínio da opinião, permitindo que apenas à razão seja conferida a
investigação sobre a verdade. A similaridade com as teses cartesianas mostra-se ainda
mais forte quando nos deparamos com uma famosa passagem da Cidade de Deus em que
Agostinho, ainda contrapondo seus argumentos aos argumentos dos céticos, deriva
explicitamente o cogito da dúvida utilizando o mesmo procedimento do pensador francês.
Pois se me engano, existo. Quem não existe não pode enganar-se; por isso, se me
engano existo. Logo, quando é certo que existo, se me engano? Embora me engane,
sou eu que me engano e, portanto no que conheço que existo não me engano. Seguese também que, no que conheço que me conheço, não me engano. Como conheço
que existo, assim conheço que conheço. (AGOSTINHO, 2002: XI, XXVI: 47)
Temos aqui, portanto, uma formulação que em tudo se mostra precursora das
teses cartesianas. Alguns pontos, no entanto, apontam para significativas distinções que,
tomando-se como parâmetro a posição de Descartes, reforçam a intenção cartesiana
quanto ao âmbito epistemológico de sua estratégia na apreensão e posterior descrição da
natureza do sujeito do conhecimento. Um dos pontos que parece crucial para que
possamos entender a distinção das posições agostiniana e cartesiana surge do fato de ser
o cogito, para Agostinho, uma constatação existencial. Assim, entender o cogito do ponto
de vista agostiniano, tomando-o como uma constatação existencial, implica afirmar que
sua compreensão somente será possível através de um ato reflexivo e não a partir de uma
intuição inata – ponto de que parte Descartes para constatar a existência do ego cogito –,
ou uma ideia inata desde sempre presente na mente do meditador que emerge de uma
dúvida tornada hiperbólica, como podemos perceber ao analisar a passagem da Primeira
Meditação para a Segunda Meditação, em Descartes. É claro que, no transcurso da
argumentação metafísica cartesiana, o cogito surge através de um processo de análise
minuciosamente descrito, o que suscitou a discussão sobre se podemos aí identificar um
silogismo ou não. O fato é que, no sistema cartesiano, o cogito é desvelado por essa
análise,
tornando-se
uma
certeza
inabalável
compreendida
primeiramente
e
primordialmente pela luz natural da razão. Este ponto é de fundamental importância,
número é este número multiplicado por ele mesmo, certamente tenho razão e tudo isso será verdadeiro enquanto
o mundo inteiro estiver roncando” AGOSTINHO, Contra Acadêmicos, III, 11, 24; citado por GILSON, 2007:
88. Verificamos, portanto, o mesmo limite imposto por Descartes na Primeira Meditação para o argumento
cético em questão.
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visto que, tomado deste ponto de vista, o cogito passa a ser clarificado pelo processo
reflexivo do pensamento como uma ideia que, desde sempre, encontra-se presente à
mente do meditador – portanto um princípio inato –, e não pela constatação existencial de
um indivíduo que reflete a partir de sua natureza imperfeita como ser humano – portanto
sujeita ao engano fruto dos sentidos – para alcançar uma certeza inabalável cujo objetivo
principal é combater, utilizando-se de um princípio lógico-existencial, um conjunto de
argumentos céticos que afirmam a impossibilidade da certeza em geral. Por outro lado, o
sujeito que está em jogo na abordagem cartesiana é de natureza estritamente imaterial, o
que não parece ser o caso na abordagem agostiniana. O segundo ponto que nos parece
diferenciar definitivamente as duas abordagens sobre o cogito – e que, obviamente, é
inseparável da compreensão inata do sujeito como uma natureza substancial não empírica
– é a hipótese do Deus enganador, a instância propriamente metafísica da dúvida
hiperbólica apresentada por Descartes na Primeira Meditação (AT, IX-1, 16) 8. O cogito
cartesiano emerge não dos argumentos céticos tradicionais, mas dessa instância
metafísica, sendo, portanto, de natureza não empírica, visto que a superação momentânea
da instância hiperbólica da dúvida não permite evidenciar qualquer realidade que decorra
dos sentidos. De fato, ao apresentar o terceiro grau da dúvida, Descartes acrescenta aos
argumentos céticos tradicionais, com os quais colocou em xeque a certeza sobre o
conteúdo de todo conhecimento sensível, um novo argumento, utilizando-se de uma
constatação de senso comum indicando que “tenho uma opinião” de que há um Deus
criador. Embora não seja nossa pretensão desenvolver esta questão aqui, podemos
afirmar que o argumento metafísico do Deus enganador é estratégico para a
demonstração, que será consumada na Terceira Meditação, da existência de um Deus que
se constitui como uma substancialidade criadora e mantenedora do princípio legitimador
de uma nova estrutura epistemológica, bem como será garantia da verdade absoluta do
cogito e de suas consequências. Ou seja, o Deus veraz evidenciado pelas provas da
8
Na verdade, a importância do último estágio da dúvida, na Primeira Meditação, ultrapassa em muito a
instauração do cogito no início da Segunda Meditação. Sua abrangência irá determinar a opção cartesiana por
uma leitura do ego cogito como um sujeito de representações, tendo em vista a relação deste sujeito com a regra
de verdade que deverá acompanhar todos os seus pensamentos.
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Terceira Meditação assegura a duração do cogito no tempo, sobrepondo-se à certeza
temporária que até então garantia sua verdade enquanto permanecia sob a influência do
Gênio Maligno.
2. Conclusão
Com este pequeno texto introdutório, pretendemos apresentar, mesmo que
sucintamente, a formulação agostiniana do cogito, apontando suas similaridades e
discordâncias frente à formulação cartesiana. Vimos que para Agostinho a reflexão que
culmina na compreensão da existência de um sujeito determinado tem como objetivo
consolidar aquilo que, pela fé, já se constitui uma certeza, de certa forma, a priori. Esse
sujeito é material, ou seja, coresponde à própria existência do meditador como ser
humano. Por isso o cogito agostiniano expressa uma verdade existencial no sentido
material. Não está em jogo, para Agostinho, a construção de um princípio epistemológico
fundamentador, mas sim um existente que, por iluminação divina, compreende sua
existência e contempla a divina perfeição. Para Descartes, por outro lado, o
conhecimento do cogito é dado por uma intuição que revela sua evidência atual, pois traz
consigo o princípio fundamental de clareza e distinção. Esse princípio, no entanto, não é
garantia da evidência verdadeira, a permanência no tempo que independe do pensamento;
Deus é a garantia epistemológica da verdade do cogito no tempo como uma substância, o
cogito é a expressão de uma substância criada. Portanto, o que está em jogo, para
Descartes, em sua investigação metafísica sobre a natureza do ser, é o caráter
epistemológico que liga ser e pensar. O ser que decorre dessa relação é essencialmente
substancial e não propriamente existencial – como ocorre na medida em que exista e seja
concebido como um ser humano, como parece ser o caso em Agostinho. Assim, para
Descartes, Deus é garantia da certeza da existência desse ser como puro pensamento
independentemente de sua atualidade temporal. Deus aqui aparece como uma substância
infinita – o Ser criador – garantidora de certeza dos princípios que, a partir do exercício
do pensar, tomarão forma como axiomas basilares de uma ciência verdadeira. Nesta
medida, o cogito cartesiano é um existente, mas não o ser humano, e sim uma substância
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pensante, uma res cogitans, um sujeito na concepção forte de estrutura independente cujo
atributo principal – o pensamento – reveste-se de caráter epistemológico fundamental
para a construção da verdade.
Referências:
ARISTÓTELES. Metafísica. Porto Alegre: Editora Globo, 1969.
AGOSTINHO, S. A Cidade de Deus Contra os Pagãos II. 4ª ed. Trad. Oscar Paes Lemes. Rio
de Janeiro: Editora Vozes, 2001.
______________. Solilóquios e A Vida Feliz. São Paulo: Paulus, 1998.
DESCARTES, R. Œuvres de Descartes, ADAM, C. e TANNERY, P. (orgs.). Paris:
CNRS/Vrin, 1973-1978.
_______________. Obras: Discurso do método, Meditações, Objeções e respostas, As
paixões da alma, Cartas. Coleção os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1983.
GILSON, E. Introdução ao Estudo de Santo Agostinho. São Paulo: Discurso Editorial –
Paulus, 2007.
GUEROULT, M. Descartes selon l'Ordre des Raisons I: l’âme et Dieu. Paris: Aubier, 1968.
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A POLÍTICA EM ARISTÓTELES E SUA RELAÇÃO COM A ÉTICA –
Alfredo Batista
UNIOESTE
[email protected]
Resumo: O trabalho que agora apresentamos é parte constitutiva das reflexões apresentadas
no Trabalho de Conclusão de Curso –TCC-, com a finalidade em adquirir o título de Bacharel
em Filosofia. Buscamos compreender, neste trabalho acadêmico, até que ponto podemos dizer
que a felicidade, que todos nós almejamos, não se encontra na esfera da contemplação, mas
sim no exercício prático da esfera da política. Utilizando da obra principal de Aristóteles –
Ética a Nicômico e de autores comentadores da obra, desenvolvemos nossa pesquisa e
chegamos à consideração final aproximativa que: a política é mais eficaz e possível da esfera
da virtude da prudência. Esta política coloca o estágio máximo tão eficaz para os homens para
desenvolver suas vidas em busca da felicidade. Fora desta área perde sua força, sua substância
e não consegue ir para além da construção metafísica em seu conteúdo. É a relação entre
teoria e prática que se destaca com o indivíduo vivo, abrindo campo de possibilidades para
alcançar a felicidade.
Palavras Chaves: Ética; Política, Virtude da Prudência.
Os humanos, desde o momento que iniciaram suas experiências de conviverem
societariamente responderam/respondem, diferentemente, ao depararem com o conhecido
que se colocava para a coletividade: como decidir sobre nossas existências comuns? Na
historiografia, aponta que antes do século VII a.C, as sociedades acreditavam e
manifestavam suas compreensões no destino humano. Atribuíram, principalmente, a uma
entidade metafísica para explicar e conduzir a existência da sociedade específica. Assim,
a ausência de razão tomou conta destas sociedades, entregando ao desconhecido à
decisão que deveria ser tomada por eles. Somente na Grécia, século VII a.C, a
compreensão sobre a vida cotidiana ganha outra materialidade. Os homens, pertencentes
a esta sociedade entenderam que a vida em coletividade requer tomadas de decisões dos
próprios homens. Neste momento o pensamento político clássico construiu suas
fundamentações teórico/práticas sob a estruturação de três objetivos: “pensar o que é a
vida política, o que ela poderia ser e o que ela deveria ser”. (WOLFF, 2001, p.9) A
política quando compreendida em suas dimensões estrita, refere-se aos negócios da polis.
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Um espaço geográfico em que na Grécia designa a Urbe para contrapor ao campo. Após
alguns séculos de experiências, na sociedade Grega, o sentido de pertencimento toma
conta das pessoas. A partir deste momento a cidade passou a representar o sentido de
pertencer para o individual e para o coletivo. Este avanço histórico superou experiências
anteriores em que o sentimento de pertencer ao lócus era demarcado pelas dimensões:
“comunitárias, étnica, linguística e de culto” (ibidem, p.9). “É neste espaço que os
Gregos elegeram que fazer política seria tratar de forma autônoma sobre os negócios da
cidade.” (ibidem, p.10) O terreno político pertence, para os Gregos, ao Koinon, o comum,
e “abarca todas as atividades e práticas que devem ser partilhadas, isto é, que não devem
ser o privilégio exclusivo de ninguém”. Todas as atividades relativas a um mundo
comum, por oposição àquelas “que concernem à manutenção da vida”. (ibidem, p.10 -11)
Para o homem Grego, fazer política é a única coisa nobre da vida. As coisas que pertence
ao campo dos negócios privados não são valorizadas pelos homens Gregos, em particular,
neste momento, o ateniense. A política é, por outro lado, o único lugar em que decide o
poder. O poder ganha estrutura de representatividade coletiva. Não é uma atribuição que
se apropria; que está determinada pela hierarquia ou outra manifestação grupal, não
universal. O público está acima do interesse particular. O homem público, o cidadão,
quando alcança este estatuto, já é notório o seu campo do direito. Assim, para suprir o
interesse particular exigi-se que saiba e domine o universal. Compreendendo aqui sobre
os assuntos da cidade de interesse geral. Mas, além do domínio sobre todos os assuntos
da cidade que se relacione na dimensão do interesse geral, o homem público é um homem
virtuoso, pois espelha publicamente que é “capaz de comandar homens”. (ibidem, p.13)
Este homem tem que exercitar e ser reconhecido pelo outro imbuído de “qualidades
morais: justiça, piedade, senso de honra e sacrifício”. (ibidem, p.13) Quando este homem
alcança este quesito, pode-se afirmar que seu grau de convencimento em relação ao outro
é pleno. “A política não passa da realização de si, uma vez que o “si” é relação com o
outro”. (ibidem, p.14) Mas a distância entre o homem e a cidade é ainda grande demais.
O que ela é, concretamente mostra-se como sendo o oposto daquilo que lhe oferece: ela
exige não uma dedução universalmente válida, mas uma adaptação às circunstâncias, não
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uma interrogação sobre a essência, mas o senso das oportunidades, não o enunciado de
uma verdade sem concessões, mas a soma de pontos de vista múltiplos e discordantes.
(ibidem, p.16) Viver na cidade exige dos homens a capacidade de discordar. Pensar nas
determinações as quais envolve um todo complexo que explicita neste todo, campos de
oportunidades práticas para que o coletivo seja beneficiado com os procedimentos
decisórios. Não se busca ter o espírito dedutivo das questões teórico/práticas relacionadas
ao universal, apesar de que muitos homens, sábios e/ou filósofos apropriam desta
capacidade. No entanto, esta não é a determinação fundante. Contrariando as teses de
Platão, Aristóteles inaugura a Filosofia Política. É neste campo que a Ética encontrará
seu campo de materialização. Assim, a prudência e a experiência encontram -se para
realizar o mundo possível do encontro finalístico com a felicidade. “Para Aristóteles, a
Phronesis dirige a ação e, portanto é a virtude da parte calculadora da alma.” (PERINE,
2006, p. 25) É no campo do particular e não do universal que a filosofia política encont ra
sua existência, seu modo de ser e de manifestar. O nascer da política ocorre no campo do
particular, pois é neste espaço que a repetição por meio das experiências conduz à melhor
decisão em relação ao desejo do coletivo e não do individual. É expressão de encontro e
desencontro entre os propósitos que os homens trazem para a realização de uma vida
feliz. Na cidade, campo complexo das experiências da vida humana, os homens são os
que tomam decisões e não os seres absolutos, os astros por exemplo. Os seres absolutos
não possuem carência, portanto não têm movimento. O campo do encontro e do
desencontro que é intrínseco as relações estabelecidas entre humanos, seres carentes, está
impossibilitado de existir. O que já é não pode ser potência para um vir a ser. É neste
momento que a virtude da Prudência, virtude prática, coloca-se na dimensão de sabedoria
para decidir o que é melhor para a coletividade, ou seja, como alcançar a decisão sob a
dimensão da mediania. É na história que os homens constroem seus campos de decisões.
É na esfera do particular e não do universal que as mediações realizadas por meio das
ações humanas ocorrem. A cidade torna-se o espaço em que o particular se materializa, é
o campo real e, neste momento, que o filósofo encontrará seus objetos de estudo no
campo lógico, gnosiológico e/ou ontológico. Aristóteles adverte: a ética está imbricada
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na esfera da política na busca da realização da felicidade. No entanto, devido às inúmeras
particularidades que ocorrem na polis a política ganha autonomia em relação à ética. A
conduta de indivíduos constitui a matéria prima da ética. E, as histórias das cidades com
seus regimes constituirão a esfera da política e sua materialização. Com a imbricação
entre a ética e a política, mas com a autonomia da política em relação à ética em alguns
momentos da vida cotidiana, na esfera do particular, Aristóteles compreende que a
decisão passa pela conduta individual no campo das relações coletivas. A conduta,
instância opinativa, requer de elementos que Aristóteles afirma que todos necessitam de
auxílio das leis da cidade. A lei é a expressão da síntese do pensamento dos legisladores
e, para que as leis possam contribuir para a boa decisão dos indivíduos, os formuladores
das leis, os legisladores, precisam ser virtuosos. Neste encontro da ética com a política, a
ética visa o agir bem e a política visa o bem viver juntos. Neste horizonte traçado pelos
homens e não mais pelos astros, a filosofia política quer saber como são as coisas da
cidade e como elas deveriam ser. Enquanto dimensão descritiva e prescritiva, a filosofia
política no campo positivo e/ou especulativo é que movimenta este cenário. Em suma,
Aristóteles quer mostrar como a felicidade de viver juntos é o caminho único para quem
vive na cidade. A tese geral de Aristóteles é: A cidade tem por finalidade o soberano
bem. Uma grande família. Para Aristóteles a cidade é a síntese possível de atingir a
felicidade, pois um depende do outro neste espaço. E, na diferença encontra-se ou abre-se
um campo de possibilidades para realizar a unidade – Esta conhecida como o sumo-bem.
O método utilizado por Aristóteles para dar conta da sua tese, coloca-nos em relação
direta com as causas: material, formal e final. A causa material é definir a cidade pela sua
composição de lares e de vilarejos. Se assumirmos a causa formal é saber como que uma
comunidade vive neste espaço sob uma mesma legislação. Ou causa final, esta, estrutura se como a verdadeira causa, pois busca compreender e descrever como uma comunidade
é em vista do bem soberano. Neste sentido, as presenças da causa material, da causa
formal e da causa final não conseguem estruturar a compreensão Aristotélica sobre a
cidade, deixando a materialidade da realização incompleta? Não. A ausência da causa
eficiente não é uma deficiência. Para Aristóteles a cidade não tem causa eficiente. A
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cidade é uma síntese dos processos anteriores. Caso fôssemos buscar uma causa eficiente
para a existência da cidade, Aristóteles diria que está causa encontra sua substância nos
Legisladores. Vejamos que o estagerita somente apresenta a comunidade. Os moradores
deste espaço conseguem conviver porque estão ligados por relações afetivas denominadas
de amizade. Mas há outra dimensão que funda a comunidade: viver relações de amizade
segundo relações de justiça. Viver o sentimento de co-pertencimento possibilita separar o
amigo do inimigo. Pergunta-se: se a justiça é um elemento cêntrico para unir a vontade
unificada da maioria, a justiça passa a ser a virtude da comunidade. Se buscarmos o bem
enquanto fim que dá solidez à comunidade, este fim para ser atingido necessita de meios.
Quando alteramos o fim, constituímos diferentes tipos de comunidades que se pretende
atingir. Frente a esta compreensão, Aristóteles fundamenta-se que a primeira premissa - a
comunidade é uma cidade e, a segunda, a comunidade é conforme o fim que chega ao
desejo. Mas, como saber qual é a comunidade soberana? É aquela que abarca todas as
demais, é a comunidade mais completa. A comunidade política nestes termos é a cidade.
Aquela que tem como fim o soberano bem, propriamente humano, o qual se identifica
com a felicidade. Ao chegar à conclusão máxima que a comunidade mais complexa é a
cidade, que neste espaço geográfico e temporal os homens têm a possibilidade de
exercitarem o campo das diferenças, buscando em todas as ações a determinação da
justiça, algo novo se apresenta: os homens, ao tomarem suas decisões frente às coisas
cotidianas deparam que há diferenças na esfera do pensar e do fazer. Ao deparar com este
campo os homens dão conta que as decisões estão para além do interesse individual. O
interesse coletivo é colocado sempre como o verdadeiro fim. Este, quando alcançado
pode-se afirmar que se atingiu o sumo-bem, a felicidade. No entanto, Aristóteles entende
que a cidade, assim que constituída necessita que tenha um dirigente. Os moradores da
cidade não conseguem responder ao campo das diferenças se não houver um dirigente.
Neste campo, Aristóteles difere em suas premissas em relação ao campo de compreensão
de Sócrates e Platão. Para Sócrates e Platão o comando de uma cidade funda-se no sabersaber. O dirigente de uma cidade tem que ter competência que se estrutura no saber saber. Platão ao herdar a tese de Sócrates equipara os poderes do Rei e do Filósofo. Ou
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seja, o filósofo deve ser considerado como Rei. Lembrando que o rei era senhor dos
escravos e chefe de família. Agora, para além da posição que o Rei ocupa em relação aos
seus subordinados, atribuí-se a necessidade de ter o saber. O saber é determinante ao
comandante da cidade. “O bom governante é comparável ao bom capitão, cuja
competência depende daquilo que ele aprendeu na arte da navegação, e não no número de
marinheiros.” (WOLFF, 2001, p.47) Aristóteles contraria a tese de Sócrates/Platão.
Explicita que o bem que a comunidade tem como desejo, fim não é igual. Cada
comunidade, em sua particularidade, almeja o seu fim, seu bem, sua felicidade. “O bom
político não é um bom condutor de homens em geral, mas o homem que demonstra
qualidades próprias a esta comunidade que tem por finalidade o bem soberano”. (ibidem,
p.17) Para Aristóteles, as comunidades, em particular, a cidade é constituída por três
tipos de relação de poder na família, resultando em três tipos de governos: régio,
despótico e/ou político. Utilizando do método genético, Aristóteles apresenta a formação
da comunidade vilarejo com o embrião que resultará na cidade. O vilarejo nasce a partir
da família e tem como fim a busca da reprodução da espécie e dar conta das necessidades
imediatas. Vencidas as necessidades imediatas, os moradores do vilarejo procuram
responder a outras questões fundantes das suas existências: passam a preocupar -se com a
administração da justiça e com as cerimônias religiosas. Para dar conta destas duas novas
necessidades é necessário que exista uma autoridade, a qual tem especificidade em
relação aos demais homens pertencentes à cidade. “É necessário uma autoridade que
esteja acima dos lares para organizar os cultos comuns e diferentes lares, e arbitrar o
conflito entre eles.” (ibidem, p.25) Como o vilarejo é inferior à cidade, este espaço
comunitário é dirigido por um Rei. O Rei passa a ser a autoridade superior para responder
pelo vilarejo. Ao atingir o grau de vilarejo, esta comunidade teve antecedência à
formação do casal e do lar. Agora o salto qualitativo é atingir o grau de cidade. A
verdadeira comunidade política. Com efeito, a cidade é a última das comunidades
naturais. A comunidade acabada, formada por vários vilarejos é uma cidade desde que
tenha atingido o nível de autarquia por assim dizer completa. (ibidem, p.68) Para que a
passagem de vilarejo atinja o grau de cidade exige-se um número elevado de pessoas.
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Estas, com as dimensões contraditórias presentes, tendo a necessidade, de um precisar do
outro, é possível atingir o grau de autarquia. (ibidem, p.69) Este processo dá condições
possíveis para atingir a vida feliz. A cidade é o campo de possibilidade para responder ao
campo da procuração para que a espécie permaneça em evolução e não pereça e,
principalmente dar conta da existência. Mas a cidade em si não consegue ir para além do
vilarejo, ou melhor, as soma de vilarejos e alcançar a vida boa se a autarquia não for
materializada.
Um homem, uma comunidade, um ser qualquer serão felizes somente se puderem se
bastar a si mesmos, isto é, se encontrarem em si mesmo aquilo com que seja ele
mesmo, ser ter necessidade de nada. (ibidem, p.70)
Sabendo que todos os homens são carentes e quando sozinho não há nenhuma
possibilidade de ser. Se formos seres carentes, somente com relação ao outro é que
podemos junto, preenchermos nosso campo de carências. Completar o que falta. É na
cidade, espaço da realização política que o homem pode realizar-se. A comunidade
síntese, portanto ela é ato. É uma comunidade que é política. É o espaço ausen te de
carência. Assim, o fim do desejo e o encontro com sua ausência. É ter e viver a vida boa,
a felicidade. O desejo para Aristóteles ganha duas dimensões. Uma relativa e outra
absoluta.
A relativa sempre é meio, pois nunca alcança um fim com ausência d e
carência, mais o desejo absoluto é absolutamente bom nele mesmo. “É com vistas a ele
que todas as outras coisas são visadas, mas ele não visa nenhuma outra.” (ibidem, p.77)
Somente o desejo absoluto é autárquico. É o que é. Não há nenhuma carência. Assim, os
bens que são absolutos, soberanos, expressam a essência, ou seja, a substância do ser,
enquanto o ser que não depende do outro ser, são acidentes. Mas, qual é o fim que
buscamos? Onde materializá-lo? O bem que buscamos é a felicidade e o lócus da sua
materialização é a cidade. “Na cidade, um ser (a substância) autárquicas que não tenha
necessidade de nada além deles mesmos para ser, que bastam a si mesmos.” (ibidem,
p.81) Assim, a cidade é a comunidade que unificam todos os acidentes. Na cidade os
habitantes são homens que expressam uma dimensão de animal que diferencia. O homem
é um animal político, feito para viver em sociedade. Ao atingir este fim, podemos afirmar
que este homem atinge a felicidade. Viver só é uma situação que impede a realização
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final do homem. Ao afirmar que o homem é um animal político e o ponto de encontro do
eu com o outro é por meio da dimensão autárquica e que se encontra na cidade,
Aristóteles faz uma crítica, mesmo não vivendo no período construído enquanto
modernidade. A crítica tem direção certa aos postulados dos contratualistas. Estes,
diferentes de Aristóteles, trazem a medida certa para o encontro único com o individual.
O interesse individual é preponderante em relação ao coletivo. Esta compreensão,
teórico-prática, leva à negação do homem. Este não tem a oportunidade de viver
coletivamente, não permite a vida na cidade. “Pode-se, portanto, dizer que a vida política
é para o homem a melhor das vidas possíveis. (...) Qualquer outra vida humanamente
possível, seria pior.” (ibidem, p.86-87) Mas na cidade o homem é quem busca o ser no
que justifica substância. Quando estamos vivendo em sociedade, portanto na cidade, nós
relacionamos com o outro que é carente igual a mim. A relação somente pode ser
estabelecida se os envolvidos tiverem o patamar comum de entendimento da justiça. “A
justiça é a virtude de que concernem as nossas relações com outrem.” (ibidem, p.88) É
neste momento que Aristóteles diferencia o significado da voz com a linguagem. A voz é
uma dimensão instintiva e social que expressamos nossas manifestações de dor, fome,
alegria. No entanto, somente o logos pode dizer por ex. o que é o mau.
Falar o humano não é nem exprimir nem o comunicar, é pôr em comum os valores
do homem comum (...). O Logos é pôr em comum (...). O logos é a capacidade que
os homens têm de exprimir e comunicar por conceitos e proposições. (ibidem, p.89)
O sentimento de justiça está de encontro com a existência da polis e do logos –
ambos dizem diretamente a respeito da existência do homem. A cidade só existe devido à
carência dos homens. De um em relação ao outro. Esta relação estabelece por meio da
contradição, da negação do que é para um e do que pode ser para o outro. O todo, o bem,
somente pode ser alcançado depois que as partes sofreram muitas indagações, afirmações
e/ou negações. A relação estabelecida entre a ética e a política é presente de forma
imbricada na polis, apesar da política ter elementos de independência. O encontro com o
bem ou a felicidade é uma busca permanente dos homens que vivem na cidade e, quando
alcançam, são animais completos. Os regimes que visam o bem comum são defeituosos.
Assim, são conhecidos como despóticos. Nestes regimes os governos visam o seu bem e
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não da coletividade. Neste sentido, Aristóteles não está preocupado quem governa, pois
este não está ao seu próprio serviço. Aristóteles está preocupado em saber com vista a
quem ou a que se governa? (ibidem, p.109) É neste momento que aparece o conceito de
cidadão. Aquele que participa de um dos poderes da cidade. (ibidem, p.116) Os homens
que vivem na cidade somente são considerados cidadãos se possuem autoridade política
visando o bem comum. (ibidem, p.114) Qual poderes o cidadão tem que expressar sua
capacidade política: nos poderes deliberativos e judiciários. (ibidem, p.117) Mas, qual é a
maneira mais justa de compartilhar o poder na cidade política?
Portanto, deste ponto de vista, a realeza, a autocracia e o regime constitucional
podem ser considerados justos, pois o valor de um regime não depende do número
daqueles que governam, mas daquilo em vista do que governam. (ibidem, p.112)
É justo dividir o poder pela proporcionalidade? Resgatando a compreensão de
justiça distributiva? Esta dimensão põe em questão o princípio da proporcionalidade X.
Aristóteles afirma que ao repartir o poder na proporcionalidade não respeitaríamos a
capacidade e a necessidade desigual presente na esfera do particular. “Não é justo repartir
um poder por iguais, pois não é um bem. Sob esta lógica o melhor regime para
Aristóteles é o popular.” (ibidem, p.113) “Isto é, aquele no qual as deliberações são
efetuadas coletivamente pelo conjunto do povo”. (ibidem, p.114) O princípio da
proporcionalidade tem sérios problemas no momento em que os homens da cidade
entendam que a vida é espaço para viver e não para bem viver. Para Aristóteles o
problema da justiça distributiva funda-se no direito privado. E na cidade o direito é para
todos, para assegurar a felicidade de todos. Temos que trazer à dimensão política ligada a
dimensão ética. Dar a cada um segundo sua virtude. O que está em jogo são as qualidades
morais. É por meio do exercício das virtudes que os homens ficam melhores. Assim, a
democracia é talvez o mais estável dos regimes. Aristóteles faz uma defesa à massa, pois
este é superior aos indivíduos, mesmo os melhores. Devemos confiar o poder soberano ao
povo. Quais poderes? O poder deliberativo e judiciário. Para garantir a unidade na cidade
é necessária a amizade. Quando a amizade está ausente, o despotismo reina. (ibidem,
p.138) Por meio da amizade os cidadãos se reúnem e decide em prol do bem. É uma
deliberação coletiva. Este ato expressa a essência da condição humana. Este campo é a
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política. Sabendo que na política a deliberação exige experiência, prudência. O conteúdo
do saber na esfera da política não é primário. Assim, o povo sempre delibera melhor que
o sábio. Assim, sempre, o povo governa melhor.
Referências:
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco.Trad: Edson Bini. Bauru, São Paulo: Editora Edipro,
2002.
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Trad: Pietro Nassetti. Editora Martin Claret, 2004.
ARISTÓTELES. Física. Trad: Alberto Bernabé Pajares. Editorial Gredos, S.A. Espana Ano2008. Biblioteca Clássica Gredos, 203 p.
KOFLER, L. et al. Conversando com Lukács. Trad. Giseh Vianna Konder. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1969. Série Rumos da Cultura Moderna, v. 32.
PERINE, Marcelo. Quatro Lições sobre a Ética de Aristóteles. São Paulo: Edições Loyola,
2006.
VAZ, Henrique C. de Lima. Escritos de Filosofia II: Ética e Cultura. São Paulo: Edições
Loyola, 1988.
WOLFF, Francis. Aristóteles e a Política. Trad: Thereza Christina Ferreira Stummer e Lygia
Araujo Watanabe. 2ª Ed., São Paulo: Discurso Editorial, 2001. 156p –(Clássicos e
Comentadores. Edição de Bolso).
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A PSICOLOGIA E O PROCEDIMENTO GENEALÓGICO EM NIETZSCHE
– Maurício Smiderle
UNIOESTE/PET Filosofia
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Resumo: Para realizar uma análise e uma avaliação dos valores morais, Nietzsche apoia-se
em um procedimento genealógico, que possui um tripé indissolúvel: história, filologia e
psicologia. A meta do presente trabalho é explicar a formação desse instrumento, e como
ocorre o seu funcionamento. A psicologia nietzschiana, ou seja, uma verdadeira
psicofisiologia irá conduzir a uma investigação sobre o homem e o seu desenvolvimento,
procurando entender este como ele é, sem apoiar-se em valores transcendentes. É com a
psicologia que é possível realizar uma crítica aos valores morais, pois ela possui as demais
ciências para lhe auxiliar, conseguindo penetrar nas profundezas do indivíduo.
Palavras-chave: Psicologia. Moralidade. Genealogia.
No prólogo da Genealogia da moral, Nietzsche comenta que um dos seus
primeiros problemas sobre a moral era saber a verdadeira origem do “bem” e do “mal”.
No entanto, após algum tempo, o filósofo descreve que apreendeu a separar o teológico
da moral, parando de buscar a origem da moralidade “por trás do mundo”. Através disto,
ele afirma que sua questão mudou:
Alguma educação histórica e filológica, juntamente com um inato senso seletivo em
questões psicológicas, em breve transformou meu problema em outro: sob que
condições o homem inventou para si os juízos de valor “bom” e “mau”? e que valor
têm eles? Obstruíram ou promoveram até agora o crescimento do homem? São
indícios de miséria, empobrecimento, degeneração da vida? Ou, ao contrário, revelase neles a plenitude, a força, a vontade de vida, sua coragem, sua certeza, seu futuro?
(NIETZSCHE, 2009, p.9).
A questão mudou de foco, antes Nietzsche procurava apenas a origem da
moralidade, agora ele está interessado principalmente no valor da moral. Para conseguir
responder este problema, é preciso saber sob quais condições a moral nasceu e como ela
se desenvolveu, “o próprio valor desses valores deverá ser colocado em questão” (Idem,
p.12). O filósofo alemão alega que com uma educação filológica, histórica e um senso
psicológico modificaram o seu problema, assim, ele se apoiará nesta tríade para realizar
uma crítica à moralidade. Ele utiliza este tripé inseparável no seu procedimento
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genealógico, que pode ser observado principalmente nas duas primeiras dissertações da
Genealogia da moral. De modo geral, na primeira dissertação, “Bom e mau”, “bom e
ruim”, Nietzsche faz uma distinção entre a moral do senhor e a moral do escravo,
avaliando os valores morais que esses tipos utilizam: “bom e ruim” e “bom e mau”.
Através disto, Nietzsche procura descobrir a origem e as modificações que os valores
morais sofreram com o decorrer do tempo. Para os senhores, isto é, para o tipo dos
dominantes a denominação “bom” (gut) é utilizada para classificar os sujeitos superiores,
fortes, elevados, poderosos, nobres; e, como oposição, é usado o conceito “ruim”
(schlecht) para os indivíduos fracos, desprezíveis, simples, comuns, baixos. Em primeiro
lugar, o senhor diz um Sim a si próprio, criando os valores com base em si mesmo, e
somente depois ele cria a valoração ruim, que possui um sentido negativo, um sentido
contrário do que o próprio senhor representa. Ao contrário da moral dos senhores, a
moralidade dos dominados irá classificar como “bom” (gut) os indivíduos fracos,
simples, plebeus, comuns; e os sujeitos superiores, fortes, nobres, poderosos serão
denominados com o valor “mau” (böse). Esta moral não afirma a vida, mas, ao contrário,
a nega. Primeiramente, o escravo nomeia o sujeito que causa o seu sofrimento, isto é, o
indivíduo poderoso como mau e após ele se classifica como bom. Toda a ação dos
escravos é, na verdade, uma reação, pois estes não criam valores, mas invertem a
valoração do senhor. Com isto, percebe-se:
Enquanto toda moral nobre nasce de um triunfante Sim a si mesma, já de início a
moral escrava diz Não a um “fora”, um “outro”, um “não-eu” – e este Não é o seu
ato criador. Esta inversão do olhar que estabelece valores – este necessário dirigirse para fora, em vez de voltar-se para si – é algo próprio do ressentimento: a moral
escrava sempre requer, para nascer, um mundo oposto e exterior, para poder agir
em absoluto – sua ação é no fundo reação (Idem, p.26).
Desta forma, é através do ressentimento que ocorre uma inversão dos valores,
uma inversão realizada por aqueles em que a ação é bloqueada: enquanto o “bom” da
moral dos senhores denomina o sujeito poderoso, a valoração “mau” representa, para os
escravos, esse indivíduo; e o “ruim” para os senhores é o “bom” para os escravos, que é o
homem desprezível e fraco. Já na segunda dissertação, “Culpa”, “má consciência” e
coisas afins, Nietzsche analisa o homem do ressentimento, como este age e como ele
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surgiu. Nesta dissertação, é avaliado o conceito de “culpa”, que, segundo o filósofo, tem
origem no conceito de “dívida”. É na relação do credor com o devedor que surge o
sentimento de culpa. Na antiga humanidade, o devedor subordinava o seu corpo, sua
liberdade, enfim, o que ele possuía ao credor, “para infundir confiança em sua promessa
de restituição” (Idem, p.49). Com isto, o credor, caso o devedor não cumprisse com a
promessa, poderia infligir todo o tipo de tortura e humilhação ao corpo do devedor. Aqui,
nota-se uma equivalência que relaciona uma satisfação intima do credor com a dívida do
devedor. A dívida é esquecida através do prazer de causar o sofrimento, pois “ver -sofrer
faz bem, fazer-sofrer mais bem ainda” (Idem, p.51). Essa relação foi a primeira a medir
valores, estabelecer preços, transformando o homem em um “animal avaliador”. Através
disto, surge o castigo que é realizado pelo credor ao devedor que não cumpriu com a sua
promessa. “O castigo endurece e torna frio; concentra; aguça o sentimento de distância;
aumenta a força de resistência” (Idem, p.64). Com o castigo, o homem é domado, pois o
indivíduo passa a possuir medo, assim, torna-se mais prudente, controlando os seus
próprios desejos. E, por fim, Nietzsche analisa a “má consciência”, dizendo que esta
apareceu com a interiorização dos instintos do ser humano. Ela é, segundo o filósofo
alemão, uma “profunda doença que o homem teve de contrair sob a pressão da mais
radical das mudanças que viveu – a mudança que sobreveio quando ele se viu
definitivamente encerrado no âmbito da sociedade e da paz” (Idem, p.67). Com as
mudanças que o indivíduo sofreu, com a impossibilidade de descarregar exteriormente os
seus instintos, o homem precisou os internalizar, fazendo o seu mundo interior mais
profundo. “A hostilidade, a crueldade, o prazer na perseguição, no assalto, na mudança,
na destruição – tudo isso se voltando contra os possuidores de tais instintos: esta é a
origem da má consciência” (Idem, p.68). Através dessa falta de poder para exteriorizar os
seus instintos, o homem do ressentimento, isto é, o escravo os faz voltar contra si
próprio, dando origem à má consciência. Esta interioriza os instintos, faz o homem
violentar a si mesmo, gerando noções transcendentes. O escravo é aquele que possui a má
consciência, ele nega a vida, pois nega os instintos básicos que a condicionam, criando
valores transcendentes, como os valores cristãos: alma, deus, eterno, etc. Assim,
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Nietzsche indica que se deve buscar a “grande saúde”, pois somente esta poderá fazer
como que o indivíduo afirme a vida, afastando o niilismo e os valores do cristianismo.
Nota-se nas duas dissertações citadas acima, Nietzsche procurou penetrar nas
profundezas do homem, desvelar o indivíduo, mostrando este tal como ele é, sem utilizar
noções metafísicas. É isto que a psicologia nietzschiana1 realiza, ou seja, procura analisar
e avaliar o ser humano. Esta psicologia irá apoiar-se nas demais ciências (história e
filologia), entendendo o homem como um ser fisiológico, que está no vir-a-ser do mundo.
Em Nietzsche, a fisiologia tem o sentido da dinâmica da luta dos impulsos por mais
potência. A interpretação nietzschiana compreende que o mundo é formado por um
conjunto finito de impulsos ou forças, que estão em constante conflito, possuindo como
fio condutor a tendência ao crescimento de potência. Tudo o que existe é a efetivação dos
impulsos, através da luta contínua por mais potência. Não há intencionalidade nos
impulsos, eles se efetivam apenas como tendência por mais potência. As relações de
dominação fazem existir uma hierarquia de forças, na qual não se visa destruir os outros
impulsos, mas apenas dominar. A hierarquia não é perpétua, pois, como existe uma luta
contínua, ela está sempre se modificando. Desta forma, percebe-se que o mundo é
constituído pela vontade de potência, isto é, pela luta ininterrupta dos impulsos que
procuram se intensificar. O homem, como todo o mundo, é formado por uma hierarquia
de forças, todas as manifestações do indivíduo são a expressão fisiológica de uma
configuração de impulsos. Como toda produção do ser humano representa um sintoma de
certo estado fisiológico, ou seja, de uma certa configuração de impulsos, a psicologia
nietzschiana irá procurar descobrir qual a configuração presente no indivíduo e como esta
se relaciona com o mundo. A psicologia de Nietzsche não se limita a investigação
daquilo que se chama de fenômenos psicológicos, ela investiga os sintomas da
configuração de impulsos. Estes impulsos não são nem corporais e nem anímicos, sendo
apenas tendência ao crescimento de potência. Por isso, Nietzsche a chama de uma
verdadeira psicofisiologia. Avalia-se o grau de potência e hierarquização dos impulsos,
1
Uma importante divisão entre a psicologia de Nietzsche e a psicologia do século XIX é o fato de que esta
última utilizava valores morais e metafísicos (alma) nos seus julgamentos, enquanto que a psicologia
nietzschiana procura evitar tais valores.
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isto é, a sua condição impulsional, não mais diferenciando o psicológico do fisiológico.
A psicologia, isto é, a fisiopsicologia vai além de somente analisar uma configuração de
impulsos, ela também irá avaliar essa configuração, julgando se uma expressão
fisiológica é afirmadora ou negadora da vida. Ela utiliza a própria vida como critério
avaliador, como critério que classificará uma expressão de impulsos. “Moral, política,
religião, ciência, arte, filosofia, qualquer apreciação de qualquer ordem deve ser
submetida a um exame, deve passar pelo crivo da vida” (MARTON, 2000, p.88).
Nietzsche afirma: “a própria vida é vontade de potência” (NIETZSCHE, 2005, p.19). Ou
seja, a vida, como o mundo, está sempre buscando mais potência, ela é um processo de
auto-superação, envolvendo relações de dominação.
A vida mesma é essencialmente apropriação, ofensa, sujeição do que é estranho e
mais fraco, opressão, dureza, imposição de formas próprias, incorporação e, no
mínimo e mais cometido, exploração (Idem, p.154-155).
Através da vida como critério avaliador, a psicologia nietzschiana irá classificar
uma expressão de impulsos ou como doentia ou como saudável. Será doentia quando
apresentar uma fisiologia que nega a vida; e quando se apresentar sintomas que estão em
conformidade com a vida, isto é, afirmando a vida será classificado como saudável. O
indivíduo nega a vida quando ele nega o vir-a-ser do mundo, a luta de impulsos, criando
o além, o outro, o fora, como os valores socrático-cristãos. Para afirmar a vida, é
necessário que o indivíduo vivencie o mundo como um fluxo constante de mudança, ou
seja, como vontade de potência. Desta forma, a psicologia, segundo Nietz sche, deve ser
conhecida como a rainha das ciências, que se apropria das outras ciências para o seu
auxilio. O filósofo compreende a psicologia “como morfologia e teoria da evolução da
vontade de potência” (Idem, p.27), pois somente ela irá entender e avaliar o homem sem
os preconceitos morais, descendo até profundezas do indivíduo. A psicologia, isto é, a
rainha das ciências utiliza as demais ciências para lhe auxiliar, pois somente ela é “o
caminho para os problemas fundamentais” (Idem, p.28). Ela forma a base para o
procedimento genealógico, que é formando por um tripé: psicologia, história e filologia.
Este tripé é o alicerce para a realização da crítica de Nietzsche aos valores morais, pois é
através dele que o filósofo consegue analisar a origem e as mudanças da moralidade.
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Tanto na primeira quanto na segunda dissertação da Genealogia da moral a psicologia
está presente. Na primeira parte do livro, ela realiza uma investigação histórica e
filológica dos termos “bom e ruim” e “bem e mal”, e, assim, ela descobre a origem da
moralidade. Ainda está presente um senso psicológico, pois ela, sem se apropriar de
valores transcendentes, penetra no fundo do indivíduo, descobrindo os instintos que estão
presentes em cada ser humano. Tanto o senhor quanto o escravo estão sempre procurando
se intensificar, eles possuem uma tendência ao crescimento de potência, porém, enquanto
que o senhor exterioriza os seus instintos, o escravo os interioriza, gerando a má
consciência. Na segunda dissertação é possível observar melhor a psicologia
nietzschiana. Esta faz uma análise do homem do ressentimento, das mudanças que este
sofreu até atingir a má consciência. Na relação entre credor e devedor, o indivíduo
adquire o sentimento de culpa, que, com a imposição da sociedade, resulta rá na má
consciência. Após realizar esta análise, a psicologia de Nietzsche afirma que é preciso
certa espécie de espíritos: “espíritos fortalecidos por guerras e vitórias, para os quais a
conquista, o perigo e a dor se tornaram até mesmo necessidade; (... ) seria preciso, em
suma e infelizmente, essa mesma grande saúde!...” (NIETZSCHE, 20009, p.78). O
filósofo avalia o homem da má consciência, percebendo que este está negando a vida,
mostrando uma fisiologia doentia. A partir disto, ele propõe que se busque a grande
saúde, pois com esta o indivíduo irá afirmar a vida, negando os valores cristãos e
niilistas. Assim, nota-se que a psicologia nietzschiana, isto é, a rainha das ciências
proporciona o suporte para descobrir a origem e as mudanças dos valores morais, pois,
junto com o tripé inseparável – psicologia, história e filologia –, ela serve de fundamento
para o procedimento genealógico.
Referências:
FREZZATTI Jr., W. A. A psicologia de Nietzsche: Afirmação e negação da vida como
sintomas de saúde e doença. In: SOUZA, E. C. de; CRAIA, E. C. P. Ressonâncias filosóficas:
entre o pensamento e a ação. Cascavel: EDUNIOESTE, 2006b. p.65-82.
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MARTON, Scarlett. Nietzsche: Das forças cósmicas aos valores humanos. Belo Horizonte:
UFMG, 2000.
NIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do mal. Tradução, notas e posfácio Paulo César de
Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral. Tradução, notas e posfácio Paulo César de
Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
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A RAZÃO DESTRANSCENDENTALIZADA E O REALISMO
LINGUÍSTICO: UMA PROPOSTA HABERMASIANA – Kátia R. Salomão
UNIVEL1
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Resumo: Os primeiros passos de Habermas, para sua teoria de uma razão comunicativa livre
de pressupostos transcendentais e, fundada de um modo deliberativo na pragmática da
linguagem, estão evidenciados na destranscentalização da razão. Habermas, apesar de
subsumir aspectos da filosofia kantiana, considera que o conhecimento em Kant baseava-se
em pressupostos transcendentais, que não podem mais conferir validade à racionalidade. Tal
kantismo alicerçava-se no paradigma da consciência, que Habermas reedita em paradigma da
linguagem. O desenvolvimento mais fecundo no que diz respeito à destranscendentalização da
razão, está presente desde a virada pragmática. Portanto a proposta de análise, irá privilegiar a
avaliação presente em Acción Comunicativa y Razón sín trascendencia2, além dos aspectos
relevantes da oposição habermasiana quanto ao elemento transcendental, que está esmiuçado
em Conhecimento e Interesse.
Palavras-chave: Destranscendentalização, Razão, Validade.
Habermas busca em Kant o uso da característica transcendental 3, na medida em
que almeja alcançar respostas para o seu principal impasse: como pensar a unidade da
razão, levando em conta a razão teórica e prática, presentes na oposição da arquitetônica
do sistema kantiano? Segundo Habermas essa questão, e seus desdobramentos conduzem
inevitavelmente a uma revisão do conceito de transcendental 4. Para ele, o pensamento
kantiano releva que toda a construção da arquitetônica da critica da razão pura, se funde
em uma razão enquanto caráter apriorístico e legisladora de si. Com isso uma razão é
transcendental pura, e a priori, no intento de Kant vislumbrar o esclarecimento, que
possui internamente de maneira sistematizada em juízos e categorias lógicas, que são
1
A autora é mestre em Filosofia pela UNESP/Marília. Professora títular de Filosofia da UNIVEL— União
Educacional de Cascavel. Esse artigo é fruto das orientações da profª Dª Clélia Aparecida Martins, professora D.
do departamento de filosofia UNESP-SP.
2
HABERMAS, J. Acción Comunicativa y Razón sín trascendencia. In: Entre naturalismo y religión. Trad. Pere
Fabra, Daniel Gamper, Francisco Javier Gil Martín, José Luis López de Lizaga, Pedro Madrigal y Juan Carlos
Velasco – Espanã: PAIDÓS, 2006 = KHD.
3
Nesse aspecto de argumento contra a dedução transcendental kantiana, e sua reconstrução, Habermas foi
fortemente influenciado por Apel. In. APEL, K. O. (Org). Sprachprgmatik und Philosofhie. Frankfurt Main:
Suhrkamp, 1982. 488p. ____. Ética Comunicativa e Democracia. Barcelona: Crítica, 1991. p. 280-344.
4
HABERMAS, J. Conhecimento e Interesse. Rio de Janeiro: Ed. Guanabara, 1987b.=CI. Aqui: p. 331-332.
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orientadas para o conhecimento e ordenação dos fenômenos. O pensamento percorre vias
de uma dedução transcendental a priori, condição que não permite ultrapassar os
fenômenos. Contudo, o conhecimento somente percebe aquilo que produz segundo seus
próprios anseios, em que a razão é o centro do entendimento possível e a natureza dos
objetos não pode ser conhecida, isto é, o homem não conhece a essência dos objetos
sensíveis. O saber é atribuído ao conhecer absoluto, no qual ora o mundo é
automanifestação do conhecimento — o a priori em Kant é o saber puro ou inteligível —
ora a afirmação metódica de que todo o conhecimento parte do intelecto, mas também
possui sua origem na experiência sensível. Tomemos as palavras de Kant nesse momento:
Não resta dúvidas de que todo o conhecimento começa pela experiência;
efectivamente, que outra coisa poderia despertar e pôr em ação a nossa capacidade
de conhecer. Senão os objetos que afetam os sentidos e que, por um lado, originam
por si representações e, por outro lado, põe em movimento nossa faculdade
intelectual (2001. p. 194-195).
Ademais, é pela realização das operações sintéticas da experiência do sujeito
transcendental kantiano, da qual emerge a capacidade de reflexão sobre si que permite a
compreensão da condição transcendental do conhecimento, como a fonte de objetividade
da experiência, para além do objetivismo que está assentado no objeto do conhecimento.
Para Habermas, Kant confere ao elemento transcendental, uma postura diferente da
concedida ao da metafísica medieval. Assim, o emprego do elemento transcendental na
filosofia kantiana é um divisor de águas, isto é, o responsável por um novo olhar
retrospectivo da primazia do objeto na metafísica tradicional. Segundo ele, esse é o
mérito kantiano: o de livrar-se do legado metafísico do objeto e da substância, além de
notar a capacidade de reflexão e auto-reflexão do sujeito transcendental, que
necessariamente deve ser, na teoria do conhecimento kantiana, guiada pelo a priori da
experiência possível, e por sua vez, esse fato não foi considerado nem pela corrente
analítica da filosofia, muito menos pelos pragmáticos. De acordo com Kant: “Com efeito,
a própria experiência, é uma forma de conhecimento que exige concurso do
entendimento, cuja regra devo pressupor em mim antes de me serem dados os objectos,
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por conseqüência, ‘a priori’ e essa regra é expressa em conceitos ‘a priori’ [...]”5. Diante
de tal condição, Kant não recai no erro metafísico, pelo contrário, para ele o objeto só é
concebível mediante operações sintéticas do sujeito, de um tipo particular de “eu penso”
reflexivo, que acompanha todas as representações de uma única consciência. Isso decorre
porque Kant estabelece como o problema central de sua teoria do conhecimento, não o da
constituição dos objetos, mas a questão da possibilidade dos juízos sintéticos a priori.
Kant na segunda edição da Crítica da Razão Pura, já na introdução, expõe seus
questionamentos referentes a estes juízos. No que tange aos desdobramentos de Kant,
Habermas realiza sua investigação, tendo em vista averiguar a validade objetiva desses
juízos. Kant, a respeito desse assunto controverso argumenta numa passagem da
“Analítica dos princípios”, constante na segunda seção intitulada “Do Princípio Supremo
de Todos os Juízos Sintéticos” dizendo que:
O princípio supremo de todos os juízos sintéticos é, pois este: todo o objecto está
submetido às condições necessárias da unidade sintética do diverso da intuição numa
experiência possível. Deste modo são possíveis os juízos sintéticos a priori, quando
referimos as condições formais da intuição a priori, a síntese da imaginação e a sua
unidade necessária numa apercepção transcendental, a um conhecimento da
experiência possível em geral e dizemos: as condições da possibilidade da
experiência em geral são, ao mesmo tempo, condições da possibilidade dos objetos
da experiência e têm, por isso, validade objetiva num juízo sintético a priori (KANT,
2001, A-158, B-197. p. 195).
Esse sentido de experiência e de juízo serve de apoio a Habermas quando imputa
à experiência a possibilidade de objetividade e verdade dos objetos, ou ainda, nas
palavras kantianas a validade objetiva dos juízos. Neste caso, a validade objetiva dos
juízos sintéticos está presente em Kant na condição da experiência implicar objetividade,
sendo o único meio para a efetivação de tal tarefa, mediante as condições formais da
subjetividade transcendental, por meio da qual a validade objetiva dos juízos sintéticos
está subordinada as condições da possibilidade da experiência: por isso, essas condições
indicam uma correspondência com as condições de possibilidade dos objetos da
experiência. Assim, em Kant a validade e objetividade seguem essa formalidade, que se
caso não for obedecida, a experiência poderia ser apenas subjetiva e não atribuiria
5
KANT, 2001, B- XVIII, p.20.
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validade aos juízos sintéticos 6. “Para que a experiência não seja apenas subjetiva, mas
possa ser também objetiva, deve estar submetida às formas da intuição ‘a priori’, à
síntese da imaginação e a unidade necessária da apercepção transcendental” 7. Diante de
tal argumento, Habermas salienta que Kant é idealista ao depositar na experiência todo o
crédito e responsabilidade de reconhecer a validade dos juízos sintéticos e sua
objetividade.
Exemplificando,
Habermas
diz
que
os
objetos
são
constituídos
transcendentalmente, através das operações sintéticas inerentes ao sujeito transcendental
kantiano. Entrementes, é em última instância que os juízos remetem à constituição da
objetividade e, neste ponto, pode-se deduzir que Kant não está a salvo do erro da verdade
como correspondência 8, que relaciona a proposição aos fatos: na teoria da verdade
transcendental, a validade dos juízos é análoga à capacidade subjetiva da constituição dos
objetos na experiência. Dessa forma, Kant inverteu o problema da verdade como
correspondência, na qual a objetividade está assentada na validade das proposições, ou na
validade objetiva dos juízos sintéticos a priori. A crítica de Habermas estabelece que a
teoria kantiana ignora que o problema da validade e da objetividade possa se concretizar
em momentos distintos da experiência, apesar de estarem relacionados entre si. Logo, ele
oferece uma releitura da filosofia teórica de Kant, para, entre problemas tangíveis ,
diferenciar a verdade e da objetividade, sem desconsiderar que ambos os elementos estão
sempre inter-relacionados. Segundo Habermas, a objetividade que advém das
6
Habermas também não se propõe em verificar os desdobramentos em relação aos juízos sintéticos e analíticos,
apenas a partir da suposição de ambos levanta seus argumentos contra a dedução transcendental. Habermas
representa um caminho, todavia mais nítido para um neoretorno a um Kant hegelianizado com o que quer tratar
de fundamentar uma articulação da racionalidades teórica e prática no contexto das formas de vida do
neocapitalismo. Conf. COLL, Ferran Requejo. Teoría Crítica y Estado Social: neokantismo y socialdemocracia
em J. Habermas. Barcelona: Anthropos, 1991, aqui. p. 49-55.
7
DURÃO, Aylton Barbieri. A crítica de Habermas à dedução transcendental de Kant. Londrina: EDUEL, 1996,
p.19.
8
Os positivistas fizeram uma adequação da teoria da verdade como correspondência, em que a adaptaram de
maneira em que as proposições devem corresponder aos fatos. Na versão metafísica a verdade se apoiou na
noção ora de objeto, ora de substância. Em relação à segunda hipótese Descartes aceita uma nova forma de
objetualismo: “A subjetividade cartesiana acaba sucumbindo diante de uma metafísica da substância, pois serve
somente para a abertura da consciência ao conhecimento da objetividade dos objetos, trata-se apenas de um
método que reconhece, na substância pensante, extensa e infinita, a verdade que buscava.” (Idem, 1996, p. 1416).
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experiências, consiste no fato de estas poderem ser compartilhadas intersubjetivamente 9.
Já em Kant, o problema fundamental verificado não é o da objetividade, portanto o da
validade objetiva dos juízos no quadro, no qual, a dedução transcendental ocupa a
posição de garantidora da validade ou da verdade, em que opera como mediadora entre
verdade e objetividade. Assim sendo, a dedução transcendental assume a função de
unificar o problema da verdade e objetividade, seja conferindo validade às proposições,
seja na constituição dos objetos possíveis na experiência. A dedução transcendental em
Kant: “[...] pode fundamentar a verdade das proposições, pois se observa que a dedução
transcendental dos conceitos ‘a priori’, [...], a constituição de objetos por meio da sua
subsunção as categorias, depende da possibilidade dos juízos terem validade objetiva” 10.
Habermas segue com seu argumento dizendo que:
Uma dedução transcendental do sentido categorial de enunciados iria tão somente
abranger uma fundamentação transcendental da verdade de proposições, caso eu
pudesse introduzir, na base no idealismo kantiano, um princípio supremo de todos os
juízos sintéticos. Isso não é possível; pois, mesmo para enunciados elementares de
observação, a objetividade da experiência só poderia constituir uma satisfatória
condição da verdade, se não fôssemos obrigados a entender o progresso científico
como uma continuação crítica sucessiva de linguagens teóricas, as quais interpretam
de forma sempre mais adequada a área de objeto constituído a moda pré-científica.
Este ser adequado de uma linguagem teórica é uma função da verdade das
proposições teóricas, possíveis de serem articuladas com os recursos dessa
linguagem; se as reivindicações de tais proposições frente à verdade não fosse
satisfeita pela argumentação mas, sim, meio de experiências, o progresso teórico não
seria concebível senão como produção de novas experiências e não como novas
interpretações das mesmas experiências. Mais plausível é, em conseqüência, a
suposição de que a objetividade de uma experiência não garante a verdade de uma
afirmação correspondente, mas apenas a unidade desta experiência na multiplicidade
das afirmações, através das quais ela é interpretada (CI, 1987b, p. 350).
Segundo Habermas, Kant operou uma inversão da questão — a objetividade da
experiência é que depende da validade objetiva dos juízos sintéticos a priori, por isso, de
acordo com sua opinião, Kant continua interligando a verdade das proposições, a
objetividade da experiência, sendo este procedimento ilustrado pela dedução
transcendental. Desse modo, ele considera esses argumentos kantianos equivocados,
propondo-se a pensar uma nova relação entre verdade e objetividade, pelo fato de
9
CI, 1987b, p.335.
Durão, 1996, p.21.
10
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perceber em Kant a falta de solução plausível para o problema da teoria da verdade
clássica, na qual deixou brechas que serviram de motivos para uma nova versão, q ue
surge revestida como adequação das proposições aos fatos. Agora a relação entre verdade
e objetividade aparece em Habermas de modo revisado, em que o transcendentalismo
kantiano insurge como vestígios, reconstruído na teoria habermasiana no revestimento da
dedução do sentido categorial das proposições 11. Segundo a reconstrução habermasiana
da dedução transcendental, a maneira como são percebidos os objetos em Kant, mantém
uma relação estreita com a validade dos juízos sintéticos a priori. Isso ocorre porque as
condições formais para a constituição do juízo sintético são as mesmas oferecidas aos
objetos da experiência. Esse seria, para Habermas, o elemento fundamental para se
atribuir o caráter idealista a Kant, haja vista sua defesa de que para se chegar à validade
objetiva dos juízos sintéticos a priori, a operação consiste na aplicação das formas a
priori dos juízos aos objetos da experiência construída pelo sujeito transcendental. Ao
contrário desta cosmovisão presente em Kant, Habermas defende que o fato que relaciona
o sentido da validade e o sentido categorial das proposições, não implica de forma
alguma a dependência da validade das proposições em relação à constituição da
objetividade. Ademais, Kant é considerado por Habermas como detentor do mérito de ter
rompido com o objetivismo reinante na visão metafísica da primazia do objeto sobre o
conhecimento, que era o legado da tradição filosófica do seu tempo. Kant realiza uma
reviravolta, na medida em que deposita no sujeito transcendental a condição da reflexão,
e, portanto, os desdobramentos cognoscitivos ao que se refere à realização dos sujeitos de
produzirem as condições do conhecimento dos objetos. Logo, o objeto não é primário,
mas o resultado dessas operações a partir de regras levadas a cabo pelo sujeito
transcendental. Habermas atribui, assim, a Kant o plano da filosofia da consciência, no
qual as condições para a realização do conhecimento dos objetos são colocadas no sujeito
transcendental, o encarregado do intermédio das operações sintéticas c apazes de outorgar
aos objetos sua validade objetiva. Por conseguinte, constata-se que é nas formas a priori
do sujeito transcendental que se constituem os objetos, na qual a reflexão consiste em
11
CI, 1987b, p. 330-338.
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captar essas operações sintéticas, bem como a conseqüente autoconsciência realizadora
da síntese transcendental 12. Nesse âmbito da filosofia kantiana, Habermas entende que
ela tem o desígnio de elucidar que as categorias do a priori do sujeito transcendental
oferece a condição sui generis, para o conhecimento dos objetos da experiência. Desse
modo, a reflexão consiste no processo da consciência voltar-se a si mesma, e nota nas
suas realizações, os atos de uma consciência que constitui a objetividade, sendo capaz de
captar as operações sintéticas da autoconsciência operadora da síntese transcendental. No
entanto, a necessidade de oferecer a validade da experiência, na trajetória pela busca da
verdade e objetividade, não abarca a rejeição a toda a tradição, mas também não se
mantém fiel ao argumento kantiano que se firma sobre o a priori. Determinada a função
de pensar a analogia existente entre verdade e objetividade atribuída ao seu antecessor,
Habermas acabou por reformular a própria teoria kantiana, e rompeu com a correlação
dos elementos, em que a exigência por uma redução de enunciados não objetivista, é
substituída pelo imperativo de, na medida do possível, se procurar desenvolver novas
teorias, que possam se vincular nas tentativas de conferir validade ao quadro dos
enunciados convencionais objetivistas, como também os não objetivistas. Assim sendo,
Habermas passará a considerar a verdade como uma pretensão de validade,
intrinsecamente associada à linguagem, na qual a objetividade da experiência deve ser
resolvida discursivamente, pela supressão das coesões da ação. A teoria da verdade, com
isso, assume uma nova revestidura, na qual é mensurada tanto pela ação instrumental
quanto pela ação comunicativa, e possui como viés uma interpretação do conceito a
priori kantiano, em que ficará aparente sua argumentação contra o caráter transcendental
da verdade, na tentativa apenas de conferir validade às proposições do conhecimento,
objetivas ou não, ou ainda, na procura de conferir o caráter auto-reflexivo que já era
presente em Kant, no qual o sujeito é o responsável pelo conhecimento, mas que foi mal
interpretado, ou até mesmo ignorado pelos positivistas.
Primeiro, todo conhecimento ‘objetivo’, na medida em que perfaz um ato de um
sujeito, está submetido a certas condições ‘subjetivas’; segundo, há que perguntar o
12
Comparar Durão, 1996, p. 38-39 com p.13 da referida obra. A respeito desse aspecto ver ainda, CI, 1987b,
p.329-338.
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que podemos asseverar acerca do sujeito do conhecimento, considerando que ele
próprio vive no mundo dos objetos como uma de suas partes[...], a estruturação
categorial dos domínios do objeto, sobre as quais as ciências que objetivam erigem
teorias, trai a origem de um a priori sintético , inerente a toda a experiência que
reporta a atividade humana. Mas, ao mesmo tempo, o sujeito da experiência é um
produto da história da espécie e da natureza, revestidas de competências as quais
devem ser construídas em sua lógica e, concomitantemente, explicadas
empiricamente em sua gênese (CI, 1987b, p 329).
Por sua vez, a reconstrução habermasiana da dedução transcendental nega a
constituição dos objetos da experiência, e considera que é amparada na pragmática
universal, que resguarda a função de preservar parcialmente as características da teoria da
verdade associada às pretensões de validade da objetividade resolvidas discursivamente.
No entanto, Habermas tanto rejeita o idealismo kantiano como também o sobrepuja com
uma outra leitura do conceito de trabalho em Marx e da ação em Pierce 13. Todavia, é
residente nessa argumentação a origem dos pressupostos envolvidos no conceito de
interação entre os sujeitos, que abriu espaço para Habermas operar uma guinada
lingüística, ou até mesmo, como está presente na leitura de muitos de seus comentadores
como, a saber, Bárbara Freitag, Thomas MacCarthy, David Ingram, etc, nosso autor,
provoca uma mudança conceitual que altera o paradigma filosófico presente nos três
últimos séculos — Habermas passa a pensar uma nova relação filosófica, além daquela
da teoria do conhecimento kantiana análoga ao sujeito/objeto. A noção comunicativa
sujeito/sujeito (que envolve a interação) não rejeita a noção kantiana sujeito/objeto,
porém as adequou uma a outra no espaço reservado para a sua atuação é o mundo da
vida, isto é, uma convive ao lado da outra não excluindo hipóteses de interação social.
Nessa medida, é constituído por Habermas um novo modelo de pensar filosófico, que
rejeita o sujeito transcendental realizador da validade objetiva da experiência, que
simultaneamente é responsável pela “[...] autoconsciência do produzir objetos (a
consciência produz objetos por meio da síntese e se percebe como consciência que faz
síntese, eu penso [Ich denke] ou unidade originária da percepção transcendental
[ursprüglich—synthetischen Einheit der Apperzeption] ) sem levar em conta a interação
13
Na obra de Habermas “Para a Reconstrução do Materialismo Histórico”, fica exposto os pressupostos que
envolvem a argumentação supracitada. In. HABERMAS, Jürgen. Para a reconstrução do materialismo
histórico. São Paulo: Brasiliense, 1990a.
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social ou a ação sobre a natureza” 14. Para Habermas, os sujeitos que produzem
conhecimento, estão inseridos em um mundo da vida no qual compartilham de uma
história, de uma cultura, e de uma comunidade real de comunicação comum, na qual se
estabelecem seus modos de agir ético e político e convencional, com seus consensos
fáticos que mesmo na posição de ideais também são questionáveis e que, por vezes,
incorrem na ausência de validade e objetividade atingindo os dissensos existentes que são
reconhecidos na busca de pretensão de validade, nas arbitrariedades imbuídas de
interesses que envolvem a comunicação. Logo, para ele a comunidade é tão racional e
justa quanto irracional e injusta; nela a busca pela validade das proposições pode ser
tanto objetiva como não objetiva, pois uma proposição pode ser verdadeira ou falsa, e
essa valoração, não está presa às condições de objetividade da experiência, contudo está
alicerçada nos pressupostos da argumentação, a fim de atingir pretensões de validade, e
que não conferem uma valide última por serem criticáveis. Na leitura habermasiana a
respeito da dedução transcendental, é indubitável que esta é a única condição de
possibilidade que Kant dispõe para expressar juízos sintéticos a priori e assegurar sua
validade objetiva. No entanto, em Habermas a validade da proposição não pode ser
imediatamente relacionada à objetividade da experiência, porque ele não aceita a dedução
transcendental como mediadora entre a verdade e a objetividade. Tal observação
argumentativa de Habermas nega à situação em que o a priori da experiência sobre os
objetos, se configure como o mesmo a priori da enunciação dos juízos sintéticos. Kant,
desse modo, quer por meio da dedução transcendental evitar que existam duas ordens
distintas do conhecimento: pois o a priori da enunciação é simultaneamente o
constituinte da objetividade. Daí Habermas rechaçar Kant, dizendo que ambas as
situações não podem ser idênticas entre si, isto é, às condições que tornam válidos os
enunciados sobre os objetos da experiência possível, ou o a priori da objetividade não é
idêntico, sem mediações, ao a priori da argumentação. O desenlace da reconstrução
14
Durão, 1996, p. 14
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habermasiana conduz a apreendermos ou identificarmos um duplo a priori em Kant15,
sendo a dedução transcendental o pressuposto utilizado para evitar essas duas ordens
distintas do conhecimento.
Habermas considera que o único modo de se compreender a possibilidade dos juízos
sintéticos é reconhecer a dicotomia entre a constituição dos juízos enunciados acerca dela,
por que os objetos da experiência devem guardar uma unidade ao longo da toda a história
humana. Para evitar a metafísica e o objetualismo positivista é necessário mostrar as
condições transcendentais de constituição desses objetos, por meio do entrelaçamento
específico ente linguagem, ação e experiência (Konstellation von Sprache, Handeln und
Erfahrung) (DURÃO, 1996, p.173-175).
Habermas diante de tais observações, não se propõe a pensar algo que possa
substituir a dedução transcendental kantiana, pois segundo os resultados de sua
investigação, não é preciso admitir que o a priori da experiência sobre os objetos seja o
mesmo a priori da enunciação dos juízos sintéticos. Portanto,Habermas se encarrega de
resgatar o modelo transcendental, porém agora, no plano da ação comunicativa, e
concebe uma teoria transcendental da ação 16 segundo a qual um conjunto de conceitos a
priori constitui o objeto do conhecimento, além de uma razão sem transcendência por
meio da reconstrução pragmática de Kant. Por isso, Habermas fala de a priori da
experiência sensível ou pragmática universal, e de a priori da experiência comunicativa,
na alternativa de diferenciar entre objetividade e a sua falta numa experiência no mundo
da vida. Neste sentido, Habermas estabelece uma teoria da verdade sem vínculo
incindível inerente à constituição dos objetos. Pois, em torno dos anos 70, sua
preocupação era a de se desvencilhar do objetualismo tanto metafísico, quanto
positivista. Explicitamente, sua teoria tem o objetivo de ser imune à associação da
verdade com a constituição dos objetos, assim conseqüentemente surge a preocupação em
distinguir o problema da constituição dos objetos, dos da constituição da pretensão de
validade. Todavia, no entendimento de Kant, para tornar claro o momento no qual se
origina a verdade e objetividade da razão enquanto unificadora do conhecimento, é
15
Esta argumentação em relação à condição de um duplo ‘a priori’ em Kant, a partir da ausência do elemento
transcendental, está presente na obra de Durão aqui mencionada, além de ser também considerada por Habermas
no prefácio e posfácio de ‘Conhecimento e Interesse’.
16
Habermas em sua obra Conhecimento e Interesse desenvolve a teoria transcendental da ação amparada na
‘teoria dos interesses cognitivos’.
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preciso fazer uso da dedução transcendental como mediadora voltada para as condições a
priori da experiência possível, que é a comprovação das possibilidades dos objetos.
Habermas, porém, observa que Kant quer vislumbrar o conhecimento antes do
conhecimento, os quais se configuram nas condições a priori, que continuam em voga
também no pensamento de Habermas, sobre a roupagem das regras do discurso e da
pragmática universal. Mas, contrariamente a Kant, em Habermas o sujeito cognoscente
não pode ser conhecido a partir de um pressuposto de um sujeito transcendental, como se
fosse uma unidade fora do movimento da história. Assim sendo, deve ser alguém
encarnado no mundo empírico, e cujas capacidades desenvolvem-se histórica e
progressivamente. O sujeito cognoscente em Habermas é tecido como alguém capaz de
participar da vida em comunidade de modo pleno e livre, com o desejo de ser integrado
na rede de ações comunicativas, que pode ser descrita como as inter-relações de toda a
latitude das interpretações cognitivas, das expectativas morais, das expressões e
valoração do contexto do mundo da vida. Somente assim, é possível elaborar uma ética
capaz de reverter o quadro patológico da racionalidade meio e fim, isto é, do proceder
instrumental, que operaria terapeuticamente o saneamento das postulações da
racionalidade técnico-instrumental. Em Habermas, a razão é a tematização das condições
formais da ação comunicativa, ou a busca das possibilidades da ação comunicativa e das
suas pretensões de validade. Ao contrário, Kant buscava o entendimento da razão, isto é,
suas estruturas, a fim de convencionar o entendimento. Nesse sentido, em Conhecimento
e Interesse está formulado o primeiro momento claro, no qual Habermas retira a razão do
plano da consciência e a orienta para o plano da linguagem, em que passa a ser mediada
na linguagem.
Essa adequação da herança idealista pode ser observada na medida em que tem
contato com a tradição do pensamento filosófico de Dewey a Heidegger e com o
pensamento pragmático consagrado desde Pierce até Dewey, e ainda, por Wittgenstein,
no qual o transcendental assume não o sentido de condições universais do conhecimento,
necessárias, inteligíveis e originárias da experiência, mas sim no sentido gramatical que
resulta dos conceitos internos do comportamento, o qual, guiado por regras, dispõe a
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qualquer
falante
a
capacidade
da
comunicação.
Dentro
desse
prisma,
o
transcendentalismo kantiano assume a couraça das investigações universais que devem
presumidamente ser satisfeitas para que delas possam resultar práticas fundamentais, isto
é, Habermas promove uma empreitada para demonstrar que não há substituto para a
linguagem, pois ela é inerente à espécie enquanto patrimônio. Portanto, os pressupostos
da ação comunicativa de um mundo objetivo comum para todos os falantes da
racionalidade que os agentes supõem reciprocamente e da validez incondicional, que
pretendem os agentes ao formularem seus enunciados através dos atos de fala, constituem
os diferentes aspectos de uma razão corporificada na prática comunicativa cotidiana, que
procuram idealmente por um entendimento consensual, além da sua aceitabilidade
racional no mundo da vida. Portanto, os três pressupostos pragmático-formais da
comunicação são absorvidos pelo pensamento habermasiano, sendo neles percebidos sua
familiaridade análoga aos conceitos kantianos. A primeira suposição pragmática de um
mundo objetivo comum está associada às “idéias cosmológicas” da unidade do mundo ou
totalidade das condições do mundo sensível. A segunda, a de que os agentes são os
responsáveis por vislumbrarem a racionalidade, relacionada diretamente à idéia de
liberdade enquanto pressuposto da razão prática kantiana. A terceira, a da
incondicionalidade das pretensões de validade, ligada à idéia kantiana da capacidade das
idéias de transcender o condicionado em direção ao incondicionado. Esta última
pressuposição da incondicionalidade das pretensões de validade inclui a característica de
que todo discurso racional é o foro último para qualquer juridificação possível, na qual a
verdade e a moral estão acima de qualquer particularismo, e também é correlata à noção
da razão como tribunal supremo de todas as pretensões e direitos. Conforme Habermas,
essas correlações são necessárias para aclarar a assunção dos conceitos kantianos pela
pragmática-formal, que apenas ocorre quando se tem em mente, que a razão se autoengana constantemente e que ela não pode elevar-se acima do material sensível:
Naturalmente, las ideas de la razón pura no pueden traducirse directamente desde el
lenguage de la filosofía transcendental al de la pragmática formal. Y ello no se hace
solamente estableciendo analogias. Em el curso de su transformación, las
oposiciones kantianas (constitutivo versus regulativo, transcendenal versus empírico,
inmanente versus transcendente, etc.) pierden su nitidez, ya que la
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destranscendentalización implica una interveción pronfunda em a arquitectura de los
supuestos fundamentales. A la luz de estos nexos genealógicos descubrimos también
aquelles puntos cruciales enlos que la filosofía analítica repudia la herencia de las
ideas kantianas de razón17.
A filosofia analítica absorve Kant e também o repudia e chega a uma consensual
descrição normativa das práticas lingüísticas comuns a todos os falantes. Todavia,
Habermas se utiliza do arcabouço teórico kantiano para fundamentar a racio nalidade
comunicativa livre dos pressupostos transcendentais, mas com uma sobrecarga na
credibilidade do entendimento dos sujeitos como um novo tipo de leitura idealizante do
apriorismo kantiano. Para realizar tal destranscendentalização, ele substitui a i déia
cosmológica do mundo, inerente à razão crítica kantiana, pela suposição pragmático formal de mundo objetivo, de modo que o falante pertencente a contextos estruturados
por meio da linguagem, da cognição e da ação, que no caminho do interesse da razão, não
recusa à emancipação. Outrora temos em Kant a idéia da unidade cosmológica do mundo
que pertence à razão teórica que, imbuída pelo próprio interesse da razão, tem a função
heurística 18 de conduzir pelo um uso hipotético da razão 19 o progresso do conhecimento
17
“Naturalmente, as idéias da razão pura não podem se traduzir diretamente da linguagem da filosofia
transcendental ao da pragmática formal. E ela não se faz somente estabelecendo analogias. No curso de sua
transformação, as oposições kantianas (constitutivo versus regulativo, transcendental versus empírico, imanente
versus transcendente, etc.) perderam sua nitidez, já que a destranscendentalização implica uma intervenção
profunda na arquitetura dos supostos fundamentais. À luz desses nexos genealógicos, descobrimos também
aqueles pontos cruciais que a filosofia analítica repudia na herança das idéias kantianas de razão” (KHD, 2006,
p. 36).
18
Em Kant a função heurística tem mais que a condição de desenvolvimento de hipóteses. Em Kant ela assume a
função de atribuir validade às idéias e conceitos.
19
O uso hipotético da razão esta ligada diretamente com o uso dos imperativos que está identificado em Kant
com a noção de dever (Sollen). Os imperativos são hipotéticos e categóricos. O imperativo hipotético ordena
uma ação que é boa relativamente a um objetivo possível ou real. No primeiro caso, ele é um princípio
problematica-menteprático; no segundo caso, é um princípio assertivamente prático. O imperativo categórico
ordena uma ação que é boa em si mesma, por si mesma objetivamente necessária, sendo, portanto um princípio
apoditicamente prático. ‘Os imperativos problematicamente práticos são os de habilidade (p. ex., as prescrições
de um médico). Os imperativos assertivamente práticos são os da prudência: seu objetivo é a felicidade. Os
imperativos categóricos são os da moralidade. Os primeiros poderiam denominar-se imperativos técnicos ou
regras, os segundos, imperativos pragmáticos ou conselhos-, os terceiros são imperativo morais ou leis da
moralidade (Grundlegung, cit., II). Essas observações de Kant foram sobejamente aceitas na filosofia moderna e
contemporânea. Isto não quer dizer que a ética kantiana do dever também tenha sido tão aceita, sobretudo na
forma proposta por Kant (v. ÉTICA). O problema de poder ou não considerar as normas morais como imperativos
é fundamental e muitas vezes teve resposta negativa. Toda a tradição utilitarista constitui um exemplo de
semelhante solução negativa. A ética de Bergson é outro exemplo. Conceber a norma moral como imperativo
(ou dever) significa julgar, como Kant, que ela seja um "fato da razão" um sic volo sic íubeo (Crít. R. Pratica,
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empírico. Kant, na visão habermasiana, fala de um uso hipotético da razão, imersa numa
concepção antecipada e totalizante do conjunto de objetos da experiência possível, que
não é uma condição para a concepção do objeto como conhecimento, porém é incapaz na
tarefa de guia do conhecimento do mesmo. Esse uso excessivo e redundante, além de
apodítico, da razão kantiana é identificado por Habermas com o elemento transcendental
que, segundo ele, está além do alcance da experiência possível. A partir do mun do
objetivo no lugar do conceito kantiano que contrapõe mundo sensível e inteligível,
surgem algumas conseqüências: a substituição de um idealismo transcendental por um
tipo de realismo interno, a função regulativa do conceito de verdade, e a referência à
inserção ao contexto do mundo da vida 20. Essas conseqüências decorrem do fato de
Habermas adotar a idéia cosmológica do mundo, mas sem os problemas que a noção de
transcendental imbui ao conceito. Não obstante, Kant, admite a razão como
interdependente da diferença transcendental entre mundo sensível ou exterior e mundo
inteligível ou interior, que é absorvida pela ontologia, na diferença entre “ser e ente” 21. O
mundo objetivo já estava sugerido na suposição kantiana de mundo exterior identificado
com os objetos, coisas ou acontecimentos, que além de ser mantido na suposição
pragmática habermasiana, são respectivamente reinterpretados em mundo objetivo que
corresponde aos objetos e um mundo subjetivo que abarca todas as vivências de um
agente, somadas a sua condição cognitiva particular. Porém, abandona-se o uso do
transcendental relativo ao mundo inteligível, as categorias do entendimento, o tempo e o
espaço como elementos regulativos de tais pressupostos kantianos. Visto isso, Habermas,
enxerga que todas as tentativas de reconstruir o a priori material do significado dos
objetos possíveis da experiência tem recaído no insucesso. Em decorrência desse fato, a
diferenciação entre razão [Vernunft] e entendimento [Verstand], ou entre razão crítica e
razão prática, ou ainda, entre mundo sensível e inteligível, são reinterpretadas e
cap. I, § 7, Escol.): coisa que nem todos se mostram dispostos a admitir’. Conf. Abbagnano, Nicola. Dicionário
de filosofia / Nicola Abbagnano. Trad. Alfredo Bosi. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 557.
20
KHD, 2006, p. 36-37.
21
Segundo Habermas, Heidegger admite essas apropriações da filosofia kantiana onde equipara ser e ente com a
idéia sensível de mundo e intramundo em Kant. Conf. KHD, 2006, p. 38.
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adequadas
à
teoria
do
agir
comunicativo,
para
fundamentar
uma
razão
destranscendentalizada, mas que se assenta numa proposta de resgate do idealismo
alemão. Por isso, o conceito de mundo transmuta-se na teoria de Habermas norteado na
prática lingüística, que obriga os falantes à suposição pragmático-formal de um mundo
objetivo comum. O mundo objetivo se perfaz numa idéia constitutiva e não regulativa,
em que o conceito de mundo permanece, pelo contrário, formal. Diante da perspectiva de
um mundo da vida 22 comum a todos, no lugar do idealismo transcendental, no qual os
objetos da experiência se apresentam para os sujeitos na condição de um mundo de
aparências, Habermas insere um tipo de realismo interno, em que os falantes utilizam sua
capacidade de comunicação, e são dotados da aptidão de expressar enunciados
verdadeiros numa linguagem que é sempre “unsere Sprache”. Habermas afirma que, o
mundo que apreendemos como totalidade dos objetos, e não como a totalidade de fatos,
não deve ser confundido com a realidade, que precisa ser considerada em vista de tudo
que puder ser enunciado no sentido de verdadeiro. De tal forma, a função regulativa do
conceito de verdade nunca deve ser representada como um exemplo do modelo
reprensentacionista do conhecimento, ou seja, não pode apenas identificar -se por meio da
existência dos objetos no mundo. Já em Conhecimento e Interesse, Habermas, averigua a
oposição de Pierce contra a verdade como correspondência, e com essa outra perfectiva
da função regulativa da verdade abandona também a distinção kantiana entre aparência e
22
Na tentativa de destranscendentalização da razão, Habermas, afirma que os agentes sociais compreendem o
mundo social como a totalidade das relações interpessoais legitimadas e reguladas por normas. Segundo
Habermas, essa é a certificação fundamental para se poder completar a arquitetônica dos mundos. “Por causa da
autoridade epistêmica, que um falante detém para as expressões verdadeiras de cada uma das vivências,
delimitamos um mundo interior, em relação ao mundo objetivo e ao mundo social” (Idem, 2006, p. 60-63). Por
isso, dizemos que Habermas mantém a noção de mundo objetivo em Kant, mas se atenta que os falantes têm
vivências particulares fora de um mundo social articulado, e como essas vivências são certamente subjetivas, não
precisam estar identificadas com dados objetivos ou expectativas normativas inerente ao mundo social. “O
mundo subjetivo se determina muito mais negativamente como a totalidade do que nem se apresenta no mundo
objetivo, nem vale no mundo social ou encontra reconhecimento intersubjetivo”(Idem, ibidem). Noutras palavras
o mundo subjetivo abarca todas as vivências que um falante pode fazer, quando realiza o uso expressivo de
enunciados em primeira pessoa. O mundo social é o lócus de vigência das normas, do direito, da moral, e
fazendo uma analogia a Kant, dos costumes. O um mundo objetivo comum, que tem sua objetividade
assegurada, porque está dado a todos nos como idêntico e está assegurado na prática lingüística como um
sistema de referência convencionado, isto é, “[...] assegura a qualquer falante a antecipação formal de possíveis
objetos de referência” (Ibidem, 2006, p. 39).
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coisa em si. Aqui, na sua tarefa de destranscendentalização, é utilizada a diferenciação
realizada por Pierce, na qual a realidade está no campo prático e se apresenta indiferente
a linguagem ou a existência. Nisso a realidade ou a verdade não correspondem aos
objetos, como no idealismo transcendental que concebe os objetos na condição de uma
realidade imutável para os sujeitos 23. No realismo interno, os agentes se deparam com um
mundo objetivo que não os impõe a linguagem, pois, são os falantes que por uma
comunicação podem formular enunciados dos quais surgem a faticidade dos mesmos,
contanto que esse mundo objetivo que supomos enquanto totalidade dos objetos, não dos
fatos, não seja confundido com a realidade, isso é, com a capacidade dos falantes de
enunciar a verdade. Do ponto de vista de Habermas, experiências e juízos, quaisquer que
sejam, estão vinculados a uma prática comunicativa comum a todos os falantes inseridos
na realidade comum ao mundo objetivo. “Ambos conceptos, mundo e realidad, expresan
totalidades, pero sólo el concepto de realidade, gracias a su conexión interna con el
concepto de verdade, permite emparejarse con las ideas regulativas de razón” 24. Em
Conhecimento e Interesse, inobstante Habermas apontar que na “lógica da pesquisa
científica” de Pierce há uma teoria que rompe com o objetualismo positivista e que
pretendia romper com o apriorismo kantiano, avista que a destranscendentalização não
era efetiva, e que novos pressupostos deveriam ser levantados quanto ao caráter da
validade da verdade dessa lógica. Para Habermas, isso decorre do fato que, quer seja em
Kant, quer seja em Pierce, podemos verificar um tipo de idéia regulativa: em Kant,
quando o mesmo pergunta “[...] por las condiciones de posibilidad de la validez
intersubjetiva del conocimiento verdadero” 25, vincula os fatos da experiência também a
uma orientação para a verdade; em Pierce, com a concepção da totalidade dos f atos
verificáveis na da lógica de pesquisa, que serve de condutor epistêmico para o progresso
24
Ambos os conceitos, mundo e realidade, espessam totalidades, mas somente o conceito de realidade, graças a
sua conexão interna com o conceito de verdade, permite emparelhar se com as idéias regulativas de razão
(Ibidem, 2006, p. 41).
25
[...] pelas condições de possibilidade da validade intersubjetiva no conhecimento verdadeiro (KHD, 2006, p.
40). Ainda, Habermas atenta que para: ‘Kant, a verdade não nenhuma idéia e não está tampouco relacionada com
as idéias da razão, porque as condições transcendentais de objetividade da experiência deve explicar ao mesmo
tempo a verdade dos juízos da experiência (Idem, ibidem).
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científico e do seu intrínseco conceito de realidade, acabou também por orientar esse
conceito para a questão da verdade. Além disso, criou como em Kant, a idéia de um
tribunal supremo da razão e dessa maneira: “Por mais que a herança do esclarecimento
(Aufklärung) nos obrigue a colocar a razão como crivo do conhecimento legítimo, ela não
pode negar as condições contingentes na qual deve exercer sua crítica” 26. Habermas,
define o sentido da verdade pragmática com o foco voltado para uma comunidade de
investigadores idealmente ilimitada, que constitui um tipo de tribunal supremo da razão,
em que a verdade recebe o aval de ser o resultado dos consensos, mediante condiç ões
ideais de conhecimento entre os participantes no processo auto-corretivo da
investigação 27. Por essa razão, Habermas considera que Kant, com o intuito de crítica ao
uso apodítico da razão, como era feito pela metafísica, acabou por conceber um uso
excessivo do elemento transcendental que continuou sendo feito, até depois da tentativa
da total destranscendentalização, cujo conhecimento verdadeiro é tangível à justificação
discursiva. Nesse sentido, a validade das afirmações apesar de ser orientada por um
método epistêmico instrumentalista, deveria ser resolvida consensualmente. Em
Conhecimento e Interesse, antes da tentativa de uma razão sem transcendência, Habermas
reconhece em Pierce, uma concepção consensual da verdade. Entretanto, ele não se
desprende dos conceitos de aparência e coisa em si, pois, ambos são respectivamente
substituídos pela diferença entre verdade e aceitabilidade racional. Desde esse prisma,
somente afirmações podem ser verdadeiras e teorias devem ser adequadas ou aceitáveis
racionalmente, desde que se leve em consideração que a adequação das teorias decorre da
verdade das afirmações. Ainda assim, após a destranscendentalização perdura uma lacuna
entre o que é verdadeiro para todos e o que é aceitável racionalmente. Este hiato
permanece existindo definitivamente no interior dos discursos, devido os enunciados
emergirem num mundo da vida nos quais os falantes norteados pelo alcance das
26
DURÃO, 1996, p. 143.
Define el sentido de la verdad como una anticipación de aquel consenso al que, em condiciones ideaes de
conocimiento, todos los participantes en el proceso auto correctico de investigación deberían llegar. La
comunidad de investigadores idealmente ilimitada constituye el foro para el tribunal supremo de la razón (KHD,
2006, p. 40).
27
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pretensões de validade lhe conferirem o caráter da aceitabilidade e do que é verdade, isto
é, a afirmação da ação lingüística reconhecida como verdadeira. Portanto, os agentes
capazes de linguagem e ação, orientam-se inseridos no mundo da vida, que revelam sob a
ótica da tradição e dos costumes os seus significados particulares. Os participantes da
comunicação têm o potencial de entender-se para além das vigentes fronteiras do mundo
da vida, e com o olhar voltado no mundo objetivo comum a todos, direcionam -se em
busca pelas pretensões de validade de seus enunciados carregados de subjetividade, mas
compartilhados intersubjetivamente 28. Esses atores sociais, por meio da capacidade da
ação e da linguagem experimentam tudo no mundo, não na condição de objetos que
sofrem a ação, mas como agentes que a realizam, donde é possível averiguar a co -relação
entre a objetividade do mundo com a intersubjetividade do entendimento, que condiciona
os esclarecimentos sobre as mediações lingüísticas. A suposição pragmática de um
mundo objetivo comum entre os agentes do discurso, conduz a destranscendentalização
para um novo tipo de idealização diferente da kantiana, mas em vistas dos seus
pressupostos. Habermas mediante a comparação com os pressupostos da filosofia de
Kant, concebe um novo pragmatismo “kantiano”, com o qual pretende distanciar-se do
kantismo por substituir o idealismo transcendental por um realismo interno e, acerca
desse argumento no que tange à descentralização, dedica-se a estabelecer os pontos de
uma comparação direta entre a suposição pragmática da imputabilidade com a idéia de
liberdade kantiana. Essa analogia, assume o importante papel de explicitar de vez a
questão da orientação para a verdade, que deve condicionar os enunciados do discurso,
isto é, eles se orientam por meio dela atingindo apenas a condição da aceitabilidade
racional, mas nunca atingirão essa verdade como fundamento absoluto. Com esse intuito,
Habermas diz que a liberdade kantiana só é realizável tendo em vista a lei moral e a sua
relação direta com o imperativo categórico, que conduz a razão a tornar-se prática
28
Los participantes en la comunicación pueden entenderse por encima de la fronteras de mundos de la vida
divergentes, ya que com la mirada puesta en un mundo objetivo común se orietan por la pretensión de verdad de
sus enunciados”. (Trad. K. S. ) Os participantes na comunicação podem entender-se por cima das fronteiras dos
mundos da vida divergentes, já que com mira posta num mundo objetivo comum e se orientam pelas pretensões
de validade de seus enunciados (Idem, 2006, p. 43).
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consoante com a idéia de que o querer deve ser orientado segundo princípios e que
precisa ser motivado por bons fundamentos, isto é, a boa vontade tem que estar
manifestada nessa ação. Sob essa ótica, são definidos os princípios políticos e jurídicos
coerentes com a definição kantiana da liberdade como finita. Segundo Kant, a liberdade é
“[...] faculdade de não obedecer a outras leis externas a não ser as leis as quais eu possa
dar meu assentimento” 29. Disso, infere Habermas, a liberdade pertencente então à esfera
da razão prática e o entendimento apenas conduz a ação que está de acordo com a
capacidade do sujeito cognoscente: por meio do uso de sua subjetividade liga a sua
vontade à elaboração de máximas. Por isso, o sujeito em Kant guia suas ações conforme
o dever [Sollen], visando atingir máximas que são avaliadas pelo imperativo categórico.
Dessa maneira, Habermas indica que o modelo de liberdade, como expresso em Kant, se
encontra enredado em um duplo sentido. Por um lado, o sentido categórico de obrigação
análoga à realização do reino-dos-fins, já que por meio de suas ações o sujeito é dotado
da capacidade legisladora porque reconhece o a priori da liberdade: todos os seres
racionais, em vista do ideal de reino-dos-fins, relacionam-se por meio de leis comuns, e
nunca ao se relacionarem uns com os outros, têm-se como meios, mas como fins. Por
outro lado, o sentido do transcendental está embasado na certeza de que o reino -dos-fins
só pode ser fomentado em nossas atitudes morais. Sendo assim, Kant no que diz respeito
à liberdade, limita-se a razões prático-ténicas e prático-morais, porém, Habermas quer
estendê-la à razão comunicativa. Com isso, entra em jogo um conjunto de novos aspectos
que só são possíveis em vistas desse desdobramento habermasiano. Assim, Habermas
certifica-se de que a imputabilidade não é mensurável apenas pela ação guiada pela
moralidade ou pela racionalidade, mas pela capacidade de um ator conduzir sua ação a
pretensões de validade. Ele admite isso por ter verificado uma incoerência contrafática
mediante os fundamentos kantianos: os sujeitos, por um
lado, devem agir
autonomamente, mas por outro lado, estão submetidos aos conteúdos morais ou legais
comprometendo-se numa suposição normativa, na qual a hegemonia de sua ação livre se
compromete. Para Habermas, a liberdade é inerente a uma prática cotidiana na qual
29
KANT, 2002, p. 128.
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encontram-se muitas vezes afirmações ou ações que são guiadas, diferentemente, que
pelos bons motivos. Com a inserção da teoria da ação comunicativa, a imputabilidade
deve ser apreciada sobre um ponto de vista empírico, em que a idéia de liberdade
kantiana se expressa enquanto presumivelmente normativa:
Siguindo a Kant, los seres racionales se entienden como actores que actúan por
buenas razones. Com respecto a la acción moral poseen um saber a priori de la
posobilidad de realizar la idéia de liberdad. También em la acción comunicativa
pertimos tacitamente del hecho de que todos los participantes son actores
responsables. Forma parte de la autocomprensión de los sujetos que actúan
comunicativametne que tomem posiciones racionalmente motivadas respecto a las
pretensiones de validez; los actores presuponen mutuamente que actúan
efectivamente por razones justificables por medios racionales30.
O que Habermas realiza é uma transferência, na qual o sujeito cognoscente
kantiano passa a ser o agente comunicativo, e a totalidade cosmológica do mundo
transmuta-se no mundo da vida articulado lingüisticamente na exigência de racionalidade
que assume o papel de saber refutável e, não como em outrora, na filosofia da
consciência, um saber a priori. No sentido habermasiano, a racionalidade funciona como
um pressuposto pragmático que mediante a intersubjetividade — é a configuração da
ocasião em que os atores sofrem experiências no mundo da vida simultaneamente entre
si, partilhando seus respectivos mundos — atualiza suas potencialidades. Ademais, os
falantes contraem um tipo de relação interpessoal pela qual se entendem sobre algo no
mundo objetivo, em que essa pressuposição continua a carregar o sentido transcendental
que não pode ser negado, assim como a racionalidade que daí emana. Esse sentido
continua transcendental, já que não pode ser provado na experiência e, mesmo assim se
faz necessário, pois obriga os falantes a projetar um sistema comum sobre os quais
constroem suas opiniões ao passo que influenciam nesse mundo. Os atores não precisam
ser tão capazes de influenciar como de condicionar a ação, para os questionamentos no
que tange as pretensões de validez criticáveis, orientando sua própria ação na busca de
30
Seguindo a Kant, os seres racionais se entendem como atores que atuam por boas razões. Com respeito à ação
moral possuem um saber a priori da possibilidade de realizar a idéia de liberdade. Também na ação comunicativa
partimos tacitamente do feito de que todos os participantes são atores responsáveis. Forma parte da auto
compreensão dos sujeitos que atuam comunicativamente que tomam posições racionalmente motivadas a
respeito das pretensões de validade; os atores pressupõem mutuamente que atuam efetivamente por razões
justificáveis por meios racionais (KHD, 2006, p. 43).
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validade. Nosso contato com o mundo por ser mediado lingüisticamente, por meio do
falar e do agir, tem a obrigação de atingir a validade que, aliás, ocorre no plano das
idealizações próxima ao modelo do kantismo. Isso decorre do fato da intersubjetividade
estar entrelaçada com o entendimento sobre algo no mundo da vida, nos quais os agentes
chegam reflexivamente a posições partilhadas ou consensos públicos. Entretanto,
atingiram-se apenas as condições de racionalidade aceitáveis, em que a verdade está
como uma condição ideal sine qua non, que corresponde ao papel de orientadora das
pretensões de validade. Esmiuçadamente, os agentes almejam a verdade e na busca por
estabelecer validade aos seus enunciados, somente conseguem atingir condições de
racionalidade aceitáveis. A partir dessa verificação, a oposição habermasiana à noção
epistêmica do conceito de verdade assentada em Pierce, é totalmente rompida. Com esse
argumento, Habermas, entende que os agentes que promovem os enunciados promovem
afirmações errôneas mesmo quanto às afirmam como corretas, pois são seres falíveis e
não tem como alcançar índices de verdade a não ser pelo discurso racional. Pois, a
verdade na teoria habermasiana fica assentada na aceitabilidade racional e está aberta,
para que no futuro, possa ter ininterruptamente questionada sua pretensão de validade.
Nos discursos as pretensões de validade são satisfeitas temporariamente, isso é, podem
num enunciado, devido às alterações das condições do conhecimento epistêmico, um dia
serem questionadas e até mesmo serem sobrepostas por outras validades. Por isso, os
discursos estão sempre abertos e os oponentes necessitam descentrar suas perspectivas de
interpretação e levar em conta as objeções relevantes, que surgem no decurso de novas
circunstâncias epistêmicas, de outros entendimentos ampliados em torno da sociedade,
somados a novos tempos históricos e competências factuais. Em relação à validade
normativa, a aceitabilidade racional, não substitui ou equivale ao conceito de verdade. A
aceitabilidade racional é aplicada a discursos que procuram a sua aceitação diante de um
público. Para que isso ocorra, essas expressões culturais devem vir tematizadas de acordo
com padrões intrínsecos a racionalidade, uma vez que os atores sociais orientam sua
forma de agir no mundo por exigências de validez que constituem sua imputabilidade.
Contudo, Habermas, na tentativa de revisão da destranscendentalização da razão,
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determina no que tange as normas que orientam o mundo social, que o que é de sumária
importância não é a imputabilidade, mas a questão da imparcialidade. Com isso, se
abandona parcialmente a noção de aceitabilidade racional, porque aqui o que entra em
jogo é a certificação discursiva das exigências de validade cognitivas, em que se
sobrepõe a questão da universalidade em relação às condições da validade do discurso e a
aprovação de um consenso. Esse fato também já estava preconizado na filosofia prática
kantiana na qual:
Únicamente los imperativos morales ( y las normas jurídicas que, como por ejemplo
los derechos humanos, solo se fundamentan moralemente) pretenden, como las
afirmaciones, validez absoluta, es decir; reconocimiento universal. Ello explica la
exigência de Kant de que los imperativos morales válidos deben ser
universalizables31.
Entretanto, não se pode subsumir essa assertiva kantiana sem adequá-la a ação
comunicativa e aos pressupostos pragmáticos que dela derivam. Haja vista que, para
Habermas, se concordarmos com a capacidade de todas as pessoas de julgar e atuar
moralmente, seria o mesmo que admitir o erro já indicado na filosofia prática de Kant. O
processo moral na ação comunicativa tem suas bases indicadas na filosofia de Piaget, (os
níveis morais de Kolhberg — pré-convencional convencional e pós-convencional), em
que os agentes dos discursos tencionam se descentrar de suas perspectivas particulares
para uma referente ao mundo da vida constituído, de modo que resolvam e julguem
consensualmente mesmo situações controversas, porém sempre em vista dos princípios
racionais do discurso como orientador de suas decisões. Segundo Habermas, os
participantes da argumentação possuem a incumbência de se guiar por condições de
universalismo igualitário e, portanto, a validade da norma consiste no reconhecimento
universal que dela emana. Essa dinâmica é construída na prática comum a todos que
agem e falam, sendo capazes de levantar originais objeções perante um público cada vez
mais especializado. Contudo, esses agentes ou acatam o consenso ou levantam novos
argumentos, pois desfrutam da potencialidade de se descentrarem de suas perspectivas
31
E ainda: Unicamente os imperativos morais (e as normas jurídicas que, como por exemplo, os direitos
humanos, só se fundamentam moralmente) pretendem como as afirmações, validade absoluta, é dizer;
reconhecimento universal. Ele explica a exigência de Kant de que os imperativos morais válidos devem ser
universalizeis (Idem, 2006, p. 54).
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particulares de interpretação. Daí não se tratar da exigência da verdade que conduz para a
aceitabilidade racional e, sim, da construção do uso competente de normas morais e do
direito.
La validez de tales normas consiste en el reconocimiento universal que las normas
merecen. [...] Pero si la correción o retitude moral, a diferencia de la verdade, agota
su sentido en la aceptabilidad racional, nuestras convicciones morales deben quedar
confiadas, finalmente, al potencial crítico de la autosuperación ya del
descentramiento; un potencial que está incorporado—junto con la inquietud que se
deriva de aquella anticipación idealizante — en la práctica de la argumentación y en
la autocompresión de los que participan en ella 32.
O que Habermas quer denunciar é o seu retorno a Kant, porém a um Kant
revisado por meio das ferramentas da pragmática, pelo que teria origem um pragmatismo
kantiano que aponta para critérios de imputabilidade e imparcialidade, além de condições
de um aprendizado moral, que tem como orientação a filosofia prática kantiana, a
responsabilidade de guiar suas ações por máximas que pretendam atingir a
universalidade. Entretanto, em Kant, o agir racional era uma obrigação do sujeito
cognitivo que tinha que orientar-se por princípios universais a priori do conhecimento. Já
na tradução lingüística e procedimental, em vista da pragmática que acompanha toda a
teoria do agir comunicativo, Habermas a delineia análoga ao exercício da liberdade, ou
amparada no princípio da não-coação. Nesse sentido, ele, na tarefa de revisão do
kantismo, pretende adotar a versão universalista dos pragmatistas adequando à ação
comunicativa e, acaba por conceber um universalismo igualitário inspirado em Mead.
Assim sendo, volta-se, sobretudo para as condições que exige satisfação da validade no
interior discursivo, mas que precisam respeitar algumas condições, a saber: publicidade e
inclusão; igualdade de direitos comunicativos, exclusão de engano e ilusão; e a não coação. Em busca de um conceito mais amplo de razão e devido à diferenciação entre
objetividade e verdade, Habermas, em referência às formas de argumentação, delineia
três dimensões relativas à validade dos atos de fala, a saber: dimensão teórica (diz
32
A validade de tais normas consiste no reconhecimento universal que as normas merecem. [...] mas se da
correção ou retitude moral, a diferença da verdade, esgota seu sentido na aceitabilidade racional, nossas
convicções morais devem ficar confiadas, finalmente, ao potencial crítico da auto-superação já do
descentramento; um potencial que está incorporado—junto com da inquietude que se deriva daquela antecipação
idealizante — na prática da argumentação e na auto-compressão dos que participam nela (Ibidem, 2006, p. 59).
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respeito à pretensão de verdade), dimensão prática (concerne à justeza normativa),
dimensão terapêutica (relativa à veracidade subjetiva). Compreende-se assim que as
formas típicas de argumentação têm relação com um processo de aprendizagem cuja
racionalidade imanente a ele expressa-se ora no âmbito cognitivo-instrumental, ora no
prático-moral, ora no estético-expressivo. E a crítica total à razão tem por base
justamente a preponderância do âmbito cognitivo-instrumental sobre os demais. A essa
descrença na razão, Habermas opõe a interpretação da modernidade como projeto
inacabado; a cisão da razão e decorrente fragmentação de suas expressões não podem ser
absolutizadas. A reconstrução da razão implica na sustentação de uma razão não absoluta
ou unitária, mas com essas suas três faces se mantendo interdependentes numa
multiplicidade de vozes que se fazem valer mediante discursos baseados nas pretensões
de validade. Portanto, ele avista um universalismo amplamente idealizador, no qual o
ponto de oposição, o do particularismo de cada agente concernido no discurso, é diluído
por meio do processo argumentativo carregado de intersubjetividade em que torna
exeqüível o entendimento. Logo, é por meio da comunicação lingüística que na ação se
estabelece as pressuposições ideais na busca de uma ação orientada ao entendimento.
Seria uma idéia regulativa, para o domínio do agir comunicativo, dessa racionalidade
descentrada, mais imbuída por um a priori do entendimento, que viabiliza a construção de
um novo sentido para o mundo. Para Habermas, nessa revisão do tran scendentalismo, o
que é plausível, é a atribuição dessa categoria no que tange a estruturas cognitivas do
entendimento. Então, é realizada uma investigação transcendental dos processos do
entendimento na experiência comunicativa, em que ao compreender a ex pectativa
enunciada por outro falante na situação de participante num processo de comunicação, o
ouvinte passa por essa experiência. Habermas, em O que é Pragmática Universal 33, já
levantava questionamentos sobre as questões aqui mencionadas, e considerava que as
expressões concretas corresponderiam aos objetos empíricos e as expressões gerais aos
objetos gerais. Nesse sentido, se pudermos analisar o a priori de conceitos de objetos
33
HABERMAS, J. O que é pragmática Universal?(1976). In: Racionalidade e Comunicação. Trad. Paulo
Rodrigues. Lisboa: Edições 70, 2002, aqui, p. 43.
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gerais, deveríamos também poder analisar a priori os nossos conceitos de expressões
gerais. O que Habermas propõe é: o entendimento mútuo [Verständigund], como um tipo
à priori pragmático inerente a condição do agir comunicativo.
El concepto de entendimiento (Verständigung) remite a un acuerdo racionalmente
motivado alcanzado entre los participantes, que se mide por pretensiones de validez
susceptibles de crítica. Las pretensiones de validez (verdad preposicional, rectitud
normativa y veracidad expresiva) caracterizan diversas categorías de un saber que se
encarna en manifestaciones o emisiones simbólicas34.
É sob a luz desses argumentos kantianos, relidos a partir de um prisma
destranscendentalizado, que Habermas concebe Direito e Democracia: Entre Facticidade
e Validade, 35 obra na qual, alcança uma teorização mais coerente do conceito de esfera
pública, justamente por já dispor de uma noção de discurso e de razão menos utópica.
Nessa ordem, uma avaliação detalhada da possibilidade da emancipação da racionalidade
por meio do uso da razão comunicativa, inserida na filosofia de Habermas, apenas pode
ser realizada mediante o entendimento da esfera pública organizada, o que exige o
resgate do itinerário percorrido em Mudança Estrutural da Esfera Pública, comparandoo com suas reformulações presentes em Direito e Democracia: entre Facticidade e
Validade. Habermas aí tem, como foco de atenção, primeiramente a possibilidade de
defender a coerção legítima do melhor argumento nas decisões do âmbito político e
jurídico, no estado de direito, na tentativa de resgate da potencialidade de concreti zação
da Aufklärung, além de lhe conferir uma nova força propulsora, e, a partir disso, instaurar
os potenciais emancipadores da racionalidade que outrora foram condenados ao limbo.
Contudo, já em Mudança Estrutural da Esfera Pública, estavam presentes, sutilmente, os
pressupostos da Aufklärung kantiana e do uso público da razão, base na qual está
assentada a teoria da racionalidade comunicativa habermasiana.
34
O conceito de entendimento (Verständigung) remete a um acordo racionalmente motivado alcançado entre os
participantes, que se mede por pretensões de validade susceptíveis de crítica. As pretensões de validade (verdade
preposicional, retitude normativa e veracidade expressiva) caracterizam diversas categorias de um saber que se
encarna em manifestações ou emissões simbólicas (TAC, 1992, v.1, p. 110).
35
Habermas, J. Direito e Democracia: entre facticidade e validade. Trad. Flávio Beno Siebeneichler – Rio de
Janeiro: tempo brasileiro, 2003. Volumes I, II = FG.
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A REDESCRIÇÃO COMO EXERCÍCIO DA DEMOCRACIA E DA
SOLIDARIEDADE NA FILOSOFIA DE RICHARD RORTY – Altair Alberto Fávero
UPF/CAPES - Pós-doc UAEM/México
[email protected]
Resumo: A presente comunicação almeja aprofundar a redescrição dos conceitos de
solidariedade e democracia na perspectiva da filosofia de Richard Rorty. Tanto a
democracia quanto a solidariedade, apesar de serem termos recorrentes, tornaram -se
palavras “nobres” e frequentemente utilizadas nos discursos para convencer-nos de que
uma ação, ou uma determinada prática, ou uma tomada de decisão, ou, ainda, um modo
de ser de um determinado dirigente ou de uma pessoa merece nosso respeito e
consideração, pois trata-se de uma “ação solidária”, ou de uma “prática democrática e
solidária”, ou, ainda, de uma “tomada de decisão democrática ancorada no princípio da
solidariedade”.
Palavras-chave: Redescrição. Pragmatismo. Democracia. Rorty.
O termo “solidariedade” vem de longa data e possui muitos sentidos. Em seu
livro O conteúdo moral do agir comunicativo, Jovino Pizzi (2005, p.221-229) faz uma
rápida reconstrução histórica do termo “solidariedade”. Pizzi destaca que o termo possui,
pelo menos, três raízes distintas: a) no direito romano; b) nos pensadores da Antigüidade
Clássica – Cícero e Sêneca; c) na tradição cristã. Cada uma dessas raízes contribui para a
ideia moderna de solidariedade. No pensamento moderno há uma atitude defensiva com
relação ao termo “solidariedade”. Segundo Pizzi (2005, p.226ss), o termo só ressurge no
início do século XIX, não mais ligado à ideia de religiosidade, mas vinculado aos ideais
políticos e a uma versão “secularizada da fraternidade”. A solidariedade é concebida,
nesta nova versão, como um “escudo antiindividualista”, encarregado de defender o
indivíduo perante a tendência natural ao egoísmo. Nesse contexto, vários socialistas
utópicos, movimentos de trabalhadores, Estados nacionais e partidos políticos passam a
ver na “solidariedade” o termo para designar “confiança e proteção”. No século XX o
termo “solidariedade”, além de ter um amplo “uso” no cotidiano, ocupou um importante
espaço nos debates filosóficos. Além de Rorty, outros filósofos, como Habermas, Adela
Cortina, Hans Joas, John Rawls, Ernest Tugendhat, os “utilitaristas”, os “comunitaristas”,
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os “universalistas” etc., fizeram do termo tema de suas “acirradas” discussões. Conforme
já mencionei no início desse tópico, concentrar-me-ei neste ponto na investigação no
modo como Rorty articula a solidariedade em sua “utopia liberal” para, posteriormente,
tratar da mesma maneira o conceito de democracia e sua vinculação com a ideia de
“redescrição”. “A maneira filosófica tradicional de explicar aquilo que entendemos por
‘solidariedade humana’”, diz Rorty, “é dizer que há algo dentro de cada um de nós – a
nossa humanidade essencial – que ressoa com a presença dessa mesma coisa em outros
seres humanos” (1992, p.235). Segundo essa concepção filosófica tradicional, a
solidariedade seria um dos ingredientes que compõem a “natureza humana”, ou seja, há
em cada ser humano algo de essencial que o impulsiona a “ser solidário”, de modo que
todas as vezes que alguém decide cometer uma crueldade torna-se “desumano”. Ao
propor que tanto a “linguagem” quanto a “individualidade”, assim como a “comunidade
liberal”, são contingências, Rorty associa-se a um conjunto de outros filósofos
contemporâneos que negam a possibilidade de existir uma “natureza humana”
preestabelecida, ou seja, o comportamento de um ser humano (ser solidário ou ser cruel,
por exemplo) depende das circunstâncias históricas e de um consenso passageiro, não de
algo que está para além da história e das instituições. Com isso Rorty não está propondo
que valores importantes da nossa vida sejam simplesmente abandonados. “Uma crença
pode continuar a reger a ação, pode-se continuar a considerar que vale a pena morrer por
ela”, defende ele como premissa, “mesmo entre pessoas que estão plenamente
conscientes de que essa crença não é causada por nada de mais profundo do que as
circunstâncias históricas contingentes” (1992, p.236). Rorty vincula sua ideia de
solidariedade à tese de Wilfrid Sellars, segundo a qual a moralidade é questão daquilo
que ele chama de “intenções-nós” (we-intentions). No que consiste essa tese? Trata-se de
uma moralidade ancorada não mais num “imperativo categórico” ou em princípios gerais,
ou, ainda, numa “voz divina de nós próprios”, mas é uma moralidade ancorada “na voz
de nós próprios enquanto membros de uma comunidade”, enquanto falantes de uma
linguagem comum. A filosofia moral, segundo essa tese, “assume a forma da narrativa
histórica e da especulação utópica e não a da procura de princípios gerais” (1992, p.90).
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Rorty acredita que o nosso sentido de solidariedade é mais forte quando se dirige àqueles
que se identificam como sendo “um de nós”, e esclarece que o “nós” não significa a
totalidade da raça humana, mas algo “menor”, algo mais próximo. Rorty é consciente de
que essa posição vai contra a ideia de “perfeição moral” da tradição cristã, segundo a
qual devemos tratar a todos, até mesmo nossos inimigos, como nossos semelhantes; vai
contra, também, o “universalismo ético secular” proposto por Kant, para o qual nossa
obrigação moral é para com todo e qualquer “ser racional”. “A minha posição”, diz
Rorty, “implica que os sentimentos de solidariedade dependam necessariamente das
semelhanças e das diferenças que nos surjam com destaque e que tal destaque seja função
de um vocabulário final historicamente contingente” (1992, p.238). Apesar de ter essa
posição (de que a solidariedade depende do “intenções-nós”), o próprio Rorty adverte que
isso não é incompatível com a ideia de que possamos e tentemos “alargar o nosso sentido
do ‘nós’ a pessoas em que anteriormente pensávamos como ‘eles’” (1992, p.239). É essa
tentativa do “alargamento do nós” que nos possibilita pensar novos vocabulários morais,
novos tipos de relacionamento, novas utopias a serem perseguidas. É nesse sentido que a
solidariedade, na perspectiva rortiana, “emergiu como recurso retórico poderoso” (1992,
p. 239). Na avaliação de Rorty, o esforço de Kant para facilitar a evolução das
instituições democráticas e a evolução de uma consciência política cosmopolita ancorou a
moralidade na “racionalidade” e na ideia de “obrigação moral”. Ao realizar essa
operação, Kant tornou difícil aos filósofos morais perceberem o progresso moral nas
“descrições empíricas pormenorizadas”, uma vez que os sentimentos de piedade e
benevolência tornaram-se secundários em comparação ao “respeito racional”, enquanto
critério para avaliar a moralidade. A moralidade, na versão kantiana, reforça Rorty,
“tornou-se algo distinto da capacidade de notarmos e de nos identificarmos com a dor e a
humilhação” (1992, p.239). Por isso, observa ele, vários filósofos morais anglo americanos do século XX criticam a ideia de que a “razão” deva ser o componente
humano central e universal e a fonte das nossas obrigações morais. “Embora tenha sido
muito útil na criação das sociedades democráticas modernas”, diz Rorty, “é agora uma
ideia que podemos dispensar – e que se deveria dispensar, para ajudar a concretizar a
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utopia liberal” (1992, p.241). Assim, a solidariedade, nessa perspectiva rortiana, não
seria uma “obrigação moral” no sentido que a “razão” nos impõe, nem um “componente
essencial da humanidade”, nem um “princípio geral” que rege toda a humanidade, nem,
muito menos, “uma parcela de divindade presente em cada um de nós”; ao contrário
disso, a solidariedade seria algo “feito”, “produzido no decurso da história” através das
múltiplas experiências e redescrições de mundo. Para Rorty, esse modo de conceber a
solidariedade possibilitaria uma mudança radical na maneira de interpretar a frase “temos
obrigações morais para com os seres humanos”. Poderia ser vista, por exemplo, como um
meio de nos recordarmos de que podemos continuar tentando alargar tanto quanto
possível o sentido “nós”, ou seja, deveríamos tentar encontrar pessoas marginalizadas –
pessoas em que instintivamente pensamos como sendo “eles”, não “nós” – e nelas notar
certas semelhanças conosco que nos ajudassem “a criar um sentido mais expansivo da
solidariedade do que o que atualmente temos” (1992, p.243). Nesse sentido, educar para a
solidariedade significaria estarmos mais abertos para a tolerância do que obcecados pela
verdade, mais confiantes na persuasão do que na força, mais motivados pela imaginação
do que pela “razão”. Significaria, também, uma mudança no modo de pensar a própria
filosofia: a filosofia não teria mais a função de fornecer os “fundamentos de uma política
democrática”, ou de indicar a “origem dos direitos humanos naturais”; seu novo papel
seria o de estar a serviço da política democrática no sentido de possibilitar um “equilíbrio
reflexivo” entre as nossas reações instintivas a problemas contemporâneos (os desafios
atuais do nosso tempo) e os princípios gerais nos quais fomos criados (nossa herança
cultural). A posição de Rorty com relação à solidariedade ajuda-nos a compreender
melhor as razões pelas quais ele propõe “a prioridade da democracia para a filosofia”.
Com essa proposta, Rorty filia-se à tradição que liga Dewey e Rawls de que “a política
democrática” vem em primeiro lugar e de que não precisa de uma justificação filosófica
enquanto autoridade que legitime sua importância para as sociedades liberais. Que
argumentos Rorty oferece para sustentar tal proposta? Como isso se articula no conjunto
do seu pensamento? De que maneira ele concebe a democracia? Quais as implicações
dessa ideia para a educação? A estratégia utilizada por Rorty para justificar a
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preponderância da democracia sobre a filosofia ancora-se numa certa analogia com a
maneira como as sociedades liberais enfrentaram o problema da intolerância religiosa. A
tradição iluminista conseguiu desvencilhar-se do problema da intolerância religiosa e da
sua interferência nas políticas liberais estabelecendo uma separação entre questões
políticas e questões religiosas. “Os cidadãos numa democracia jeffersoniana podem ser
tão religiosos ou irreligiosos quanto quiserem, por tanto tempo quanto puderem
permanecer sem se tornar ‘fanáticos’” (1997, p.235). Não “ser fanático” significa que as
questões religiosas não podem interferir nas ações públicas, ou seja, podemos ter crenças
desde que essas não interfiram no coletivo. Mas como fica a situação quando as crenças
interferem na política pública? Como resolver a tensão entre a perfeição espiritual
(próprio das crenças de cada um) e a política pública (que diz respeito a todos)? Na
leitura de Rorty, essa tensão foi eliminada, na tradição iluminista, por uma teoria
filosófica da verdade, ou seja, por uma justificabilidade perante à humanidade como um
todo. “A ideia iluminista de ‘razões’”, diz Rorty, “corporifica a teoria de que há uma
relação entre a essência a-histórica da alma humana e a verdade moral, relação que
assegura que a discussão livre e aberta produzirá ‘uma resposta correta’ tanto para as
questões morais quanto para as questões científicas” (1997, p.236). Essa “justificação
racionalista” que produz “certeza” foi esvaecida no século XX. Essa polarização
decorrente
do
“esvaecimento”
das
justificações
racionalistas
é
central
para
compreendermos a posição rortiana, comum também a Dewey e Rawls, da “prioridade da
democracia para a filosofia”. Para ambos, a democracia liberal, apesar de necessitar de
uma “articulação filosófica”, “não ‘necessita’ de qualquer justificação filosófica” (1997,
p.238), se entendemos “filosofia, enquanto a busca pela verdade por sobre uma ordem
metafísica e moral independente” (RAWLS apud RORTY, 1997, p.241). Rawls, na
leitura de Rorty, dispensa a necessidade de haver uma justificação filosófica para a
justiça, pois a filosofia (entendida como busca da verdade) não pode prover “uma base
aproveitável para uma concepção política da justiça em uma sociedade democrática”.
Rawls não quer que as disputas sobre a natureza do ser humano, e mesmo sobre se há
uma tal coisa como a “natureza humana”, sejam misturadas com a política. Em termos
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rortianos, Rawls “quer que questões sobre a posição da existência humana ou o
significado da vida humana sejam reservados para a vida privada” (1997, p.242). Com
isso, ressalta que a defesa da “tolerância filosófica” proposta por Rawls é uma extensão
plausível da defesa da “tolerância religiosa” proposta por Jefferson e que “tanto ‘religião’
quanto ‘filosofia’ são termos protetores vagos e ambos sujeitos à redefinição persuasiva”
(1997, p.242). Essa posição de que a filosofia está permanentemente sujeita à redefinição
persuasiva está em sintonia com o que Rorty afirma no final do seu texto “A filosofia e o
futuro”, quando sugere “a utopia de um futuro humano cosmopolita”. Esse futuro não
seguiria os moldes do cosmopolitismo da Unesco, que na década de 40 silenciou perante
as atrocidades do stalinismo e que hoje continua “respeitosamente silenciosa e prudente”
diante do “fundamentalismo religioso” e dos “autocratas sanguinolentos que ainda
governam boa parte do mundo” (2000, p.139). O futuro humano cosmopolita pensado na
utopia de Rorty é traduzido na “imagem de uma democracia planetária, uma sociedade na
qual a tortura ou o fechamento de uma universidade ou um jornal nos causarão tanta
revolta se acontecerem do outro lado do mundo quanto se acontecerem em nosso país”
(2000, p.139). Se um dia tal utopia acontecer, a filosofia não terá a função de fornecer os
“fundamentos”, nem de estipular os “critérios de verdade” que venham indicar que tal
utopia se realizou, mas poderá contribuir para que isso aconteça através da persuasão.
Mesmo que se diga que a “democracia de massas” é uma invenção européia ou de que a
democracia é privilégio das nações ricas, é possível colher em cada cultura “pequenos
traços” que possam alimentar a “utopia de uma comunidade democrática planetária”.
Seria contraditório impor ou importar a democracia, assim como seria contraditório
impor ou obrigar homens e mulheres a serem livres. “Mas não é contraditório pensar em
persuadi-los a serem livres. Se nós, filósofos, ainda temos alguma função”, afirma ele,
“essa função é exatamente esse tipo de persuasão” (2000, p.141), ou seja, persuadir para
a democracia. As implicações dessa posição para a educação são imensas, pois
compreenderiam o ato educativo não mais como “o espaço sagrado do desvelamento da
verdade”, nem como “um processo revolucionário de libertação”, nem como “a
efetivação da reprodução social” ou a “materialização da razão instrumental”; o ato
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educativo seria o “espaço das contingências”, o espaço em que poderemos “redescrever”
o mundo e a nós mesmos, o espaço onde poderemos pensar e imaginar utopias que
poderão se efetivar ou não, um espaço de “conversação” e persuasão. “Num mundo
intelectual plenamente temporalizado, um mundo do qual as esperanças por certezas e
imutabilidade tenham desaparecido completamente, nós, filósofos”, diz Rorty, “nos
definimos [...] como servos da democracia” (2000, p.142). Pensar nos filósofos como
“servos da democracia” implicaria redimensionar o próprio lugar da filosofia no mundo
educacional, ou seja, sua função não seria mais a de traçar os fundamentos da educação,
mas de contribuir no processo de redescrição da própria educação.
Referências:
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A RELAÇÃO ENTRE O CONCEITO DELEUZIANO DE FILOSOFIA E A
ARTE LIVRE DE CLICHÊS QUE POSSUI POTÊNCIA PARA CONTRIBUIR COM
O ENSINO DE FILOSOFIA – Luana Aparecida de Oliveira
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Resumo: Este texto refere-se ao estudo sobre o conceito de filosofia criado por Gilles
Deleuze e sua relação com a arte livre de clichês. Também será considerado o potencial que
esta arte possui para contribuir pedagogicamente com o ensino de filosofia, já que ela captura
forças sensíveis que conseguem obter dos expectadores a experimentação de sensações
necessárias para entrar em choque com suas faculdades, de modo a desestabilizá-las. Para
Deleuze filosofar é criar conceitos, e o pensar se dá com o rompimento da inércia que há nas
faculdades. Desta forma, as sensações criadas pela arte livre de clichês podem auxiliar a
filosofia na criação de conceitos por meio de suas forças sensíveis que causam impacto às
faculdades quando essas se depararem com o novo, com o diferente, ou seja, com o singular.
Palavras-chave: Conceito de filosofia; Arte livre de clichês; Ensino de filosofia.
Para Gilles Deleuze a prática filosófica não se dá enquanto reflexão sobre, já que
a reflexão não é privilégio exclusivo da filosofia, pois tanto a ciência quanto a arte não
necessitam da filosofia para promover reflexão, elas mesmas são capazes de refletir sem
recorrerem à filosofia.
Quando se vive em uma época pobre, a filosofia se refugia em uma reflexão
‘sobre’... Se ela nada cria, que mais pode fazer senão refletir sobre?... De fato, o que
interessa é retirar do filósofo o direito à reflexão sobre. O filósofo é criador e não
reflexivo.1
Essa criação que cabe à filosofia refere-se à criação de novos conceitos. A
heterogeneidade presente na filosofia deleuzeana está relacionada ao conceito de filosofia
construído pelo autor, para ele, portanto, filosofar não é refletir sobr e, filosofar é criar
conceitos. Mas o que é um conceito segundo a filosofia deleuziana? Em Deleuze todo
conceito tem como característica sua singularidade, mas isso não significa dizer que um
conceito é isolado de outros conceitos. É justamente o oposto, o conceito contém em si
uma multiplicidade de conceitos que são heterogêneos, que se fragmentam e se vinculam
um com o outro. Deleuze também esclarece que cada conceito tem sua história, visto que
1
MACHADO, Roberto. Deleuze, a Arte e a Filosofia. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. p.12.
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sua criação não surge por acaso, assim um conceito é construído com o auxílio de
conceitos anteriores a ele. Segundo Deleuze:
A exclusividade de criação de conceitos assegura à filosofia uma função, mas não
lhe dá nenhuma proeminência, nenhum privilégio, pois há outras maneiras de pensar
e de criar, outros modos de ideação que não têm de passar por conceitos, como o
pensamento científico2.
Outro exemplo de um modo diferente de pensar e de criar, que não por conceitos,
é a arte. Contudo, as expressões artísticas propostas para serem estudadas se referem
especificamente às que lutam para fugir dos chamados clichês, pois segundo Deleuze:
O pintor não pinta sobre uma tela virgem, nem o escritor escreve sobre uma página
em branco; a página ou a tela já estão de tal modo cobertas de clichês preexistentes,
preestabelecidos, que é preciso antes de tudo apagar, limpar, laminar, até mesmo
retalhar, para fazer passar uma corrente de ar saída do caos que nos dá a visão. 3
Desta forma, o pintor precisa retirar o conteúdo já existente na tela, de modo a
esvaziá-la dos clichês que nela já foram projetados antes mesmo do pintor começar a
pintar. Em seu trabalho, o pintor deve fazer marcas livres, deixando nascer figuras
improváveis que surgem ao acaso. Assim, a arte que se distancia dos clichês consegue
manifestar sua capacidade de fisgar forças sensíveis que criam o novo e que por fim
desestabiliza as faculdades, de forma a ir para além da simples repetição do mesmo. Essa
arte obtém do expectador a experimentação de sensações necessárias para entrar em
choque com suas faculdades. Considerando que o pensar em Deleuze não acontece de
forma natural ou inata: “O ato de pensar não decorre de uma simples possibilidade
natural; ele é, ao contrário, a única criação verdadeira. A criação é a gênese do ato de
pensar no próprio pensamento.” 4. O que incita o pensar é, portanto, a força de encontros
singulares que perturba e causa discórdia das faculdades, levando à perda da estabilidade
das mesmas, conforme explica Cláudia Benetti em seu livro Filosofia e Ensino:
O que funda um pensamento é a força de um encontro que se sente com algo que
mexe e desassossega e, portanto, desencadeia o ato de pensamento. Para tanto, o uso
das faculdades não são concordantes entre si em uma unidade subjetiva; elas são
2
DELEUZE, Gilles. GUATTARI, Félix. O que é a filosofia? Rio de Janeiro: Editora 34, 1992. p.262.
DELEUZE, Gilles. GUATTARI, Félix. O que é a filosofia? Rio de Janeiro: Editora 34, 1992. p.17
4
DELEUZE, Gilles. Proust e os Signos. Trad. Antonio Piquet e Roberto Machado. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2003.
3
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discordantes entre si e é devido a essa discordância que surge a diferença, que
provoca o pensamento.5
É por isso que a arte livre de clichês, por meio da sua imagem-sensação tem a
contribuir com ensino de filosofia, já que ela é possuidora de potência para promover
encontros que forcem, afetem, sensibilizem e violentem o pensar. Nessas artes há uma
força que neutraliza as figuras que pretendem meramente reproduzir uma descrição da
realidade. Um exemplo do encontro necessário para instigar o pensar são as imagens
pictóricas criadas por Francis Bacon, que confundem, incomodam e forçam nossas
faculdades na tentativa de organizar e de compreender as formas irregulares e
destorcidas. A arte baconiana tem a potência de aniquilar com o modelo da recognição, o
qual crê num pensar que acontece somente na unidade concordante das faculdades sobre
um mesmo objeto. Em Deleuze, ao contrário, o exercício do pensar é o rompimento da
inércia que há nas faculdades, é a ação de mobilização em busca da criação do novo, e
não mais da repetição e representação do mesmo. Conforme Roberto Machado em seu
livro Deleuze, a Arte e a Filosofia:
(...) se Deleuze se interessa por Bacon, é porque sua pintura é a expressão artística
de um pensamento que pretende escapar da representação. É essa neutralização da
representação que o leva a considerá-lo um aliado no seu projeto de constituir uma
filosofia da diferença, e a extrair conceitos filosóficos (...) das sensações criadas
pictoricamente por Bacon.6
As criações singulares de sensações que são promovidas pela arte que não está
povoada de clichês, oportunizam os sentidos à experimentação de novos estímulos
capazes de realizar a provocação necessária, isto é, o encontro que violenta o pensar e
que também fomenta a criação de conceitos. Sendo assim, as criações artísticas de
sensações novas têm a contribuir no próprio ensino de filosofia. A arte que se distancia
dos clichês desafia as concepções fixas, pois o que está expresso nela não consegue
abraçar o (suposto) compreender em sua totalidade. Quando não há clichês as faculdades
5
BENETTI, Cláudia Cisiane. Filosofia e Ensino: singularidade e diferença entre Lacan e Deleuze. Ijuí: Unijuí,
2006. p.129.
6
MACHADO, Roberto. Deleuze, a Arte e a Filosofia. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. p.244.
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ficam em desarmonia, não conseguindo dar sentido às imagens e por isso são obrigadas a
chegar aos seus limites, neste momento segundo Machado:
A relação entre as faculdades é do tipo de um “esforço divergente”, de um “acordo
discordante”, de um “desregramento” em que o encontro contingente e violento com
o que força a pensar produz a necessidade de um ato de pensamento. 7
A arte está aberta aos encontros com outras criações que não as suas, por isso
quando ela se alia à filosofia há contribuição de seus elementos não conceituais que
possibilitam a criação de sentidos diferentes, os quais ampliam a invenção do novo
pensar. A proposta é, como uma das condições de aprendizagem no ensino de filosofia,
instigar o pensar através da arte e seus modos diferentes de expressar as singularidades.
Pois, por meio da afetação das sensações vindas das capturas de forças da arte é possível
forçar o pensar que cria conceitos. Mesmo Deleuze não sendo um teórico do ensino de
filosofia, é possível a partir de sua produção filosófica que indica o projeto da filosofia
da diferença, repensar as ações pedagógicas do atual ensino de filosofia, isto é, a
concepção de pensamento que orienta este ensino. A filosofia da diferença trata -se de
uma linha de pensamento que propõe um novo modo de pensar, privilegiando o diverso,
o singular, o plural. A filosofia da diferença visa desconstruir o senso comum para poder
criar algo novo, a saber, criar o singular. Considerando que a aprendizagem no ensino de
filosofia está vinculada ao processo de pensamento, ela exige um espaço que oportunize
afetações necessárias para que ocorra o processo de ensino-aprendizagem, onde o aluno
consiga ter uma espécie de vínculo afetivo com o conteúdo trabalhado pelo professor,
para assim haver o encontro que violenta o pensar. Segundo Benetti, apenas as formas
metodológicas do ensino de filosofia não bastam, é preciso ir além destas:
No ensino de filosofia, tal como é desenvolvido na maioria das escolas, há um
equívoco, qual seja, de que é possível ensinar filosofia desvinculada dos afetos que
acompanham a vida e o pensamento. Saliento, entretanto, que o ato de pensar inclui
no seu bojo algo que vai além das formas metodológicas de direcionar o
pensamento,
ou
seja,
traz
no
seu
contexto
a
construção/desconstrução/experimentação da vida. E potencializar a experimentação
da vida e dos afetos advindos da relação com conceitos filosóficos, que se produzem
em relações com a arte (...) é fundamental para que se possa dar um
encaminhamento diferenciado ao ato de ensinar e aprender filosofia. Dito de outro
7
MACHADO, Roberto. Deleuze, a Arte e a Filosofia. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. p.313.
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modo, o processo de ensinar/aprender a filosofar não se dá desvinculado do processo
de constituição da vida e dos afetos dela decorrentes.8
Para isso, uma das formas viáveis é buscar no encontro entre as forças criativas
da arte sem clichês e da filosofia a permissão dessa invenção do pensar diferente, o
pensar que singulariza aquilo que se repete. É o auxílio didático-pedagógico que o
potencial criativo da arte, que fisga forças que violam o pensar, tem a oferecer para haver
esta afetação necessária para a ocorrência da aprendizagem. Na questão do
ensino/aprendizagem de filosofia potencializar a experimentação da vida, vejo como
sendo no sentido de valorizar os conflitos e as inquietações que os alunos carregam em
suas vivências, fazendo dessas questões uma forma de os alunos se implicarem com os
conteúdos trabalhados. A arte sem clichês se entrecruza e completa o ensino de filosofia
através do seu potencial de criar e de extrair sensações, inclusive de romper com a
imagem dogmática do pensamento. Esta imagem dogmática do pensamento considera que
pensar é um exercício natural de uma faculdade, ela entende que o homem tem por
natureza predisposição ao pensamento verdadeiro, como se houvesse ontologicamente
uma decisão prévia em si mesmo sobre esta escolha. No entanto, mesmo desejando
naturalmente conhecer o verdadeiro, há forças externas ao pensamento, as paixões, por
exemplo, que induzem ao erro e desviam o homem de chegar ao verdadeiro
conhecimento. É por isso que a imagem dogmática do pensamento crê ser necessário um
método para o pensar não ser desviado do verdadeiro. No ensino de filosofia a imagem
dogmática do pensamento não vai além dos procedimentos metodológicos para o pensar
bem, este que se refere ao desenvolvimento de habilidades de pensamento, tal como ler
textos filosóficos de modo significativo. Entretanto, pode-se questionar: somente o
desenvolvimento de habilidades de pensamento basta para o exercício do pensar? Para
que haja o desenvolvimento das habilidades de pensamento não é necessário a afetação, a
implicação com os conteúdos trabalhados na disciplina? A imagem dogmática do
pensamento, que por vezes está presente no ensino de filosofia acredita que o aluno esteja
8
BENETTI, Cláudia Cisiane. Filosofia e Ensino: singularidade e diferença entre Lacan e Deleuze. Ijuí: Unijuí,
2006.p. 105-6.
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predisposto a aprender, que basta o professor ensinar que o aluno aprende sem maiores
dificuldades. Esta concepção reflete na forma com que o professor de filosofia atua,
ensinar, neste caso, se traduz na atividade do professor apresentar aos alunos os
problemas já criados na história da filosofia. Aqui o exercício do pensar é entendido
somente enquanto habilidade de resolver problemas, não considerando a necessidade de o
aluno ter implicação com o problema em si: “Fazem-nos acreditar que a atividade de
pensar, assim como o verdadeiro e o falso em relação a esta atividade, só começa com a
procura de soluções, só concerne às soluções.” 9 Desta forma, a concepção de ensino que
decorre da imagem de um pensamento dogmático tem suas implicações na aprendizagem
do aluno, pois ela o homogeneíza ao entender o ato de ensino-aprendizagem com sendo
linear, e caso não haver essa linearidade o aluno é visto como possuidor de desvio, o qual
comprometerá sua aprendizagem. No entanto, as práticas em sala de aula comprovam que
o pensar não acontece de forma natural, que o aluno nem sempre está disposto ao
exercício do pensar, e que por isso é preciso ir além do desenvolvimento de habilidades
de pensamento, é preciso haver forças que violentem e forçam o pensar. Por fim, o que de
antemão já fica posto, é que o ensino de filosofia deve se voltar para a criação e
apreensão do problemático, possibilitando condições para que as diferenças e
singularidades dos alunos sejam consideradas em suas produções, de modo que não sejam
anuladas, mas sim potencializadas para a fomentação do pensar. Portanto, a disciplina de
filosofia deve romper com o ensino tradicional que ainda homogeneíza o aluno e não
percebe que o heterogêneo compõe a aprendizagem.
Referências:
DELEUZE, Gilles. Diferença e Repetição. Trad. Roberto Machado, Luiz Orlandi. Relógio
d’agua, 2000. (Coleção Filosofia)
____________. Proust e os Signos. Trad. Antonio Piquet e Roberto Machado. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 2003.
9
DELEUZE, Gilles. Diferença e Repetição. Trad. Roberto Machado, Luiz Orlandi. Relógio d’agua, 2000.
(Coleção Filosofia) p.259.
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____________. GUATTARI, Felix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Trad. Peter Pal
Pelbart. São Paulo: Ed. 34, 1997.
BENETTI, Cláudia Cisiane. Filosofia e Ensino: singularidade e diferença entre Lacan e
Deleuze. Ijuí: Unijuí, 2006.
MACHADO, Roberto. Deleuze, a Arte e a Filosofia. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.
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A TEORIA DA MENTE OBJETIVA EM POPPER – Junior Antonio
Fernandes
PIBID-CAPES
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Resumo: Para Popper, o “eu” não é definitivo e se reconstitui enquanto guarda a identidade,
ao se relacionar com o mundo empírico e com o mundo objetivo. Há uma relação de múltipla
influência entre o mundo empírico, o subjetivo e o objetivo, contudo, os três devem ser
compreendidos e caracterizados como tendo especialidades. Popper estabelece tal relação e
determina as especificidades do subjetivo e do objetivo por meio da criação da teoria dos três
mundos. Nessa formulação, o primeiro mundo é o mundo dos objetos físicos ou estados
materiais; o segundo mundo é aquele dos estados de consciência ou de estados mentais; e o
terceiro mundo é aquele dos conteúdos objetivos de pensamento científicos, filosóficos e
artísticos, tratando-se de conteúdos semânticos dos produtos simbólicos.
Palavras-chave: Popper. Relação entre mundos. Ideias. Visão pluralista.
No capítulo IV do Conhecimento objetivo, Popper trata da teoria da mente
objetiva. Já no início do texto ele define a principal tarefa do filósofo como sendo:
“produzir teorias imaginativas e, ao mesmo tempo, argumentativas e críticas,
preferivelmente de interesse metodológico” (1975, p. 151). Fica claro que a proposta
epistemológica de Popper no decorrer do texto fará uma abordagem mais específica sem,
entretanto, perder a ligação com a sua tese mais ampla de resgate da importância da
imaginação criadora e da disposição à crítica rigorosa, defendida no conjunto de suas
obras. Logo em seguida dá o diferencial que ira trabalhar no capítulo IV, ele apresenta
uma visão pluralista como alternativa a tradicional corrente dualista – a dualidade corpo e
mente. Sua tese defende existência não de dois e sim de três mundos: o mundo material
ou dos estados materiais; o mundo mental ou dos estados mentais e, o mundo dos
inteligíveis ou de objetos de representações. Este terceiro mundo objetivo é habitado
pelas teorias e suas relações lógicas, bem como pelos problemas teóricos e obras de arte,
é o mundo da cultura humana, criado inteiramente pelos seres humanos. Para melhor
entender o que Popper quer dizer quando fala em teoria pluralista, devemos voltar nossa
atenção aos filósofos gregos, dentre os quais se destaca Platão e, nos deparar com o que
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se passava na história da filosofia e o que se destacava naquele determinado período. Ele
cita Platão como referência teórica de uma proposta de três mundos, porém, afirma que
não é platonista. Também cita os demais grupos ou filósofos que vieram posteriormente
com o decorrer da história. Destes destacam-se ainda os Estóicos e alguns modernos
como Leibniz, Bolzano e Frege. Popper afirma que Platão foi um pluralista e também
trabalhou em uma teoria envolvendo três mundos. Essa opinião contraria a visão corrente
e em grande medida reproduzida de uma dualidade no pensamento de Platão com um
mundo sensível, de cópias, representações e o outro inteligível, sendo esse o mundo das
idéias, das formas perfeitas. Segundo ele,
O mundo das formas ou ideias de Platão era, a muitos respeitos, um mundo
religioso, um mundo de realidades superiores. Contudo, não era um mundo de
deuses pessoais nem um mundo de consciência. Era um terceiro mundo objetivo,
autônomo, que existia em adição ao mundo material e ao mundo da mente (Idem, p.
151).
Popper anuncia os seus três mundos e a relação ou função que cada um exerce no
processo de constituição do conhecimento humano. A relação entre eles ocorre da
seguinte forma: o mundo um interage com o mundo dois e o dois com o três, porém, essa
interação não iria acontecer com o mundo um e três respectivamente a não ser com a
intervenção do mundo dois. A teoria dos três mundos apresenta uma epistemologia sem
um sujeito conhecedor. É necessário expor os respectivos três mundos, para daí sim se
chegar ou entender o terceiro mundo apresentado por Popper. O primeiro mundo é o
mundo dos objetos físicos e mantém relação com o mundo dois que é o mundo dos
objetos da consciência ou dos estados mentais e este por sua vez, mantém relação com
um terceiro mundo que seria um mundo de conhecimentos objetivos de pensamento,
especialmente dos pensamentos científicos e poéticos, tratando-se de conteúdos dos
produtos simbólicos. Como Popper mesmo diz um mundo de conteúdos lógicos de livros,
bibliotecas e porque não programas e softwares de computadores. Os dois primeiros
mundos são descobertos pelos seres humanos, estando, portanto, culturalmente
pressupostos. Já o terceiro mundo é criado e recriado pelos homens a partir de cada nova
interpretação, ou falando na linguagem de Popper a cada nova criação de teoria, ou ainda,
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a cada novo processo de teste. Outra dimensão importante é que todo ou quase todo o
nosso conhecimento subjetivo, de mundo dois, irá depender do mundo três, ou seja,
somente o mundo três é especificadamente humano ou de criação das mentes humanas.
Neste caso a cada nova teoria, ou melhor, a cada novo teste a uma teoria antiga, e esta
resistindo ou não conforme o grau de testabilidade tem que reconhecer o mérito da
anterior, pois somente dessa forma conseguiremos alcançar uma maior aproximação com
a verdade, porém não a verdade absoluta.
Sugiro que algum dia teremos de revolucionar a psicologia encarando a mente
humana como um órgão para interagir com os objetos do terceiro mundo; para
compreendê-los, contribuir para eles, participar deles; e para levá-los a relacionar
com o primeiro mundo (Idem, p. 153).
O problema mais importante continua sendo o terceiro mundo, voltando-se
novamente para a problematização que fazemos quando nos deparamos com essa questão.
Normalmente fazemos muitas intervenções com ideias oriundas do terceiro mundo, e isto
causa um problema, porque não sabemos o momento certo, nem de onde a ideia está
sendo extraída, pois, seguidamente misturamos muito as relações de mundo dois com
mundo três. Popper fala da disparidade que acontece também com os Estóicos que,
desenvolveram uma linguagem maravilhosamente sutil. Como o próprio Popper afirma, a
linguagem que eles desenvolveram englobavam todos os três mundos.
Até onde consiste de ações materiais ou símbolos materiais, pertence ao primeiro
mundo. Até onde exprime um estado subjetivo ou psicológico, ou até onde aprender
ou entender uma linguagem envolve uma modificação em nosso estado subjetivo,
pertence ao segundo mundo. E até onde a linguagem contém informação, ou até
onde diz, ou exprime, ou descreve qualquer coisa, ou transmite qualquer significado
ou qualquer mensagem significativa que possa acarretar outra, ou concordar ou
chocar-se com outra, pertence ao terceiro mundo. As teorias, ou proposições, ou
asserções são as entidades lingüísticas mais importantes do terceiro mundo (Idem, p.
154).
Quanto aos Estóicos 1 tentarei me remeter a certas indagações, neste caso estou
partindo do mundo dois, caso eu remeta a algo além da minha memória, como materiais
1
“O estoicismo é considerado o primeiro projeto de uma filosofia sistemática. Fundada por Zenão de Cício em
Atenas, por volta de 300 a.C., a escola se propôs, pela primeira vez na história, a pensar o mundo em sua
totalidade orgânica e contínua. Os principais temas desenvolvidos pelos estóicos foram os de justiça natural e
direito natural, baseados na própria essência do homem e na sua ligação com a divindade”. Conforme sinopse de
Idefonse Frederique presente no Vol I de Os Estóicos, Ed. Estação Liberdade. In:
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teóricos utilizados naquele tempo estarei fazendo com que o mundo dois interaja com o
mundo três e vice e versa. Neste sentido, Popper faz longo elogio aos Estóicos como
sendo os primeiros a organizarem e fazerem a distinção das coisas para com o s mundos.
Seguindo com essa visão de que o terceiro mundo é produto totalmente humano e que faz
relação somente com o mundo dois, Popper distingue dois grupos de filósofos: o primeiro
contendo Platão como aceitando um terceiro mundo autônomo encarado como um mundo
sobre-humano, divino e eterno. Um segundo grupos com Locke, Mill, aos quais indicam
a linguagem feita pelo homem, e assim, incluem-na tanto no primeiro quanto no segundo
mundo. E ainda, Popper aponta uma posição que é distinta de ambas: “Sugiro qu e é
possível aceitar a realidade ou a autonomia do terceiro mundo e ao mesmo tempo admitir
que o terceiro mundo tenha origem como produto da atividade humana”. Este, contudo,
ao mesmo tempo em que é criado pelo homem, também “transcende de seus fabricantes ”
(Idem, p. 156). Quanto ao problema da compreensão dessa teoria, principalmente o que
envolve o mundo três, Popper orienta sobre a possível inversão de papéis da nossa
imaginação, ou seja, o que podemos imaginar no mundo três que possa seguramente ser
do mundo dois e que, entretanto, pode ser explicado através da psicologia. Ele usa o
exemplo do guarda-chuva, para nos orientar sobre uma possível não compreensão das
atividades subjetivas. Sendo assim uma teoria seria a interpretação de outra teoria antiga,
e assim sucessivamente. Para melhor entender Popper indica alguns caminhos possíveis:
Que todo ato subjetivo de compreensão está amplamente ancorado no terceiro
mundo; Que quase todas as observações importantes que podem ser feitas acerca de
tal ato consistem em apontar suas relações com objetos de terceiro mundo; e, que tal
ato consiste principalmente de operações com objetos de terceiro mundo: operamos
com esses objetos quase como se fossem objetos materiais (Idem, p. 158).
Continuando a leitura da sua conferência, Popper introduziu os processos
psicológicos de pensamento em relação aos objetos do terceiro mundo. Para superar as
suas expectativas, Karl apresenta um esquema geral, segundo o qual as atividades podem
ser compreendidas por meio de uma fórmula, demonstrada da seguinte maneira: Partimos
de um Problema, depois constituímos uma teoria experimental, posteriormente partimos
http://www.livrariasaraiva.com.br/produto/1852257/os-estoicos-i-col-figuras-do-saber-vol-17.
14.09.2012 17h36min.
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para a etapa de eliminação de erros, por fim chegamos à um novo problema, uma nova
instância de problematização e de compreensão da questão. Se pensarmos em um objeto
do terceiro mundo, o nosso intelecto o concebe como sendo um objeto de segundo
mundo, porém vindo do mundo três. Popper alerta sobre a confusão que a nossa mente
faz perante os objetos de mundo três, com os elementos do mundo dois. Não podemos
confundir teorias, isto é, objetos de terceiro mundo com aqueles elementos subjetivos que
dizem respeito ao segundo mundo. Partindo desse pressuposto, Popper nos fornece um
exemplo de uma operação matemática. O terceiro mundo, das matemáticas e das teorias
científicas, exercem grande influência sobre o primeiro mundo. A tecnologia seria a
maior expressão dessa influência. No caso das operações matemáticas, podemos alcançar
os mais diferentes graus de compreensão. Popper cita alguns:
A simples compreensão do que foi dito, compreensão no sentido de que também
podemos “compreender” a proposição “777 vezes 111 são 68.427” sem notar que é
falsa. A compreensão de que é uma solução de um problema. A compreensão do
problema. A compreensão de que a solução é verdadeira, o que em nosso caso é
trivialmente fácil. A verificação da verdade, por algum método de eliminação de
erro, também trivial em nosso caso (Idem p. 164).
Depois de demonstradas as operações matemáticas e as possíveis influências que
elas recebem, para participarem diretamente – mesmo que seja de maneira enganosa – da
representação e percepção do mundo dois, Popper, também se prende nas questões
históricas, para representar a compreensão. Neste meio, ele cita Galileu 2 que argumentou
acerca das marés e sua relação com o movimento e as fases da lua, e também discordou
de Copérnico 3 e de Kepler 4. Durante este percurso Popper explica possíveis modos para
se pensar e analisar a compreensão histórica, dentre eles são: reconstrução do problema;
análise das diversas situações encontradas no percurso de reconstrução; compreensão dos
problemas abordados; qualquer tentativa a ser seguida abrirá portas para uma
reconstrução histórica; até que ponto a história da ciência influenciará no prob lema da
2
Galileu Galilei foi nada mais nada menos que cientista, astrônomo, matemático, filósofo. Dentre suas maiores
amplitudes estão a invenção do telescópio; também foi o primeiro a contestar o filósofo Aristóteles.
3
Nicolau Copérnico foi astrônomo, cientista, médico, matemático, foi ele quem desenvolveu a teoria
heliocêntrica.
4
Kepler foi astrônomo, matemático, astrólogo, contribui para as leis da mecânica e formulou suas próprias leis.
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compreensão; destituir metaproblemas de metateorias da história da ciência; o último
ponto seria uma análise lógica. Esta concepção teórica redunda em uma compreensão que
pode ser sintetizada na passagem seguinte:
Se Alguém me perguntar… Como você sabe? Minha resposta será: não sei, apenas
proponho uma suposição. Se está interessado no meu problema, ficarei grato, se
criticar minha suposição; e se me oferecer contrapropostas, deverei criticá-las
igualmente. Mesmo as teorias científicas espetaculares e bem sucedidas devem ser
vistas como hipóteses que jamais poderão ser definitivamente justificadas e
estabelecidas (Ibidem).
Para finalizar tentarei fazer um percurso abrangendo todo o conteúdo e os
principais pontos. Popper quer apresentar uma epistemologia sem um sujeito conhecedor.
Assim, antes de expor a centralidade de sua tese, ele apresenta a teoria do terceiro
mundo, fazendo anteriormente a exposição dos respectivos três mundos. O primeiro é o
mundo dos objetos físicos. O segundo é o mundo dos estados de consciência e o terceiro
é o mundo dos conteúdos objetivos, concebidos apenas pelos homens. Os dois primeiros
mundos são descobertos pelos seres humanos, estando culturalmente ligados. Já o
terceiro mundo é criado e recriado pelos homens a todos os momentos, à medida que
interpretam algo novo. Entre os habitantes do terceiro mundo popperiano, estão os
sistemas teóricos, os problemas e as situações de problemas, sendo que os habitantes
mais importantes são os argumentos críticos, ou seja, os estados de discussões ou estados
críticos. Além desses podemos acrescentar os livros, revistas, as bibliotecas. Então, dessa
forma, epistemologia para Popper é a teoria do conhecimento científico, a qual faz parte
do terceiro mundo. Ainda dentro deste contexto podemos anexar as teorias das ciências
históricas, as ciências naturais, às ciências generalizadoras, a religião, a nossa educação;
todas essas fazem parte de uma interpretação ou de um modelo pronto que chega até nós,
basta interpretarmos, e nesse exercício estaremos inseridos no terceiro mundo.
Referência:
POPPER, K. Conhecimento Objetivo: Uma abordagem evolucionária. Trad. Milton Amado.
Belo Horizonte, Editora Itatiaia, 1975.
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A VONTADE DE POTÊNCIA COMO NEGAÇÃO DO SUJEITO EM
FRIEDRICH NIETZSCHE – Douglas Meneghatti
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Resumo: Nietzsche constrói uma filosofia a partir da negação da moralidade do costume e
dos valores metafísicos, apoiado sobre a dinamicidade do mundo que está em constante
processo de vir-a-ser. Nesse viés, pretende-se elucidar a critica nietzschiana com relação a
noção tradicional de sujeito, sendo que o objetivo primordial é apresentar a vontade de
potência a partir de uma visão cosmológica, como uma negação da noção tradicional de
sujeito. Assim, demonstrar-se-á a crítica nietzschiana com relação à ideia de sujeito, bem
como os argumentos que tornam tal crítica relevante para o Período Contemporâneo.
Palavras-chave: Vir-a-ser. Vontade de potência. Sujeito.
1. Introdução
E sabeis sequer o que é para mim o ‘mundo’? Devo mostrá-lo a vós em meu
espelho? Este mundo: uma monstruosidade de formas, sem início, sem fim, uma
firme, brônzea, grandeza de força, que não se torna maior, nem menor, que não se
consome, mas apenas transmuda... [...] – Esse mundo é a vontade de potência, e
nada além disso! Também vós próprios sois essa vontade de potência – e nada além
disso! (NIETZSCHE, 1999a, 38[12]).
Eis uma apresentação do mundo, Nietzsche o compreende como sendo vontade
de potência, pura e simplesmente. Pode-se dizer que tal “vontade” está presente em tudo,
expandindo-se mesmo sem consumir-se, não se tratando de uma essência, a vontade de
potência é descrita como uma relação de tensão 1 que requer a resistência, para tanto a
vontade é contínua e não admite negação, a própria negação se torna uma afirmação da
vontade que busca sempre se afirmar num jogo de forças que estão permanentemente em
conflito, numa “luta” infinda que se chama existência. Nesse viés, justifica-se estudar a
vontade de potência como uma forma de compreender a própria realidade. Pode-se dizer
que durante longos milênios a filosofia esteve ancorada a grandes sistemas metafísicos,
de maneira que a partir de Sócrates o mundo Ocidental passou a acentuar a racionalidade
em detrimento dos instintos e das paixões humanas, fator acentuado na Idade Média com
1
Segundo o professor Moura, esta tensão nunca poderá ser eliminada, visto que trata-se de uma vontade que faz
com que a vida naturalmente se relacione (MOURA, 1987, p. 608).
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a afirmação dos valores imutáveis e divinos e no Período Moderno com a exaltação da
razão como fim último do homem que reduz o mundo a sua subjetividade. Neste ponto
entra a proposta deste trabalho, que visa demonstrar a provocação filosófica de
Nietzsche, o qual anuncia o fim dos fundamentos metafísicos, passando a analisar o
mundo e a vida como vontade de potência. A metafísica por muito tempo esteve ancorada
sobre a noção de sujeito, apontado como causa das motivações que impelem as ações
humanas a uma teleologia. Para Nietzsche: “O sujeito (ou, falando de modo mais popular,
a alma) foi, até o momento, o mais sólido artigo de fé sobre a terra [...]” (NIETZSCHE,
2002, I, § 13). O sujeito devido à sua indivisibilidade e consciência moral foi tomado de
“forma fixa” e descaracterizado em seu processo de “vir-a-ser”; a partir da estabilidade
do conceito de sujeito a tradição filosófica derivou a verdade enquanto princípio de
causalidade e como fundamento epistemológico. Nietzsche aplica um duro golpe em tal
concepção, uma vez que compreende a consciência como “[...] último e derradeiro
desenvolvimento do orgânico e, por conseguinte, também o que nele é mais incabado e
menos forte” (NIETZSCHE, 2001, § 11). A partir de tais constatações, o trabalho se
restringe a análise da crítica de Nietzsche, bem como a construção de uma filosofia
voltada para a dinamicidade da vontade de potência, que faz da vida um complexo jogo
de forças que estão permanentemente em conflito, num jogo incessante que se chama
existência.
2. As contradições metafísicas e a vontade de potência
De agora em diante, senhores filósofos, guardemo-nos bem contra a antiga, perigosa
fábula conceitual que estabelece um ‘puro sujeito do conhecimento, isento de
vontade, alheio à dor e ao tempo’, guardemo-nos dos tentáculos de conceitos
contraditórios como ‘razão pura’, ‘espiritualidade absoluta’, ‘conhecimento em si’; –
tudo isso pede que se imagine um olho que não pode absolutamente ser imaginado,
um olho voltado para nenhuma direção, no qual as forças ativas e interpretativas, as
que fazem com que ver seja ver-algo, devem estar imobilizadas, ausentes; exige-se
do olho, portanto, algo absurdo e sem sentido (NIETZSCHE, 2002, III, § 12).
Acima de qualquer sistema e de toda espécie de fundamentalismo, Nietzsche fora
um insigne defensor da vida em todas as suas manifestações, tanto é verdade que em seus
primeiros aparecimentos na obra Assim falava Zaratustra o termo vontade de potência
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está diretamente relacionado com a vida (Cf. 2011, p. 108-110). Aos poucos a
interpretação nietzschiana ampliará o “conceito” para uma visão cosmológica, para a qual
estamos interessados nesse momento, destarte, é justo ressaltar que, se crítica a
moralidade do costume, a existência submissa, o modo de viver reativo dos escravos, o
niilismo enquanto voltado para ideais ascéticos e tantas outras coisas, é porque percebe
que possuem um caráter degenerativo contra a vida. Não seria absurdo afirmar que foi
um dos filósofos que mais valorizou a vida enquanto força ativa e jovial em sua dimensão
artística. A arte é um elemento imprescindível da sua Filosofia, justamente porque é pela
arte que o homem foge das velhas convicções metafísicas, passando a descansar do seu
próprio “eu”, compreendido como sujeito indivisível. Nietzsche quer demonstrar os
absurdos e as contradições das “antigas fábulas” conceituais pautadas sobre entidades
ontológicas, princípios lógicos, enfim, sobre as conhecidas metanarrativas construídas no
decorrer da história da filosofia; contrariando os “sistemas tradicionais” busca construir a
sua filosofia a partir de uma visão cosmológica que não admite sequer um instante de
Ser, uma vez que o devir é um constante fluxo sem ponto de partida e de chegada. O
mundo é assim uma multiplicidade de forças que divergem entre si num processo
agonístico de luta, onde tudo o que existe é manifestação de hierarquia de impulsos,
numa luta infinda por mais potência, fator que caracteriza o processo do vir-a-ser. A
vontade de potência é assim tendência a crescimento de potência, sendo que a diferença
entre as forças gera um antagonismo que não admite a rigidez de um sujeito indivisível
como fundamento do mundo e da existência. Nesse viés, é importante destacar que todo o
organismo vivo é possuidor de vontade de potência; pois precisa crescer, resistir, jogar e
isso não por moralidade ou imoralidade, mas porque vive e a vida é vontade de potência,
haja vista que os impulsos estabelecem uma relação de poder entre si que é originada
pela diferença. Tendo em vista que não se trata de uma finalidade, nem de uma essência
ou definição, a vontade de potência desvinculasse da fixidez metafísica da noção
tradicional de sujeito; assim, por ser envolta de dinamicidade, destrói a afirmação do eu
como causa das ações e como sustentação de uma verdade epistemológica, tendo em vista
que a vontade de potência não admite certezas indefectíveis e nem causalidade nas ações.
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Nesse viés, o conceito de potência requer a resistência que está ligada a dinamici dade e
não à conservação; lembrando que, o antagonismo entre as forças leva ao domínio de
uma potência sobre a outra, mas nunca ao aniquilamento de potência, assim, o
fortalecimento de uma resistência implica necessariamente o enfraquecimento de outra. O
que leva Nietzsche a afirmar: “Grande, no homem, é ele ser uma ponte e não um
objetivo: o que pode ser amado, no homem, é ser ele uma passagem e um declínio”
(2011, p. 16). Assim, o jogo nunca cessa, pois o homem é uma ponte que está em
constante superação sem que para isso haja finalidade, de modo que o conflito passa a
estar intimamente ligado ao crescimento humano, à superação das resistências, afirmação
que novamente contraria a noção tradicional de sujeito. Fica assim esclarecido que a
realidade apresenta-se de forma dinâmica, a “vontade de potência” exclui qualquer
possibilidade de uma essência pré-definida para o homem, de modo que a própria
existência é marcada pelo processo do vir-a-ser, sendo que o conceito de sujeito deixa de
subsistir como causa determinante das ações.
3. A negação do sujeito como causa e a afirmação do devir
O desconhecido, o intuitivo, o imediato, o instintivo sempre foram motivos de
pavor entre os seres humanos. A razão sempre busca uma causa como forma de
explicação para os eventos e para as ações, segundo Nietzsche: “Fazer remontar algo
desconhecido a algo conhecido alivia, tranqüiliza, satisfaz e, além disso, proporciona um
sentimento de poder” (2006, VI, § 5); desse modo, o mundo acaba sendo organizado num
nexo de relações causais que asseguram a existência do princípio da causalidade.
Acontece que Nietzsche prescinde do princípio de causalidade, haja vista que o impulso
não se distingue de suas manifestações: não é causa, não produz efeito. Assim, o aumento
e o decréscimo de potência ocorrem concomitantemente, sem que para isso haja
necessidade de uma relação convergente entre ambos. Considerando que a crença na
causalidade está por detrás da construção de vários conceitos metafísicos, pode -se dizer
que a própria noção de Sujeito nasce de um erro habitual de confundir a conseqüência
com a causa, a saber, que tradicionalmente o sujeito subjaz as ações, aplicando -lhe
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intencionalidade. A questão é que para Nietzsche tudo isso não passa de um erro habitual
de confundir a conseqüência com a causa. Nessa perspectiva, a própria consciência
humana é vista como motivadora das ações, fator que dá ao homem total
responsabilidade por seus atos mediante uma “consciência metafísica” da qual são
derivadas todas as ações. Assim acaba-se por pensar que a vontade é a causa dos atos
humanos, sendo a consciência, causa da vontade e o “Eu” ou o “Sujeito” causa da
consciência 2. Entrementes, Nietzsche critica ferrenhamente a tradição metafísica apoiada
nas ideias de causalidade e finalismo, para tanto reclama o reestabelecimento do vir-aser:
O fato de que ninguém mais é feito responsável, de que o modo do ser não pode ser
remontado a uma causa prima, de que o mundo não é uma unidade nem como um
sensorium nem como ‘espírito’, apenas isto é a grande libertação – somente com
isso é novamente estabelecida a inocência do vir-a-ser [...] (NIETZSCHE, 2006, VI,
§ 8).
Em nome do devir Nietzsche nega a existência de uma causa primeira; como já
fora evidenciado; a vida é marcada por uma multiplicidade de forças relacionadas entre
si, que buscam a superação, a expansão da potência. A multiplicidade assume um caráter
notório, e, como decorrência, tem-se negação de um Sujeito preexistente e fixo. Desse
modo, o indivíduo perde sua fixidez metafísica, passando a aceitar o intuitivo e o ilógico,
como conseqüência a vida passa a ser reverenciada em sua plenitude, haja vista que a
complexidade vital não pode ser restrita a apenas a um âmbito da existência. Nietzsche
evidência que o conceito de Sujeito se sobrepôs ao mundo de forma dogmática pela
metafísica tradicional, a seu ver a solidificação desse conceito se deve meramente a
construção lingüística e a generalizações apressadas que advém como narcotizantes da
capacidade reflexiva do ser humano. Segundo Frezzatti (apud, CESAR, p. 227) Nietzsche
atinge a noção de Sujeito considerando os seguintes aspectos: o Sujeito enquanto
substância, enquanto verdade ou fundamento epistemológico, enquanto causa do pensar,
enquanto consciência e enquanto portador de vontade livre. A questão é que a vontade de
2
Tais afirmações são assim descritas no Crepúsculo dos Ídolos: “O homem projetou para fora de si os seus três
“fatos interiores”, aquilo em que acreditava mais firmemente, a vontade, o espírito e Eu – extraiu a noção de ser
da noção de Eu, pondo as “coisas” como existentes à sua imagem, conforme sua noção do Eu como causa”
(NIETZSCHE, 2006, VI, § 3).
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potência contraria as noções tradicionais de sujeito, deixando a tradição metafísica
desamparada, haja vista que, a negação do conceito de sujeito implica uma revolução
gnosiológica, ética e ontológica. De maneira que o mundo e a existência acabam
perdendo a sua rigidez metafísica, abrindo espaço para o devir e o perspectivismo, que
em última instância, são consequências do mundo entendido como vontade de potência.
Nietzsche evidencia: “[...] – Esse mundo é a vontade de potência, e nada além disso!
Também vós próprios sois essa vontade de potência – e nada além disso!” (1999, 38
[12]). Enfim, a natureza é constituída por uma multiplicidade de forças que estão
permanentemente em conflito. Sendo que essa tensão entre as forças é entendid a por
Nietzsche como vontade de potência, que de modo algum possui conotação ontológica,
sendo, antes de tudo, um conceito de relação que requer a resistência. Assim, Nietzsche
“destrói” a construção conceitual de um sujeito como subjacência, daí suas ferr enhas
críticas ao idealismo, aos imperativos categóricos, em suma, a todos os sistemas
metafísicos voltados a uma transcendência vertical como sentido último para a existência.
Reclama a valorização da vida em sua imanência, primando pelo amor ao “corpo e a
terra”.
4. Conclusão
Tendo em vista que a vontade de potência é o “impulso” que faz com que a
realidade aconteça, a fixidez ontológica do “eu como causa” acaba perdendo seu
sustentáculo, o devir enquanto movimento do vir-a-ser passa a caracterizar o mundo que
deixa de ter uma definição pronta e acabada. Assim, a vida passa a ser compreendida em
sua dinamicidade o que torna a arte um elemento fundamental de sua filosofia, daí a
crítica aos sistemas filosóficos tradicionais que acabam por reduzir a vida a uma instância
fixa, a uma finalidade qualquer. Nietzsche assegura: “[...] – é absurdo querer empurrar o
seu ser para um finalidade qualquer. Nós é que inventamos o conceito de finalidade: na
realidade não se encontra finalidade (2006, VI, § 8). A lógica sobre a qual brotou a
filosofia ocidental a partir de Sócrates foi alvo de imensas criticas de Nietzsche. A
verdade tão cara à tradição filosófica torna-se mero fruto da fantasia humana, visto que
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os impulsos são múltiplos e não admitem uma fixidez metafísica. A não existência de
conceitos enquanto fundamentos epistemológicos exige uma fuga da tradição, a filosofia
a partir de então é chamada ao fluxo do “vir-a-ser”, o mundo e a existência deixam de ser
sistemas lógicos e definidos, assim, a filosofia nietzschiana se apresenta como uma
provocação aos elementos tradicionais, de maneira que o perspectivismo abre margens
para interpretações diversas que se constroem na luta entre impulsos que constituem a
vontade de potência.
Referências:
BATTISTI. C. Org. Às voltas com a questão do sujeito - Posições e perspectivas. Cascavel:
Edunioeste e Inijui, 2010.
MOURA, Carlos Alberto R. de. A vontade de potência e a superação de si. História do
Pensamento, São Paulo, v. 4, n. 51, 1987, 605-609 p.
NIETZSCHE. F. W. A gaia ciência. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Cia. das Letras,
2001.
______. Assim falou Zaratustra. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Cia. das Letras,
2011.
______. Crepúsculo dos ídolos – ou como se filosofa com o martelo. Trad. Paulo César de
Souza. São Paulo: Cia. das Letras, 2006.
______. Fragmentos póstumos. Sämtliche Werke, Kritische Studienausgabe, Berlin-New
York, DVT de Gruyter, 1999.
______. Genealogia da moral – uma polêmica. Trad. de Paulo César de Souz. São Paulo: Cia.
das Letras, 2002.
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ARENDT: LIBERDADE POLÍTICA – Marcelo Barbosa
UNIJUÍ/PIBIC
[email protected]
Resumo: O texto discute as questões acerca da liberdade política, tratada por Hannah Arendt,
nas obras intituladas O que é política? e Sobre a Revolução. Busca inicialmente o sentido do
significado de liberdade política na experiência da Grécia antiga, passando ao período
medieval romano cristão e a modernidade que desemboca na revolução americana. A ação
política que é protagonizada por atores livres que possuem a capacidade intersubjetiva de
iniciarem nova cadeia de acontecimentos no âmbito da esfera pública.
Palavras-chave: Política. Liberdade. Ação. Opinião.
O texto que segue destaca aspectos sob os quais Hannah Arendt aborda a questão
da liberdade política em seus textos O que é política e Sobre a Revolução. Para Arendt
foram os gregos na época da polis que elaboraram o significado originário de política
como uma atividade desenvolvida entre aqueles que não estavam submetidos à coerção
do trabalho ou de outros homens. Ou seja, para Arendt, o sentido original de liberdade
política remonta a experiência da polis grega e tem a ver com a existência de uma esfera
pública e com a capacidade de muitos se unirem para realizar empreendimentos. Arendt
observa que para que o cidadão grego pudesse viver de forma livre na polis deveria estar
isento da coação do outro e da atividade do trabalho como condição de suprir suas
necessidades vitais. Dessa forma o sentido grego de liberdade ocorria de forma negativa
isto é, onde o indivíduo não era dominado e nem tinha a intenção de dominar o outro, a
liberdade é efetivada na esfera pública da ágora que só pode ser produzida pelo concurso
plural dos cidadãos livres e iguais que pudessem se relacionar através do diálogo e do
convencimento recíproco. A liberdade política na polis não separa o falar do agir, o
próprio falar na compreensão grega já é uma forma de ação “o autor de grandes feitos
também deve ser sempre, ao mesmo tempo, um orador de grande palavras” (Arendt,
2011, p. 56). Não significa aqui que a ação da fala se restringe somente no relato dos
grandes feitos do autor, mas na idéia de que, quando se fala entre iguais às palavras
podem ser retrucadas, e no sentido de réplica a ação da fala se desenvolve no
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convencimento do outro. Essa característica da liberdade política grega da ação enquanto
fala destaca outra liberdade fundamental para os gregos, que é a liberdade de externar a
opinião. A opinião é a forma de ação enquanto espontaneidade de começar algo novo,
começar alguma coisa do âmbito político grego de archein, que significa o começar ou
dominar, e o agir ou o movimento desse começo que se da através da fala e se externa
através da opinião, pelos gregos é chamado de prattein. Essa liberdade de externar a
opinião esta sempre vinculada na presença do outro,
a liberdade de externar opinião, determinante na organização da polis, distingue-se
da liberdade característica do agir, do fazer um novo começo, porque numa medida
muitíssimo maior não pode prescindir da presença de outros e do ser confrontado de
suas opiniões (Arendt, 2011, p. 58).
Esse agir intersubjetivo e espontâneo é uma maneira pré-política de iniciar algo
novo, ou seja, um novo começo vinculado com as formas de organização da vida em
comum dos cidadãos, no entanto todo produzir já é de certa forma uma ação espontânea
que nasce do indivíduo. A liberdade de iniciar algo novo a partir da opinião na presença
do outro já esta pressuposta na política “Nesse sentido, política e liberdade são idênticas
e sempre onde não existe essa espécie de liberdade, tampouco existe o espaço político no
verdadeiro sentido” (Arendt, 2011, p. 60). Para os gregos o corpo político tinha como
fundamental característica o falar com o outro na polis, e assim viver em um mundo real
e falar sobre esse mundo comum entre iguais através da opinião. Platão ao definir sua
idéia de liberdade se contrapôs a forma grega de liberdade política. Para tanto, Platão tira
da própria política o problema da liberdade, e estabelece como critério a filosofia
acadêmica, deixando assim a política restrita ao pensamento do filósofo, surgindo dessa
maneira um novo espaço para discutir a liberdade, diferente da polis, esse espaço era
estritamente acadêmico. Nesse sentido o filosofo necessitava se libertar da política no
sentido grego, para poder ser livre no espaço político da academia, “Assim como a
libertação do trabalho e das preocupações com a vida eram pressupostos necessários para
a liberdade da coisa política, a libertação da política tornou-se pressuposto necessário
para a liberdade da coisa acadêmica” (Arendt, 2011, p. 63). Platão torna a política um
meio para um objetivo mais elevado, que era tornar a discussão da liberdade política que
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se referia a polis para o meio acadêmico, significando que, a liberdade política se
restringia somente a uma minoria, ou seja, o que antes fazia parte da discussão do
cidadão, agora esta voltada para uma minoria que utilizava a academia como um meio
para falar livremente a respeito da discussão filosófica da liberdade política. No período
cristão o deslocamento do sentido da liberdade ocorreu pelo fato de que o pensamento
teológico a responde a pergunta sobre o que é política pela resposta dada para a questão o
que é homem? Desta forma o zoon politikon aristotélico é interpretado de forma errônea
pelos cristãos. Enquanto que para “Aristóteles, para quem a palavra politikon era de fato
um adjetivo da organização da polis” (Arendt, 2011, p. 46), e não qualquer forma de
organização de convívio humano, o pensamento teológico naturaliza a política. Assim o
cristianismo se apodera da coisa pública tornada em um meio realizar objetivos supostos
como mais nobres que a política mesma. De qualquer modo na época da cristandade o
pensamento greco-romano através da interpretação de Agostinho contribui para que a
Igreja assuma papes políticos apesar de suas origens antipolíticas, isso não significa que a
política tenha sido considerada como uma atividade considerada como digna por si
mesma. O fato é que esta concepção de política como “um meio para outro objetivo
supostamente mais nobre que ela mesma” foi decisiva para o pensamento ocidental, pois
com isso a política se desvinculou da participação e da opinião dos cidadãos. Se na era da
política cristã cabia ao Estado Cristão obedecer aos fins religiosos que lhes eram supostos
superiores, nos Estados Modernos nos quais a esfera da religião passa a integrar o plano
dos assuntos particulares. O que muda de fato nesse novo contexto do Estado Nação é
que O Estado assume a tarefa de “proteger a livre produtividade da sociedade e a
segurança do indivíduo em seu âmbito privado” (Arendt, 2011, p. 73). Dessa forma,
liberdade e política continuam separadas. Ou seja. O Estado assume a função proteger a
sociedade e a segurança do indivíduo. Não há mais, nesse caso, uma relação direta entre
ação e liberdade no sentido da polis. O fato é que nos tempos modernos predomina a
concepção de que o Estado é uma função da sociedade, um meio necessário, não para a
liberdade política da ação no sentido grego, mas para a liberdade social da iniciativa
privada no sentido moderno. Nesse contexto, a liberdade do cidadão nos governos
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constitucionais no qual o governo é controlado pelos governados estabelecem limites,
possibilitando a liberdade fora de seu espaço, mas a liberdade de ação política
“continuam sendo prerrogativas do governo e dos políticos profissionais que se oferecem
ao povo como seus representantes no sistema de partidos, para representar seus interesses
dentro do estado e, se for o caso, contra o estado” (Arendt, 2011, p. 75). Os casos mais
extremos de experiências políticas que separaram política e liberdade são exemplificados
pelos regimes assentados em ideologias totalitárias sou em noções políticas e históricas
segundo as quais a liberdade deve ser sacrificada em prol de processos e progressos
históricos da humanidade. Arendt insiste em seus textos na ideia de que: é graças à ação atributo exclusivo do homem – e de modo improvável e inexplicável que produzimos
história, ou nos termos de Kant que iniciamos cadeias de novos acontecimentos. No que
tange às experiências políticas do final do século XVIII Arendt aborda, com especial
atenção a questão da liberdade política, na revolução americana. Para ela os Americanos,
diferentemente do que ocorreu em outras revoluções que nem sequer estabeleceram
direitos e liberdades civis, se empenharam intensamente para a libertação do governo da
Inglaterra e assim se envolveram na elaboração das cartas constitucionais da república e
das unidades confederadas. Convencidos de que a libertação de um governo opressor por
si só não assegurava a liberdade, procuram estabelecer garantias constitucionais para tal.
Com a convicção de que, “o homem é o senhor do seu destino” (ARENDT, 2011 p. 83), e
de que eles não eram meros espectadores da história, mas agentes capazes de fundar um
novo corpo político no qual a liberdade pública estivesse assegurada de forma
constitucional. Ou seja, os colonos americanos entendiam que a “liberdade política ou
significava ‘participar do governo’ ou não significava nada.” (ARENDT, 1971 p. 175).
Arendt ressalta ainda, que a liberdade pública não é somente o desejo de estar livre da
opressão, - pois tal liberdade já se encontra no processo de libertação - mas ela busca a
instauração de um corpo político novo, livre da opressão de um poder monárquico,
exigindo para isso uma constituição que assegure tanto os direitos civis e a liberdade
pública, pois “uma constituição não é o ato de um governo, e sim de um povo
constituindo um governo” (ARENDT, 2011, p. 194). A autora observa que os colonos em
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todo o território se envolveram intensamente nos debates constitucionais, e foi isso que
caracterizou e qualificou os procedimentos nos quais as constituições dos estados e da
união na América do Norte foram elaboradas. Sobre isso escreve Arendt: é “bastante
óbvia a diferença entre uma constituição elaborada burocraticamente por um governo e
uma Constituição por meio da qual um povo [se envolve] para constituir um governo”
(ARENDT, 2011, p. 194). Tal diferença na forma da elaboração de um ato constitucional,
segundo Madison: “é de grande importância numa república não só proteger a sociedade
contra a opressão de seus governantes, mas também proteger uma parte da sociedade
contra a injustiça da outra parte” (MADISON apud ARENDT, 2011, p. 195). A
preocupação nas discussões dos fundadores estava voltada para que o poder da
constituição assegurasse a liberdade dos estados constituintes que
poder e liberdade caminhavam juntos; que, conceitualmente falando, a liberdade
política consistia não no eu - quero e sim no eu - posso, e que, portanto, a esfera
política devia ser entendida e constituída de maneira que combinasse o poder e a
liberdade (...) (ARENDT, 2011, p. 199).
O que realmente foi demonstrado pelos homens da revolução foi que “não é o
homem, e sim os homens que habitam a terra e formam um mundo entre eles. É a
mundanidade humana que salvará os homens das armadilhas da natureza.” (ARENDT,
2011, p. 227). E os meios para que o homem possa manter o poder somente ocorre
através da união e do pacto que “são os meios de manter a existência do poder [...] A
faculdade humana de fazer e manter promessas guarda um elemento da capacidade
humana de construir o mundo.” (ARENDT, 2011, p. 228). E o único modo para que se
possa constituir algo novo através de consenso é a ação da pluralidade dos homens
através do poder. E este é, “o único atributo humano que se aplica exclusivamente ao
entremeio mundano onde os homens se relacionam entre si, unindo-se no ato de fundação
em virtude de fazer e manter promessas, o que, na esfera da política, é provavelmente a
faculdade humana suprema” (ARENDT, 2011, p. 228). Para concluir, se observa que
liberdade e política estão estritamente ligadas, e não decorrem de uma natureza humana e
também não estão presentes em todas as formas de governo. A liberdade política se da no
âmbito da pluralidade dos homens, onde esses possam de forma livre, iniciar uma cadeia
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de novos acontecimentos. No entanto o agir intersubjetivo e de forma espontânea é de
fundamental importância para que as opiniões sejam expressas de forma pública e de que
o cidadão tenha livre participação na organização do corpo político estabelecendo assim
uma forma política de governo em que a liberdade de participação pública esteja
estabelecida de forma segura.
Referências:
Arendt, Hannah. O que é política? Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999.
_____________. Sobre a Revolução. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
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AS CONCEPÇÕES HOBESSIANA ACERCA DO ESPÍRITO DO HOMEM –
Luciana Vanuza Gobi
UFFS
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Resumo: O Filósofo inglês Thomas Hobbes (1588 - 1679) tornou-se conhecido pelas suas
teorias políticas. Entretanto o objetivo deste artigo é tratar das questões relacionadas ao
homem. A fim de compreender o que seria o individuo, segundo as concepções Hobbesianas,
tendo como foco as questões relacionadas à racionalidade, avaliando qual a importância da
linguagem, das sensações, da imaginação, abordadas nos primeiro capítulo do Leviatã. Pois,
assim como a espada que representa o poder capaz de manter o contrato assegurando a vida
dos indivíduos, a língua é um dos artifícios essências para criação de tal contrato.
Palavras-chave: Hobbes. Linguagem. Sensação. Imaginação.
Introdução
O filósofo inglês Thomas Hobbes (1588 - 1679) ganhou notoriedade a partir dos
seus tratados políticos. Entretanto para Hobbes as questões políticas não se encontram
isoladas, pelo contrario elas se encontrariam relacionadas a outras duas grandes áreas do
saber, como à física e a psicologia, tendo em vista que a política é exercida pelos
homens, logo para compreendê-los, é preciso que haja uma analise psicológica afim de
que aja de fato essa compreensão psicologia é necessário o auxilio da física, segundo o
filosofo o conhecimento produzido pelo individuo desenvolver-se-á conforme vivenciado
uma determinada ação, ou seja, só é possível conhecer as coisas matérias através do
movimento, assim mesmo que algo imaterial como Deus exista nosso conhecimento não
teria acesso. Desta forma podemos afirmas que “a filosofia de Hobbes é caracterizada
como um materialismo mecanicista de cunho empirista.” (ZEBINA, 2003) Nos primeiro
capítulos do Leviatã o autor trata de assuntos como a sensação, e de que forma se
encontra relaciona no desenvolvimento da imaginação, direcionando assim a discussão
quanto à origem e a importância da linguagem por fim avaliar as divergências entre razão
e prudência. Logo a discussão que pretendemos realizar tem como foco a construção do
conhecimento e os processos mentais decorrentes no homem quanto ao discurso mental e
verbal em Thomas Hobbes, para isso iremos explorar o mecanicismo, pois a través dele
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veremos que diferente daquilo que se pensa não existe mais do que um tipo de
conhecimento, não há duas formas de inteligibilidade dividida entre física e psicologia,
mas apena uma decorrente do mecanicismo.
I.
Da ocorrência das Sensações ao surgimento das Imaginações
Ao analisarmos o processo cognitivo defendido por Hobbes veremos que ele se
desenvolve em consonância com o movimento e a matéria, De acordo com a filosofia
hobbesiana o homem só é capaz de conhecer aquilo que é constituído por matéria, e
movimento tendo em vista que nosso conhecimento tem origem no órgão dos sentidos.
Logo aquilo que for imaterial, seria impossível termos acesso, como por exemplo, Deus,
entretanto esse argumento não será usado por Hobbes para negar a existência de Deus. O
processo de conhecimento como foi dito, será ainda realizado pelo movimento, que se
apresenta tanto de forma externa a partir do momento que o homem se depara com os
objetos a sua volta quanto interna referente aos órgãos dos sentidos. “Desta forma, as
faculdades humanas estão divididas em dois tipos: faculdades do corpo, ligadas aos
poderes nutritivos, motor e gerador, e da mente, que Hobbes divide em poder cognitivo
ou imaginativo e poder motor” (ZEBINA, 2003, p.234), ou seja, o processo cognitivo tem
seu inicio pelas sensações tendo em vista que os corpos exteriores ao pressionarem os
sentidos serão a causa das sensações. Segundo Hobbes
a origem de todas elas é aquilo que denominamos sensação (pois não há nenhuma
concepção no espírito do homem que primeiro não tenha sido, originada total ou
parcialmente nos órgão dos sentidos) O resto deriva daquela origem (L, I, p. 15).
Referente às sensações pode ainda ser separada e então compreendida através da
divisão dos movimentos imediatos e os mediatos. Os movimentos imediatos que são
aqueles que ocorrem através do tato, do paladar, Enquanto que o conhecimento devido ao
movimento mediato ocorre sobre o olfato, audição e visão, em relação ao contado com os
objetos exteriores e o processamento destes sentidos no cérebro. Nota -se que existência
grande ligação entre a imaginação e as sensações. Pois através das sensações que
recebemos as informações necessárias para operação da imaginação, ou seja, as
informações recebidas pelos sentidos seriam como matéria prima para o andamento da
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imaginação. Devido o fluxo das sensações serem praticamente constante é preciso mais
do que a imaginação é necessário memória para então armazenar as informações, para em
um dado momento seja possível acessá-las e então realizar cálculos mentais “Assim a
imaginação e a memória são uma e mesma coisa que, por razões diversas, tem nomes
diferentes” (L, II, p.?)
II.
Linguagem
Analisaremos agora o importante papel que a linguagem desempenha na filosofia
hobbesiana. Segundo o filósofo de Malmesbury “O uso geral da linguagem consiste em
passar nosso discurso mental para um discurso verbal, ou a cadeia de nossos pensamentos
para uma cadeia de palavras.” (L, IV, p. 42) Sendo assim sua função não se resume ao ato
de repassar informações, ou então de registrar fenômenos ocorridos, como se fosse mero
instrumento da memória, mas veremos que será a linguagem essencialmente responsável
por construir o conhecimento, agindo “como instrumento principal no processo de
autoconstrução do homem que deseja sair do estado de natureza, pois sem ela não há o
social nem o político.” (MATOS), ou seja, ela também será ela responsável por
proporcionar meios de diferenciar os seres racionais e irracionais. O que não foi possível
apenas pela experiência. Desta forma Segundo Hobbes “... A mais nobre e útil de todas as
invenções foi a da linguagem, que consiste em nomes ou designações e em suas
conexões,... sem o que não haveria entre os homens nem Estado, nem sociedade, nem
contrato, nem paz, tais como não existem entre os leões, os ursos e os lobos” (L, IV,
p.43). Ainda no inicio do capitulo quatro Hobbes argumenta acerca da linguagem,
descreve sobre as suas possíveis origens. É a ocorrência da diversidade entre as línguas.
Uma das primeiras versões que se ouve falar é de que a linguagem teria sido adquirida
por Adão através de Deus assim como a capacidade de nomear tudo o que existe.
Mas toda essa linguagem adquirida e aumentada por Adão... Foi perdida novamente
na torre de Babel, quando pela mão de Deus todos os homens foram punidos, devido
à suas rebeliões, com o esquecimento da sua primitiva linguagem. E sendo depois
disso forçados a se dispersarem pelas várias partes do mundo, daí resultou
necessariamente que a diversidade de línguas que hoje existe(...) (L, IV, p.44)
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Assim concluímos que a língua é essencial na história dos seres humanos. Pois,
como defende a filosofia hobbesiana não seria possível a organização dos homens em
sociedade sem a linguagem. E da linguagem sem os seres racionais. Ambas supõem a
presença de mais do que um indivíduo. Pois seria desnecessário nomear e conceituar os
fenômenos se o homem vivesse sozinho, ou seja, quando o homem dá nome aos o bjetos
ele o faz por causa de outros homens, pois se fosse apenas para si mesmo não seria
necessário. A linguagem como já foi dito nós permite em especial diferenciarmos dos
seres irracionais. A partir das sensações o homem tem acesso às informações exteri ores,
assim como já vimos produz conhecimento. No entanto se permanecermos apenas neste
nível de conhecimento não nós diferenciaríamos dos seres irracionais. Mas a partir do
momento que fizermos uso da linguagem atribuído nomes aos instrumentos com os quai s
trabalhamos, ou até mesmo aqueles que se encontram ao nosso arredor. É possível
construir conceito, e mais do que isso conhecimento. Diferente daquele saber adquirido
pelos sentidos, os quais são particulares estes se caracterizarão pela universalidade.
a. Os abusos da linguagem
Hobbes aponta quatro possíveis abusos: “Primeiro, quando os homens registram
erradamente seus pensamentos pela inconstância da significação de suas palavras, com as
quais registram por suas concepções aquilo que nunca conceberam, e deste modo se
enganam.” (L, IV, p.44) observa-se que neste caso há certa inocência, pois não havia a
intenção de prejudicar ou enganar alguém. Ainda existe a flexibilidade da língua,
conforme o tempo a transcorre também se modifica, assim possibilitando a ocorrência de
erros ao empregá-las de maneira errada. “Em segundo lugar, quando usam palavras de
maneira metafórica, ou seja, com um sentido diferente daquele que lhes foi atribuído, e
deste modo enganam os outros.” (L, IV, p.44). Diferente do primeiro abuso relatado a
metáfora é empregada justamente para destorcer o real sentido, porem não é empregado
necessariamente visando o mal. “Em terceiro lugar, quando por palavras declaram ser sua
vontade aquilo que não é.” (L, IV, p.45) trata-se daquilo que chamamos ironia,
empregada geralmente com agressividade
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Em quarto lugar, quando as usam para se ofenderem uns aos outros, pois dado que a
natureza armou os seres vivos, uns com dentes, outros com chifres, e outros com
mãos para atacarem o inimigo, nada mais é do que um abuso da linguagem ofendêlo com a língua, (L, IV, p.45) característicos dos homens trocarem ofensas
verbalmente, já que outros animais não possuem o mesmo domínio sobre a língua.
Entretanto saber manipular a linguagem não permite que esta seja usada para
agressões no máximo para punições como afirma Hobbes “a menos que se trate de
alguém que somos obrigados a governar, mas então não é ofender, e sim corrigir e
punir (L, IV, p.45).
Distinção de discurso Mental e Discurso Verbal
O conhecimento cognitivo é composto por varias etapas entre elas encontramos
as sensações, as imaginações. Ao permanecermos neste nível estaremos enquadrados no
discurso mental, mas através da constituição da linguagem é possível alcançar o discurso
verbal. Enquanto que o discurso mental se encontra na esfera da experiência o discurso
verbal encontra-se no domínio da ciência ou da razão. Pois o discurso mental é
construído sem a presença de palavras, seu desenvolvimento decorre da subtração ou
adição de pensamento. Sendo conseqüência da imaginação e da memória, esse discurso
jamais alcançara a universalidade, permanecera sempre no nível da prudência. Ao
contrario do discurso verbal que ao implicar a presença de palavras trás exatidão ao
calculo. Segundo Hobbes “Quando alguém raciocina nada mais faz do que conceber uma
soma total, a partir da adição de parcelas, ou conceber um resto a partir da subtração de
uma soma por outra” (L, V, p. 51). Desta forma nós enganamos ao associar esse exercício
apenas aos números, mesmo que esta pratica seja mais freqüente entre os matemáticos,
geômetras, logo Hobbes argumenta no sentido de propor que o calculo seja realizado não
apenas com os números, mas com as palavras como os lógicos. Pois como já vimos à
razão advêm do calculo, “Em suma, seja em que matéria for que houver lugar para adição
e para a subtração, há também lugar para a razão, e onde aqueles não tiverem o sue lugar,
também a razão nada tem a fazer” (L, V, p. 51). O objetivo de encarar o raciocínio em
calculo é que utilização seja traçada pela exatidão, siga uma lógica, produzindo assim
conhecimento seguro. Entretanto assim como na matemática o calculo pode ser operado
de maneira incorreta ainda mais se for realizado por alguém inexperiente. Isso ocorre por
a razão diferente das sensações não nascem conosco. “... nem é adquirida apenas pela
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experiência, como a prudência, mas obtida com esforço, primeiro através de uma
adequada imposição de nomes, e nem segundo lugar através de um método bom e
ordenado...”(L, V, p. 55).
Referências:
HOBBES, Thomas. Leviatã ou Matéria, Forma e Poder de um Estado Eclesiástico e Civil.
Tradução de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. 2.ed. São Paulo: INCM,
1979
MATOS, Ismael Dias. Disponível em:
http://www.ismardiasdematos.com.br/linguagem%20em%20hobbes.pdf
SILVA, Guedds. Thomas Hobbes: Conhecimento e Linguagem. Disponível em:
http://www.grupodemocracia.com/artigos/livro%202/pdfs/SILVA,GueddsS.pdf Acessado em
20/04-2011.
ZEBINA, Márcia. O infinito e Deus em Hobbes. Philósophos 8 (2), Goiânia, s/v, s/n, p. 231248, nov. 2003. Disponível em:
http://www.iphi.com.br/pdfs/O%20infinito%20e%20deus%20em%20Hobbes.pdf Acesso em:
14/04/2011
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AS CRÍTICAS FREGEANAS AO CONCEITO DE NÚMERO NOS
FUNDAMENTOS DA ARITMÉTICA – João Vitor Schmidt
UNICENTRO
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Resumo: O presente trabalho versa sobre as críticas fregeanas ao conceito de número
dispostos na obra “Os Fundamentos da Aritmética”. Tendo em vista a rejeição fregeana do
psicologismo e empirismo, esclarecemos as três principais críticas apontadas por Frege no
capítulo II e III da obra, a saber as (1) críticas ao número enquanto propriedade de coisas
sensíveis; (2) críticas à concepção de número enquanto algo subjetivo; e (3) os problemas de
conceber o número como conjunto de objetos. Por fim, a exposição pretende deixar em aberto
o problema, que justifica a solução fregeana apontada no capítulo IV.
Palavras-chave: Gottlob Frege. Conceito de número. Fundamentos da aritmética.
Publicado em 1884, Os fundamentos da aritmética 1 é considerada a obra
fregeana mais acessível. Com estilo predominantemente filosófico e com completa
ausência de cálculos lógicos, o livro dispõe de um esboço informal na tentativa de
fundamentar o conceito de número de modo puramente lógico 2. De fato, o livro surge
como um preparo à formalização definitiva de tal empreitada 3, que só aconteceria em
1893 e 1903 com As leis básicas da aritmética. Com tais objetivos em mente, Frege
reserva parte da obra em elucidar e criticar algumas opiniões comuns do conceito de
número de seus contemporâneos, para então, poder emergir com sua própria definição.
Este trabalho é uma tentativa de resgatar algumas destas críticas e entender as oposições
fregeanas às principais teses por ele citadas. Para tanto, versaremos sobre os capítulos II
e III da obra 4, aonde as seguintes críticas são apresentadas: (1) críticas ao número
enquanto propriedade de coisas sensíveis; (2) críticas à concepção de número enquanto
algo subjetivo; e (3) os problemas de conceber o número como conjunto de objetos.
Discutiremos estas três críticas em separado, tendo em vista, sobretudo, as oposições de
1
FREGE, G. Os fundamentos da aritmética. Iremos referenciá-la tão somente pela sigla FA.
Assim como de forma analítica, contrariando portanto à Kant.
3
Sugestão feita por Carl Stumpf, em carta à Frege datada de 1882.
4
Intitulados “Opiniões de alguns autores sobre o conceito de número” e “Opiniões sobre unidade e um”,
respectivamente.
2
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Frege ao Psicologismo e ao Empirismo, que orientam sua postura em tal obra 5. Ao iniciar
o capítulo II, Frege dispõe de alguns preceitos básicos em que seguirão suas exposições
seguintes, e que aqui resgatamos: Primeiro, distinguindo os números singulares do
conceito geral de número, afirma que é do segundo que deverá partir leis gerais que
constituirão a aritmética (precisamente a definição do um e de aumento em um) 6, tendo
por base os números cardinais. Segundo, rejeita a tentativa de apreender o número
através da geometria 7, e terceiro, aceita a tese de que o número é definível 8.
1. Críticas ao número enquanto propriedade de coisas sensíveis
Tais críticas surgem, Frege irá afirmar, sobre forma usual que os números
aparecem em nossa linguagem comum, a saber, sob forma adjetiva 9. Esta forma, como
Haddock afirma 10, é exemplar para ilustrar a concepção de Frege dos enganos que a
linguagem comum pode nos levar. Frege afirmará: “Na linguagem os números aparecem
frequentemente sob forma adjetiva e em construção atributiva, analogamente a palavras
como duro, difícil e vermelho, que significam propriedades de coisas exteriores” 11. Duas
são as noções em jogo aqui: as críticas à natureza empírica do número, e as críticas ao
número enquanto propriedades de objetos. As duras críticas que Frege tece às noções
empíricas não são novidades no capítulo II, sendo expostas já no capítulo que abre a
obra. Haddock, usando o termo “naturalismo”, nos resume tais críticas: “[...] o
naturalismo, alvo das críticas de Frege, concebe a matemática como uma ciência empírica
e natural e seus objetos de estudo como completamente similares aos objetos e
propriedades do mundo físico e real” 12. As críticas de Frege irão versar sobretudo à John
5
Na introdução, Frege aponta três principios orientadores à tal trabalho, em que o primeiro diz: “deve-se separar
precisamente o psicológico do lógico, o subjetivo do objetivo”. FREGE, G. Op. Cit. p.202.
6
FA. §18.
7
FA. §19.
8
FA. §20.
9
Como na sentença “O livro têm 100 páginas”.
10
HADDOCK, G. E. R. A critical introduction to the philosophy of Gottlob Frege.
11
FA. §21.
12
HADDOCK, G. E. R, Op. Cit. p.23-24.
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Stuart Mill e sua concepção empírica de números 13. Já no capítulo II, para rejeitar a tese
do número enquanto propriedade, Frege irá indicar dois caminhos: em primeiro lugar,
qualidades/propriedades são tidas em objetos independentemente de nosso arbítrio ao
percebê-las, enquanto que os números, não 14. Em segundo, a aplicabilidade do número é
muito maior, pois se aplica tanto às coisas sensíveis quanto às não sensíveis 15. Ao criticar
Mill, Frege ironiza dando-nos um profícuo exemplo da ampla aplicabilidade do número e
de sua rejeição de que se aplicariam tão somente à objetos sensíveis: “É estritamente
necessário reunir os cegos do império alemão em uma assembléia para que a expressão
‘número de cegos no império alemão’ tenha sentido?” 16.
2. Críticas à concepção de número enquanto algo subjetivo
Eliminando a possibilidade do número ser objeto físico, ou propriedade destes, a
alternativa parece ser de concebê-lo como subjetivo, logo, como objeto de investigação
psicológica 17, como Frege afirma. Não obstante, sua rejeição à tal alternativa é rápida e
enfática: “Nunca se poderá recorrer a ela [a uma descrição dos processos internos ao
conceber um juízo numérico] para a demonstração de uma proposição aritmética; por
meio dela não aprendemos nenhuma propriedade dos números” 18. A rejeição ao
psicologismo é marca característica de toda vida acadêmica de Frege. Como Beaney nos
aponta, “Para Frege, o domínio do psicológico ou subjetivo é o domínio de ideias,
entendidas como entidades mentais privadas, e sua rejeição fundamental ao psicologismo
13
De que uma asserção numérica é uma asserção sobre fatos empíricos, que segundo Frege, não daria conta de
lidar com números grandes, por exemplo.
14
No §22 Frege afirma: “Uma diferença essencial entre cor e número consiste portanto em pertencer a cor azul a
uma superfície independentemente de nosso arbítrio. [...] Por outro lado, não posso dizer que a um maço de
cartas de jogar em si mesmo pertença o número 1 ou 100 ou qualquer outro, mas quando muito posso dizê-lo
com respeito à nossa maneira arbitrária de apreendê-lo, e mesmo neste caso não poderíamos atribuir-lhe
simplesmente o número como predicado”.
15
FA. §24.
16
FA. §23.
17
O que em última análise, levaria à tese psicologista da matemática. Tal tese, é por Haddock descrita como:
“Psicologismo na matemática e, especificamente, na aritmética defende que para alcançar a fundamentação
última de nossos juízos sobre números, tanto estes quanto asserções aritméticas deveriam ser submetidos à
investigação dos processos mentais que precedem a emissão de tal juízo” Op cit. p.30-31.
18
FA. §26.
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é a de que este exclui a comunicação e torna argumentos inúteis” 19. Isto se deve ao fato
que, se o número fosse um objeto da psicologia, uma representação 20, dificuldades, tal
como o exemplo fregeano, surgiriam: “Se o dois fosse uma representação, seria de inicio
apenas meu. A representação de outrem enquanto tal já é outra. Neste caso teríamos
talvez muitos milhões de dois” 21. O que se segue ao argumento fregeano é uma espécie
de reductio ad absurdum, conforme Beaney aponta, aonde essa concepção tornaria
possível uma operação aritmética do tipo 2+2=5, na medida em que não seria possível
compará-lo com outras representações da mesma operação. Nas palavras de Frege, um
exemplo das “extravagâncias” que se chegaria se levássemos a sério a ideia de que o
número é mera representação. Mas suas críticas à tal concepção subjetiva tendem à
direcioná-lo à tese da objetividade do número, que Frege passa então a reivindicar. Em
primeiro lugar, cumpre citar a distinção entre objetivo, espacial e real: nem tudo o que é
objetivo é, necessariamente real, espacial ou até mesmo palpável, embora tais atributos
possam ser objetivos. Em decorrência disto, Frege irá então afirmar:
Assim, entendo por objetividade uma independência com respeito a nosso
sentir, intuir, representar, ao traçado de imagens internas a partir de
lembranças de sensações anteriores, mas não uma independência com
respeito à razão; pois responder à questão do que são as coisas
independentemente da razão significa julgar sem julgar, lavar-se e não se
molhar. 22
Toda forma subjetiva de conceber o número é então rejeitada. Não obstante a
isto, a Razão é preservada: o fundamento da objetividade não pode residir nas impressões
sensíveis, Frege dirá, mas apenas o que posso perceber na razão, dado que, mesmo na
incapacidade de intuir sensivelmente um objeto, é possível pensá-lo. Beaney exemplifica:
Um objeto físico, por exemplo, pode existir independentemente de o
percebermos sensivelmente; e podemos falar coerentemente sobre um objeto
geométrico como um quiliágono23 mesmo que ninguém possa intuí-lo ou
imaginá-lo. Mesmo assim, nada disso é inconcebível, já que não poderíamos
19
BEANEY, M. Frege: making sense. p.87.
Frege remete ao termo Representação sempre um sentido subjetivo [subjectiven vorstellung], conforme as leis
psicológicas de associação, as quais variam em diferentes pessoas, como o mesmo explica em nota de rodapé ao
§27.
21
FA. §27.
22
FA. §26.
23
Polígono de mil lados.
20
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afirmar juízos verdadeiros sobre eles sem, de certo modo, concebê-los; e isto
é tudo que Frege quer dizer ao afirmar que eles são “dependentes da razão”
24
.
Assim, concluindo as duas primeiras críticas aqui expostas, Frege irá afirmar: “E
chegamos a conclusão de que o número não é espacial e físico [...], nem tampouco
subjetivo como representações, mas não-sensível e objetivo” 25.
3. Os problemas de conceber o número como conjunto de coisas
No fim do capítulo II, Frege irá se deparar com a concepção de que o número
seria um conjunto, multiplicidade ou pluralidade de objetos ou unidades 26. Embora um
único parágrafo seja reservado à esta discussão no presente capítulo, o problema por ele
suscitado será retomado no capítulo III. Em primeiro lugar, sem explicitações maiores,
tal definição não daria conta dos números 0 e 1. Em segundo, a tentativa de definir
número em termos de conjuntos traria um dilema:
Ou as coisas pelo qual os números são conjuntos são diferentes, ou então são
idênticos. Se eles são diferentes [...]: haveriam vários números dois, na
medida que há diferentes pares de objetos no universo. [...] Entretanto, se as
unidades realmente são idênticas, então elas apareceriam como uma, e toda a
teoria desmoronaria. 27
O problema que surge diz respeito à uma possível reconciliação entre a
igualdade e a distinguibilidade dos objetos ou unidades que compõem tal conjunto. Frege
irá dedicar importantes passagens na tentativa de solucioná-lo, o que não obstante, não
pode ocorrer sem uma discussão suficiente dos conceitos de “um” e “unidade”.
Inicialmente o problema reside na possível confusão entre ambos, o que exige separação
conceitual: “Diz-se ‘o número um’, e com o artigo definido indica-se um objeto definido
e singular da investigação científica” 28, dirá Frege. Ou seja, o “um” significará tão
somente o número “um”, que portanto, não admite plural 29. Mas, tendo separado o “um”
24
BEANEY, M. Op. Cit. p.88.
FA. §27.
26
A concepção de unidade da qual Frege parte é a de Euclides, ou seja, como um objeto a ser enumerado.
27
BEANEY, M. Op. Cit. p.88.
28
FA, §38.
29
Não fará sentido, afirmará Frege, dizer que das afirmações “João é um” e “Maria é um”, possa se dizer “João e
Maria são uns”.
25
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de “unidade”, este último permanece sendo fonte de problemas maiores, visto que,
segundo Frege, uma nova confusão emerge:
Chamam-se inicialmente as coisas a enumerar de unidades, o que preserva os
direitos da diferença; em seguida a reunião, coleção, anexação, ou como mais
se queira chamar, converte-se no conceito de adição aritmética, e o termo
conceitual “unidade” transforma-se desapercebidamente no nome próprio
‘um’. Tem-se com isto a igualdade. 30
Sem resolver o imbróglio, o “um” e a “unidade” voltam a serem confundidos na
medida que uma operação aritmética se faz necessária 31. Torna-se assim impossível, para
Frege, derivar o número de um conjunto de unidades em uma operação mantendo
suficientemente a igualdade e a distinguibilidade dos objetos, se considerarmos a
“unidade” como simples qualidade de algo a ser enumerado. Ainda insolúvel, Frege
distinguirá: “Se falamos pois de ‘unidades’, não podemos empregar esta palavra com o
mesmo significado do nome próprio ‘um’, e sim como termo conceitual” 32. É a primeira
indicação de uma possível solução, conquanto ainda seja impossível definir o número tão
somente pela “unidade”, já que está também não admite plural 33. Diferentes tentativas de
solução são também rejeitadas por Frege, como por exemplo, um possível apelo às
propriedades do espaço e do tempo como formas de distinguir os objetos a enumerar, ou
de que poderíamos manter a igualdade das unidades pela abstração das diferenças 34.
Conclusão
Recapitulando suas críticas, Frege irá listar as dificuldades apresentadas até aqui,
antecedendo sua solução que será definitivamente apresentada no capítulo IV:
30
FA. §39.
Seguindo os exemplos de Beaney sobre as críticas de Frege à Jevons, pelo critério da igualdade, o número 5
poderia ser entendido como 5 = {1+1+1+1+1} do mesmo modo que 5 = {1}. Pelo critério da distinguibilidade
torna-se necessário diferenciar os sinais: 5 = {1’+1’’+1’’’+1’’’’+1’’’’’}, mas como por este critério haveriam
diferentes números 5, outro poderia ser definido como 5={1’+1’’+1’’’’+1’’’’’’’+1’’’’’’’’’’’’}. Uma operação
aritmética, em ambos os casos, traria resultados no mínimo absurdos.
32
FA. §38
33
De tal modo, se o “um” caísse sobre tal conceito, o seu plural permaneceria sem sentido.
34
FA. §§40-4. Frege tem em mente, nestas passagens, indicar que uma diferença espaço-temporal exige,
antecipadamente diferenças próprias; e que uma abstração de diferenças não daria conta de formar números
grandes como 10000, pois seria impossível reter tantas diferenças.
31
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O número não é uma propriedade das coisas. [...] O número não é algo físico,
mas tampouco algo subjetivo, uma representação. [...] As expressões
‘pluralidade’, ‘conjunto’ e ‘multiplicidade’ não são, por seu caráter
indeterminado, apropriadas a colaborar na definição de número. [...] Se as
coisas a enumerar forem chamadas de unidades, a afirmação incondicionada
de que as unidades são iguais será falsa. 35
Para dar conta de tais dificuldades, Frege irá dispor da distinção entre conceito e
objeto, do qual irá tratar em seguida. A distinguibilidade seria possível enquanto as
coisas a enumerar (enquanto objetos) guardassem suas diferenças. A igualdade seria
então resolvida na medida que objetos diferentes caíssem em um mesmo conceito. Uma
indicação numérica seria portanto, para Frege, um enunciado sobre um conceito,
entendendo-o como algo objetivo e não-sensível.
Referências:
BEANEY, M. Frege: Making Sense. London: Duckworth, 1996.
FREGE, G. Os fundamentos da aritmética. Col. Os pensadores. 3.ed. São Paulo: Abril
Cultural, 1983.
HADDOCK, G. E. R. A critical introduction to the Philosophy of Gottlob Frege. Hampshire:
Ashgate, 2006.
35
FA. §45.
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AS NOÇÕES DE AMOR (EROS) EM PLATÃO E DE AMIZADE (PHILIA)
EM ARISTÓTELES – Luiz Carlos de Abreu
UFFS
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Resumo: Este artigo tem como finalidade demonstrar como aparecem as noções de amor
(eros) e de amizade (philia) exploradas respectivamente nas obras Banquete, de Platão, e no
livro VIII da Ética a Nicômaco, de Aristóteles. O livro Banquete aborda um diálogo que
acorre na casa de Agatão, no qual cada convidado, provocado por Fedro, os convidados
buscam em seus discursos a melhor definição para o amor, o último foi Sócrates, sendo o
mais extenso, culminando com o mito que narraria à origem do amor. Sendo Eros filho do
deus Póros (Riqueza) e a da deusa Penia (Pobreza), mostrando a dualidade do amor. No livro
Ética à Nicômaco, Aristóteles usa a palavra amizade (philia) para falar do amor, apresentando
três definições do que é o amor: a primeira é a da amizade pela utilidade, quem ama o que lhe
é útil; a segunda amizade é pelo prazer, visando a satisfação dos prazeres e por fim a amizade
em virtude, uma amizade perfeita, na qual os homens desejam igualmente o bem um ao outro.
Palavras-chave: Amor. Amizade. Virtude.
Introdução
O objeto de investigação circunscreve-se num âmbito maior de pesquisa, cuja
finalidade é a de demonstrar como a concepção de amor (Eros) e de amizade (philia)
exploradas respectivamente nas obras Banquete, de Platão, e no Livro VIII da Ética
Nicomaquéia, de Aristóteles. Nessas duas obras, os filósofos concebem o amor com
referências explícitas à reciprocidade entre o amante e a pessoa amada e entre os
verdadeiros amigos. Objetiva-se, nesta comunicação, demonstrar qual a noção de amor,
seja ele Eros ou philia, e como cada filósofo trata o tema de moda similar: amor é troca
recíproca, sem a qual não haveria verdadeira experiência amorosa; a essência do amor
possibilita conduzir as partes efetivamente envolvidas na relação a ultrapassarem a mera
experiência fugaz do corpo para se alcançar um amor verdadeiro, localizado na alma.
Desse modo, Platão aborda no diálogo Banquete o que acorrerá na casa do poeta trágico
Agatão quando lá se reuniram Fedro, Pausânias, Erixímaco, Aristófanes e Sócrates. A
pergunta que conduz o debate é justamente sobre “o que é o amor (Eros)?
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1. O amor (Eros) em Platão
No livro O Banquete, Platão busca responder o que é o amor, nos fazendo refletir
sobre as diferentes faces desse amor (Eros), o que cada um que se fazia presente no
banquete tenta explicar, cada um busca do seu jeito a melhor definição para o amor.
Então provocados por Fedro, começam a fazer seus discursos sobre o amor, tendo como
objetivo explicá-lo mostrando assim como ele está presente na vida do homem e como
ele pode ser visto de varias formas. Como Fedro foi o responsável por propor a discussão
acerca de Eros, ele mesmo começou o discurso, qualificando Eros tal como este era
concebido na mitologia grega: igual a um deus, sendo admirado por homens e deuses, por
causa de sua origem, sendo o mais antigo dos deuses, sendo responsável pelas melhores
coisas entre os homens, cujos ficando longe de tudo o que é feio e desagradável obteriam
assim virtude, honra e mais felicidade, pois é o que este deus os trará. O próximo a
discursar foi Pausânias, cujo discurso foi referente a dois tipos de amores, o amor social e
o amor celestial, abordando assim em seu discurso o amor mais social: sendo um amor
popular, causado pela deusa Afrodite, e é a ele que os homens vulgares amam, pois visam
mais o corpo e o prazer decorrente deste; enquanto que a outra forma de amor que
Pausânias coloca é o amor celestial, que é um amor mais nobre, um amor voltado para as
coisas da alma e não necessariamente do corpo, pois este visa as coisas mais duradouras e
não os prazeres como acorre com o amor popular. Erixímaco, por sua vez, entendido das
artes médicas, relaciona o amor com a saúde e bem estar do homem e sua saúde, sendo
que a natureza dos corpos comporta esse duplo amor no qual o corpo deseja o que é
oposto a ele; o amor sadio, que é a busca de um amor saudável, puro, a outra forma de
amor é o amor mórbido, seria o amor que visa o que é impuro, enquanto que Aristófanes
dispõe o amor como à busca pela outra metade, um amor que pode ser comparado com o
desejo sexual, mas não sendo apenas o corpo da outra pessoa desejada, mas um amor que
ultrapasse para um desejo mais puro, da alma, desejando fundir-se com a pessoa amada,
“restaurando assim a nossa antiga natureza, em sua tentativa de fazer um só de dois e de
curar a natureza humana,” (Banq. 191 d). Agatão um escritor de tragédias da época é o
penúltimo, faz seu discurso mais poético, busca assim em seu discurso explicar louvando
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tal qual é a natureza do amor, sendo este justo, pois para Agatão que compara o amor
com um deus e sendo este o mais feliz, não caindo em vingança, sendo este o mais feliz,
ele é o mais belo e melhor de todos. Para Agatão o amor não é o mais antigo entre os
deuses, discordando de Fedro, pois para Agatão o amor é o mais novo e continua sempre
jovem, pois segundo Hesíodo e Parmênides o amor não mutila, não aprisiona, pelo
contrário o amor trás a amizade e a paz, pois é o que reina entre os deuses. No qual sendo
revelada a delicadeza da deusa, que não anda sobre o que é duro mas sim sobre o mole,
Agatão se utiliza desta mesma prova para dizer que o amor também é delicado e anda
sobre o mole, sendo assim sua constituição. Segundo Agatão, o amor não comete e e nem
sofre injustiças, nem entre os deuses nem entre os homens, pois violência não toca em
amor, pois os homens bons servem em tudo ao amor, além da justiça, da temperança, o
amor compartilha. Para Agatão, o amor não tem nenhum prazer predominante, pois todos
os prazeres seriam dominados pelo amor, pois dominando os prazeres e desejos, o amor
seria temperante, pois o amor segundo a lenda, o de Afrodite, é o mais forte, dominando
até o mais corajoso entre todos, sendo então o amor o mais corajosos de todos. Agatão
faz um discurso mais breve, dando lugar assim ao discurso mais extenso, que sintetiza o
pensamento de Platão acerca de eros. Trata-se do discurso de Sócrates, que narra uma
conversa sua com Diotima, e que esta o revela a origem do amor, e que Sócrates discursa
aos convidados do banquete, sendo mais ou menos este o discurso,
Quando nasceu Afrodite, banqueteavam-se os deuses, e entre os demais se
encontrava também o filho de Prudência, Recurso. Depois que acabaram de jantar,
veio para esmolar do festim a Pobreza, e ficou pela porta. Ora, Recurso, embriagado
com o néctar - pois vinho ainda não havia - penetrou o jardim de Zeus e, pesado,
adormeceu. Pobreza então, tramando em sua falta de recurso engendrar um filho de
Recurso, deita-se ao seu lado e pronto concebe o Amor. Eis por que ficou
companheiro e servo de Afrodite o Amor, gerado em seu natalício, ao mesmo tempo
que por natureza amante do belo, porque também Afrodite é bela. E por ser filho o
Amor de Recurso e Pobreza foi esta a condição em que ele ficou (Banq. 203 b,c).
Eros seria, segundo o discurso de Sócrates, filho do Póros (o deus da Riqueza) e
de Penia (a deusa da Pobreza), que através desse mito, Sócrates quer mostrar a dualidad e
da experiência amorosa, por isso que o amor gerado em seu nascimento, ao mesmo tempo
em que por natureza amante do belo. Por ser filho de Penia, o amor é sempre pobre,
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descalço, e sem lar, um amor que visa as coisas do corpo, que são passageiras, amor d o
prazer pois não deseja algo mais duradouro. Mas o amor é também belo e bom, corajoso,
dedicado, é um amor que deseja a sabedoria e que é cheio de recursos, um amor que
busca e deseja algo de duradouro, um amor da virtude, sendo voltado as coisas da alma,
pois esse amor seria segundo o pai que é Póros sendo um amor mais rico e nobre.
2. O amor (philia) em Aristóteles
No livro VIII da Ética a Nicômaco, Aristóteles usa a palavra amor (philia) para
falar do sentimento existente entre amigos verdadeiros, pois homens que são amigos, não
necessitam de justiça, mas os justos precisam da amizade. E que a forma mais genuína de
justiça é uma espécie de amizade. Neste livro, ele investiga três definições sobre o amor:
os que se amam por causa da utilidade, os que amam por prazer e os que amam em
virtude. O amor por utilidade é em virtude do que é agradável a eles, e ai podemos
relacionar o que é útil com o que é agradável para cada ser. A amizade pelo que é útil
muda
constantemente,
não
sendo
assim
permanente,
essa
amizade
acontece
principalmente entre os velhos, pois é na velhice que se busca o útil e não somente o
agradável na amizade pois nenhum dos dois possuem as qualidades esperadas por eles.
Os amigos que se amam em vista da satisfação dos prazeres são guiados pela emoção e
buscam o que lhe é agradável e o que têm diante dos olhos, ou seja, o que possa lhe trazer
prazer, mas rapidamente se apaixonam como também assim se esquecem de sua paixão,
pois se tais objetivos não são alcançados, logo essa forma de amor se dissolve, porquanto
nem o amante, nem o amado, amava o outro em si mesmo, mas apenas as qualidades que
cada um possui, não sendo de forma duradoura. Finalmente, o amor que conduz os
amigos mais à virtude do que ao vício, pois este tipo de amor só depende dele mesmo,
sendo este descrito por Aristóteles como ações praticadas pelos amigos que visam
estimular à prática de nobres ações tornando assim uma amizade perfeita, pois tanto o
amado quanto o amante se amam de forma igualitária, que é a amizade dos homens qu e
são bons e afins na virtude e desejam igualmente o bem um do outro. Para Aristóteles,
ninguém pode viver sem amigos, pois quando temos amigos temos companheirismo,
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pois a amizade pode manter uma cidade unida, pois buscam acima de tudo a unanimidade
na justiça pois se amam de forma justa, igualmente, vivendo assim em virtude e não
somente pelos prazeres. Esta última manifestação da philia seria, então, classificada por
Aristóteles como sendo a verdadeira essência do amor, encontrando um no outro todas as
qualidades que os amigos devem possuir, pois buscam algo duradoura. Mas toda a
amizade tem em vista o bem ou o prazer, ou que possa ser desfrutado por quem sente
amizade.
3. Considerações finais
O amor e a amizade são, portanto, encontrados principalmente e em sua melhor
forma entre homens desta espécie, pois a philia e o eros se assemelham no que se refere à
nobreza do amor, pois visam o que é nobre e duradouro, visam às coisas da alma e não as
coisas do corpo, sendo assim um amor mais saudável e bom. Assim, procurei mostrar
sinteticamente como Platão, no Banquete, e Aristóteles na Ética Nicomaquéia, vão
construindo a noção de um amor mais voltado para a virtude da alma do que para a satisfação
do corpo. Embora o tema deste artigo se concentre sobre a questão da compreensão do amor
na concepção dos gregos, não podemos abstrair pura e simplesmente do significado que esta
palavra tem nas várias culturas e na linguagem atual. Pois a palavra amor é atualmente a mais
utilizada no dia a dia, tornando-se assim uma das mais abusadas, pois facilmente escutamos a
frase "fazer amor", ficando assim somente na satisfação do corpo, não sendo este duradouro,
mas o amor que tanto Platão quanto Aristóteles descrevem como sendo o amor verdadeiro, é
aquele que visa algo além do corpo físico, de um amor que vise o bem do amado. Hoje essa
palavra ocupa um amplo campo, pois quando falamos de amor, logo nos lembramos de um
amor voltado à prática, ao trabalho, sendo esse tipo de amor ligado as coisas passageiras do
mundo, um amor voltado aos prazeres momentâneos de que Platão trata no Banquete e
Aristóteles na Ética a Nicômaco, mas também temos um amor virtuoso ligado às coisas
duradouras, pois esse amor ainda existe entre amigos, pois o amigo em virtude não deseja o
mal ao seu amigo e de um amor entre pais e filhos, também existe a amizade entre pessoas
mais velhas com os jovens e entre casais que se amam verdadeiramente. De fato, a virtude e a
função de cada uma dessas pessoas são diferentes, e por isso igualmente diferem o amor e as
razões pelas quais as pessoas envolvidas são amigas. Nestas diferentes espécies de amizade,
cada parte, portanto, não recebe a mesma coisa da outra, e nem deveria pretender isso e nem
permitir que os amigos façam isso.
Referências:
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução de Leonel Vallandro e Gerd Borheim. São
Paulo: Abril cultural, 1973.
PLATÃO. Banquete. Tradução de José Cavalcante de Souza. São Paulo: Abril cultural, 1972.
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AUTENTICIDADE E SUPERAÇÃO DA EPISTEMOLOGIA MODERNA EM
CHARLES TAYLOR – Rogerio Foschiera
IFECT – IFRS/Feliz
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Resumo: A perspectiva tayloriana da autenticidade aponta para um confronto inevitável com
a epistemologia moderna. Para o filósofo canadense, o grande perigo é o de submetermos os
fenômenos humanos e sociais ao paradigma científico. Seria o mesmo que reduzirmos o ser
humano e a cultura humana a uma forma um tanto apertada e, com isso, não darmos conta do
conjunto dos elementos constitutivos humanos. A perspectiva da autenticidade não exclui o
paradigma científico, mas necessita de outros paradigmas, principalmente do hermenêutico.
Com a hermenêutica se pode, sob a ótica tayloriana, salvar os fenômenos humanos e sociais.
Os referenciais formativos de pais, professores e cidadãos precisam ser revistos, já que esta
época tende a valorizar e pôr em destaque justamente aquilo que é científico, útil, técnico,
objetivo, racional e material, descuidando-se de, ou desvalorizando elementos subjetivos,
afetivos, valorativos e transcendentes.
Palavras-chave: Taylor. Epistemologia moderna. Hermenêutica. Autenticidade. Educação.
1. A modernidade e a primazia da razão instrumental
A educação deve muito à modernidade e à ciência. Noções como liberdade,
direitos individuais, organização escolar, infância, adolescência, respeito às culturas e às
diferenças são tipicamente modernas e representam um avanço realmente significativo.
Além disso, os avanços técnicos e seus decorrentes benefícios para a vida familiar, para a
saúde, para o conhecimento, para o desenvolvimento humano e social são de uma
grandeza quase indescritível. Contudo, a modernidade tem alguns mal-estares que
precisam ser seriamente considerados. Segundo Charles Taylor, o desencantamento do
mundo que hoje experimentamos se relaciona a um fenômeno extraordinariamente
importante da era moderna que inquieta muitas pessoas. Pode-se chamar isso de primazia
da razão instrumental:
Por “razón instrumental” entiendo la clase de racionalidad de la que nos servimos
cuando calculamos la aplicación más económica de los medios a un fin dado. La
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eficiencia máxima, la mejor relación coste-rendimiento, es su medida del éxito.
(TAYLOR, 1994, p. 40).1
Taylor lembra que, com a modernidade, foram suprimidas as velhas ordens, isto
é: a sociedade deixa de ter uma estrutura sagrada; as convenções sociais e os modos de
atuar deixam de estar assentados na ordem das coisas ou na vontade de Deus; as criaturas
perderam o significado que correspondia a seu lugar na cadeia do ser. Com isso foi
ampliado imensamente o alcance da razão instrumental. De certo modo, esta mudança
tem sido libertadora. Existe, porém, um desassossego ante a razão instrumental que
ameaça apoderar-se da vida. Surge assim um temor de que
[…] aquellas cosas que deberían determinarse por medio de otros criterios se
decidan en términos de eficiencia o de análisis “coste-beneficio”, que los fines
independientes que deberían ir guiando nuestras vidas se vean eclipsados por la
exigencia de obtener el máximo rendimiento. (TAYLOR, 1994, p. 41).2
Conforme o filósofo canadense, a primazia da razão instrumental se comprova
também “en el prestigio y el aura que rodea a la tecnología y nos hace creer que
deberíamos buscar soluciones tecnológicas, aun cuando lo que se requiere es algo muy
diferente. (TAYLOR, 1994, p. 41). 3 Por exemplo, o enfoque tecnológico da medicina tem
feito com que se trate o paciente como um problema técnico, esquecendo que é uma
pessoa completa, com uma trajetória vital. Outro exemplo dado por Taylor é o contraste
entre o ter calefação em casa, em forma de caldeira ou calefação central, com o tipo de
calefação do tempo dos colonizadores, quando a família inteira tinha que se dedicar à
tarefa de cortar e recolher lenha. E ainda, um administrador pode ver-se forçado pelas
condições do mercado a adotar, contra sua própria orientação, uma estratégia
maximizadora que julgue destrutiva. Um funcionário, apesar de sua intuição pessoal,
pode ver-se forçado pelas regras sob as quais trabalha a tomar uma decisão que sabe que
vai contra a humanidade e o bom senso. Considerando a educação no âmbito familiar,
1
Por razão instrumental, entendo o tipo de racionalidade da qual nos servimos quando calculamos a aplicação
mais econômica dos meios para um determinado fim. A eficiência máxima, a melhor relação custo-benefício, é
sua medida de êxito (tradução própria). (TAYLOR, 1994, p. 40).
2
[...] aquelas coisas que deveriam determinar-se por meio de outros critérios se decidam em termos de eficiência
ou de análise custo-benefício, que os fins independentes que deveriam ir guiando nossas vidas se vejam
eclipsados pela exigência de obter o máximo rendimento (tradução própria). (TAYLOR, 1994, p. 41).
3
no prestígio e na aura que rodeia a tecnologia e nos faz crer que deveríamos buscar soluções tecnológicas,
mesmo quando o que se requer é algo muito diferente. (tradução própria). (TAYLOR, 1994, p. 41).
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percebe-se o quanto se tem privilegiado processos técnicos em detrimento dos
relacionamentos e da dimensão humana. As famílias hoje tendem a regular os tempos de
forma mecânica para dar conta de uma série de compromissos aos quais, mesmo as
crianças, são submetidas. A educação escolar também está hoje regulada por estatísticas e
demandas de melhor classificação em termos de resposta a conteúdos. Quase não há
espaço para a construção de relações humanas mais sadias e éticas. A queda das
hierarquias também tem colocado situações novas e não tão bem assimiladas na família,
na escola e na sociedade. Infância e adolescência se têm tornado modelos sociais pela
crença num gozo ilimitado e fora dos limites éticos. Educar para a autenticidade significa
resgatar de forma nova alguns valores básicos para a constituição do ser humano e da
sociedade. A liberdade, a auto-realização, a técnica e a democracia precisam ser situadas
em espaços éticos, em processos humanizadores, construídos no diálogo e dentro do
concebível para o humano e o social. Educar para a autenticidade é preservar as quatro
dimensões definidas pela UNESCO: aprender a fazer, aprender a conhecer, aprender a
conviver e aprender a ser. 4 Para Taylor, no tocante à razão instrumental se encontram
posições extremas. Alguns consideram o advento da sociedade tecnológica como uma
decadência cultural. Perdeu-se o contato com a terra e os ritmos que os antepassados
tinham. Perdeu-se o contato consigo mesmo e com o ser natural, e cada um se vê
impulsionado por um imperativo de dominação que o condena a uma incessante batalha
contra a natureza tanto dentro de si como a seu redor. Nosso autor afirma:
Esta queja contra el “desencantamiento” del mundo ha sido articulada una y otra vez
desde el período romántico, con su nítida sensación de que los seres humanos habían
sido triplemente divididos por la razón moderna: dentro de sí mismos, entre sí
mismos, y frente a la naturaleza. (TAYLOR, 1994, p. 122).5
Conforme Taylor, os defensores da tecnologia pensam que existe solução para
todos os problemas humanos e se mostram impacientes com os que questionam o
desenvolvimento. Os defensores da autenticidade se acham com freqüência na direita e os
4
Cf. DELORS, 1998. p.89.
Esta queixa contra o desencantamento do mundo foi articulada várias vezes desde o período romântico, com a
nítida sensação de que os seres humanos haviam sido triplamente divididos pela razão moderna: dentro de si
mesmos, entre si mesmos e frente à natureza. (tradução própria). (TAYLOR, 1994, p. 122).
5
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da tecnologia, na esquerda. Alguns dos que se mostram críticos com a ética da autorealização são grandes partidários do desenvolvimento tecnológico, enquanto muitos dos
que se encontram profundamente imersos na cultura contemporânea da autenticidade
partilham de pontos de vista dos que são contrários ao domínio tecnológico sobre a
natureza. Para nosso autor, a razão instrumental nos impõe o endurecimento de uma
perspectiva atomista e uma insensibilidade com relação à natureza. Assim, perdem -se de
vista as fontes morais em função de valores atomistas e instrumentalistas. Recuperá-los
permitiria que se encontrasse o equilíbrio no qual a tecnologia não fosse um imperativo
insistente e irrefletido. Para o filósofo canadense, o atomismo é gerado pela perspectiva
científica que acompanha a eficiência instrumental, além de permanecer implícito em
certas formas de ação racional, como a do empresário. E assim essas atitudes adquirem
quase o status de normas e parecem respaldadas por uma realidade social inalterável.
Tem-se a ilusão de dispor de uma capacidade de escolha real, mesmo quando a tendência
é cegar-se ante as opções que se abrem. Se a sociedade tecnológica moderna fechasse as
pessoas numa jaula de ferro, toda a discussão ética não passaria de um gastar saliva em
vão. Se considero, por exemplo, as organizações escolares – refiro-me às privadas – vejo
que nos últimos anos elas têm se alinhado com o mundo empresarial e buscado
profissionalizar sua gestão para poder adequar-se às exigências do mercado e à ampla
concorrência. Contudo, isso não significa que se tenham perdido todos os valores
humanos e educacionais que constituem o humano e sua cultura. O grande desafio é
como continuar formando pessoas sadias em meio aos imperativos do mercado, da
economia, do marketing e dos resultados estatísticos. Uma tarefa complexa, contudo,
educar para a autenticidade é também aprender a lidar com essas amarras, tanto no plano
organizacional quanto pessoal. Em As fontes do self, Taylor destaca o papel de Descartes
na constituição da razão desprendida moderna, ao rejeitar a forma teleológica de
pensamento e abandonar a teoria do logos óntico (o em si do conhecimento). O universo
passa a ser compreendido mecanicamente e conhecer a realidade é ter uma representação
correta das coisas. A ordem das representações deve gerar certeza, por meio de uma
cadeia de percepções claras e distintas. Clareza e diferenciação exigem um passo para
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fora de si mesmo e uma perspectiva desprendida. Taylor destaca que para Descartes a
racionalidade, ou a capacidade de pensar, constitui uma capacidade de construir ordens
que satisfaçam os padrões exigidos pelo conhecimento, ou compreensão, ou certeza. Para
Descartes o autodomínio da razão consiste em que essa capacidade seja o elemento
controlador da vida, e não os sentidos; o autodomínio consiste em que a vida seja
moldada pelas ordens que a capacidade de raciocínio construir de acordo com os padrões
apropriados. Assim se expressa Taylor:
A ética de Descartes, assim como grande parte de sua epistemologia, exige
desprendimento em relação ao mundo e ao corpo e a adoção de uma postura
instrumental em relação a eles. É da essência da razão, tanto especulativa quanto
prática, impelir-nos ao desprendimento. Obviamente, isso envolve um conceito de
razão muito diferente de Platão. Assim como o entendimento correto não vem mais
de nos abrirmos para a ordem das Idéias (ônticas), mas de construirmos uma ordem
de idéias (intramentais) segundo os cânones da évidence, também quando a
hegemonia da razão se torna controle racional não é mais compreendida pelo fato de
estarmos sintonizados com a ordem das coisas que encontramos no cosmo, e sim por
nossa vida ser moldada pelas ordens que construímos de acordo com as exigências
do domínio da razão, isto é, os “julgaments fermes et determines touchant la
connaissance du bien et du mal”, de acordo com os quais decidimos viver.
(TAYLOR, 1997, p. 205).
E Taylor faz ver que disso decorre que a racionalidade não se define mais em
termos substantivos, a partir da ordem do ser, e sim procedimentalmente, conforme os
modelos que ordenam a ciência e a vida. Para Platão, ser racional significa respeitar a
ordem das coisas. Já, para Descartes, significa pensar de acordo com certos cânones.
Agora a racionalidade é uma propriedade interna do pensamento subjetivo, e não mais
uma visão da realidade. Para Descartes o objetivo é obter uma certeza auto-suficiente.
Segundo Taylor, foi Locke quem adotou uma postura realmente radical, aquela que
estabeleceu os termos em que o self pontual viria a ser definido durante o Iluminismo e
depois. Ele foi além de Descartes e rejeitou toda e qualquer forma da doutrina das idéias
inatas. E ao rejeitar a idéia do inato, Locke também está dando vazão à sua perspectiva
profundamente antiteleológica da natureza humana, tanto em conhecimento como em
moralidade. Diz Taylor:
A respeito do conhecimento, Locke coloca-se contra qualquer visão que nos
considere naturalmente inclinados para a verdade ou sintonizados com ela, seja a
variante antiga, de que, enquanto seres racionais, tendemos constitucionalmente a
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reconhecer a ordem racional das coisas, seja a variante moderna, de que temos
idéias inatas, ou uma tendência inata a desenrolar o pensamento na direção da
verdade. (TAYLOR, 1997, p. 216).
Nas palavras de Ralph Cudworth:
O conhecimento é uma Energia Interior e Ativa da Mente em si, e a expressão de
seu próprio Vigor Inato interior, por meio do qual ele Vence, Domina e Comanda
seus Objetos e assim cria uma Percepção Clara, Serena, Vitoriosa e Satisfatória
dentro de si. (CUDWORTH In: TAYLOR, 1997, p. 216).
Para Taylor, Locke reifica a mente de forma radical, ao adotar um atomismo da
mente. As idéias são “materiais”, e tudo que a mente humana pode fazer é juntá-las, ou
colocá-las lado a lado, ou separá-las por completo. E Taylor resume assim a questão:
A concepção moderna de razão é [...] procedimental. O que somos chamados a fazer
é não nos tornar contempladores da ordem, e sim construir uma descrição das coisas
de acordo com os cânones do pensamento racional. Esses cânones são diferentes
para Descartes e Locke, mas a respeito dessa noção básica da razão, esses dois
pensadores são unânimes. O objetivo é chegar ao modo como as coisas realmente
são, mas estes cânones oferecem a melhor possibilidade de conseguirmos isso. A
racionalidade é, sobretudo, uma propriedade do processo de pensar, e não o
conteúdo substantivo do pensamento. (TAYLOR, 1997, p. 220).
O sujeito que pode adotar esse tipo de postura radical de desprendimento para si
mesmo é o que Taylor chama de self pontual. Adotar essa postura é identificar-se com o
poder de objetificar e refazer e, por meio disso, distanciar-se de todas as características
particulares que são objetos de mudança potencial. Nisso está a imagem do ponto, ou
seja, o verdadeiro self não tem dimensão. Tanto a epistemologia de Locke, quanto seu
desprendimento e reificação radicais da psicologia humana tiveram enorme influência no
Iluminismo. Segundo Taylor, Locke se tornou o grande mestre do Iluminismo por
apresentar a nova ciência como conhecimento válido, mesclada com uma teoria de
controle racional do self; e associou as duas sob o ideal de auto-responsabilidade
racional. E Taylor destaca:
Aqui vemos a origem de um dos grandes paradoxos da filosofia moderna. A
filosofia do desprendimento e da objetificação ajudou a criar uma visão do ser
humano, em seu maior extremo em certas formas de materialismo, da qual os
últimos vestígios de subjetividade parecem ter sido eliminados. É uma visão do ser
humano de uma perspectiva inteiramente de terceira pessoa. O paradoxo é que essa
perspectiva rigorosa está ligada, ou melhor dizendo, baseia-se na atribuição de um
lugar central à postura de primeira pessoa. (TAYLOR, 1997, p. 229).
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Taylor destaca o quanto a sociedade moderna empurra para o atomismo e para o
instrumentalismo. Porém, tal visão de sociedade não se sustenta por ser demasiado
simplificadora e por se esquecer do essencial. “Los seres humanos y sus sociedades son
mucho más complejos de lo que puede explicar una simple teoría cualquiera. […] es
cierto que asimismo que las filosofías del atomismo y el instrumentalismo gozan en
nuestro mundo de una posición privilegiada.” (TAYLOR, 1994, p. 126). 6 Mas existem
muitos pontos de resistência a elas como o movimento da época romântica e hoje o
movimento ecológico, que questionam tais categorias. Para Taylor a razão instrumental é
equivocada porque:
Ofrece una imagen ideal de un pensamiento humano que se ha desligado de su
confusa incrustación en nuestra corpórea constitución, de nuestra situación
dialógica, de nuestras emociones y nuestras tradicionales formas de vida a fin de
convertirse en pura y autoverificadora racionalidad. (TAYLOR, 1994, p. 128).7
O que dá crédito à razão instrumental, segundo o autor, é que ela permite
controlar o entorno. Mas, além dessa dominação da natureza pode-se acrescentar a
sensação de si mesmo como razão não comprometida. Isto se funda num ideal moral, o
do pensamento auto-responsável, auto-controlador, um ideal de liberdade, de pensamento
autônomo e auto-gerado. Outro aspecto importante diz respeito à afirmação da vida
cotidiana, à sensação de que a vida da produção e da reprodução, do trabalho e da
família, é o que se tem de mais importante. Em Taylor, a afirmação da vida cotidiana faz
dar uma importância sem precedentes à criação de condições de vida dotadas de um a
abundância cada vez maior e da possibilidade de aliviar sofrimentos numa escala cada
vez mais ampla. Para Taylor, está claro que as instituições da sociedade tecnológica não
impõem uma hegemonia da razão instrumental, porém são ilusórias as esperanças do s
projetos que queriam situar as pessoas totalmente fora dessas instituições. O colapso das
sociedades comunistas tornou inegável que os mecanismos de mercado são
6
Os seres humanos e suas sociedades são muito mais complexos do que uma teoria tão ingênua pode explicar.
[...] é certo que as filosofias do atomismo e do instrumentalismo gozam hoje de uma posição privilegiada.
(tradução própria). (TAYLOR, 1994, p. 126).
7
Oferece uma imagem ideal de um pensamento humano que desvincula da nossa constituição corpórea, de nossa
situação dialógica, de nossas emoções e nossas tradicionais formas de vida a fim de se converter em
racionalidade pura e auto-verificadora (tradução própria). (TAYLOR, 1994, p. 128).
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indispensáveis para uma sociedade industrial, por sua eficiência econômica e por sua
liberdade.
A estabilidade e a eficiência não poderiam sobreviver ao abandono da
economia por parte dos governos. Contudo, mais certo ainda é que a liberdade não pode
sobreviver muito tempo num capitalismo realmente selvagem, com suas desigualdades e
sua exploração sem compensações. Culturas, escolas e famílias se encontram diante de
uma realidade complexa, marcadamente técnico-científica e centrada em resultados
imediatos e numéricos. Educar para a autenticidade não é tarefa simples. Requer um
resgate de dimensões e valores hoje quase esquecidos e por vezes quase que um remar
contra a corrente. Nisto estão a riqueza e a fraqueza desta época. Todo educador hoje
necessita de uma boa leitura de mundo, uma aguçada capacidade hermenêutica, um senso
crítico aprimorado e renovado e uma postura criativa e empreendedora. Uma tarefa muito
pessoal, por isso autêntica, mas que pode e precisa aliar-se a iniciativas coletivas
partilhadas e dialogadas. Educar para a autenticidade só é possível pensando numa
superação da epistemologia moderna.
2. A perspectiva de superar a epistemologia
A epistemologia moderna, essa cartesiana ou lockeana, essa instrumental e
cientificista, é parte do paradigma da autenticidade, contudo, na medida em que se torna
hegemônica e exclusiva, ela gera inautenticidade. Portanto, a educação, ao propor-se
construir autenticidade, deverá lutar pela superação de tal epistemologia, isto é, valer -se
dela para ir além. Taylor considera o que ele denomina de “superar a epistemologia”
como um dos temas que há mais tempo o incomoda. Compara a questão com a Hidra
cujas cabeças serpentinas lançam a destruição em toda a cultura intelectual da
modernidade – na ciência, na crítica, na ética, no pensamento político. Segundo o autor, a
Hidra é a própria “epistemologia”. Trata-se dos pressupostos a que Descartes conferiu
articulação; nisso é central a idéia de se poder chegar a um acordo sobre o problema do
conhecimento, para mais tarde determinar o que podemos legitimamente dizer sobre
outras coisas: Deus, o mundo ou a vida humana. Para Descartes essa é a única maneira
possível e defensável e negá-lo seria irresponsabilidade. Nosso autor vê, nessa atitude de
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Descartes, uma terrível e fatal ilusão, pois supõe erroneamente ser possível ir ao cerne do
que é conhecimento sem recorrer à nossa compreensão “nunca-plenamente-articulável”
(TAYLOR, 2000, p. 08) da vida e da experiência humanas. Há aqui a “tentação de uma
espécie de clareza autocontida” (TAYLOR, 2000, p. 08) à qual a modernidade tem sido
quase infinitamente suscetível. Tanto que a maioria dos inimigos de Descartes – mesmo
nas doutrinas contemporâneas ou consideradas pós-modernas - que pensam estar
superando seu ponto de vista, ainda dão primazia à epistemologia, pois praticam o
“idealismo estrutural” da era epistemológica, definindo sua ontologia, sua concepção
daquilo que existe, com base numa doutrina precedente acerca do que podemos saber.
Taylor cita Quine e Derrida como exemplos dos que continuam a agir no âmbito desse
universo pós-cartesiano, que para ele é um “mundo de cabeça para baixo”, segundo a
expressão de Hegel. Para o autor, Descartes é o originador da noção moderna de que a
certeza é filha da clareza reflexiva. Locke e Hume seguem o mesmo caminho. Em certos
círculos parece ser depositada uma confiança absoluta na definição de relações formais
como um modo de alcançar a clareza e a certeza acerca de nosso pensamento, tanto para
a teoria da escolha racional aos problemas éticos ou para a grande popularidade dos
modelos computacionais da mente. Taylor percebe que quando se volta para as críticas
clássicas da epistemologia vê uma interpenetração entre o científico e o moral. Hegel, na
introdução à Fenomenologia do Espírito, fala de um “medo de errar” que “se revela como
medo da verdade”. Heidegger fala da ascensão do moderno ponto de vista epistemológico
como um estágio no desenvolvimento de uma atitude de dominação do mundo que
culmina na sociedade contemporânea atual. Merleau-Ponty extrai conexões políticas e
esclarece a noção alternativa de liberdade que vem da crítica do empirismo e do
intelectualismo. Por isso Taylor afirma:
É seguro dizer que todos esses críticos se achavam em larga medida motivados por
um desagrado diante das conseqüências morais e espirituais da epistemologia [...]
um importante componente dessas críticas encontra-se no fato de elas estabelecerem
uma nova perspectiva moral pela derrubada da concepção moderna do
conhecimento. (TAYLOR, 2000, p. 20-21).
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Segundo o autor, na base dessa crítica está a forma kantiana de argumentar a
partir de condições transcendentais. Kant fala disso simplesmente como “experiência”;
Heidegger querendo ir além das formulações subjetivas, refere-se ao “trazer-à-luz”
(Lichtung). Há uma continuidade entre Kant e Heidegger, Wittgenstein ou Merleau Ponty. Todos partem da intuição de que esse fenômeno central da experiência, ou o
“trazer-à-luz”, não é tornado inteligível na concepção epistemológica, em sua variante
empirista nem racionalista. Os quatro autores mencionados por Taylor também exploram
as condições da intencionalidade que apontam para uma ruptura com a tradição
epistemológica e com as crenças antropológicas: crenças no sujeito desprendido, no self
pontual e no atomismo. Mesmo para descobrir sobre o mundo e formular descrições
desinteressadas, é importante chegar a um acordo com ele, vivenciar, colocar-se a
observar, controlar condições. Sempre se está engajado como agente que lida com as
coisas. Não se pode recusar o pano de fundo a partir do qual se concebem um objeto para
si, por isso a noção pontual do eu, tal como a noção do agente desprendido, torna-se
impossível. Por fim, também o atomismo sucumbe diante da noção de coletividade e a
linguagem, principalmente com a nova teoria da linguagem surgida no final do século
XVIII, particularmente com Herder e Humboldt, que situa a linguagem não simplesmente
no indivíduo, mas primordialmente na comunidade de fala. O que Taylor está propondo,
apesar de toda sua ruptura com a tradição epistemológica, também está numa linha de
continuação. Em Taylor, tal reflexão envolve conceber a razão como incluindo – ao lado
das formas familiares da Ilustração – a capacidade de articular de modo transparente o
pano de fundo de nossa vida, o que Heidegger chama de “desvelamento”. Em termos de
pensamento moral trata-se de uma rejeição de moralidades baseadas puramente na razão
instrumental, como o utilitarismo, bem como uma distância crítica das moralidades
fundadas numa noção pontual do self, como o são as várias derivações de Kant. Já no
campo da teoria social há uma rejeição de teorias atomistas, de teorias causais redutivas
(como o marxismo “vulgar” ou sociobiologia), e de teorias incapazes de acomodar o
sentido intersubjetivo. Nisso há uma ênfase na liberdade situada e nas raízes da
identidade na comunidade, de um lado, e a tradição humanista cívica, do outro, como
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atestam Humboldt e Arent. Parece que tudo poderia rumar para um conjunto de
conclusões antropológicas com certa matriz moral-político. Mas isso é alvo de sérias
críticas tanto dos defensores da tradição epistemológica quanto dos críticos dessa
tradição, particularmente alguns pensadores que se definem a partir de certa leitura de
Nietzsche, principalmente Foucault e Derrida. Ele afirma:
A concepção nietzschiana trouxe sem dúvida importantes intuições: nenhuma
concepção é inocente, algo sempre é suprimido; e, mais do que isso, alguns
interlocutores sempre têm vantagem com relação aos outros, seja qual for a
linguagem. (TAYLOR, 2000, p. 30).
Mas isso não resolve a questão da verdade entre concepções. E Taylor não hesita
em dizer que são poucos os argumentos sérios nesse domínio e os neonietzscheanos
parecem pensar estar dispensados de apresentá-los. Em suma, os argumentos em favor de
não argumentar seriamente são uniformemente ruins. O problema da superação da
epistemologia possui uma amplitude que não se esgota com facilidade e naturalmente não
possibilita uma síntese. Também, como todas as questões filosóficas bem colocadas,
guarda uma implicação e uma interação com um conjunto de temas que permeiam o
mundo do pensar, do sentir e do viver. Taylor faz um caminho próprio e capaz de
articular novas demandas à epistemologia. A perspectiva tayloriana da autenticidade
representa para a filosofia uma forma nova de se posicionar criticamente sobre a
modernidade, resgatando as questões humanas que ficaram esquecidas. E isso é feito
numa perspectiva contemporânea, sem ser uma simples volta ao passado. Mais que i sso,
uma releitura das possibilidades da modernidade, apontando para uma nova forma de
encarar os desafios atuais. Para a educação, trata-se de uma contribuição fundamental.
Taylor, se bem compreendido, torna-se um referencial teórico capaz de orientar a busca
para dar conta dos problemas atuais no âmbito familiar, escolar e social. Não que ele
tenha as respostas para tudo, não se trata disso, trata-se sim de um pensamento filosófico
capaz de situar no hoje e ajudar na tarefa hermenêutica com relação às teorias atuais e às
práticas culturais atuais. Educar para a autenticidade não é partir de uma teoria e
defendê-la. Educar para a autenticidade é potencializar em cada sujeito e em cada cultura
uma compreensão de si e do entorno, uma compreensão aberta, nunca plena e não
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limitada por paradigmas como o da epistemologia moderna. Dando um passo a mais, a
seguir, pergunto, com Taylor, a respeito do estatuto epistemológico das ciências
humanas.
3. Contra a neutralidade e o naturalismo
Tanto a educação quanto a autenticidade dizem respeito ao ser humano no
pessoal e no social. Daí decorre a necessidade de aprofundarmos, agora no âmbito das
ciências humanas a questão epistemológica. Qual a concepção epistemológica que pode
orientar a educação para que esteja coerente com a perspectiva da autenticidade?
Segundo Costa, o primeiro importante ensaio onde é possível encontrar um tratado
extenso de questões relativas ao estatuto epistemológico das ciências humanas é, sem
dúvida, o escrito de 1967 Neutrality in political science. Neste ensaio, Taylor, em
resumo, recompõe de modo mais orgânico e consciente, algumas das convicções que
amadurecia desde o ensaio de dez anos antes Can political philosophy be neutral? Neste
seu trabalho de juventude,
Taylor aveva criticato l’idea che la filosofia politica possa legittimamente aspirare a
un punto di vista neutrale rispetto alle scelte di valore in campo, sostentndo che una
simile aspirazione è destinata inevitabilmente a provocare una rimozione delle
proprie implicite premesse assiologiche. (COSTA, 2001, p. 51).8
No dizer de Costa, contra a idéia bastante difundida de que uma disciplina, para
ser plenamente científica, deva isolar e descrever os fatos nus e crus e procurar limitar o
mais possível o papel dos valores do pesquisador, Taylor sustenta que, pelo menos no
ambiente da teoria política, a dimensão normativa e a análise dos fatos não podem ser
rigidamente separadas. A definição dos “quadros de referência teóricos” e das “estruturas
conceituais” é indispensável para tornar os dados empíricos significativos e suas
conclusões explicativas. Nas palavras do próprio Taylor:
8
Taylor criticara a idéia de que a filosofia política pode legitimamente aspirar a um ponto de vista neutro ante as
opções de valor em campo, sustentando que semelhante aspiração está inevitavelmente destinada a provocar uma
perda das próprias implícitas premissas axiológicas (tradução própria). (COSTA, 2001, p. 51).
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The framework gives us as it were the geography of the range of phenomena in
question, it tells us how they can vary, what are the major dimensions of variation.
But since we are dealing with matters which are of great importance to human
beings, a given map will have, as it were, its own built-in value-slope. That is to say,
a given dimension of variations will usually determine for itself how we are to judge
of good and bad, because of its relation to obvious human wants and needs.
(TAYLOR, 1985b, p. 73).9
Um terceiro fator que tem obscurecido a importância da autenticidade como
ideal moral tem sido a forma normal de explicação das ciências sociais. Estas se têm
abstido de invocar ideais morais e têm assim aberto mão de fatores essenciais em sua
explicação. Deste modo os traços da modernidade aqui enfocados: o individualismo e a
expansão da razão instrumental têm sido tratados como subprodutos das mudanças
sociais ou como efeitos indiretos da industrialização ou da maior mobilidade, ou da
urbanização. As relações causais são fundamentais, para explicar as atuais mudanças de
cultura e de perspectiva, mas alguns autores tendem a omitir o poder intrínseco dos ideais
morais. Educar para a autenticidade é educar a pessoa para ser pessoa e não para ser
“máquina”. Os referenciais teóricos e valorativos, a subjetividade, o mundo das emoções
não podem ser omitidos ou deixados de lado. Isso não significa abrir mão de qualque r
objetividade ou de busca de questões coletivas, ao contrário, somente quando se
considerar as pessoas como não neutras também se pode articular uma melhor
objetividade e uma melhor coletividade. Uma das características definidoras do
naturalismo, no uso que Taylor dá ao termo, é a crença de que se devem compreender os
seres humanos em termos que mantenham continuidade com as ciências de natureza
extra-humana. Do mesmo modo como estas progrediram ao afastar-se da linguagem
antropocêntrica, por meio da exclusão de descrições que se baseiam na importância das
coisas para as pessoas em favor de descrições absolutas, assim também os assuntos
humanos devem ser descritos idealmente em termos exteriores, não vinculados à cultura.
9
O quadro de referência nos oferece, por assim dizer, a geografia do espectro de fenômenos em questão, diz-nos
como podem variar, quais as principais dimensões de variação. Mas desde que nos ocupamos de questões de
suma importância para os seres humanos, um determinado mapa terá, por assim dizer, sua própria interna
graduação de valores. Equivale isto a dizer que determinada dimensão de variações de norma determinará, por si
só, como deveríamos julgar o que é bom e o que é mau, em razão de sua relação com evidentes desejos e
necessidades humanas (tradução própria). (TAYLOR, 1985b, p. 73).
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Pensadores de tendência naturalista tendem espontaneamente, ao considerar a ética, a
pensar em termos de ação. Essa inclinação tem ajudado a contribuir para a dominância de
teorias morais da ação obrigatória em nossa cultura intelectual. Ao considerar o
naturalismo, além do utilitarismo, Taylor dá um destaque à filosofia kantiana. No dizer
do nosso autor, Kant reabilita a distinção entre ações praticadas por dever e por
inclinação, entre o desejo de felicidade e o respeito à lei moral. Ele rompe com a
concepção utilitarista de que as motivações são homogêneas e retorna à introvisão
agostiniana de que há qualidades radicalmente distintas da vontade. Contudo, Kant
compartilha a ênfase moderna na liberdade como autodeterminação: “Os agentes
racionais têm uma posição que ninguém mais desfruta no universo. Pairam acima do
resto da criação. Tudo o mais pode ter um preço, mas só eles têm dignidade.” (TAYLOR,
1997, p. 115). Essa mistura de concepções kantianas e naturalistas gerou, segundo
Taylor, o quadro do agente humano tão familiar em boa parte da filosofia moral
contemporânea, que tem prestado imensos serviços ao fortalecimento de filosofias morais
modernas de ação obrigatória, as quais tendem a deixar de lado distinções qualitativas,
quando não as negam por completo. “Sua concepção de liberdade e sua suspeita
epistemológica com relação aos bens fortes unem utilitaristas e naturalistas de todas as
linhas, bem como kantianos, nessa supressão.” (TAYLOR, 1997, p. 116). E nisso,
segundo Taylor, há outra motivação dando sua contribuição. Uma característica central
da moralidade iluminista, que revela suas raízes cristãs, é a ênfase na benevolência
prática. É necessário empenho para deixar o mundo mais próspero, para melhorar a
condição humana, aliviar o sofrimento, superar a pobreza. Segundo o filósofo canadense,
diversas combinações de motivações tendem a unir kantianos e utilitaristas em torno de
teorias de ação obrigatória e em torno da concepção procedimental da ética, onde o bom
pensamento corresponde ao bom procedimento. Assim Taylor distingue procedimental de
substantivo:
[...] a razão prática era entendida pelos antigos de forma substantiva. Ser racional
era ter a visão correta, no caso da phrónesis de Aristóteles, uma capacidade acurada
de discriminação moral. Mas, uma vez que se deixa de lado um sentido ou
concepção do bem e é considerado irrelevante para o pensamento moral, a noção de
raciocínio prático deve ter caráter procedimental. A excelência do raciocínio prático
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define-se em termos de certo estilo, método ou procedimento de pensamento. Para
os utilitaristas, a racionalidade é a maximização do cálculo. [...] Para os kantianos,
o procedimento definitivo da razão é o da universalização. (TAYLOR, 1997, p.
118).
Mas, segundo Taylor, é Hegel quem vai conseguir demolir o senso comum
empírico e atomista da cultura científica moderna, explodindo, do interior, aquela relação
distanciada (disengaged) com as coisas e o mundo, típica de toda uma tradição
epistemológica moderna. Para Hegel a experiência das coisas está ligada à interação com
elas. O que é pensado em termos de experiência humana consciente é uma consciência
que vem à luz num ser que já está às voltas (engaged) com seu mundo. Segundo Costa,
tal processo de tomada de consciência é um processo criativo, expressivo, um vir ao ser
onde não só o mundo se modifica, mas o próprio sujeito da atividade se plasma e muda.
Para Taylor, em suma, no agir radica a condição fundamental da expressividade humana;
no nexo intrínseco entre desejos, intenções, motivos e ações. Souza mostra que Taylor,
em sua obra As fontes do self, buscando os bens constitutivos da cultura ocidental
moderna, encontra “o ideal da autonomia calculadora” e “o ideal da expressividade
individual”. “Sua estratégia é compreender a gênese ou arqueologia das concepções de
bem e de como essas evoluíram e adquiriram eficácia social”. (SOUZA, 2000. p. 104.).
Identidade e moralidade são temas intimamente relacionados, por isso a identidade é uma
hierarquia valorativa. O naturalismo nega essa hierarquia, no nível de pensamento e o
utilitarismo a nega na vida cotidiana. Recorda Souza que, para Taylor, a transição para a
modernidade se dá por uma “gigantesca mudança de consciência” a partir de dois
princípios: “da interioridade” e “da afirmação da vida cotidiana”. Apoiando -se em Platão,
Agostinho engendra a noção de interioridade que será radicalizada por Descartes. A
partir disso se estabelece uma diferença qualitativa entre os seres que simplesmente
vivem e os que vivem e têm consciência de que vivem. Descartes dará o passo seguinte
ao objetificar toda a realidade exterior à mente inclusive o próprio corpo (o
desencantamento da matéria). A ética da honra dá lugar à do controle racional, a razão
deixa de ser substantiva e passa a ser procedural (self pontual). O self desprendido passa
a ser naturalizado.
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Referências:
COSTA, Paolo. Verso un´ontologia dell´umano. Antropologia filosófica e filosofia política in
Charles Taylor. Milano: Edizioni Unicopli, 2001. 255p.
DELORS, Jacques et alli. Educação: um tesouro a descobrir. São Paulo: Cortez Editora,
MEC, UNESCO. Brasília, DF, 1998.
SOUZA, Jessé. A modernização seletiva: uma reinterpretação do dilema brasileiro. Brasília:
Editora Universidade de Brasília, 2000. 276p.
TAYLOR, Charles. Human agency and language: Philosophical papers I. Cambridge:
Cambridge University Press, 1985a. 294p.
_________. Philosophy and the human sciences: Philosophical papers II. Cambridge:
Cambridge University Press, 1985b. 340p.
_________. La ética de la autenticidad. Barcelona: Paidos, 1994. 146p.
_________. As fontes do self. A construção da identidade moderna. São Paulo: Loyola, 1997.
670p.
_________. Argumentos Filosóficos. São Paulo: Loyola, 2000. 311p.
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AVALIAÇÃO EDUCACIONAL: PARADIGMAS E CONCEPÇÕES – Maria
Dinora Baccin Castelli
UPF
[email protected]
Resumo: O presente artigo tem o objetivo de sistematizar um estudo embasado nas
concepções de ensino que estão envolvidas no processo de avaliação educacional, em que o
professor deve planeá-lo em função dos seus verdadeiros alunos, suas necessidades e
situações concretas, sociais e econômicas. Para Dewey, o pensamento e a acção devem formar
um todo indivisível, o que implica uma formulação teórica como hipótese ativa para com a
demonstração de situações práticas da vida. Assim, torna-se necessário repensar paradigmas
em relação à avaliação escolar e desta forma utilizá-la não como uma forma de excluir, mas
como um instrumento que auxilia a construção do conhecimento e a reelaboração de
caminhos e saberes discentes.
Palavras-chaves: Avaliação Reflexiva. Dewey. Prática Docente.
Introdução
Durante muito tempo a prática pedagógica não se alterou, mantendo-se afinada
com aquilo que se popularizou como escola tradicional, dentro da tendência "liberal
tradicional. Nesta perspectiva, a avaliação escolar seguiu o modelo tecnicista, sendo
entendida como um instrumento de medida, de verificação do rendimento escolar e das
aprendizagens, para classificar e rotular os alunos entre os bons e os ruins, não na forma
de avaliá-los durante o processo, e sim, apenas como um resultado final. Essas
“notas”(avaliação quantitativa do conhecimento), eram e, em alguns momentos ainda são
utilizadas como referência para a promoção ou não do aluno para uma série mais
avançada. Os resultados obtidos por esses procedimentos não eram interpretados com
interesse em gerar alterações ou intervenções, muito menos para redefinir um
planejamento. Em contraposição a esta lógica, os princípios da pedagogia progressivista
e seus métodos inovadores, vem se chocar com uma prática pedagógica basicamente
tradicional. A pedagogia progressista parte de uma análise crítica das realidades sociais,
sustentando implicitamente as finalidades sócio-políticas da educação. Na prática escolar
encontra os pressupostos de aprendizagem onde a motivação depende da força d e
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estimulação do problema e das disposições internas e interesses do aluno. Assim,
aprender se torna uma atividade de descoberta, é uma auto-aprendizagem, sendo o
ambiente apenas o meio estimulador. É retido o que se incorpora à atividade do aluno
pela descoberta pessoal; o que é incorporado passa a compor a estrutura cognitiva para
ser empregado em novas situações. A avaliação é fluída e tenta ser eficaz à medida que
os esforços e os êxitos são pronta e explicitamente reconhecidos pelo professor. Em
Dewey, o principal foco da aprendizagem é a experiência que cada aluno tem e que esta
poderá enriquecer a experiência dos outros alunos, e também este aluno se enriquece com
as experiências dos outros e neste caso, há um recíproco dar e receber. A avaliação assim,
vem sendo vista e reconhecida como uma das mais importantes ferramentas pedagógicas
docentes, na busca de encontrar caminhos que objetivem dimensionar o aprendizado dos
discentes. Que a Educação seja pragmática, conciliando o teórico e o prático, de modo
que o conhecimento teórico não seja meramente formal.
Adotar novas concepções
avaliativas requerem tempo, envolvimento e principalmente, postura reflexiva dos
profissionais e, para que novas estratégias avaliativas sejam implantadas e, dar conta das
novas exigências no que tange a educação, importante perguntar o que significa avaliar
no atual contexto social? Sob que paradigmas se concebe a avaliação? De que forma a
avaliação pode vir a contribuir para com a construção de uma nova concepção
educacional? Quais os preceitos que fundamentam uma avaliação não excludente? A
cerca dessas elucidações, foi construído o presente texto que compreende nossas
indagações, preocupações e quiçá o apontamento de alguns caminhos, traçados a partir da
imersão teórica, das vivências e dos saberes construídos no cotidiano docente, em que a
avaliação escolar é tida como um instrumento que auxilia a construção do conhecimento
discente na elaboração dos saberes. Na pedagogia deweyana, o papel do professor é de
ser um orientador e colaborador direto do aluno, onde este deverá aprender com os alunos
e também os alunos deverão aprender com a sua experiência. O professor tem como
tarefa, descobrir os verdadeiros desejos, gostos e interesses do aluno, e apoiar -se nestes
interesses e desejos para levar o aluno à aprendizagem, à disciplina, de modo que este,
por si, e através da orientação do professor adquira os verdadeiros valores educativos.
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Avaliação: um processo na (re)elaboração dos saberes
A avaliação tem de ser concebida como um processo, um meio e não
minimamente um fim da aprendizagem. O docente ao assumir uma postura reflexiva,
avalia a sua práxis pedagógica e, ao avaliar, analisa, e ao analisar percebe os resultados
obtidos, objetivando corrigir tal prática. “Não é possível praticar sem avaliar a prática”.
(FREIRE, 1989, p. 47). Neste sentido, avaliar é um processo constante de ação -reflexãoação, que possibilita acompanhar o processo de aprendizagens, as possibilidades, as
dificuldades, oportunizando ao professor planejar e visualizar ações e/ou caminhos, no
sentido de auxiliar de maneira significativa os alunos durante o processo de
aprendizagem, para que assim, o ato educativo realmente se efetive. No processo
avaliativo, o profissional em educação assume o papel de investigador. Para tanto,
percebe quais as potencialidades, habilidades e dificuldades enfrentadas pelos discentes
para finalmente, estabelecer estratégias no intuito de ajudá-los a superar possíveis
dificuldades. Relevante pontuar que a práxis do professor deve visar à promoção da
aprendizagem dos alunos, garantindo e assegurando as aprendizagens. Desta maneira,
torna-se pontual, que o docente reveja o currículo, o seu plano de curso, o planejamento
como também os métodos adotados. Rever a própria prática pedagógica, reconhecer e
respeitar o conhecimento prévio que o aluno possui, exige do profissional conceber a
avaliação não como uma aferição de conhecimentos, nem como forma de medir o que
cada um sabe, nem tampouco como um aspecto do processo pedagógico a ser cumprido, e
sim, entender o conhecimento como algo a ser construído na relação sujeito-objeto,
visando informar o “estágio de desenvolvimento em que os alunos se encontram num
dado momento, como também o processo através do qual ele está elaborando o seu
conhecimento.” (RABELO, 2003, p.12). Importante o aluno perceber que o professor está
interessado no seu sucesso escolar, bem como precisa sentir e vê-lo como um facilitador
do processo de aprendizagem para que possa vir a ter confiança em si mesmo e
motivação para aprender. Garcia pontua que “O prazer de aprender desaparece quando a
aprendizagem é reduzida a provas e notas; Os alunos passam a estudar “para se dar bem
na prova” e para isso tem de memorizar as respostas consideradas certas pelo professor
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ou professora”. (GARCIA, 2003, p. 41) A avaliação assim, precisa ser compreendida
como uma das ferramentas de apoio ao professor, não uma forma engessada de avaliação,
traduzida em provas e médias. A prova pode ser um dos instrumentos utilizados para a
avaliação, porém, não o único, nem tampouco um instrumento de controle e de punição, e
sim que vise o êxito escolar, não sua classificação ou exclusão. Acima de tudo é preciso
pensar não só em avaliação, mas todo o processo ensino e aprendizagem como um ato
amoroso. Torna-se assim, fundamental evidenciar
que o docente tem de se mostrar
preocupado com o aprendizado do aluno, objetivando a formação destes, em cidadãos
críticos e participativos.
Avaliar para quê?
Historicamente, a avaliação escolar tem sido uma das grandes preocupações
docentes quando de sua efetivação, sendo que não basta a este profissional apenas mudar
a maneira de avaliar se não mudar a sua prática educativa, sua visão de mundo e o seu
olhar mediante à construção do conhecimento. Dewey percebe que a educação é
fundamentada principalmente, com base, na experiência de vida do indivíduo, “a
Educação é o processo da renovação das significações da experiência, por meio da
transmissão acidental “(DEWEY, 1959, p.354). Neste sentido, o professor deve observar
atentamente e individualmente o seu aluno no processo de ação-reflexão-ação,
possibilitando ao primeiro, acompanhar o nível de elaboração e síntese do conhecimento,
do segundo refletir sobre como e quais intervenções servirão para auxiliá-lo no
replanejamento de sua ação, contribuindo para as aprendizagens. Segundo Stecanela, “a
avaliação deve ser contínua, processual e permanente para cumprir seu papel diagnóstico,
contemplando o erro como parte do processo de construção do conhecimento” (2006,
p.49), em que, diante de um possível erro por parte do aluno, o professor deve refletir e
planejar situações para provocá-lo a reorganizar suas ideias, possibilitando a
reformulação de hipóteses que o levem ao aprofundamento de determinados saberes.
Conforme consta na LDB (9394/96), a verificação do rendimento escolar observará os
seguintes critérios: “a avaliação contínua e cumulativa do desempenho do aluno, com
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prevalência dos aspectos qualitativos sobre os quantitativos e dos resultados ao longo do
período sobre as eventuais provas finais”. Avaliar é construir ferramentas que
provoquem, identifiquem e respeitem os processos de construção do conhecimento, a fim
de promover e não excluir. A educação não deve negar o risco e, sim estimular o aluno a
assumi-lo. Isso o prepara e o torna apto para enfrentar os desafios da vida. . Diante de
tais observâncias, Luchesi ressalta que:
[...] A prática da avaliação da aprendizagem, em seu sentido pleno, só será possível
na medida em que se estiver efetivamente interessado na aprendizagem do
educando, ou seja, há que se estar interessado em que o educando aprenda aquilo
que está ensinando [...] Nós, professores, assim como normalmente os alunos e seus
pais, interessamo-nos pela aprovação ou reprovação dos educandos. Porém, estamos
pouco atentos ao seu efetivo desenvolvimento. (2003 p.99)
Desta forma se deve repensar os aspectos que envolvem a avaliação, e que exige
uma ruptura de certas concepções presentes nas práticas docentes, é preciso uma
mudança de paradigmas e acreditar que “todo ser humano aprende: se não aprendesse não
seria humano” (CHARLOT, 2000). Fica claro, que a avaliação, quando se limita à
resolução de provas, não cumpre com seu objetivo que é inicialmente diagnóstico.
Porém, para conhecer e confiar numa avaliação mediadora e democrática, faz-se
necessário buscar novas posturas e estratégias no que tange a aferição das aprendizagens
e do desempenho dos alunos. Pontualmente, a avaliação deve ser entendida em seu
significado mais profundo, pois oportuniza a todos os envolvidos no ato educativo
momentos de reflexão. Tais reflexões materializam-se no direcionamento do trabalho
através da elaboração de novos caminhos e ações, onde privilegia o aluno como um ser
social, que possui experiências, vivências e conhecimentos os quais devem ser
valorizados na escola. Conforme destaca Rabelo, é pontual “avaliar não só o aluno, seu
conhecimento, mas também toda uma proposta de escola, possibilitando, validar e/ou
rever o trabalho pedagógico, a cada momento em que isto se fizer necessário.” (2003,
p.12). A avaliação nesta perspectiva, é realizada de maneira a acompanhar a construção
do conhecimento, na verificação das dificuldades, nas possibilidades e potencialidades
dos alunos, bem como auxiliar no planejamento e na práxis do professor na busca de
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caminhos que objetivem dar respostas às suas dúvidas e ou dificuldades no que dizem
respeito ao processo de ensino aprendizagem.
Considerações finais
Este artigo teve a pretensão de suscitar não somente o debate, mas,
principalmente, a consolidação de práticas que efetivem a construção e a realização de
ações transformadoras advindas ao encontro da consciência dos valores e significados de
uma prática avaliativa não excludente, apontando para um repensar à avaliação escolar do
docente em relação ao discente. Diante das reflexões apresentadas, podemos perceber que
na prática docente, o planejamento deve ser constantemente avaliado na busca de novos
caminhos para sua práxis, onde o trabalho deve ser realizado com ética, respeito e
fundamentado no diálogo, na observação, na reflexão e na valorização do aluno e das
aprendizagens. Este profissional tem de ter consciência que o acompanhamento e o olhar
atento e constante para com seus alunos, lhe permite replanejar sua prática, tendo por
intuito, a adoção de métodos e posturas que agreguem conhecimento e crescimento do
aluno no processo ensino aprendizagem.
Assim, compreendemos que a avaliação
educacional vem a ser um grande desafio a ser transposto, e para tanto, demanda tempo,
comprometimento, consciência de si e do outro como seres historicamente sociais,
deflagrando através de rupturas conceituais, a construção de novas concepção
paradigmáticas pautadas na formação de cidadãos críticos e participativos para com o
processo da aprendizagem.
Referências:
CHARLOT, Bernard. Da relação com o saber: elementos para uma teoria. Porto Alegre:
Artmed, 2000.
DEWEY, John. Democracia e Educação. 3 ed. S. Paulo: Nacional, 1959.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da indignação: cartas pedagógicas e outros escritos. São Paulo:
UNESP, 2000.
_____. A importância do Ato de ler: em três artigos que se completam. São Paulo: Autores
Associados: Cortez, 1989.
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GARCIA, Regina Leite. A avaliação e suas implicações no fracasso e sucesso. In ESTEBAN,
Maria Teresa (Org.) Avaliação uma prática em busca de novos sentidos. 5º ed. Rio de Janeiro,
DP&A, 2003.
HOFFMANN, Jussara. Avaliação Mediadora: Uma prática em construção da pré-escola à
universidade. Porto Alegre: Educação & Realidade, 1993.
LDB, Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional; Lei nº 9.394 de 20 de dezembro de
1996).
LUCHESI, Cipriano Carlos. Avaliação da aprendizagem escolar: estudos e proposições. 15ª
ed., São Paulo: Cortez, 2003.
RABELO, Edmar Henrique. A avaliação novos tempos, novas práticas. Rio de Janeiro:
Vozes, 2003.
STECANELA, Nilda. MORÉ, Marisa Mathilde. ERBS, Rita Tatiana. Fundamentos da Práxis
Pedagógica v.2: Pedagogia. Caxias do Sul, RS: EDUCS, 2006.
SAYÃO, Sandro Cozza. CARBONARA, Vanderlei. Fundamentos da Educação v. 1:
Filosofia, Antropologia. Caxias do Sul, RS: EDUCS, 2004.
VASCONCELLOS, Celso dos Santos. Planejamento: Projeto de Ensino-Aprendizagem e
Projeto Político-Pedagógica, São Paulo, SP: Libertad, 2005.
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CONSCIÊNCIA E EGO: A ORIGINALIDADE NA FILOSOFIA DE SARTRE
– Helen Aline dos Santos Manhães
UNIOESTE/PET Filosofia
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Resumo: A principal obra filosófica de Sartre, O ser e o nada, centra sua temática na
constituição do modo de ser do homem - o Para-si. A estrutura ontológica da realidade
humana tem a consciência enquanto fundamento e, portanto, será voltado para ela que Sartre
irá construir sua concepção. O modo de ser e se constituir da consciência conduz à
investigação da questão do Ego do sujeito: opondo-se à tradição, o filósofo francês propõe a
expulsão do Ego da consciência em virtude da própria constituição desta - sendo límpida e
translúcida não poderia conter algo como um Eu, que resultaria em criar nela um centro de
natureza diversa da sua. Assim, o intuito é apresentar o modo pelo qual a consciência se
constitui e, enquanto desdobramento, a saída do Eu da consciência, que trata de um dos
pontos mais originais da filosofia sartreana.
Palavras-chave: Consciência. Para-si. Ego.
Homem e mundo são pensados, para Sartre, dentro dum sistema ontológico, ou
seja, a partir de seu fundamento, do modo de ser próprio a cada um. Estes modos de ser
diferem entre si radicalmente. O mundo é chamado ser-em-si. Tal expressão designa o
modo de ser que, como afirma Sartre, é opaco, é fechado em si mesmo, não constrói
relação com nada exterior nem consigo mesmo porque é isento a qualquer
transcendência. O em-si é descrito integralmente em três afirmações: o ser é em-si; o serem-si é; o ser-em-si é o que é 1. Fora isto nada se diz dele. Por outro lado, o homem é serPara-si. Esta expressão revela o caráter de transcendência, próprio ao homem, que é o ato
de ultrapassar-se em direção ao que está fora, sair de si e alcançar o que está posto em
diante. Tal atitude, de posicionar o objeto como existente, é o modo próprio de ser da
consciência: “toda consciência é consciência de alguma coisa” (SARTRE, 2009, p. 33).
Investigar a estrutura, o ser da consciência é, portanto, a tarefa que se impõe. O primeiro
1
O ser é em-si (ele não realiza transcendência nem é capaz de construir relação, ele é “preso” em si mesmo); o
ser-em-si é (ele possui determinações, é pleno de ser, não há nele vazio algum a ser preenchido porque toda a sua
existência é já completa desde que surge); o ser-em-si é o que é (ele identifica-se consigo mesmo integralmente,
coincide absolutamente com aquilo que é, não lhe restando nenhuma ausência ou falta).
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modo da consciência surgir é pela intencionalidade, que estabelece a real relação entre o
homem e o mundo. É este o tipo de consciência que me propicia conhecimento, seja do
mundo, seja de mim mesmo.
Toda consciência é posicional na medida em que se transcende para alcançar um
objeto, e ela se esgota nesta posição mesma: tudo quanto há de intenção na minha
consciência atual está dirigido para o exterior, para a mesa; todas as minhas
atividades judicativas ou práticas, toda a minha afetividade do momento,
transcendem-se, visam a mesa e nela se absorvem. (SARTRE, 2009, p.22)
Assim, há consciência posicional do mundo e de si, pela qual surge a dicotomia
sujeito-objeto própria da modernidade, justamente por se tratar duma relação de
conhecimento. Esta consciência é semelhante ao cogito cartesiano, que é a apreensão
reflexiva de mim por mim mesmo, pela qual me conheço como ser que pensa. Mas,
diferentemente de Descartes, a consciência para Sartre não é de modo algum uma
substância. Voltemos a isso mais tarde. Esta consciência posicional do mundo, que é a
consciência cognoscente, tem como condição necessária e suficiente que seja consciente
de si mesmo enquanto conhecimento. Se apreendo esta mesa diante de mim e conheço -a,
isto é possível apenas enquanto sou consciência de ser conhecimento: minha consciência
de mesa é, ao mesmo tempo e primariamente, consciência de ser consciência de mesa;
caso contrário, seria uma consciência ignorante de si mesma, uma consciência
inconsciente – um absurdo. Assim, surge um novo modo de consciência, que não é
posicional nem determina uma relação de conhecimento. Antes, é a própria condição da
consciência posicional e, assim, é condição de qualquer conhecimento. A consciência de
consciência, de que fala Sartre, é a consciência de si do sujeito, mantida por um vinculo
imediato, intuitivo e não cognitivo. Ela é chamada de consciência (de) si 2 ou cogito préreflexivo. Afirma Sartre: “(...) toda consciência posicional do objeto é ao mesmo tempo
consciência não posicional de si.” (SARTRE, 2009, p. 24) Isto significa que, quando
posiciono um objeto transcendente do mundo e dirijo a ele toda a minha intenção, não
posiciono ao mesmo tempo minha própria consciência, porque minha atenção encontra -se
2
Os parênteses indicam que tal consciência não é posicional, que trata-se duma consciência imediata de si e não
da consciência tética, reflexiva. Por questões gramaticais, pela dificuldade em dizer tal modo de consciência, os
parênteses são utilizados.
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voltada totalmente para fora. No entanto, não deixo de ser consciência de mim mesmo (se
assim fosse, seria uma consciência inconsciente). Só posso ter a percepção da mesa
porque sou, simultaneamente, consciência de percepção. A condição original para pensar,
sentir, imaginar é ser, ao mesmo tempo, consciência de pensamento, sentimento,
imaginação. E esta consciência de pensamento é justamente minha consciência préreflexiva, que está “implícita” em cada ato de perceber e conhecer, porque a condição de
possibilidade para estes atos é que o ato e a consciência do ato já surjam juntos. Quando
percebo a mesa e a investigo em busca de suas propriedades, por exemplo, não me
percebo, ao mesmo tempo, como aquele que percebe a mesa porque minha intenção está
na mesa. E, no entanto, há uma consciência (de) mim momentaneamente “esquecida”,
que está desfocada, mas que nem por isso deixa de existir; ao contrário, é porque ela
existe que sou consciência propriamente, e por ela que sou conhecimento, percepção...
Assim, Sartre elimina a primazia da reflexão presente no cogito cartesiano: o penso, logo
existo não é mais a condição primeira de todo o sistema de verdades, pois ela tem um
fundamento anterior a si mesma: “existe um cogito pré-reflexivo que é condição do
cogito cartesiano.” (SARTRE, 2009, p. 24) Significa dizer que o modo primário da
consciência ser e se relacionar consigo mesma não é o conhecimento que tem de si, antes,
constitui-se numa relação de ser. Em cada atividade da consciência ela é já
reconhecimento pré-reflexivo de ser consciência. Ou seja, para que eu me tome como
objeto para mim mesmo, pelo cogito reflexivo, para que eu me constitua enqu anto sujeito
que pensa, é porque já sou consciência de pensar, e é esta consciência, imediata e sem
distância nenhuma consigo mesma, que é o modo originário de qualquer consciência.
Tem-se como conseqüência desta concepção que a consciência nada tem de substancial.
Na medida em que ela só existe enquanto consciente (de) si, explica-se a famosa frase
sartreana: “a existência precede a essência”; pois, não há como inferi-la antes de que
exista – não se pode derivá-la de coisa alguma. Para que ela seja substancial é necessário
que esta substância seja já determinada, já possua uma essência, como o “ser pensante”
de Descartes. Mas este “ser pensante” só se reconhece como pensante porque já é
consciência e, portanto, não é anterior a ela, mas é ela própria. É por que a consciência
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primeiro existe e só então se determina que decorre sua não substancialidade. Qual seria
então a natureza da consciência? Sartre a define como um acontecimento absoluto,
concreto, pleno, que surge no seio do ser e só é na medida em que aparece, ou seja, é
pura aparência, mas que não pode ser derivada de nada: ela existe por si. É o que exprime
Husserl quando fala da “necessidade de fato”. Desta forma, para a consciência, ser e
aparecer identificam-se. Então, esta é a estrutura básica da consciência: ser vazia de
qualquer substância própria para abarcar aquilo que está diante de si. Desta forma chega se à constituição do homem: o ser do homem, fundamento do para-si, é o nada, ou seja, a
ausência de ser, de determinação própria, justamente porque, em seu ser, é um lançar-se
para o que está fora, para aquilo que ele não é. O homem só descobre o mundo fora de si
porque em seu ser é vazio. Sartre se utiliza, na obra Situações I, de uma metáfora para
ilustrar o movimento da consciência: ela é como uma explosão, constantemente jogandose para fora, para ao longe, algo que não se retém em si mesmo.
Imaginem agora uma seqüência encadeada de explosões que nos arrancam de nós
mesmos (...) Ser é explodir para dentro do mundo, é partir de um nada de mundo e
de consciência para subitamente explodir-como-consciência-no-mundo. Se a
consciência tentar se reconstituir, coincidir enfim consigo mesma, então
imediatamente, a portas fechadas, se aniquilará. Essa necessidade da consciência de
existir como consciência de outra coisa que não ela mesma, Husserl a chama de
intencionalidade. (SARTRE, 2005, p. 56 - 57)
Como poderia, então, sob tal definição do modo de ser da consciência, que
houvesse um Eu presente nela? Tal hipótese, afirmada por Husserl, significaria, segundo
Sartre, a inserção dum ponto de opacidade na consciência, dum centro infinitamente
concentrado em meio ao seu vazio original, seu movimento original de “se extravasar”
constantemente. O problema do Eu é investigado por Sartre em sua primeira obra
filosófica, A transcendência do Ego. Segundo ele: “crê-se ordinariamente que a
existência de um Eu transcendental se justifica pela necessidade de unidade e de
individualidade da consciência.” (SARTRE, 1994, p. 47). Estando, pois, na consciência,
formal ou materialmente, o Eu seria o pólo de unidade de seus atos e estados, aquilo do
qual eles se originam e a partir do qual recebem sentido, ligação, unidade e
individualidade, que permite que se diferencie duas consciências de dois sujeitos através
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da criação duma interioridade. Em oposição à tradição, Sartre inaugura uma concepção
autêntica. Afirma ele que o Eu é supérfluo e não tem razão de ser:
É a consciência que se unifica a si mesma e, concretamente, por um jogo de
intencionalidades “transversais”, que são retenções concretas e reais das
consciências passadas. Assim, a consciência remete perpetuamente para si mesma,
quem diz “uma consciência” diz toda a consciência e esta propriedade singular
pertence à própria consciência. (SARTRE, 1994, p. 47 – 48)
Assim, deste modo, retira-se o Eu da consciência, pois ele deixa de ser condição
de unificação e individuação: a consciência, por sua própria natureza, realiza tal unidade.
Muda-se o estatuto ontológico do Eu: do Eu transcendental passa-se ao Eu transcendente,
ou seja, de habitante da consciência e sua condição de possibilidade e, portanto, uma
estrutura transcendental do Para-si, ele torna-se apenas a expressão da unidade da
consciência e, enquanto tal, apenas uma criação dela, em nada fundamental ou originári o,
mas apenas um objeto que a consciência cria e que encontra-se no mundo como qualquer
outro objeto ou Ego, chamado então de Ego transcendente. Nesta mudança reside a
originalidade de Sartre: ele expulsa o Ego da consciência e o transforma numa estrutura
supérflua, criada pela consciência reflexiva através da generalização e da elevação ao
infinito de consciências instantâneas. Assim, toda sua teoria acerca do Eu fundamenta -se
na idéia do cogito pré-reflexivo, que é o modo próprio da consciência e a condição para
qualquer reflexão, pois através dele se tem a experiência da consciência sem o Eu, uma
consciência impessoal que encontra-se, ela sim, no campo transcendental, enquanto
condição de possibilidade de qualquer experiência. Assim, Sartre inverte os ter mos da
questão: o Eu torna-se o produto final da consciência e não mais seu centro originário,
sua fonte. Surgem de tal concepção, no entanto, diversas implicações que devem ser
analisadas. A própria noção de que a consciência cria e sustenta sua própria u nidade e
individualidade apresenta-se ainda um tanto obscura à primeira vista, visto que Sartre se
refere a elas como uma espécie de ligação mágica. Tais questões constituirão o foco de
pesquisas futuras.
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Referências:
SARTRE, Jean-Paul. A transcendência do ego. Tradução de Pedro M. S. Alves. Lisboa:
Edições Colibri, 1994.
______. O existencialismo é um humanismo. In: Os pensadores. 3a edição. São Paulo: Nova
b
Cultural, 1987 .
______. O ser e o nada: ensaio de ontologia fenomenológica. Tradução de Paulo Perdigão.
Petrópolis: Vozes, 2009.
_______. Uma ideia fundamental da fenomenologia de Husserl: a intencionalidade. In:
Situações I: crítica literária; tradução de Cristina Prado; prefácio de Bento Prado Jr. São
a
Paulo: Cosac Naify, 2005 .
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COSMOLOGIA, FILOSOFIA E EDUCAÇÃO – Remi Schorn
Unioeste/Capes-Pibid
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Resumo: O telos norteador de toda a ação educativa é a constituição de visões
progressivamente mais amplas e mais consistentes, entretanto, objetivas e, assim, sujeitas a
críticas. Nossa tese é que o papel do professor, portanto, deve ser o de perceber as potenciais
relações conceituais dos educandos e incentivá-las para que, assim, se tornem elementos de
autoconstituição cognitiva e não domínio impessoal de conteúdos previamente definidos e
impostos. Somente o debate aberto e livre de hierarquias, quando o erro é admitido com
normalidade para que com sua identificação haja avanço, pode formar personalidades
comprometidas visceralmente com o mundo em que vivemos. O conhecimento autônomo
conduz à responsabilidade, a tutela à violência e ao desleixo.
Palavras-chave: Racionalidade. Professor. Estudante.
Somos todos filósofos
Nossas dúvidas são traidoras e nos fazem perder o que,
com frequência, poderíamos ganhar,
por simples medo de arriscar.
W. Shakespeare
Todos os seres humanos são constituídos e orientados, tanto em sua
espiritualidade mais sensível, quanto em suas manifestações corporais mais violentas, por
elementos filosóficos. Carregamos culturalmente uma amostra positiva e, igualmente
uma negativa de todo o passado teórico e, por isso, somos todos filósofos. Quando
continuamos as obras dos pensadores do passado ou quando estamos impregnados de
preconceitos filosóficos, ainda assim, constituímos o ambiente da filosofia, temos uma
unidade cosmológica. Foi por isso que sempre houve conflito e vigor teórico. Com a
ciência moderna, fruto de uma imensa tarefa de construção especulativa, a qual, seguida
pela verificação crítica que lançou mão de toda instrumentalidade cognitiva disp onível,
apontou as contradições do sistema e impôs reconstruções criativas. As interrogações
tradicionais da filosofia tratam dos temas que inquietam e sempre, novamente, implicam
respostas das quais as ciências particulares se utilizam e delas retiram con sequências
empíricas. As ciências nascem duplamente, portanto, com o homem: elas se identificam
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com o próprio processo de autoconstrução, de autoemergência do homem ao reino do
ciente e resultam, também, como resposta racional aos desafios que as grandes q uestões
cosmológicas representam. Mesmo assim, não é filosófico crer em teorias, sejam elas
universais ou parciais, pois a legitimidade racional é conquistada pela crítica teórica
radical. A seguir, relacionamos algumas das concepções que julgamos serem as mais
importantes e cujas fontes teóricas variáveis são, majoritariamente, transmutações
atribuídas ao racionalismo crítico e, mais especificamente, a Karl Popper: 1. T odos
somos filósofos; 2. Não há elite filosófica profissional ou acadêmica. Os pré-socráticos
filosofaram muito bem sem a filosofia profissional ou acadêmica. Os mais doutos podem
ser os mais irracionais; 3. A filosofia não é acadêmica, é humana. Hoje a filosofia é
desmedidamente acadêmica e, no entanto, perde espaço nos grandes debates no m undo
todo. A filosofia acadêmica tem reproduzido ou debatido filigranas enquanto as grandes
questões cosmológicas que dizem respeito a todos os seres e saberes foram relegadas ao
segundo plano no âmbito acadêmico; 4. A filosofia contemporânea tem sido surp reendida
por
cientistas,
artistas,
linguistas,
matemáticos,
entre
outros,
que
constituem
entendimentos filosóficos relevantes. Darwin, Newton e Einstein, ou mais recentemente,
Deutsch, Maturana, Smolin e De Duve, são alguns dos testemunhas de que a filosof ia não
é autossuficiente ou pura. Seus programas de pesquisa cosmologicamente metafísicos,
abrangem tudo o que há; entretanto, relacionam proximamente a teoria do conhecimento
e permitem simetrias com os campos específicos; 5. A demarcação entre a filosofi a e os
demais saberes é ainda mais artificial do que aquela entre as ciências. Nenhum fenômeno
pode ser compreendido por uma forma particular de conhecimento e não há nada que fuja
à filosofia; 6. A antimetafísica é antifilosófica. Devemos começar movidos pelos desafios
patrocinados pelas limitações à nossa existência e ao nosso entendimento, produzir
conjeturas cosmológicas e constituir, assim, os problemas filosóficos. Destes decorrem,
tanto as interrogações específicas, quanto as ideias para respondê-las provisoriamente.
No entanto, a metafísica, enquanto tal, não é antagônica ao pensamento racional e
falseável, seus componentes não dogmáticos são aptos à especulação e ao entendimento e
podem ser criticados racionalmente. Assim, com exceção das concepções teológicas, cuja
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defesa de fundamentos inquestionáveis impede a crítica radical, a metafísica pode ser
objeto de apreensão racional; 7. A filosofia é busca de precisão e exatidão, bem como é
busca por fundamentos ou estruturas conceituais; entretanto, quando o teórico pretender
ter encontrado tais fundamentos, já não é mais filósofo, é doutrinário, dogmático,
embrutecedor. A certeza conduz a Auschwitz e a dúvida leva ao esclarecimento, à
emancipação e à liberdade; 8. A filosofia não pretende revelar o espírito da época, o
inconsciente, a subjetividade. O filósofo deve problematizar as superstições, não criá -las
ou aboná-las; 9. A filosofia é crítica às teorias e preconceitos filosóficos presentes na
cultura humana e, por isso, deve refutar, por exemplo, a tese homérica de que “a inveja
dos deuses causou a desgraça de Troia”, ou que “Posseidon, irado, tentou evitar o retorno
de Odisseu”. Igualmente, deve refutar a tese cristã de que “o demônio é responsável pelo
mal”, assim como a tese marxista vulgar de que “os capitalistas impedem a sociedade
perfeita”. Isso porque a teoria da conspiração não é crítica e, com tais concepções,
perdemos a oportunidade de aprender e contrapor nossos adversários teóricos. Ao
buscarmos culpados, paralisamos a reflexão, posto que a culpa é um conceito teológico
não reflexivo; 10. Se hoje existe filosofia, é porque o pensamento crítico vence o
dogmatismo e permite a unidade da humanidade na racionalidade comum, que busca a
liberdade. A intelectualização não é um capricho, mas uma necessidade humana natural;
11. A filosofia permite a interação racional entre todos os saberes, o vínculo objetivo
entre os programas metafísicos e as abordagens específicas em campos determinados de
conhecimento; por isso, ela é uma disposição ao uso da razão crítica e está presente como
uma dimensão de todas as áreas do conhecimento; 12. A especialização é o túmulo do
filósofo: o conhecimento é relação conceitual e os conceitos remetem a referentes que,
proporcionalmente à sua abrangência e sua consistência teórica, constituem visões da
realidade. É tarefa filosófica da maior importância a relação teórica abrangente, assim
como é a crítica a seus limites e a proposição de sua ampliação; 13. A filosofia é a
possibilidade da autoconstrução constante da humanidade, mas não é sua garantia, não há
garantias, nada está garantido ou salvo da ignorância que é sempre imensamente superior
à sabedoria. Por isso mesmo, a filosofia será sempre necessária, relevante e desejável, é
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ela que aplaca nossa curiosidade, é ela que revela nossa humanidade na exata medida que
revela nossa falibilidade em compreender finalmente a totalidade.
I.
A filosofia e a escola
Educar-se é vislumbrar a imensidade da nossa ignorância.
Popper parafraseando Sócrates
Richard Bailey, do Christ Church College, Canterbury, escreveu um artigo
intitulado Karl Popper as Educator, segundo o qual Popper era mais alinhado com os
educadores progressistas, pois não aprovava o currículo nacional vigente no sistema
educacional austríaco. No período em que trabalhou como professor na educação básica
em Viena, sua discordância com o sistema devia-se ao fato de que os conteúdos
ensinados estavam exessivamente distantes dos interesses das crianças e dos educadores.
Nenhum dos agentes educacionais, portanto, se envolvia intensamente com os conteúdos
por não terem proposto nenhuma das questões a que aquelas respostas teóricas ensinadas
pretendiam sanar. Por isso, pode-se observar que, quando os interesses dos segmentos
constituintes da atividade educacional não são respeitados, a atividade passa a ser
desinteressante e burocratizada. Na passagem seguinte Popper evidencia que desde a
primeira infância, o ser humano é uma entidade linguajante complexa.
Um bebê começa fazendo barulhos muito simples. Ele nasce com o desejo de copiar,
de fazer expressões linguísticas mais difíceis. A coisa mais decisiva é que
aprendemos a fazer coisas fazendo-as, nas situações apropriadas, inclusive em
situações culturais: aprendemos como escrever e como argumentar (1995, p. 69).
Os interesses das pessoas são mais importantes do que o conteúdo que se pode
ensinar. O mais valioso em educação é que a criança aprenda a interessar-se pelo que
quer que seja e, então, busque conhecer, desenvolvendo a linguagem necessária e, ao
mesmo tempo, satisfazendo prazerosamente suas curiosidades. De qualquer maneira, não
se pode saber de quais conteúdos ela irá necessitar no futuro; entretanto, podemos afirmar
que, se a criança souber tomar algo como objeto de interesse e investigar profundamente,
saberá fazê-lo quando necessitar. Nada substitui a habilidade de pesquisa e tão somente
ela leva à autonomia, à liberdade teórica e ao prazer intelectual. Isso porque, tanto as
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referências para o conhecimento como o saber objetivo sobre o objeto de interesse, são
criações do investigador para sanar necessidades impares, as curisidades específicas do
indivíduo. O sistema educacional deve prever uma escola na qual as crianças sejam
poupadas dos dissabores das respostas às questões que não são suas. Deve haver uma
aposta na geração que emerge na vida escolar, de forma a que a escola seja um espaço
para tratar dos interesses e necessidades teoricas das crianças, como um embrião de uma
comunidade de pesquisa. O interesse dos estudantes deve ser estimulado com o
desenvolvimento de suas habilidades em função das questões que a eles são caras e
excitantes. Assim, concordante com Kant, os resultados da atividade cognitiva serão úteis
à vida dessas pessoas e constituirão sua formação e emergência teórica. Há um conjunto
de questões às quais o professor deve estar atento e ensinar, sob pena de não cumprir com
sua obrigação. A leitura, a escrita e a aritmética são componentes da formação inicial que
devem ser ensinados mesmo que dogmaticamente, por estarem em relação com a futura
atitude crítica ou dogmática. Pode-se dizer que tais elementos, no sistema educacional,
constituem certo estágio em que as crianças precisam de certo grau de dogmatismo. Elas
querem ser ensinadas. Chega o momento, entretanto, em que as crianças fazem pergun tas
inteligentes. Assim, a indicação ao professor do tipo de tratamento, dogmático ou não
dogmático, será fornecida naturalmente pela criança. É nesse momento que a perspicácia
do professor deve fazê-lo perceber que o estudante ingressou em uma situação formativa
mais complexa e autônoma e que está em condições de ser realmente crítico. Ademais,
qualquer atitude crítica pressupõe certa evolução da criança. E uma das tarefas
interessantes do professor é perceber o quanto cada criança em particular é capaz de ser
ensinada. Em outras palavras, as respostas teóricas dependem do alcance variável da
linguagem do estudante e de seus interesses variáveis. A habilidade fundamental de
estimular e apoiar os educandos na busca por atender seus interesses linguísticos e
teóricos cognitivos não é, entretanto, algo que se encontra universalmente entre os
professores. Muitos professores estão mais interesados em, e lhes é mais fácil, ignorar as
sinalizações emitidas por seus alunos em seus questionamentos. Quando isso aconte ce, a
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frustração, o tédio e a amargura são as consequências para o estudante e para o educador,
que perde a atenção dos estudantes.
Toda criança normal adquire uma linguagem através de trabalho ativo, agradável e
talvez também penoso. A realização intelectual que a acompanha é muito
importante. Esse esforço produz, sem dúvida, um forte efeito de feedback na
personalidade da criança, nas suas relações com outras pessoas e nas suas relações
com o seu meio ambiente material (Popper, 1995, p. 74).
Segundo Baileu, “para Popper, bons professores são a solução para os problemas
educacionais, enquanto os professores ruins são a causa de muitos problemas
educacionais” (p.2). Aqueles possuidores de convicções irrefletidas sobre a realidade,
ideologicamente inamovíveis, sejam quais forem suas ideias, são inaptos, por estarem
desprovidos da necessária abertura ao novo. Estão, seguidamente, apegados à autoridade
conferida pelas experiências do passado, comportam-se como profetas ao invés de
professores. Como afirmou, entretanto, Eurípedes: o esperado não se cumpre e, ao
inesperado, um deus abre o caminho. Estar atento a uma tal concepção ajudaria
imensamente a reverter o dogmatismo em esclarecimento e autonomia. A inaptidão de
tais professores decorre do fato de esperarem o previsível e castrarem as expectativas das
crianças; por isso, esses professores devem ser substituídos por outros que possam ser
menos danosos aos estudantes. A postura de Popper a esse respeito é nada complacente,
ele afirma que
a coisa mais importante é fazer o possível para afastar os maus professores da
escola. Professores amargurados amarguram as crianças. Devemos criar uma forma
para essas pessoas saírem. Então, em seu lugar virão jovens professores com algum
talento, alguma capacidade de construir um relacionamento com as crianças (Popper
Apud Baileu, 1995, p. 03).
Além dos maus professores e dos que, apesar do esforço, não têm talento e por
isso devem ser incentivados a mudar suas práticas, há também uma concepção
equivocada quanto ao processo de aprendizado: a aceitação irrefletida de que as crianças
aprendem por indução. Assim como os professores alimentam a crença de que os anos de
trabalho, automaticamente, lhes confere previsibilidade e infalibilidade, por crerem na
indução entendem, igualmente, que os estudantes seguem um processo progressivo no
qual os conhecimentos anteriores são a base para os seguintes, que as crianças aprendem
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por indução. Por essa crença equivocada na correção e aplicação da indução é que os
professores forçam conteúdos sem que eles venham em respostas às aspirações teóricas
naturais das crianças. Distintamente, a constituição teórica da criança, tanto quanto do
adulto, é um produto de si mesmo, são de sua própria realização as referências
constituídas para com elas apreender o mundo. Desde a habilidade na fala à sua
consciência de si, a personalidade é emergência interativa com a percepção que, fruto da
emergência, retroage na formação subjetiva do estudante. A distância entre os conteúdos
e os interesses constituintes da emergência dos estudantes somente podem ser vencidos
se os professores estimularem as crianças a levantar problemas e a discutí -los. Desta
forma, o aprendizado seria sem tédio e a preocupação estaria dirigida à autoformação e
ao esclarecimento autoconstrutivo do educando. Somente de uma escola que prima pela
autonomia na formação teórica dos jovens, pode emergir intelectuais aptos a uma
compreensão consequente do universo e do nosso lugar nele. Uma escola com
compromisso formador e não conteudístico é capaz de permitir ao estudante compreender
que do que se trata em educação é da reinvenção da subjetividade humana de cada um. A
educação é a formação que permanece quando as pessoas deixam a escola, assim, a
pesquisa e a aptidão para o debate crítico e criativo implicam atenção à individualidade e
respeito às diferenças de toda ordem entre as crianças. A atenção aos elementos que
permitam a consciência da caminhada teórica permite, também, a consciência dos seus
próprios desafios em um ambiente de autonomia, autorresponsabilidade e emergência
teórica, necessários para o pleno desenvolvimento do potencial humano presente em toda
criança.
Referências:
BAILEY, R. “Karl Popper as Educator”, In: Interchange, Vol. 26/2, p. 185-191, Kluwer
academic publishers. Printed in the Netherlands. 1995.
HAWKING, S. The universe in a nutshell. A Bantam Book, 2001.
POPPER, K. Unended quest. London/New York: Routledge Classics, 2002.
______. Conjecturas e refutações. Tradução de Sérgio Bath. 3. ed. Brasília: UnB, 1994.
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______. The World of Parmenides: essas on the presocratic enlightenment. London/New
York: Routledge Classics, 2001.
______. O eu e seu cérebro. Tradução de Silvio Meneses Garcia, Helena Cristina Fontenelle
Arantes e Aurélio Osmar Cardoso de Oliveira. Campinas: Papírus; Brasília: UnB, 1995.
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DA ARTE DE DIZER O OUTRO: A ALEGORIA NO DISCURSO
LITERÁRIO – Toani Caroline Reinehr
UNIOESTE /PIBIC
[email protected]
Resumo: Nosso trabalho objetiva realizar uma breve reflexão a respeito da classificação da
alegoria, numa perspectiva do olhar da literatura para esta figura retórica. Diante do
questionamento de qual o papel desempenhado pela alegoria no interior da obra de arte
literária, apontamos que muito mais do que uma figura que ornamenta discursos, como se
propôs na tropologia clássica, além da concepção medieval que a determina como exegese de
textos sagrados, a alegoria comporta a capacidade de “redescrever” a realidade, num processo
de ampliação dos significados.
Palavras-chave: Alegoria. Retórica. Literatura.
1. Retórica: Arte da Persuasão
A Grécia Antiga, berço da Filosofia, experenciou, na cidade de Atenas, a
primeira democracia de que se tem conhecimento. Nela podiam participar das discussões
todos os cidadãos, assim eram denominados os homens livres, maiores de vinte e um
anos e que fossem filhos de pais atenienses — o que excluía as mulheres, escravos e
estrangeiros. Os cidadãos se reuniam em Atenas na Assembléia (ou Ekklesia) e todos eles
tinham direito à palavra. Era-lhes permitido participar das discussões, mas, para isso,
fazia-se necessário expressar-se por meio de uma argumentação lógica e precisa,
persuadindo os ouvintes. De modo que a oratória era muito valorizada pelos gregos.
Conforme comenta Ricoeur (1983, p. 47), “A retórica grega [...] tinha um objectivo mais
amplo e uma organização interna singularmente mais articulada do que a retórica
cessante”. E isso ocorria em razão desta organização da sociedade na Grécia Antiga, em
que o domínio público da palavra era essencial para o exercício da cidadania. Fazia-se
necessária, assim, uma educação voltada para a formação política, uma educação que
preparasse o jovem cidadão para “bem falar” diante da Assembléia. Os sofistas surgiram
dessa necessidade de preparar o jovem para a vida pública. Exímios no domínio das
técnicas da retórica, não se preocupavam com um projeto de verdade — para os sofistas,
assim como a natureza é devir, a verdade também seria mutável. Dito de outro modo,
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para eles o que importava era que a opinião alcançasse aceitação na Ekklesia. Assim, o
verdadeiro, para os sofistas, dependia se o julgamento era sobre Sócrates ou Hípias, ou
seja, moldava-se no particular; o mais importante era persuadir os ouvintes, e não a busca
pela verdade. Por este motivo, os sofistas foram alvo de muitas críticas — mesmo em
nosso tempo, os vocábulos “sofista” e “sofisma” possuem sentido negativo, sendo usados
quando se objetiva depreciar alguém ou seus argumentos. Platão, por exemplo, condena à
retórica ao mundo do falso. Em razão de sua visão dicotômica da realidade, o filósofo
grego desenvolve seu sistema filosófico com base em planos de conhecimento,
denominados mundos sensível e inteligível — exemplificados no livro VII da República
(2001). O mundo sensível seria o mundo das experiências diárias, por sua natureza
transitória e mutável, e por essas características é também designado, por Platão, como o
plano de nossas opiniões; já o plano inteligível diz respeito ao mundo das Ideias. A partir
desta bipartição, o filósofo grego estabelece um filtro da realidade, procurando
“Distinguir a ‘coisa’ mesma e suas imagens, o original e a cópia, o modelo e o
simulacro” (DELEUZE, 2007, p. 259). Nesse sentido, pertencer ao mundo sensível é ser
simulacro, é estar condenado ao engano, tal é o lugar em que figura, para Platão, o uso da
palavra para a persuasão (de que dispõe a retórica),
[...] para ele a retórica estava para a justiça — virtude política por excelência —
como a sofística para a legislação; e ambas estavam para a alma como a culinária
para a medicina e a cosmética para a ginástica — isto é, artes da ilusão e do engano
(RICOEUR, 1983, p. 16, grifo nosso).
Ao contrário do que pretendiam os sofistas, Aristóteles (2005), ao dedicar -se ao
estudo da retórica, mostra que ela não é uma ciência, mas sim uma arte. Segundo o
Estagirita, “[...] o papel da Retórica se cifra em distinguir o que é verdadeiramente
suscetível de persuadir do que só o é na aparência [...]” (ARISTÓTELES, 2005, p. 31).
Entendida como arte, téchne, a retórica consiste, portanto, em observar o que em cada
situação deverá ser aplicado visando à persuasão, quer seja, observar os lugares -comuns
(topoi). Entretanto, cabe à retórica tratar do “[...] provável para homens desta ou daquela
condição [...]” (ARISTÓTELES, 2005, p. 35), e não preocupar-se com o particular —
como faziam os sofistas.
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2. Da função ornamental dos Tropos na Retórica Clássica
Para a retórica antiga, o tropo se caracteriza pela transposição de um signo
(ausente) por outro (presente), ou seja, “[...] o tropo implica dois sentidos: o figurado,
que é o próprio tropo que o leitor lê, e o literal ou próprio, que é um ideal de sentido
próprio, sem figuração, implícito no tropo” (HANSEN, 2006, p. 31, grifos do autor).
Com isso, tem-se a noção de que o tropo é um desvio de uma palavra para outra. No
entanto, conforme explica Ricoeur (1983), ainda que a substituição do tropo se dê ao
nível da palavra, “[...] é entre duas ideias que ele acontece, por transporte de uma à
outra” (RICOEUR, 1983, p. 92). A retórica clássica, ao estudar os meios pelos quais se
produzia a persuasão, postulava que a metáfora pertencia às figuras de uma só palavra,
tropo por excelência, portanto. Observada a partir da noção de substituição, a metáfora
consistia “[...] no transportar para uma coisa o nome de outra, ou do gênero para a
espécie, ou da espécie para o gênero, ou da espécie de uma para a espécie de outra, ou
por analogia” (ARISTÓTELES, 1973, p. 462, grifo nosso). Desta relação da metáfora ao
nome, conforme indica Ricoeur (1983), determina-se durante séculos o lugar da metáfora
ao nível da palavra, não do discurso. A metáfora é, portanto, para a retórica clássica, o
transporte de um nome a outro, disso advém que a palavra metaforizada opera somente a
substituição a outra palavra (ausente), à que ela alude — por exemplo, se “o herói é um
leão”, o nome destacado substitui os nomes “corajoso” ou “forte”. Contudo, “[...] se, com
efeito, o termo metafórico é um termo substituto, a informação fornecida pela metáfora é
nula, a metáfora tem apenas valor ornamental, decorativo” (RICOEUR, 1983, p. 34,
grifo nosso). A partir do par sentido próprio/figurado estabelecido pela retórica, “[...] a
Antiguidade viu na alegoria um modo de ornamentar discursos propondo-os à
interpretação [...]” (HANSEN, 2006, p. 11). Kothe (1986), também comenta que se
observou a alegoria, já entre os antigos, como um modo de interpretação, “[...] à medida
que propiciava uma nova leitura de um texto conhecido” (KOTHE, 1986, p.27). Todavia,
a alegoria não detinha significação profunda, ela era apenas o desvelar de um discurso
por detrás de outro, de modo a torná-lo mais atrativo, como se as imagens refletidas
(sentidos figurado/literal) no espelho (texto) fizessem somente seu brilho ser mais
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intenso, o entrecruzamento delas nada mais significando. No Romantismo, conforme
Benjamin (1984), esta imagem da alegoria como ornamento, será utilizada para desprezar
o discurso alegórico. Apesar da classificação do discurso figurado, pela retórica clássica,
como ornamento, não observando na alegoria ou na metáfora sentido ontológico, o
processo artesanal de tessitura da obra de arte (cf. BENJAMIN, 1992), já se encontra, de
certa forma, antevisto. Pois se “[...] uma palavra é mais própria que outra, aproxima -se
mais do objeto e é mais capaz de o pôr diante de nossos olhos” (ARISTÓTELES, 2005,
p. 178), resulta que o poeta (ou o narrador) atua como o artesão, modela e indica os
significados por meio dos arranjos linguísticos realizados no texto para a elaboração das
imagens e da dramaticidade que tais imagens podem sugerir.
3. Alegoria: Tropo que amplia a Significação
O processo de criação alegórica tem suas raízes no plano linguístico, conforme
explica Hansen (2006), pelo qual é delimitado, podendo-se afirmar que, ao optar por
determinados signos (b), o narrador estará sinalizando os limites da interpretação, ou
seja, os signos que àqueles podem apontar (a); desta maneira, a narrativa é desenvolvida
num processo artesanal, em que a significação de a é conferida pela escolha de b. A
alegoria (grego allós = outro; agourein = falar na ágora, falar publicamente) possibilita a
exposição, partindo do dito no texto, de um sentido diferente ou, ainda, ampliado daquele
explícito, isto é, ela diz b para significar a. Esta figura é empregada desde a Grécia
Clássica, estando presente em textos filosóficos de Platão (Livros II e VII da República,
por exemplo), nos quais adquire forma exemplificante ao representar conceitos abstratos
e complexos; na sociedade hebraica, foi aplicada para interpretar as Sagradas Escrituras
e encontrar nelas verdades perenes de caráter moral e religioso (ABBAGNANO, 2007, p.
24). É importante apontar a distinção entre a alegoria retórica ou alegoria dos poetas e a
alegoria hermenêutica ou alegoria dos teólogos, conforme Hansen (2006). A primeira se
refere à utilização alegórica “[...] como convenção linguística que ornamenta um discurso
próprio [...]” (HANSEN, 2006, p. 9), tropo de pensamento e figura mimética, esta
alegorização permite, de acordo com o teórico, a transposição semântica de signos
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presentes (literais) para signos ausentes, o dizer o outro; já a segunda, à maneira do uso
que faziam os hebraicos, “[...] não é um modo de expressão verbal retórico-poética, mas
de interpretação religiosa de coisas, homens e eventos figurados em textos sa grados”
(HANSEN, 2006, p. 8). Durante a Idade Média, a alegoria era utilizada com um telos
religioso (alegoria dos teólogos), buscando-se explicar aquilo que tinha se tornado
profano com a cristianização da Igreja. Como exemplifica Benjamin na Origem do drama
barroco alemão (1984), a arte grega com suas musas nuas era interpretada de maneira
alegórica no período medieval, assim é que a nudez de Afrodite revelava, por exemplo, a
impossibilidade de ocultar o profano e o luxurioso, isto é, a carne “corrompida” pelos
prazeres viscerais não conseguirá ser escondida. Desse modo, “a alegoria medieval é
cristã e didática [...]” (BENJAMIN, 1984, p. 193), ao passo que “[...] o Barroco retrocede
à Antiguidade, dando-lhe um sentido místico-histórico” (BENJAMIN, 1984, p.193).
Funcionando por uma relação de semelhança, a alegoria permite ao leitor, partindo do
signo presente, a ampliação do processo de interpretação e, também, a possibilidade de
exemplificação de significações profundas, “[...] talvez se possa dizer que a alegoria
aponta o próprio cerne da obra de arte e de sua interpretação” (KOTHE, 1986, p.7).
Destaca-se ainda que a imagem criada pela alegoria não deprecia a racionalidade da
argumentação, pelo contrário, pode servir como uma imagem-conceito que proporciona
clarificação do tema/conceito discutido. Nesse sentido, determinando a alegoria como
tropo de pensamento, entende-se que sua expressão mimética não desvirtua a obra, antes,
proporciona além do ornatus — do ornamento do discurso — a exposição e
compreensão, ao dizer o outro, de significações profundas. Constituindo-se como
ferramenta de interpretação, a leitura alegórica “[...] descobre a estruturação profunda do
texto, um horizonte além do horizonte do texto” (KOTHE, 1986, p.76). Benjamin (1994)
se pergunta o porquê de a obra de Baudelaire, representativa de um século, configuradora
em suas imagens do que é a modernidade e do sentimento melancólico, de “cadáver
adiado”, que este mundo em ruínas imprimiu ao homem, estar permeada pela alegoria,
“[...] uma maneira de agir ao menos na aparência completamente ‘anacrônica’ [...]”
(BENJAMIN, 1994, p. 169). O filósofo alemão responde que “Deve-se mostrar a alegoria
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como o antídoto contra o mito” (BENJAMIN, 1994, p. 169). Além disso, uma crítica à
alegoria que tome como referência apenas a alegoria medieval para condená-la como um
processo de hermenêutica de textos sagrados, como dissimulação da realidade,
desconsidera que a alegoria, em seu processo de mostrar o outro, comporta o poder de
redescrever a realidade e o humano. Perspectiva essa que já é discutida em relação à
beletrística desde o resgate do “poeta” por Aristóteles (1973), sendo ele não mais simples
reprodutor mecânico da natureza, mas a natureza revelando-se, nua ou disfarçada,
recriada na obra de arte. Pois “A obra imaginativa presenteia-nos com uma visão [...]: a
visão de um ato decisivo da liberdade espiritual, a visão da recriação do homem” (FRYE,
1973, p. 97, grifo nosso).
Referências:
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. Trad. Alfredo Bosi. 5. ed. São Paulo:
Martins Fontes, 2007.
ARISTÓTELES. Arte Retórica e Arte Poética. Trad. Antônio Pinto de Carvalho. 17. ed. Rio
de Janeiro: Ediouro, 2005.
______. Poética. Trad. Eudoro de Souza. São Paulo: Abril Cultural, 1973.
BENJAMIN, Walter. Parque central. In: ______. Charles Baudelaire: um lírico no auge do
capitalismo. Trad. José Carlos Martins Barbosa e Hemerson Alves Baptista. 3. ed. São Paulo:
Brasiliense, 1994.
______. O narrador. In: ______. Sobre arte, técnica, linguagem e política. Trad. Maria
Amélia Cruz. Lisboa: Relógio D’Água, 1992.
______. Origem do drama barroco alemão. Trad. Sergio Paulo Rouanet. São Paulo:
Brasiliense, 1984.
DELEUZE, Gilles. Platão e o simulacro. In: ______. Lógica do sentido. Trad. Luiz Roberto
Salinas Forte. São Paulo: Perspectiva, 2007.
FRYE, Northrop. Crítica ética: teoria dos símbolos. In: ______. Anatomia da crítica. Trad.
Péricles Eugênio da Silva Ramos. São Paulo: Cultrix, 1973.
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HANSEN, João Adolfo. Alegoria – construção e interpretação da metáfora. São Paulo:
Hedra, 2006.
KOTHE, Flávio. A alegoria. São Paulo: Ática, 1986.
PLATÃO. A República. Trad. Maria Helena da Rocha Pereira. 9. ed. Lisboa: Fundação
Calouste Gulbenkian, 2001.
RICOEUR, Paul. A metáfora viva. Trad. Joaquim Torres Costa e António M. Magalhães.
Porto: Rés, 1983.
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Desigualdade, Liberdade Civil e Direito Político em ROUSSEAU – Luís
Fernando Jacques
UNIJUÍ – PIBIC
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Resumo: A partir da busca pelos princípios do direito político, Rousseau ofereceu as
condições para pensar a elaboração do Contrato Social. Como os homens podem se associar e
permanecerem livres? Ao realizar esta reflexão podemos pensar porque o filósofo recorreu
aos conceitos de desigualdade, liberdade civil e direito político, para descrever as condições
necessárias da organização civil. Rousseau oferece margem para a reflexão crítica e filosófica
sobre a sociabilidade humana e antecipa as reflexões centrais do imaginário republicano e
democrático que se consolidou a partir das revoluções na América e na França no final do
século XVIII, que oferecem possibilidades de discorrer e refletir sobre os desdobramentos
éticos e políticos de suas obras e de seu legado sobre a teoria contratualista através da análise
da modernidade.
Palavras-chave: Direito político. Liberdade civil. Desigualdade.
As experiências políticas na época de Rousseau se incluem entre as motivações
que o levaram a se apropriar delas para realizar a análise política e reflexiva sobre as
origens das desigualdades artificialmente estabelecidas em sociedade, assim como as
condições de um contrato social pensado através da busca pelos fundamentos dos
princípios do direito político.
Na argumentação acerca da vida civil, Rousseau concebe o agir público pautado
sobre princípios racionais e morais que podem ser compreendidos e acolhidos como
benéficos tanto para a vida dos indivíduos quanto para as sociedades nas quais estão
inscritos. Para o autor, liberdade civil e moralidade encontram-se intimamente
interligadas, pois a liberdade e a igualdade podem ser descritas como o objetivo ou a
finalidade do contrato social.
A origem das desigualdades civis é descrita ou pensada através do estado de
natureza, que se caracteriza no pensamento político de Rousseau como um recurso
hipotético e metodológico que permite explicitar os atributos fundamentais da condição
humana enquanto tal, ou seja, uma atividade estratégica e reflexiva para produzir um
distanciamento crítico, para enfim pensar as relações e instituições humanas separadas
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daquilo que os homens estabeleceram artificialmente e incorporaram nas relações
internas e externas das diferentes sociedades.
Neste contexto, o homem no estado de natureza limitado apenas pela força dos
indivíduos, encontra-se livre e independente de quaisquer deveres para com seus
semelhantes, nestas condições as diferenças físicas não são suficientes para que os
homens aprisionem e oprimam os seus semelhantes. Pelo fato de que não há laços sociais
estabelecidos no estado de natureza, não existem preocupações com a propried ade, pois
tudo é compartilhado por todos. Não há virtude nem vícios; tão pouco existe noções de
tempo e espaço e ideias de justiça e de bondade ou maldade.
Concebo, na espécie humana, dois tipos de desigualdade: uma que chamo de natural
ou física, por ser estabelecida pela natureza e que consiste na diferença de idades, da
saúde, das forças do corpo e das qualidades do espírito ou da alma; a outra, que se
pode chamar de desigualdade moral ou política, porque depende de uma espécie de
convenção e que é estabelecida ou, pelo menos, autorizada pelo consentimento dos
homens. Esta consiste nos vários privilégios de que gozam alguns em prejuízo de
outros, como o serem mais ricos, mais poderosos e homenageados do que estes, ou
ainda por fazerem-se obedecer por eles (ROUSSEAU, 1978, p. 235).
Ao “substituir” a liberdade natural pela liberdade civil, o pensador nos oferece a
possibilidade de pensar uma nova forma de organização em sociedade, cujas principais
referências são os fundamentos do direito político. Neste contexto, a liberdade civil pode
ser efetivada através de sua articulação com a vontade geral, que aqui pode ser pensada
como a deliberação racional e moral do povo na esfera pública, que visa o bem comum.
A liberdade é uma entre as mais nobres das faculdades do homem, que o difere em
relação aos animais, e, que o define mais que a própria razão ou o entendimento. No
Contrato social Rousseau afirma que: “Renunciar à liberdade é renunciar à qualidade de
homem, aos direitos da humanidade, e até aos próprios deveres” (ROUSSEAU, 1978, p.
27).
A análise das relações sociais dadas não possibilita o acesso direto às qualidades
distintivas do homem, o fato é que para o autor, não há uma transposição imediata do
homem natural para a vida em sociedade. O desenvolvimento de suas faculdades e
paixões humanas a partir do estreitamento dos laços sociais, é que dão suporte teórico
para pensar o caminho na qual o homem percorreu até chegar ao estado de organização
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civil. Através da finalidade do contrato social que é a manutenção da liberdade civil,
percebemos que na medida em que o homem garante o poder político através do contrato
social, que não se baseia na força e nem na natureza, mas em convenções, se mantém
senhor de si e desenvolve suas potencialidades humanas em sociedade.
Entretanto, a análise do conjunto das relações sociais não permite o acesso
imediato às qualidades distintivas do homem, que embora alteradas ou deturpadas em
função da depravação dos costumes, dos princípios e dos valores morais, não estão
estritamente anuladas. Ao realizar esta reflexão, Rousseau considera que não é possível
confundir tais qualidades com as do homem social, pois, se de um lado o homem
permaneceria “um selvagem” enquanto suas faculdades não se desenvolvessem, por outro
lado, o que de fato ocorreu, por exemplo, no estabelecimento da propriedade privada e do
pacto dos ricos, foi o surgimento das desigualdades artificialmente legitimadas em
sociedade.
Os princípios do direito político podem ser explicitados no pensamento político
de Rousseau, não como o estudo do direito positivo e nem das leis de cada país, mas
como uma escala progressiva ou o conjunto de regras possíveis para conformar as
observações dos determinados governos, considerando a observação de que cada país
possui condições culturais, sociais e geográficas diferenciada dos outros. O direito
político em Rousseau oferece margem para pensar possíveis medidas de ordenação da
sociabilidade de cada povo.
A partir da busca pelos princípios do direito político, Rousseau oferece as
condições para pensar que irão se encontrar na elaboração do Contrato Social, da qual
uma de suas finalidades seria a da garantia do poder político e a criação de um corpo
político, de caráter moral e coletivo, a partir do ato de associação civil. Em relaçã o ao
povo, é denominado soberano quando toma coletivamente a formação do Estado, quando
os cidadãos são ativos e participantes das deliberações públicas e da elaboração da
organização civil. No entanto, quando o povo se apresenta como passivo, quando obede ce
às leis estipuladas, quando se submete à autoridade do Estado são denominados súditos,
por que se deixam ser governados por outros.
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Imediatamente, esse ato de associação produz, em lugar da pessoa particular de cada
contratante, um corpo político moral e coletivo, composto de tantos membros quanto
são os votos da assembleia, e que, por esse mesmo ato, ganha sua unidade, seu eu
comum, sua vida e sua vontade (ROUSSEAU, 1978, p. 33).
A vontade geral pode ser entendida aqui através da análise de Rousseau como a
apresentação do povo ativo enquanto soberano, na qual não admite ser representada e que
se caracteriza como a reunião das vontades particulares. A vontade geral é protagonizada
pelo cidadão, através do voto e do diálogo em assembleia para deliberar sobre os rumos
do estado. Nesta perspectiva, as leis são concebidas como o resultado das deliberações
públicas do soberano, na qual a incumbência de redigir as leis se dá ao legislador.
Contudo, o indivíduo poderá desenvolver uma vontade particular contrária aos interesses
da vontade geral. Desta forma, se os direitos dos cidadãos não forem acompanhados pelo
cumprimento dos respectivos deveres, se forem estabelecidos através da consequência de
um ato de injustiça, sua permanência na esfera pública se transformará em vício e, por
conseguinte, viciará os fundamentos e os princípios essenciais do corpo político.
Como os homens podem se associar e permanecerem livres? Esta é uma das
questões centrais no pensamento político de Jean Jacques Rousseau, partindo da r eflexão
sobre a constituição dos direitos políticos e as forças de organização política do homem
ao unir-se aos outros para formar a condição de associação civil. Trata-se, portanto, sobre
a busca de uma forma de associação que proteja e defenda com determ inação o indivíduo
e os bens de cada associado, na qual ao unir-se a todos, continue a preservar sua
liberdade tanto quanto antes em sua condição social anterior. Contudo, qualquer
modificação do Contrato Social violaria os princípios do pacto social, pois suas cláusulas
são determinadas pela natureza do ato de associação. Nestas condições, cada indivíduo
retomaria sua liberdade natural e seus direitos iniciais, perdendo esta liberdade de caráter
civil, convencional e provisória.
Essas cláusulas, quando bem compreendidas, reduzem-se todas a uma só: a
alienação total de cada associado, com todos os seus direitos, à comunidade toda,
porque em primeiro lugar, cada um dando-se completamente, a condição é igual
para todos e, sendo a condição igual para todos, ninguém se interessa por torná-la
onerosa para os demais (ROUSSEAU, 1978, p. 32).
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Por meio da legislação deliberada em esfera pública, são estabelecidas as
condições necessárias para a conservação da sociabilidade civil dos indivíduos. O pacto
social nesta perspectiva orienta os seus adeptos a organizar e ordenar suas vontades
particulares, que possuem enquanto homens, a serviço da vontade geral, que tais dispõem
enquanto cidadãos.
Em relação à igualdade, não podemos ponderar que todos possam deter
rigorosamente a mesma riqueza e poder; a diferença sobre a posse dos bens não pode ser
demasiada, ao ponto de levar os ricos a se tornarem tão ricos a ponto de explorar os
pobres que se encontram em condição miserável; e nem os pobres se tornarem tão pobres
a ponto de sentirem a necessidade de vender-se aos ricos para conservar ao menos a sua
vida, estabelecendo nestas condições um dos princípios das desigualdades. A igualdade
se afirma na proporção em que cada cidadão aliena-se completamente, com todos os
direitos civis à comunidade política, situação igual para todos na qual ninguém pretende
sobrepor os interesses particulares aos coletivos. Por meio de várias passagens, Rousseau
reitera que os homens são os únicos seres capazes de conformar os laços que os
relacionam politicamente, através de suas decisões e ações.
Rousseau em sua produção teórica e intelectual recorreu aos conceitos de
natureza, desigualdade, liberdade civil e direito político, para, a partir daí, pensar nas
condições necessárias e legítimas da organização civil. É a partir desses termos que
podemos encontrar a condição de possibilidade para pensar umas de suas afirmações: “o
direito político ainda está por nascer”, que, por conseguinte, oferece margem para a
reflexão crítica e filosófica sobre a sociabilidade humana e antecipa as reflexões centrais
do imaginário republicano e democrático que se consolidou a partir das revoluções na
América e na França no final do século XVIII, na qual oferecem possibilidades de
discorrer e refletir sobre os desdobramentos éticos e políticos de suas obras e de seu
legado sobre a teoria contratualista através da analise da modernidade.
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Referências:
ROUSSEAU, Jean Jacques. Do Contrato Social. Tradução de Lourdes Santos Machado;
revisão de Lourival Gomes Machado; introdução e notas de Paul Arbousse-Bastide. São
Paulo: Abril Cultural, 1978. Coleção Os Pensadores.
______. Du Contrat Social ou Principes Du Detroit Politique. Faederis Acquas. Virg. Eneid.
Lib. XI, v. 321.
______. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens.
Tradução de Lourdes Santos Machado; revisão de Lourival Gomes Machado; introdução e
notas de Paul Arbousse-Bastide. São Paulo: Abril, 1973. Coleção Os Pensadores.
______. Emílio ou Da educação. Tradução de Roberto Leal Ferreira; introdução de Michel
Launay. São Paulo: Martins Fontes, 1995.
______. Oeuvres Completes de J. J. Rousseau. Vol. 1 a 17. Paris: Armand-Aubrée. 18301833.
DERATHÉ, Robert, 1905-1992. Jean-Jacques Rousseau e a ciência política de seu tempo.
Tradução Natalia Maruyama. São Paulo: Editora Barcarolla ; Discurso Editorial, 2009.
GARCIA, Cláudio Boeira. Política e Escritas sobre a Política. Capítulo 6 - Rousseau: o
Direito Político e as condições de uma sociedade bem ordenada. Pág. 52 a 74. Coleção
trabalhos acadêmicos - científicos. Série Relatórios de pesquisa. Editora Unijuí. Ijuí –RS.
1999. 96 p.
NASCIMENTO, Milton Meira do. Contrato social ou as ilusões do jogo do poder. São Paulo,
FFLCH-USP, 1978. Dissertação (Mestrado em Filosofia). João Paulo Monteiro (Orient.).
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DIZER E MOSTRAR E LIMITES DA LINGUAGEM NO TRACTATUS DE
WITTGENSTEIN – Bruno Senoski do Prado
UNICENTRO/ SESU-MEC
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Resumo: No Tractatus Logico-Philosophicus, Ludwig Wittgenstein tem um objetivo muito
claro, a saber, traçar um limite para a linguagem com sentido. Através de sua crítica da
linguagem, o filósofo demonstra os critérios para que a proposição, cuja totalidade constitui a
linguagem, possa ter sentido: ser um todo articulado por nomes, poder figurar fatos no mundo
e ser bipolar, ou seja, passível de verdade ou falsidade. Sendo assim, Wittgenstein mostra que
as tautologias e contradições, devido seu caráter não-bipolar não fazem sentido e, dessa
forma, são os limites da linguagem com sentido. O presente trabalho visa mostrar quais são
tais limites apresentados na obra em questão e de que forma eles levam Wittgenstein a fazer
uma de suas mais importantes distinções no Tractatus, a distinção entre dizer e mostrar.
Palavras-chave: Proposição. Lógica. Sentido.
Já no prefácio do seu Tractatus Logico Philosophicus, Wittgenstein deixa claro
seu objetivo, a saber, traçar um limite para a linguagem com sentido. Ao estabelecer os
limites da linguagem, ele é levado a fazer uma de suas mais importantes distinções no
TLP, a distinção entre o que pode ser dito e o que apenas pode ser mostrado. Segundo o
autor, “poder-se-ia talvez apanhar todo o sentido do livro com estas palavras: o que se
pode em geral dizer, pode-se dizer claramente; e sobre aquilo de que não se pode falar,
deve-se calar” (WITTGENSTEIN, 2010, p. 131).
No TLP, Wittgenstein tem como objetivo traçar um limite para a linguagem com
sentido. Segundo ele, se ultrapassarmos tais limites cometemos o erro de dizer algo sem
sentido e criar problemas que não existem, os “pseudoproblemas”, ao tentar representar
linguisticamente algo que não faz parte da realidade ou que contradiz as leis lógicas.
Através de uma forma lógica comum existente entre ambos, a linguagem tem o
poder de figurar o mundo; tal noção é o que ficou conhecido como figuração. No entanto,
ela, a proposição, não pode figurar essa forma lógica; tal relação, se mostra.
A proposição não pode representar a forma lógica, esta forma se espelha na
proposição. O que se espelha na linguagem, esta não pode representar. O que se
exprime na linguagem, nós não podemos exprimir por meio dela. A proposição
mostra a forma lógica da realidade. Ela a exibe (WITTGENSTEIN, 2010, p. 121).
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Através de suas reflexões no TLP, Wittgenstein mostra que a linguagem é, de modo breve, a
totalidade das proposições, compostas de proposições elementares, formadas pela união articulada de
nomes. Assim, o autor estabelece critérios para que a linguagem tenha sentido: (1) seja uma
articulação de nomes e não um simples amontoado deles; (2) represente, figure fatos do mundo e (3) a
proposição precisa ser bipolar, ou seja, ser passível de verdade ou falsidade.
Diante dos critérios elencados acima podemos observar que, para o Wittgenstein
do TLP, a linguagem se ordena logicamente, possui uma forma lógica. Sendo assim, tudo
o que contradiga a lógica e os critérios acima será sem sentido. Por exemplo,
consideremos a seguinte frase: “O círculo quadrado conversou rio cadeira”. Por essa
frase ser apenas um amontoado de nomes, o critério (1) não foi seguido; da mesma
forma, o critério (2) também não foi seguido devido ao fato de tal frase não representar
um fato no mundo, e ainda pelo fato dessa frase não ser possível de verdade ou falsidade,
o critério (3) não foi seguido. Portanto, tal frase é sem sentido. Consideremos agora outra
frase: “Chove ou não chove”. Tal frase, a primeira vista, faz sentido por ser uma
articulação de nomes, ou seja, seguiu o critério (1). No entanto, ela não representa um
fato no mundo; assim, não seguiu o critério (2) e ainda não é passível de verdade ou
falsidade, não é bipolar, ou seja, não seguiu o critério (3). Tal frase não é uma
proposição, mas sim uma tautologia1, por isso não podemos atribuir valor de verdade a
ela. Portanto, não faz sentido. Analisemos outra frase agora: “Chove e não chove”. À
primeira vista, essa frase já nos parece sem sentido. Assim como a frase usada
anteriormente, ela é uma articulação de nomes, mas não representa um fato no mundo e,
além disso, não podemos atribuir valor de verdade a ela por se tratar de uma contradição,
pois é a priori falsa. Sobre tautologias e contradições Wittgenstein escreve:
Entre os grupos possíveis de condições de verdade, há dois casos extremos. Num
dos casos, a proposição é verdadeira para todas as possibilidades de verdade das
proposições elementares. Dizemos que as condições de verdade são tautológicas. No
segundo caso, a proposição é falsa para todas as possibilidades de verdade: as
condições de verdade são contraditórias (WITTGENSTEIN, 2010, p. 446).
1 Tautologia é uma proposição cujo valor lógico é sempre verdadeiro.
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A proposição é bipolar, mostra o que diz e, por isso, faz sentido. A tautologia e a
contradição, por não serem passíveis de verdade ou falsidade, por sua vez, nada dizem.
Sendo assim, elas não possuem sentido (Cf. WITTGENSTEIN, 2010, p. 462). Segundo
Wittgenstein, as tautologias e as contradições não são figurações da realidade e, devido a
sua ausência de sentido, não representam nenhuma situação possível (Cf. Idem, ibidem).
Vemos, assim, que as tautologias e as contradições representam os limites da linguagem
com sentido e tudo o que se diga de contraditório ou tautológico não faz sentido. “A
verdade da tautologia é certa; a da proposição é possível; a da contradição, impossível”
(Cf. WITTGENSTEIN, 2010, p. 464).
A linguagem, segundo Wittgenstein, figura a realidade, figura os fatos do
mundo. O que ela não diz não existe no mundo. Existe uma mesma forma entre
linguagem e realidade, pois a linguagem figura o mundo e só por meio dela é que se pode
compreender a realidade. Sendo assim, não podemos dizer o mundo e tampouco pen sar
de forma não linguística. Aquilo que ultrapassa os limites da linguagem não podemos
pensar, pois não faz sentido, não faz parte do mundo. Como Wittgenstein afirma: “o que
não podemos pensar, não podemos pensar; portanto, tampouco podemos dizer o que não
podemos pensar” (Cf. WITTGENSTEIN, 2010, p. 5.61).
Diante da noção de linguagem e da adoção da ideia dos limites da linguagem,
Wittgenstein tem por objetivo delimitar o que pode ser dito com sentido. A crítica
tractatiana da linguagem leva às condições de possibilidade da linguagem com sentido e,
consequentemente, aos seus limites. Wittgenstein, através de suas reflexões no TLP adota
a ideia de universalidade da linguagem. Isso se prova no fato de que, para ele, a
“proposição pode representar toda a realidade” (WITTGENSTEIN, 2010, p. 4.12). Isso
pode ser visto em outros escritos também, por exemplo, nos Notebooks ou Diário
Filosófico (1914-1916).
Mas será a linguagem: a única linguagem?
Por que não haveria um modo de expressão mediante o qual eu pudesse falar sobre a
linguagem, de tal maneira que ela pudesse se apresentar a mim em conformidade
com alguma outra coisa?
Suponhamos que a música fosse esse modo de expressão: então, sob todos os
aspectos, é característico da ciência que nenhum tema musical possa ocorrer.
Eu mesmo escrevo apenas proposições aqui? E por quê?
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De que modo a linguagem é única? (WITTGENSTEIN, 1982)2
Somente aquilo que faz parte do mundo dos fatos é que pode ser figurado pela
linguagem, devido à forma lógica que ambos possuem. Essa forma lógica, no entanto,
não pode ser figurada pela linguagem, mas se mostra na figuração do mundo. A análise
lógica da proposição leva Wittgenstein a perceber os limites do dizível e que a forma
lógica do que pode ser dito se mostra no uso da linguagem.
Também é evidente que a consequência mais importante da ideia da linguagem
como meio universal no Tractatus consiste na oposição entre o que pode ser dito e o
que pode apenas ser mostrado. O que talvez não esteja claro é que tudo que, segundo
o Tractatus, só pode ser mostrado envolve, em última análise, relações semânticas.
Basicamente, são, portanto, os vínculos mundo-linguagem, e estes vínculos somente,
que não podem ser ditos, mas mostrados (HINTIKKA, 1994, p. 24).
Conforme dissemos acima, a linguagem figura o mundo graças à forma lógica
que ambos possuem. A linguagem é a totalidade das proposições, formada pela união de
proposições elementares, que se forma da união ordenada de nomes. O mundo, por sua
vez é a totalidade dos fatos, que se compõem da união de estados de coisas, formados
pela união de objetos. É essa forma lógica que permite a linguagem figurar o mundo.
Todos os fatos do mundo podem ser figurados pela linguagem. Vale lembrar que a
linguagem não figura apenas fatos que ocorrem (que sejam o caso), mas também fatos
que são possíveis no mundo, fatos que estão no espaço lógico. Aquilo que podemos
pensar, tendo em vista que nosso pensamento é lógico, é possível; por exemplo, não
podemos pensar em um “círculo quadrado” porque isto fere as leis lógicas. Diante da
teoria wittgensteiniana vemos que, devido à sua estrutura lógica, a linguagem tem o
poder de criar um mundo possível. No entanto, esse mundo necessariamente, precisa
respeitar as leis da lógica, pois, além de outros motivos, não podemos dizer e nem pensar
um mundo ilógico.
O pensamento contém a possibilidade da situação que ele pensa. O que é pensável é
também possível.
Não podemos pensar nada de ilógico, porque, do contrário, deveríamos pensar
ilogicamente.
2 Nota de 29/05/1915.
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Já foi dito que Deus poderia criar tudo, salvo o que contrariasse as leis lógicas. – É
que não seríamos capazes de dizer como pareceria um mundo ilógico
(WITTGENSTEIN, 1982, p. 3.031).
A linguagem que figura, que diz o mundo não pode, no entanto, figurar e nem
dizer a forma lógica que a permite figurar o mundo. Tal forma, no entanto, é mostrada
pela linguagem quando dizemos o mundo, da mesma forma que uma situação no mundo é
mostrada. Por exemplo, ao afirmarmos aRb, dizemos um estado de coisas possível e, caso
a afirmação seja verdadeira, tal situação se mostra. Algumas coisas, devido ao fato de
ultrapassarem os limites da linguagem anteriormente expostos, não podem ser ditas com
sentido, mas se mostram no uso da linguagem; como por exemplo, a forma lógica que
permite a linguagem figurar o mundo. A linguagem não pode figurar sua forma de
afiguração, pois, caso tentássemos, os nomes que usaríamos para essa figuração não
possuiriam referência, não teriam uma correspondência. A forma de afiguração é uma
condição de possibilidade para que, através da linguagem, possamos figurar o mundo.
Sendo assim, para dizer a forma lógica teríamos que sair da linguagem, o que é
impossível; além de que não se podemos dizer e nem pensar nada de maneira não
linguística.
No entanto, existem proposições que nada dizem, mas mostram alguma coisa.
Devido ao fato de serem a priori verdadeiras ou falsas, ou seja, não serem bipolares, não
podem dizer nada com sentido. São elas as tautologias e as contradições. Por exemplo, ao
afirmarmos “chove ou não chove” (uma tautologia) não estamos dizendo nada sobre um
fato no mundo, mas os limites do mundo mostram-se nessa afirmação. Ela mostra que
algo pode ou não existir no mundo e que para a linguagem poder figurar o mundo ela
precisa ser bipolar. As proposições da lógica, embora não possam ser figuradas, mostram
a estrutura do mundo, por isso, são os seus limites, e mostram que a estrutura, ou melhor,
a forma do mundo, não pode ser dita com sentido, mas é mostrada. Elas mostram a
ligação que existe entre a linguagem e o mundo que, como sabemos, permite aquela
figurar este. Dessa forma, tais proposições também mostram que a lógica é condição
para que possamos “utilizar” a linguagem, para que possamos dizer o mundo com
sentido.
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As proposições lógicas descrevem a armação do mundo, ou melhor, representam-na.
Não “tratam” de nada. Pressupõe que nomes tenham significado e proposições
elementares tenham sentido: e essa é sua ligação com o mundo (WITTGENSTEIN,
1982, p. 6.124).
As tautologias não dizem nada, são desprovidas de sentido, pois não são
bipolares, mas a priori verdadeiras. No entanto, elas mostram a estrutura lógica da
linguagem. Isso ocorre porque elas mostram a total possibilidade de estados de coisas. A
lógica também não pode ser dita, pois os nomes de uma possível proposição lógica não
denotam nenhum objeto. Dessa forma, vemos que a lógica não está no mundo, não faz
parte da realidade, mas é condição transcendental dele, por esse motivo é que a
linguagem não pode figurá-la; porém, ela se mostra na linguagem que figura o mundo.
“Com isso, Wittgenstein sugere que o que pode ser dito é como estejam as coisas e não
que as coisas são” (SPICA, 2011, p. 35). Quando dizemos uma proposição descrevemos
um estado de coisas que é possível, mostrando como os objetos devem estar para que est a
proposição seja verdadeira. Dessa forma, nós figuramos um fato possível e, assim, tal
proposição possui sentido. No entanto, quando tentamos dizer a relação existente entre a
linguagem e o mundo, a forma lógica, ou mesmo quando tentamos dizer o sentido d a
proposição, acabamos dizendo algo sem sentido, caímos em contrassenso. A
concordância ou discordância com as possibilidades de existência e inexistência de
estados de coisas é o sentido da proposição (Cf. WITTGENSTEIN, 2010, p. 4.2). “É
impossível dizer qual é o sentido de uma sentença, pois não podemos exprimir mediante
a linguagem as relações semânticas ou “projetivas” que vinculam uma proposição a fatos
elementares” (HINTIKKA, 1994, p. 27).
Aquilo que pode ser dito encontra-se no campo da linguagem figurativa, a saber,
na noção que o autor do TLP nos dá de linguagem; consequentemente, só as proposições
que figuram o mundo tem sentido e, portanto, podem ser ditas. Na linguagem com
sentido só existem proposições que figuram fatos no mundo e no mundo exist em apenas
fatos. Assim, as “proposições filosóficas” não figuram o mundo de forma propriamente
dita, portanto, não tem sentido. Seguindo essa linha de raciocínio as proposições da
estética, da ética e da religião, por exemplo, não figuram fatos no mundo, p ortanto,
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também não tem sentido e, consequentemente, não podem ser ditas. Tais questões tratam
de algo que possui valor e o possuir valor não é passível de verdade ou falsidade;
portanto, sob os moldes da filosofia tractatiana, não possuem sentido e, por
consequência, não podem ser ditas. Matar ou não matar, por exemplo, não é bom ou ruim
enquanto fato. O sujeito atribui valor ao ato citado, mas o que faz parte do mundo, aquilo
que faz sentido é independente do sujeito. Para Wittgenstein, “o mundo é indepen dente
de minha vontade” (WITTGENSTEIN, 2010, p. 6.373), pois ele se ordena logicamente e
a lógica não depende da vontade do sujeito. Mesmo que o que o sujeito deseja aconteça,
isso é apenas uma possibilidade dentre os fatos do mundo; se algo acontece, é po r uma lei
lógica e não pela vontade do sujeito (Cf. WITTGENSTEIN, 2010, p. 6.374). Ainda sobre
a questão dos valores, não existe nada que os fundamente que esteja no mundo, se existe
esse fundamento, ele está fora do mundo. Tais proposições, no entanto, se mostram no
mundo.
Referências:
DIAMOND, Cora. The Realistic Spirit: Wittgenstein, Philosophy, and the Mind. Cambridge;
London, 1991.
HACKER, Peter. M. S. Insight and Ilusion: Wittgenstein on Philosophy and the Metaphysics
of Experience. Oxford: Clarendon Press, 1972.
HINTIKKA, Jaakko. HINTIKKA, Merrill B. Uma investigação sobre Wittgenstein.
Campinas: Papirus Editora, 1994.
SPICA, Marciano A. A religião para além do silêncio: Reflexões a partir dos escritos de
Wittgenstein sobre religião. Editora CRV; Curitiba, 2011.
WITTGENSTEIN, Ludwig. Diario Filosófico (1914-1916). Barcelona: Ariel, 1982.
WITTGENSTEIN, Ludwig. Tractatus-Logico-Philisophicus. São Paulo: Edusp, 2010.
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EMANCIPAÇÃO INTELECTUAL EM “O MESTRE IGNORANTE”, DE
JACQUES RANCIÈRE: ÊNFASE NA PRÁXIS PEDAGÓGICA DE DOCENTES DE
ENSINO SUPERIOR – Christiano Tortato e Valderice Cecilia Limberger Rippel
UNIOESTE
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Resumo: Com o presente artigo, que se desenvolve a partir de uma revisão bibliográfica,
pretendemos expor, de maneira crítica, os limites do conceito de emancipação intelectual em
O Mestre Ignorante, de Jacques Rancière, através de uma reflexão realizada acerca do
primeiro livro de O Capital, de Marx. Constata-se que, apesar de Rancière fundamentar de
maneira peculiar uma crítica a todo método tradicional de ensino, mostrando suas grotescas
contradições metodológicas, ainda assim podemos apontar, através de uma leitura atenta de
como estão estruturadas as relações sociais no sistema capitalista de produção, uma
fragilidade em seu método que, a nosso ver, se encontra enraizada no princípio adotado pelo
autor e que se encontra expressa de imediato no subtítulo da obra analisada: Cinco lições
sobre a emancipação intelectual.
Palavras-chave: Método de ensino. Emancipação intelectual. Práxis pedagógica.
Ao nos debruçarmos sobre a obra O Mestre Ignorante, de Jacques Rancière,
constatamos que o tema abordado pelo autor parece bastante comum: o ensino ou, ainda,
a arte de ensinar. Porém, imediatamente somos apresentados a um indivíduo nada
comum, um indivíduo que garante ensinar aquilo que ignora e, mais, afirma que todo
indivíduo é capaz de ensinar aquilo que ignora. Ensinar o que se ignora? Mas como? Isso
é o que Rancière explicita através de algumas experiências vivenciadas por Joseph
Jacotot, um aventureiro intelectual.
Jacotot, professor francês, ignorava a língua holandesa e um bom número de seus
alunos ignoravam a língua francesa. Diante desse impasse, é através de uma versão
bilíngue da obra Telêmaco de Fénelon que o aventureiro iniciou sua experiência
1
Graduando do Curso de Licenciatura em Filosofia pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná
(UNIOESTE), Campus de Toledo.
2
Doutora em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) – Docente colaboradora da
Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE), Campus de Toledo e Pesquisadora da Anhanguera
Educacional de Cascavel – PR. Membro do GEPEC - Grupo de Estudos e Pesquisas em Agronegócio e
Desenvolvimento Regional.
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exercendo a docência a um grupo de alunos. Solicitou aos estudantes, por meio de um
intérprete, que realizassem a leitura e narração da obra sob estudo e, após alguns
encontros, solicitou que escrevessem o que estavam pensando sobre o livro. Deveriam
fazê-lo em francês! Os resultados obtidos pelos alunos o surpreenderam. Sua expectativa
foi totalmente superada, pois “[...] descobriu que seus alunos, abandonados a si mesmos,
se haviam saído tão bem dessa difícil situação quanto o fariam muitos franceses! ”
(RANCIÈRE, 2002, p. 2). Surpreendentemente, os alunos haviam aprendido uma nova
língua sem ao menos uma única explicação do mestre.
Será que realmente precisamos de um intermediário entre nossa própria
inteligência e a do livro?  Será que precisamos de uma terceira inteligência que nos
mostre os raciocínios do livro através da fala?  Não podemos nós mesmos encontrar os
mesmos raciocínios através da mera leitura do livro?  Enfim, será que realmente
precisamos de mestres? Rancière afirma que precisamos de mestres, sim, mas não dos
tradicionais mestres da pedagogia clássica, seres superiores, supostamente detentores de
nobres conhecimentos e que caminham rumo às escolas e às universidades com o intuito
de difundir todo conhecimento verdadeiro a seres inferiores. É justamente a partir dessa
relação comumente aceita entre mestre e aluno ou sábio e ignorante, relação que parece
transcorrer toda a história da filosofia desde Sócrates, que Rancière passa a desenvolver
teses sobre a emancipação intelectual.
O objetivo deste artigo é analisar os limites e perspectivas do conceito de
emancipação intelectual em O Mestre Ignorante, de Jacques Rancière. Esse artigo foi
redigido a partir de um trabalho acadêmico desenvolvido por Tortato (2010) na disciplina
de Metodologia do Ensino da Filosofia – ministrada pela Doutora Ester Maria Dreher
Heuser no curso de Licenciatura em Filosofia na Universidade Estadual do Oeste do
Paraná (UNIOESTE) campus de Toledo.
As críticas e reflexões levantadas pelo autor proporcionam subsídio para refletir
sobre as concepções habituais acerca de ensino e aprendizagem, ajudam a pensar a
educação de maneira filosófica. Vale destacar que o autor explicita na capa do livro o seu
objetivo, pois, além do título “O Mestre Ignorante”, apresenta um subtítulo “Cinco lições
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sobre a emancipação intelectual”. Nota-se que sua obra será dedicada a discutir sobre a
emancipação intelectual. Avançando na investigação, percebemos que, em muitos
momentos da obra, traz para o debate a figura de indivíduos pobres e ignorantes
apontando-os como possíveis emancipadores, desde que já emancipados.
Assim surge uma problemática:  Devemos denominar um trabalhador
assalariado na sociedade capitalista um emancipado pelo fato de ajudar seu filho a ler ou
escrever? É prudente denominar emancipado um indivíduo que é roubado diariamente
pelo seu patrão, pelo fato de ser capaz de ler Telêmaco, Shakespeare, a Bíblia ou
qualquer outra obra literária, filosófica ou, enfim, seja capaz de ensinar seu filho a ler?
Considerando o subtítulo da obra  "Cinco lições sobre a emancipação
intelectual" , evidencia-se que o propósito do autor não é a emancipação social, o autor
está disposto a apresentar teses sobre a emancipação intelectual, nada mais. O próprio
Rancière, em entrevista intitulada "Atualidade de O Mestre Ignorante", mencionou sobre
a impossibilidade de transformar igualdade intelectual em igualdade social. Dessa forma,
estaríamos coagidos a responder à questão de maneira afirmativa, ou seja, o trabalhador
assalariado pode ser considerado um emancipado intelectual, entretanto, entraríamos
automaticamente em outro dilema: ao afirmar que o assalariado é um emancipado
intelectual estaríamos afirmando, que o seu conhecimento intelectual é indiferente à sua
própria realidade enquanto sujeito social, e, nesse sentido, o conhecimento intelectual se
assemelharia a uma espécie de entidade suprassensível indiferente à própria existência do
indivíduo. Nessa leitura, a intelectualidade não passa de mera fantasia, pois, só possui
realidade enquanto mera subjetividade individual.
Salientamos que não é pretensão afirmar que não há indivíduos pobres ou
assalariados que possam ser emancipados intelectualmente. A pergunta que não quer
calar é:  De que adianta ser denominado um emancipado intelectual, sendo que, na vida
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prática do dia a dia, o indivíduo é submetido a uma relação de escravidão assalariada,
sendo roubado diariamente por outro indivíduo 3?
Insistir nessa perspectiva de denominar um escravo assalariado ou pai de família
pobre e ignorante como um emancipado intelectual não passa de mera vaidade. Nessa
perspectiva o conceito de “emancipado intelectual” aparece como um conceito
normatizador, pois exclui todo o conteúdo social existente, ou seja, camufla toda a
realidade conflituosa interclasses, homogeneizando os indivíduos de maneira subjetiva,
característica idêntica ao conceito de cidadão  conceito amplamente criticado por
Rancière no quarto capítulo da obra em questão , pois, afinal de contas, o cidadão pode
ser tanto o patrão, que, por meio das leis da propriedade, tem direito de se apropriar de
trabalho alheio não pago, quanto o operário que vende sua força de trabalho ao
capitalista.
Além disso, quando Rancière afirma proposições como: não há sociedade
possível; a ordem existente não tem razão; não há linguagem da razão; a inteligência
somente dirige indivíduos: sua reunião está sujeita às leis da matéria; estabelece, de
antemão, um motivo para que os indivíduos permaneçam indiferentes quanto à realidade
caótica que vivemos, estabelecendo um limite conservador que justifica sua preocupação
com uma emancipação meramente intelectual em depreciação de uma emancipação
social 4. Nesse sentido, o autor pode ser caracterizado como um reacionário ou até mesmo
um reformista, embora ele mesmo faça críticas a partidos reformadores em seu texto.
A história da humanidade já provou que os indivíduos organizados em classes
são capazes de transformar as relações sociais, a Revolução Francesa é prova disso. Nela
a burguesia, enquanto classe dirigente, provou ser capaz de revolucionar todo o modo de
produção feudal, levando as forças produtivas da humanidade a níveis altíssimos através
do desenvolvimento da ciência. Por isso esse ceticismo de Rancière quanto à reunião dos
3 “A propriedade aparece agora, do lado do capitalista, como direito de apropriar-se de trabalho alheio não pago
ou de seu produto; do lado do trabalhador, como impossibilidade de apropriar-se de seu próprio produto”.
(MARX, Karl. O Capital. Ed. Nova Cultural 1988. Vol. I Tomo II, Cap. XXII, p. 157).
4 “As formas de emancipação individuais podem provocar formas de pensamento, de consciência, de práticas
políticas que sejam atualizações coletivas da desigualdade, mas não há transformação de igualdade intelectual
em igualdade social”. (RANCIÈRE, Jacques. Atualidade de O Mestre Ignorante).
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indivíduos é retrógrado e, no fundo, é um discurso que agrada diretamente as elites
conservadoras. E mais, a ordem existente possui uma racionalidade, sim, ela possui uma
lógica, a da valorização do valor. Independente de que os indivíduos estejam conscientes
dela ou não, há uma lei geral que atua de maneira violenta no modo de produção
capitalista e essa lei é a lei do valor, lei demonstrada de forma dialética por Marx, em sua
obra O Capital.
A premissa de Rancière é infeliz ao dizer que “A verdade existe por si
mesma; ela é o que é e não o que é dito. Dizer depende do homem; mas a verdade não
depende” (RANCIÈRE, 2002, p. 56). Depreende-se que essa tese do autor é infeliz, pois
existem verdades no modo de produção capitalista que podem ser ditas tranquilamente. É
uma verdade incontestável que o modo capitalista de produção não garante uma
igualdade social.
Rancière chega ao ponto central do problema quando afirma que o ensino e a
aprendizagem somente funcionam quando há vontade. Nisso sua abordagem é fantástica;
entretanto, os seres humanos não são somente vontade, os seres humanos são uma
dualidade entre corpo e outra entidade não material denominada, por muitos, como alma,
espírito, razão, etc., na qual se encontra a vontade. A vontade pode ser compreendida da
mesma forma como o autor define a atenção, “[...] um fato imaterial em seu princípio e
material em seus efeitos” (RANCIÈRE, 2002, p. 48). E, para a manutenção do corpo, os
indivíduos necessitam de elementos básicos para a sua sobrevivência: vestimenta,
moradia, alimentação, lazer, etc., muito embora muitos não consigam nem mesmo esse
básico para a manutenção da vida. 5
Salientamos que essa seja uma boa maneira de começar a trabalhar
filosoficamente com os alunos do ensino médio, levantando questões do cotidiano,
5 Embora a lei garanta: salário mínimo necessário, "[...] salário mínimo fixado em lei, nacionalmente unificado,
capaz de atender às suas necessidades vitais básicas e às de sua família, como moradia, alimentação, educação,
saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, reajustado periodicamente, de modo a preservar
o poder aquisitivo, vedada sua vinculação para qualquer fim" (Constituição da República Federativa do Brasil,
capítulo II, Dos Direitos Sociais, artigo 7º, inciso IV). Apesar disso, no mês de maio de 2010 constatamos um
salário mínimo vigente de R$510, sendo que, segundo o DIEESE (Departamento Intersindical de Estatísticas e
Estudos Socioeconômicos), o necessário seria de R$2.157,88.
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abordando problemas vivenciados pela maioria dos indivíduos: fome, desemprego, queda
permanente do poder de compra dos salários, desigualdade social, corrupção, destruição
da natureza, violência, o porquê das crises, o porquê das guerras, enfim, buscando, se não
for possível a solução, pelo menos a compreensão desses problemas.
Assim sendo, não podemos nos contentar com uma mera “Emancipação
Intelectual”, devemos, sim, agir, buscando uma emancipação completa dos indivíduos.
Esse princípio pode e deve servir de perspectiva para todas as ciências, bem como para a
filosofia, a ciência-mãe de todo pensamento ocidental.
Referências:
ARISTÓTELES. Metafísica. Tradução, introdução e notas de Lucas Angioni. Clássicos da
Filosofia: Cadernos de Tradução n.15. IFCH/UNICAMP Fevereiro de 2008.
DIEESE: Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos. Disponível
em: <http://www.dieese.org.br/rel/rac/salminMenu09-05.xml>. Acesso em: 25 ago. 2012.
KOHAN, Walter Omar. Sobre o ensinar e o aprender... Filosofia. Tradução de Ester Maria
Dreher Heuser. Rio Grande do Sul: Unijuí, 2002.
MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política. Livro I. Volume I e II. Tradução de
Regis Barbosa e Flávio R. Kothe. Segunda Edição. São Paulo: Nova Cultural, 1985. (Os
Economistas).
MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. Manifesto comunista. Organização e introdução de
Osvaldo Coggiola. 5 ed. São Paulo: Boitempo, 2007.
PLATÃO. Teeteto. Tradução de Carlos Alberto Nunes, 3 ed. Belém do Pará: Universitária
UFPA, 2001.
RANCIÈRE, Jacques. O mestre ignorante. Tradução de Lílian do Valle. Belo Horizonte,
MG: Editora Autêntica, 2002.
VERMEREN, Patrice; CORNU, Laurence & BENVENUTO, Andrea. Atualidade de "O
Mestre Ignorante". Tradução de Lílian do Valle. Revista “Educ. Soc.”, Campinas, vol. 24,
n. 82, p. 185-202, abril de 2003.
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TORTATO, Christiano. Trabalho acadêmico da disciplina de Metodologia do Ensino da
Filosofia – ministrada pela Doutora Ester Maria Dreher Heuser no curso de Licenciatura em
Filosofia na Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE) campus de Toledo,
2010.
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HUME E O RESGATE DO CETICISMO EMPÍRICO – Donizeti Aparecido
Pugin Souza
UEM/CAPES
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Resumo: Este trabalho pretende aproximar o ceticismo proposto por David Hume (17111776) do ceticismo tal qual praticado pelos céticos empíricos, cujos expoentes principais são
Menodoto e Sexto Empírico (séc. II). Não contentes em destruir o dogmatismo e mesmo a
filosofia, almejavam instituir uma arte fundada na observação, a medicina, ou seja, uma
espécie de ciência. Também Hume, séculos depois, se preocupará em destituir todo
dogmatismo presente ainda na filosofia, instaurando uma ciência da natureza humana,
unicamente baseada na experiência, tal como havia sido feito com as ciências experimentais.
Esse novo modo de se interpretar o ceticismo humeano ao mesmo tempo em que tenta
solucionar o conflito entre a razão e as paixões, situa-o na problemática da ciência
contemporânea ao confiar aos sentidos uma espécie de critério de demarcação científica.
Palavras-chave: David Hume. Ceticismo empírico. Ciência.
Em sua primeira e grande obra, o Tratado da Natureza Humana, Hume não
anunciava uma filosofia cética, mas uma filosofia empirista. Seu projeto inicial consistia
em elaborar uma filosofia que partisse da experiência para alcançar princípios gerais:
“Assim como a ciência do homem é o único fundamento sólido para as outras ciências
[lógica, moral, crítica e política], assim também o único fundamento sólido que podemos
dar a ela deve estar na experiência e na observação” (HUME, 2006, p. 5 [Intro. 08]). É a
experiência, portanto, que fundamentará todo o empreendimento filosófico de Hume,
inclusive seu ceticismo.
À medida que analisa e descobre os princípios do entendimento humano
produtores de nossas crenças básicas, o escocês mostra-nos a impossibilidade de sair da
esfera da experiência: “Nenhum de nós pode ir além da experiência ou estabelecer
princípios que não estejam fundados sobre essa autoridade [...] Quando não sou capaz de
conhecer os efeitos de um corpo sobre outro em uma dada situação, tudo que tenho a
fazer é por os dois corpos nessa situação e observar o resultado” (HUME, 2006, p. 6
[Intro. 10]). Em nenhum assunto, portanto, a filosofia consegue ultrapassar os dados dos
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sentidos e, quando pretende ultrapassar esse limite, começa a produzir absurdos, pois não
há ideias que correspondam aos termos que emprega nessas discussões.
Em sua origem pirrônica o ceticismo já era relacionado a uma espécie de
empirismo, pois mesmo a suspensão do juízo proposta pelos céticos empíricos não deve
ser compreendida como excessiva, pois o filósofo ou mesmo o homem comum que faça
uso dela não deixa de experimentar certas coisas e afirmá-las. Embora não afirme nada
no sentido absoluto do termo, o cético diz o que lhe aparece, e é a partir dessas
percepções que pretende fundamentar uma ciência.
Mais que próximos, ceticismo e empirismo são inseparáveis. Para Michael Frede,
o cético poderia ter crenças, mas suas crenças não seriam dogmáticas, ele creria apenas
nos fenômenos, no que lhe aparece; sua suspensão de juízo diria respeito tão somente aos
discursos que se propõem falar de uma realidade para além do que aparece,
pretensamente revelada pela razão (FREDE, 1987, p. 179). 1 O que o ceticismo torna
inviável é a afirmação categórica de verdades, construídas geralmente por meios
dialéticos. O que o cético conhece é o que lhe aparece e não o resultado do trabalho da
razão e das paixões sobre essas percepções sensíveis. É da experiência humana do dia a
dia que devem surgir os dados para essa ciência, como diz Porchat: “Essa vivência
fenomênica da vida comum, essa ciência empírica cética, o cético as expressa num
discurso que não é outro senão o discurso ordinário dos homens, mas expurgado de
intenções e conotações dogmáticas” (PEREIRA, 2007, p. 197).
Desde o Iluminismo, o ceticismo tem sido visto como extremamente negativo e
prejudicial para a filosofia, por tentar impedir o progresso da razão, sendo considerado
até como irracional. Uma possível solução para esse problema pode-se encontrar numa
distinção entre um aspecto negativo e um positivo do ceticismo. Tal distinção já era
presente, segundo Brochard (2009, p. 313), no ceticismo grego antigo, embora tenha sido
deixado de lado quando retomado na filosofia moderna. Ele distingue dois grupos de
céticos: os empíricos e os dialéticos. Enquanto estes se preocupavam apenas em destruir
1
Outros autores também reforçam esse argumento, como Plínio Smith (1995, p. 224-5), Porchat (2007, p. 9-54)
e Bolzani Filho (2007, p. 55-90). Este defende a tese de que todo empirismo orienta-se para uma postura cética,
conduzindo o filósofo a uma espécie de ceticismo, mesmo que mitigado (p. 58).
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o dogmatismo, acabavam por suprimir a ciência da época e não se preocupavam em
colocar algo no lugar; aqueles se destacavam por, ao mesmo tempo em que buscavam
destruir o dogmatismo, preocupavam-se em substituí-la pela “arte fundada na observação,
pela medicina, ou seja, por uma espécie de ciência” (BROCHARD, 2009, p. 314).
Sexto Empírico, maior expoente do ceticismo empírico 2, define seu ceticismo
como uma espécie de remédio contra a doença dos dogmáticos: “o cético deve
igualmente se servir de razões fortes e de razões fracas: as fortes curarão os que estão
fortemente presos ao dogmatismo, as fracas, os que estão presos a ele apenas de maneira
fraca. Assim, todos serão salvos do orgulho e da presunção do dogmatismo” (SEXTO
EMPÍRICO, p.,III, 280 apud BROCHARD, 2009, p. 325). Essa imagem de ceticismo é
muito próxima daquilo que Hume apresenta como sendo a intenção da primeira
Investigação: “devemos dedicar algum cuidado ao cultivo da verdadeira metafísica a fim
de destruir aquela que é falsa e adulterada” (HUME, 1999, p. 92 [1.12 3]) e ainda, “minar
as fundações de uma filosofia abstrusa que parece ter servido até agora apenas como
abrigo para a superstição e como anteparo para o erro e a absurdidade” (HUME, 1999, p.
94-5 [1.17]).
Segundo Brochard, o que atualmente chamamos de positivismo é, na verdade,
um desdobramento do ceticismo empírico tal qual aplicado por Sexto Empírico. À
medida que punha em dúvida somente as verdades metafísicas, que se demonstram
dialeticamente, Sexto desejava substituir essa ciência abstrata e a priori, praticada pelos
dogmáticos, por uma espécie de ciência fundada unicamente na observação e estudo dos
fenômenos e suas leis (Cf. BROCHARD, 2009, p. 329). A linha de demarcação traçada
pelos positivistas modernos é a concretização do ideal dos céticos empíricos: a libertação
da ciência das amarras da metafísica (Cf. BROCHARD, 2009, p. 378).
A ideia central de Hume parece ser a de incluir as crenças em nossa vida a fim de
quebrar nossos raciocínios céticos e pôr-nos num nível moderado de ceticismo. Dúvidas
2
Segundo Brochard, as obras de Sexto Empírico devem ser entendidas como obra coletiva da escola cética da
qual fez parte, visto que o próprio autor não se preocupa em apresentar argumentos inéditos, mas apresenta um
bom número de citações de outros filósofos (cf. BROCHARD, 2009, p. 326).
3
[x.y], onde x: seção e y: parágrafo.
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céticas, por mais fortes que sejam não superam a influência das crenças sobre nossos
raciocínios, de modo que sempre haverá um triunfo final das paixões sobre a razão cética.
O ceticismo mitigado significa um momento importante na argumentação humeana, onde
a metafísica – ficção filosófica – é refutada. Ele limpa o terreno para o segundo passo:
provar que é apenas através do método empírico, da experiência, que podemos conhecer a
natureza. Herança da dúvida cartesiana, apresenta-se em oposição ao ceticismo pirrônico,
radical, restaurado em especial por Montaigne (Cf. POPKIN, 2000, p. 49-88; 123-152).
Segundo Fogelin, “a tendência mais normal da filosofia de Hume é avançar um
ceticismo prescritivo mais moderado ou mitigado de um molde acadêmico, antes qu e
pirrônico” (FOGELIN, 2007, p. 101-2). Esse ceticismo moderado como o ponto final
natural da reflexão filosófica seria, para ele, a principal contribuição de Hume para a
tradição cética (Cf. FOGELIN, 2007, p. 102). Daí o ceticismo radical de Hume, ao
confrontar-se com uma extrema experiência da vida diária, resultaria naturalmente, e não
dialeticamente, numa espécie de ceticismo muito próxima do acadêmico (Cf. FOGELIN,
2007, p. 109). Essa espécie de ceticismo funcionaria como um “princípio de
resfriamento” (LANDESMAN, 2006, p. 282), como um alerta contra o dogmatismo e
uma maneira de se imunizar tanto contra a superstição religiosa quanto contra os sistemas
filosóficos abstratos e quiméricos.
Brochard defende a ideia de que uma suspensão absoluta do juízo como
concebida pelos primeiros céticos deveria, necessariamente, conduzir-nos ao desinteresse
pela vida, a uma inércia absoluta (Cf. BROCHARD, 2009, p. 360). É necessário,
contudo, certo grau de ceticismo pirrônico, intenso, capaz de, segundo Fogelin, “ref rear o
entusiasmo que Hume tanto desprezava” (FOGELIN, 2007, p. 108). Nossa percepção é a
de um intenso conflito entre as paixões e a razão, conflito este que o escocês parece não
se importar em resolver, embora o reconheça.
O objetivo primeiro de Hume era o de produzir um relato científico das
operações da mente humana, e o resultado seria um sistema com somente um tipo de
objeto, percepção e algumas maneiras nas quais são produzidas. O ceticismo, portanto,
motivou e ao mesmo tempo estabeleceu os limites da ciência da natureza humana sem o
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qual, é útil recordar, nenhuma ciência da natureza humana seria possível. Tendo recusado
aquele ceticismo excessivo, a que chama de pirronismo, e submetendo-se a corrente da
natureza, abre-se para Hume a possibilidade do estudo do homem, atribuindo apenas
novas causas e princípios a fenômenos, mas sem jamais inventar novos objetos 4.
Na elaboração de sua ciência do homem, o filósofo que se apoia em princípios
céticos acadêmicos se permitirá ser afirmativo nas questões em que suas investigações
chegarem a um resultado firme. Ele não permanecerá, tal como o cético excessivo, em
um estado de constante indecisão, mas, tendo examinado os fenômenos e alcançado uma
causa que os organize e simplifique, dirá positivamente ser esse o princípio de tais
fenômenos.
Referências:
BOLZANI FILHO, Roberto. Ceticismo e Empirismo. In: SMITH, P. J.; SILVA, W. J.
Ensaios sobre o ceticismo. São Paulo: Alameda editorial, 2007. p. 55-90.
BROCHARD, Victor. Os céticos gregos. Trad. Jaimir Conte. São Paulo: Odysseus Editora,
2009.
FOGELIN, Robert J. A tendência do ceticismo de Hume. Trad. Plínio J. Smith. In: Sképsis,
n.01, p.99-118, 2007.
FREDE, Michael. Essays in Ancient Philosphy. Oxford: Clarendon Press, 1987.
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LANDESMAN, Charles. Ceticismo. Tradução Cecília Camargo Bartalotti. São Paulo:
Loyola, 2006.
OSELLA, Mario. Las aporias del escepticismo. Rio Cuarto: Univiversidade Nacional de Rio
Cuarto, 2008.
4
“También Hume nos habla de la anormalidad del escepticismo. Nos dice que esa filosofía, por su carácter
caprichoso y vano, provoca la risa. La provoca en el escéptico que despierta de su sueño. La incita también en
nosotros, el pirronismo, en el fondo, es inofensivo: no puede contra la natureza (OSELLA, 2008, p. 103-104).”
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PEREIRA, Oswaldo Porchat. Rumo ao ceticismo. São Paulo: editora Unesp, 2007.
POPKIN, Richard Henry. História do ceticismo de Erasmo a Spinoza. Tradução de Danilo
Marcondes. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 2000.
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INDIVIDUAÇÃO E SOCIALIZAÇÃO NO PROCESSO EDUCATIVO DE
REDESCRIÇÃO – Marta Marques
Universidade de Passo Fundo
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Resumo: O presente texto1 tem por objetivo, clarificar os argumentos de Rorty na
composição da tarefa educacional no cenário contemporâneo. Em um de seus textos
intitulado, Educação sem dogmas, Rorty apresenta de forma sucinta, por meio dos conceitos
de Socialização e Individualização, sua forma de conceber o papel respectivo da educação
básica e da educação superior. A comunicação almeja ampliar e aprofundar as reflexões
realizadas por Rorty sobre a tarefa da educação no atual contexto do pensamento filosófico.
Palavras-chave: Pragmatismo. Educação. Rorty.
O objetivo do presente texto é analisar de que maneira as considerações de Rorty
sobre a educação se articulam no conjunto do seu pensamento no sentido de pensar a
filosofia e a própria educação enquanto “redescrição” do mundo. Há divergências entre
os críticos e estudiosos de Rorty sobre a possibilidade de retirar de sua filosofia uma
filosofia da educação. Paulo Ghiraldelli Jr., por exemplo, considerado um dos mais
importantes estudiosos brasileiros do pensamento rortiano, considera “que a filosofia de
Richard Rorty confunde-se com uma filosofia da educação” e que “talvez não possa
haver sentido em especificar um conjunto de textos de filosofia da educação de Rorty”
(GHIRALDELLI JR., 1997, p.9).
De outra parte, Brian Hendley, professor da Universidade de Waterloo/Canadá,
considerado um dos críticos do pensamento rortiano, considera que Rorty assumiu uma
postura “distanciada para com a educação”. Em suas próprias palavras:
Rorty é um participante relutante em debates educacionais. Ele claramente prefere
retirar-se da briga a salvo, reunindo filósofos e outros intelectuais para fazer
comentários irônicos e executar o papel “terapêutico” de “penetrar a crosta da
convenção”. Quando são propostas alternativas novas, concretas, ele sente que “o
melhor que nós, filósofos podemos fazer é desenvolver uma retórica satisfatória para
a apresentação destas sugestões novas – tornando-as mais palatáveis” (HENDLEY,
1998, p. 20-21).
1
Texto produzido no grupo de Pesquisa “Pragmatismo, filosofia e educação: as interfaces entre experiência,
reflexão e políticas de ensino”, sob a orientação do professor Dr. Altair Alberto Fávero.
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Em seu texto Os perigos da sobre-filosoficação, Rorty inicia dizendo que “sou
alguém que tem lá suas dúvidas a respeito da relevância da filosofia para a educação”
(RORTY, 1997a, p.59) e, logo em seguida, justifica dizendo que, se a filosofia pode ter
uma função social, esta deve ser uma “função terapêutica – ajudar as pessoas a sair do
domínio das idéias filosóficas antiquadas, ajudando a quebrar a crosta de convenções”
(Idem, ibidem). Apesar de Rorty não estar muito certo das contribuições que a filosofia
pode dar à educação e de que deve exercer uma “função terapêutica”, seus poucos
escritos sobre essa questão possuem profundas implicações no conjunto do seu
pensamento.
“Educação sem dogma” é o texto em que Rorty explicita sua ideia de educação
como socialização e como individuação. Neste texto Rorty inicia analisando as posições
que as “pessoas da direita política” e as “pessoas da esquerda política” assumem quando
falam de educação. As primeiras vinculam a educação com a verdade; as segundas, com a
liberdade. As teorias filosóficas sobre educação são fruto dessa oposição entre liberdade
e verdade, ou entre direita e esquerda. “A direita”, diz Rorty, “costuma oferecer uma
teoria segundo a qual, quando se tem verdade, a liberdade se seguirá automaticamente”
(1997b, p. 69). Rorty vincula essa teoria ao quadro platônico de educação, ou seja, o
despertar da verdadeira individualidade se dá quando os seres humanos, portadores da
faculdade da “razão”, são capazes de superar os obstáculos, as paixões e o “pecado” e
atingem a “luz da verdade”. Uma vez atingida a verdade, a liberdade se seguirá, porque
só a verdade nos torna livres. “Para a esquerda”, contrapõe Rorty,
a função peculiar da educação é fazer os jovens perceberem que não devem
consentir com esse processo alienante de socialização. Na versão inversa de Platão
que o esquerdista adota, se se cuida da liberdade – principalmente a liberdade
política e econômica –, a verdade cuidará de si mesma. Pois a verdade é aquilo em
que se acreditará tão logo sejam removidas as forças alienantes e repressivas da
sociedade (RORTY, 1997b, p.70).
Na interpretação de Rorty, ambas as versões partem do pressuposto de que há
uma conexão entre verdade e liberdade, entre natureza e convenção, entre o que é
humano e o que é desumano. Isso significa que, na leitura rortiana, o que diferencia as
posições entre direita e esquerda não são aspectos de ordem filosófica, mas de natureza
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política, ou seja, da maneira como se efetiva a prática educativa. Para os conservadores,
“a educação deve se concentrar em ressuscitar e restabelecer o que eles chamam de
‘verdades fundamentais hoje negligenciadas e rejeitadas’” (RORTY, 1997b, p.71). Os
radicais, por sua vez, “consideram as ‘verdades fundamentais’ dos conservadores como
sendo aquilo que Foucault chamou de ‘discurso do poder’ e acham que continuar
inculcando a mentalidade convencional contribui para trair os estudantes” (RORTY,
1997b, p. 71).
Rorty acredita que nas modernas democracias liberais essa tensão tem sido
resolvida por um “certo acordo” entre as partes: a direita tem mantido o controle da
educação básica (educação primária e secundária) ao passo que a esquerda tem ocupado
espaços cada vez maiores na educação superior “não-vocacional”. A educação superior
não-vocacional é definida por Rorty como sinônimo de educação edificante. Há uma
diferença entre educação superior vocacional (profissionalizante) e educação superior
não-vocacional (não-profissional): na educação superior vocacional há uma preocupação
de inculcar o senso comum, de estabelecer e incorporar uma matriz disciplinar da
ocupação dos futuros estudantes, ao passo que na educação superior não-vocacional os
educadores não têm a preocupação de transmitir conhecimentos, mas, sim, de estimular a
imaginação dos seus alunos para que possam realizar um processo de autocriação. Tratase de uma educação em que “os professores tentam fazer os estudantes se emocionarem
com as mesmas coisas com que eles mesmos se emocionaram, completamente
independentes da questão de se essas coisas têm alguma relação com o que é tido como
verdadeiro por outra sociedade ou por algum estabelecimento disciplinar especializado”
(RORTY, 1997a, p. 62). Em síntese, poderíamos dizer que a educação superior nãovocacional é o processo onde ocorre a formação da “liberal ironista” de Rorty.
Esse “acordo tácito” entre direita e esquerda é reforçado por Rorty quando diz
que “mesmo os radicais mais exaltados” esperam que as escolas elementares ensinem aos
alunos as noções básicas de sociabilidade (esperar sua vez na fila, evitar as drogas,
respeitar ao guarda da esquina, soletrar, pontuar, multiplicar etc.), pois ninguém quer,
nem seria desejável, “que as escolas secundárias diplomem a cada ano uma classe de
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Zaratustras amadores a questionarem a mentalidade convencional” (RORTY, 1997b, p.
72). De outro lado, “só os conservadores mais ressentidos e bitolados é que pretendem
garantir que as universidades só contratem professores que endossem o status quo”
(Idem, ibidem). A grande questão que se torna um complicador na educação, adverte
Rorty, é estabelecer “onde deve acabar a socialização e onde deve começar a crítica”
(Idem, ibidem).
Na interpretação de Rorty, o equívoco tanto dos “radicais” quanto dos
“conservadores” está em que ambos ignoram “o fato de que a palavra educação abrange
dois processos inteiramente diferentes e igualmente necessários – socialização e
individuação” (Idem, ibidem). Assim, os conservadores erram por acreditarem que existe
uma faculdade que possa “descobrir nossa verdadeira individualidade e que a educação
traz à consciência”; por sua vez, os radicais erram “quando acreditam que existe uma
verdadeira individualidade que emergirá uma vez seja removida a influência opressora da
sociedade” (Idem, p. 73). Para Rorty, conforme já visto anteriormente, não existe essa
“coisa” chamada natureza humana, tampouco existe essa “coisa” chamada “alienação da
condição humana essencial de alguém”. “O que existe”, diz ele, “é apenas a moldagem de
um animal num ser humano graças a um processo de socialização, seguido (com sorte)
pela auto-individuação e autocriação desse ser humano através de sua própria e posterior
revolta contra esse mesmo processo” (Idem, ibidem).
E qual o papel do educador nesse processo educacional de socialização e
individuação? Como se diferencia o educador no processo de socialização e de
individuação? “A educação básica” diz Rorty, “deve objetivar primeiramente a suficiente
comunicação do que é tido ser verdadeiro pela sociedade à qual as crianças pertencem;
assim sendo elas podem funcionar como cidadãos nessa sociedade” (RORTY, 1997a, p.
61). O educador da educação básica deve zelar para que esse processo aconteça. Caso
tiver dúvidas quanto à sociedade em que vive, “espera-se que o educador deixe essas
dúvidas influenciarem seu ensino somente nas margens – somente para ampliar a
inclusão, na história que ela conta sobre a sociedade, de algumas pessoas ou eventos ou
instituições que podem não estar sobremaneira incluídos” (Idem, ibidem). O educador,
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portanto, no processo de socialização, deve evitar que suas idiossincrasias e o seu
“ironismo” interfiram no processo de “moldagem de um animal num ser humano”. Para
isso, é essencial que as próprias histórias conhecidas pelos estudantes a respeito da
sociedade em que vivem coincidam suficientemente com a história de seus pais, de modo
que estes não pensem a escola como instituição subversiva. “Se um professor pensa que a
sociedade está fundada em uma mentira”, sentencia Rorty, “então ele deveria achar outra
profissão” (Idem, ibidem). No processo de individuação (aquela que ocorre no ensino
superior não-vocacional), o papel do educador é bem diferente. Nesta, os educadores, diz
Rorty,
não se preocupam em comunicar conhecimentos mas, ao contrário, deixam suas
falas serem movidas pelas situações vagas e imaginárias que eles encontram neles
mesmos. [...] os professores tentam fazer os estudantes se emocionarem com as
mesmas coisas com que eles mesmos se emocionaram, completamente
independentes da questão de se essas coisas têm alguma relação com o que é tido
como verdadeiro por outra sociedade ou por algum estabelecimento disciplinar
especializado (Idem, p. 62).
Por isso, na visão rortiana, no ambiente onde ocorre o processo de individuação
deve haver espaço para a liberdade acadêmica e a permissão para que a dúvida e a crítica
social venham ocupar o ponto nuclear do processo educacional. Assim, espera -se que em
tal ambiente a educação propicie um processo de autoeducação (edificação) para que os
estudantes se tornem ironistas capazes de criticar sua própria formação e a sociedade em
que vivem. Esse processo de individuação possibilita que os estudantes, juntamente com
seus professores, possam praticar “o discurso edificante” (anormal na linguagem
kuhniana), o qual pode “tirar-nos para fora de nossos velhos eus pelo poder da
estranheza, para ajudar-nos a nos tornarmos novos seres” (RORTY, 1994, p. 354).
Em muitas passagens, algumas delas referidas na presente pesquisa, Rorty se diz
um razoavelmente fiel seguidor de John Dewey. “A grande contribuição de Dewey à
teoria educacional”, diz Rorty, “foi nos ajudar a descartar a ideia de que a educação é
uma questão de induzir ou deduzir a verdade” (Idem, p. 73). Tanto a educação básica
quanto a educação superior não têm como preocupação inculcar ou induzir a verdade: na
educação inferior (educação básica) a preocupação é socializar as crianças e jovens “sem
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desafiar o consenso dominante sobre o que é verdadeiro”, ao passo que na educação
superior a preocupação é “incitar dúvidas e estimular a imaginação” sem o propósito de
inculcar a verdade. “Se a educação pré-universitária produz cidadãos instruídos e se a
educação universitária produz indivíduos autônomos”, provoca Rorty em forma de
silogismo, “então carece completamente de importância saber se estão ou não ensinando
a verdade aos estudantes” (Idem, p. 74).
Na abordagem rortiana, Dewey deu significativas contribuições para se pensar
uma educação destituída dos “ranços” metafísicos que ancoravam a atividade educativa
“em fundamentos externos”, ou em “valores eternos”, ou na ideia de “natureza humana”.
“Ele [Dewey] via a democracia”, ressalta Rorty, “não como fundamentada na natureza do
homem, na razão ou na realidade, mas como promissora experiência assimilada por um
rebanho particular de animais – nossa espécie e nosso rebanho” (Idem, p. 75). Com essa
definição de democracia, Dewey colocou-se na contramão tanto dos “conservadores”
(que buscavam justificativas filosóficas para a democracia em valores eternos) quanto
dos “radicais” (que buscavam justificativas para a alienação decrescente). “Essa noção de
uma espécie de animais que gradualmente assumem o controle de sua própria evolução,
alterando suas condições ambientais”, continua Rorty, “leva Dewey a dizer, em boa
linguagem darwiniana, que o ‘crescimento é em si mesmo o fim moral’ e que ‘proteger,
manter e dirigir o crescimento é o principal fim da educação’” ( Idem, ibidem). E qual é o
critério para se considerar que está havendo “crescimento”? Dewey não ofereceu nenhum
critério, e o fez propositadamente, diz Rorty, porque “critério algum recortaria o futuro
do tamanho do presente. Pedir um critério desses é como pedir a um dinossauro que
especifique o que faz um bom mamífero, ou como pedir a um ateniense do século IV que
proponha formas de vida para cidadãos de uma democracia industrial do século XX”
(Idem, ibidem). Ao invés de critérios, um deweiano ofereceria narrativas inspiradoras,
utopias nebulosas, redescrições de mundo capazes de (com sorte) projetar novos mundos.
Entretanto, esses “novos mundos” só terão oportunidade de serem construídos se nos
libertarmos dos “nossos velhos eus pelo poder da estranheza, para ajudar-nos a nos
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tornarmos novos seres”. Em tal contexto a educação seria uma “redescrição” para o
exercício da democracia e da solidariedade.
Referências:
GHIRARDELLI JÚNIOR, Paulo. Para ler Richardo Rorty e sua filosofia da educação. In:
GHIRARDELLI Jr., Paulo & PRESTES, Nadja Hermann (Orgs.). Filosofia, sociedade e
educação, Marília, ano I, n. 1, pp.9-30, 1997.
HENDLEY, Brian. Rorty revisitado. In: GHIRARDELLI Jr., Paulo & PRESTES, Nadja
Hermann Prestes (Editores). Filosofia, sociedade e educação, Marília, ano II, n.2, 1998,
p.19-24.
RORTY, Richard. Filosofia e espelho da natureza. Trad. Antônio Trânsito. Rio de Janeiro:
Relume-Dumará, 1994.
RORTY, Richard. Os perigos da sobre-filosoficação. In: GHIRARDELLI Jr., Paulo &
PRESTES, Nadja Hermann (Orgs). Filosofia, sociedade e educação, Marília, ano I, n. 1,
p.59-68, 1997a.
RORTY, Richard. Educação sem dogmas. In: GHIRARDELLI Jr., Paulo & PRESTES, Nadja
Hermann (Orgs). Filosofia, sociedade e educação, Marília, ano I, n. 1, p.69-80, 1997b.
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INTENCIONALIDADE E EPOCHÉ EM EDMUND HUSSERL – Devair
Gonçalves Sanchez
UNIOESTE/CAPES
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Resumo: Pretende-se deslindar os conceitos de intencionalidade e epoché no âmbito da
fenomenologia transcendental. Husserl retoma o conceito oriundo do pensamento cético grego
e o insere em Ideias I, afirmando que, com a redução transcendental – epoché – a consciência
adquire um sentindo de uma “esfera de ser absoluta”. Com a intencionalidade Husserl
perscruta o modus essendi da razão. Diante da premissa todo conhecimento é conhecimento
de algo, ou seja, tende para algo, Husserl está promovendo uma nova etapa da teoria do
conhecimento, suscitando um debate e apresentando ideias de contraposição à tradição do
pensamento que perpassa a modernidade – Descartes, Kant e Hegel – e culmina com
Brentano. O presente artigo pretende, genericamente, demonstrar os influxos e dissidências
conceituais e argumentativos que perpassam estes dois conceitos fundamentais para o
desenvolvimento e embasamento da fenomenologia transcendental.
Palavras-chave: Fenomenologia. Intencionalidade. Epoché.
Husserl promove uma prática filosófica revolucionária dinamizando a
consciência, tirando-a da passividade espectadora diante do mundo. Cabe à consciência
conferir sentido aos fenômenos que a ela se apresentam e, com isso, tem-se a consciência
ocupando-se da constituição dos objetos no âmbito transcendental, onde os mesmos são
tomados como fenômeno de existência. Os atos da consciência são tomados num nível
intencional e o sujeito passa da atitude natural para a atitude fenomenológica; entra em
cena a epoché. O “resultado” claro de toda epoché fenomenológica, será a descoberta do
ego puro, da consciência. Nas Meditações cartesianas, Husserl tenta mostrar que
mediante a operação da epoché o mundo não se torna um nada para a fenomenologia, mas
simplesmente o ganha como cogitatum, quer dizer, como correlato de minha
intencionalidade.
Alegoricamente pode-se dizer que a epoché se dá tal como o ato de assistir um
filme e paralisar a cena num determinado momento. Tal atitude (Einstellung, Haltung) da
consciência permite ao eu captar o fenômeno em suas intuições não preenchidas,
possibilitando à reflexão egológica um direcionamento essencialmente orientado. No
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entanto, a analogia usada não deve ser confundida com qualquer espécie de estaticidade
da consciência. Ao contrário, o caráter desses acontecimentos é de fluxo contínuo, numa
atividade constante de depuração, clarificação e descrição de atos percebidos num
primeiro momento a fim de atingir verdades absolutas e irrefutáveis.
A atitude transcendental busca precisamente analisar os atos intencionais da
consciência e não apenas os dados objetivos da realidade empírica. Quem adere a essa
nova forma de ocupação da realidade não se contenta com a demonstração de simples
fenômenos, mas, abstendo-se da atitude irrefletida, passa a valorizar os dados puros
vividos da consciência. Pode-se afirmar com clareza que a epoché é o ato que perpassa
toda a trajetória de saída da ingenuidade irrefletida para a responsabilidade
filosoficamente comprometida. Dado o emprego da epoché, emerge “uma esfera nova e
infinita de existência que pode atingir uma experiência nova, a experiência
transcendental” 1, onde a consciência deixa de ser espectadora estática da objetividade
mundana e volta-se para si mesma como se ela tivesse total domínio do campo de sua
atividade. A partir dessa constatação, nota-se também que na fenomenologia a
consciência humana capaz de conhecer é sempre intencionalidade, ou seja, toda
consciência não é somente consciência, mas sim consciência de algo, e esta, por
extensão, só é alguma coisa para uma consciência (HUSSERL, 2001, p. 51).
Na constituição de sentido 2 de um determinado objeto, a consciência, mediante
os atos e correlatos da sua intencionalidade, fornece a doação de sentido que emerge de
sua vivência constitutiva. Emaranhada numa sequência infinita de atos, a consciência vai
constituindo e conferindo sentido aos fenômenos que a ela se mostram. Com isso tem-se
um dado fundamental, a atividade fulcral da consciência, a saber, conferir sentido aos
1
Ibidem, p. 46.
“Como este termo é demasiado especial para a fenomenologia husserliana e, por conseguinte, para o
desenvolvimento do tema que propomos estudar, desde já devemos elucidar que toda explicitação
fenomenológica, como veremos no decorrer de nossas explanações, visa revelar aquilo que está implicado nos
correlatos da consciência, isto é, no sentido que a própria consciência atribui aos objetos ou ainda no “avesso dos
objetos”, conforme expressão de Husserl. O sentido, então, representa as percepções potenciais que tornam o
não-visível visível, ultrapassando os estados singulares dos objetos em análise e alcançando a essência universal,
bem como necessária dos mesmos” (HUSSERL, 2001, p. 66).
2
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fenômenos. A epoché ou a redução fenomenológica permitirá um “voltar-se”
comprometido aos fundamentos da constituição de sentido das possibilidades de
conhecimento. O “em si” torna-se um “para mim”, pois me aproprio de sua condição
existencial, não apenas enquanto objeto de conhecimento no âmbito empírico, mas como
vivência intencional nos fluxos da consciência.
Agindo dessa maneira, a filosofia se ocuparia somente dos dados essenciais da
realidade objetiva, em outras palavras, o horizonte de sentido – que somente desvela-se
no âmbito transcendental –, dispensado pelos fenômenos é agora o foco da filosofia
almejada por Husserl. Segundo o filósofo, “contrariamente a Descartes, vamos nos
propor como tarefa explorar o campo infinito da experiência transcendental”
(HUSSERL, 2001, p. 36). A consciência, em sua vida intencional, em suas cogitationes,
se encontra em constante fluxo, captando dados da realidade e purificando os mesmos
através da dinâmica de redução. Dessa forma, temos o ato e o correlato da consciência. O
importante é a experiência que o ego obtém dos fenômenos através da intencionalidade
da sua consciência. A realidade mundana objetiva perde sua importância enquanto
interesse de análise fenomenológica.
A percepção externa (que certamente não é apodictíca) é, sem dúvida, uma
experiência do objeto em si – o próprio objeto está ali [diante de mim] –, mas, nessa
presença, o objeto possui, para o sujeito que percebe, um conjunto aberto e infinito
de possibilidades indeterminadas que não são, elas próprias, atualmente percebidas
(HUSSERL, 2001, p. 40)
O ego puro será o condutor, o promotor e o ordenador do fluxo das vivências da
consciência. Ele mesmo as constituirá e, como consciência intencional que investiga o
“em si”, desvelará o fenômeno dando sentido ao mesmo através de suas vivências
intencionais. De tal maneira que nas Meditações cartesianas, Husserl intenta demonstrar
que o ego puro, isolado no âmbito da consciência intencional atestada pela
fenomenologia transcendental, embora constitua todo o horizonte de sentido do mundo
no âmbito dessa consciência, nem por isso se torna rigorosamente solipsista. Ainda, pela
intencionalidade compreende-se o voltar-se para a realidade circundante do mundo
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sempre visando algo. A análise intencional 3 dá-se, portanto, na dinâmica cogitocogitatum, em que “a vida de consciência relaciona-se intencionalmente consigo mesma”
(HUSSERL, 2001, p. 61). Ainda na quinta meditação, Husserl demonstrará a constituição
da experiência do outro via intencionalidade, no ego transcendental reduzido, ou seja,
como se forma uma comunidade intersubjetiva monádica. Com isso, pode-se perguntar:
seria o ego cogito algo separado, estranho ao próprio homem?
Adentrar no campo da experiência transcendental, como já dito, implica uma
reflexão paulatina e intermitente. Caso contrário a investigação que agora se denomina
fenomenologia transcendental está fadada a novamente adentrar no âmbito combatido por
Husserl, a saber, o psicologismo. Não se trata nem mesmo de efetuar uma psicologia
puramente descritiva, pois a redução transcendental é o fator que dissocia ambas as
perspectivas. Segundo Husserl, (2001, p. 50) “a psicologia pura forma, é verdade, um
estreito paralelo com a fenomenologia transcendental da consciência. No entanto, é
preciso distingui-las bem; sua confusão caracteriza o psicologismo transcendental, que
torna impossível qualquer filosofia verdadeira”.
Trata-se, portanto, de permanecer restrito ao âmbito da redução transcendental
da consciência. Conceber os elementos constitutivos dessa esfera, não mais como
existentes, mas como meros fenômenos, é o passo essencial e incipiente a se tomar
enquanto atitude fenomenológica. A percepção que se tem do objeto intencionado,
mesmo após a aplicação da redução, ainda traz em seu bojo o objeto da mesma intenção.
Em outras palavras, o cogito traz em sua constituição o seu cogitatum respectivo. Tal
característica é resultado do estatuto da intencionalidade da consciência.
O novo modelo de reflexão a ser adotado pelo filósofo que empreende o método
fenomenológico deve ter como escopo não mais o objeto tal como na modernidade. A
reflexão pautar-se-á pela elucidação do conteúdo de cada fenômeno que é intencionado.
O eu dá-se por conta da existência objetiva do fenômeno, mas não lhe interessa enquanto
3
A análise intencional deixa-se guiar por uma evidência fundamental: todo o cogito, enquanto consciência é,
num sentido muito largo, significação da coisa que visa, mas esta significação ultrapassa a todo instante aquilo
que, no próprio instante, é dado como explicitamente visado. Ultrapassa-o, quer dizer, é maior com um excesso
que se estende para o além. (HUSSERL, 2001, p. 65).
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eu reflexivo afirmar a posição existencial da percepção espontânea do objeto. Tal dado
torna-se um mero pressuposto na investigação fenomenológica, pois, a atitude natural
como pensada por Husserl possui uma coesão com uma espécie de facticidade
fenomênica. A fenomenologia, desse modo, ocupa-se com os fenômenos que se doam ao
sujeito na esfera da facticidade e não com fatos e opiniões. Dessa forma, nota-se o
comprometimento de uma ciência rigorosa não com a factualidade, mas sim com a
facticidade do mundo circundante. E tal ciência não deve se pautar pelo fio condutor das
demais ciências. Ao contrário, deve modificar o sentido do fenômeno com o qual se
ocupa. Mas todas as ciências não se ocupam de um determinado fenômeno? A resposta a
tal pergunta pode ser facilmente obtida se levar em conta que o termo fenômeno em
Husserl está imbricado com a noção de essência. O olhar do fenomenólogo não pode ser
delimitado. A fenomenologia convida o investigador ao aprofundamento do olhar
criterioso em busca da apreensão dos dados puros. Nota-se, portanto, que, além da
apreensão dos dados essenciais, a fenomenologia almeja atingir o dado essencial de
investigação. O dado essencial sempre inicia sua dinâmica cogito-cogitatum pela
intuição. A passagem da intuição à evidência é o cerne da teoria fenomenológica.
Desenvolver a dinâmica teórica que conduz o simples fenômeno a uma evidência
apodíctica, requer um colocar-se diante da coisa ou dado fato, tendo a consciência um
desígnio ontológico, pois, segundo Husserl, “na evidência, no sentido mais amplo desse
termo, temos a experiência de um ser e de sua maneira de ser; é portanto nela que o olhar
de nosso espírito alcança a coisa em si” (HUSSERL, 2001, p. 29). Buscar atingir a
essência das coisas mesmas: eis o plano fulcral da fenomenologia. Alcançar uma
evidência indubitável, uma certeza irrefutável e, a partir de um fluxo contínuo de
averiguação, submetê-la ao filtro constante da epoché. Na busca por um princípio
universalmente aceito, faz-se imprescindível um “insight” das essências dos objetos
dados originariamente.
Podemos “voltar” à vontade a uma justificação uma vez estabelecida, ou à
“verdade”, uma vez “demonstrada”. Essa liberdade que temos de reproduzir e de
perceber novamente em nossa consciência uma verdade concebida, como sendo
identicamente a mesma, faz com que essa verdade seja para nós um bem
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definitivamente adquirido, chamado então de conhecimento. (HUSSERL, 2001, p.
23).
É preciso, portanto, efetuar uma descrição da captação da essência através das
modalidades de aparições (Erscheinung) e, consequentemente, dos atos que se desdobram
dentro da consciência e perfazem o movimento doador de sentido. No entanto, o grande
desafio é voltar o olhar fenomenológico para um mundo de possibilidades infinitas, com
conteúdos indetermináveis ou parcialmente apreensíveis, em que a todo instante o sujeito
vivencia uma nova experiência. Como adentrar nos meandros estruturais de um mundo
no qual o sujeito está inserido e do qual ele mesmo faz parte?
Cada estado de consciência possui um ‘horizonte’ que varia conforme a modificação
de suas conexões com outros estados e com as próprias fases de seu decorrer. É um
horizonte intencional, cuja característica é remeter a potencialidades da consciência
que pertencem a esse mesmo horizonte. Assim, por exemplo, em toda percepção
exterior, os lados do objeto que são ‘realmente percebidos’ remetem aos que ainda
não o são e que somente são antecipados na expectativa de maneira não intuitiva
como aspectos ‘que estão por vir’ na percepção. Esta é uma ‘protenção’ contínua,
que para cada nova fase perceptiva assume um novo sentido (HUSSERL, 2001, p.
62).
Em suma, a epoché conduz o ego a essa nova orientação reflexiva, a saber: o
campo da vivência transcendental. Tal atitude dar-se-á através do “colocar entre
parênteses”, “tirar de circuito” todos os possíveis prejulgamentos acerca do mundo. Isso
não significa que a epoché nos coloque diante de um puro nada (HUSSERL, 2001, p. 35).
Ao contrário, ela possibilita analisar os prejulgamentos sem a extinção dos mesmos, pois,
mediante a parenteziação, eles permanecem, em si mesmos, o que são. Com isso o que a
epoché pretende é interromper o curso natural das pré-concepções do ego e de suas ações
cotidianas, motivando, por sua vez, a conversão do olhar natural para a orientação
fenomenológica.
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Referências:
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1950.
______. Méditations Cartésiennnes. Traduit par E. Lévinas et G. Peiffer. Paris: Vrin, 2001.
______. Meditaciones cartesianas: Introdução à Fenomenologia. Trad. F. Oliveira. São
Paulo: Madras, 2001.
MOHANTY, J. N. The Philosophy of Edmund Husserl: A historical development. Yale
University, 2008.
RICOUER, P. (2009). Na escola da Fenomenologia. Trad. Ephrain Ferreira Alves.
Petrópolis: Editora Vozes.
SCHUTZ, A. (1959). Le problème de l’intersubjectivité transcendantale chez Husserl. In:
Husserl. Paris, Minuit, 334-381 (Cahiers de Royaumont, Philosophie III).
STEIN, E. Sobre el problema de la empatía. Trad. de José Luis Caballero Bono. Madrid:
Editorial Trotta, 2004.
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JUSTIÇA E FELICIDADE DAS “PARTES”, NA REPÚBLICA: O MÉTODO
‘SOCRÁTICO’ E A OBJEÇÃO DE ADIMANTO – Thayla Gevehr
UNIOESTE/PET
[email protected]
Resumo: Nosso propósito é analisar o método escolhido por Sócrates, no livro II da
República, para determinar a essência da justiça. Esse método consiste em investigar a
natureza da justiça na cidade, para que seja possível visualizá-la no homem, pois, se a cidade
for justa e o homem estiver de acordo com ela, a felicidade estará garantida. No livro IV, a
justiça no todo da polis é determinada pela posse e execução unicamente do que compete, por
natureza, a cada parte (cidadão ou grupo). Diante da difícil e inusitada vida assim reservada
aos guardiões, Adimanto objeta que suas privações impediriam toda felicidade. Para
compreender a resposta socrática, nossas questões norteadoras serão: [1] o que é a parte que
pertence a cada um; [2] o que é tarefa própria e [3] como o homem pode ser feliz cumprindo
somente a “parte” que lhe cabe.
Palavras-chave: Justiça. Método. Todo/Parte.
A Justiça (dikaiosýne) é o tema central da República de Platão. Ela se põe como
questão mediante a pergunta “Quem é o homem justo?”; mas, estranhamente, o diálogo
não é uma análise da alma ou do comportamento do homem: na República, o método para
a determinação da essência da Justiça é o ordenamento e estruturação de uma cidade
(polis) “no lógos”, isto é, no discurso. Tudo depende da analogia entre a cidade e a alma,
e essa analogia parece depender da noção de “equilíbrio”. Justamente esse ponto será
questionado por um interlocutor, Adimanto, que acusará de desequilíbrio a ‘cidade de
discurso’: uma das partes seria desfavorecida e infeliz, em um sentido, ou favorecida
ilegitimamente, em outro. Pretendemos, neste artigo, pensar a correlação entre o método
e a resposta a essa objeção.
O método se afirma já no livro II:
Portanto, talvez exista uma justiça numa escala mais ampla, e mais fácil de
apreender. Se quiserdes então investigaremos primeiro qual a sua natureza nas
cidades. Quando tivermos feito essa indagação, executá-la-emos em relação ao
indivíduo, observando a semelhança com o maior na forma do menor (PLATÃO,
1
2010, 369 b).
1
Todas as citações e referências se reportam à tradução de Maria Helena da Rocha Pereira.
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Assim, a cidade é imaginada a tentativa de determinar o que é a Justiça: se esta
for encontrada na polis (o “maior”) será mais facilmente visualizada no homem (o
“menor”).
De fato, logo no livro IV, Sócrates – personagem principal do diálogo – busca
pela primeira vez a correspondência entre a alma individual e a estrutura da cidade. Após
identificar três virtudes que formam a cidade justa – temperança, coragem e sabedoria,
que se apoiam na Justiça – Sócrates investiga as três partes da alma: a racional, a
irascível e a irracional. Tanto a tripartição da alma, quanto a harmonia das virtudes da
polis formam um conjunto que deve estar ou se refletir no homem para que ele seja justo.
O método escolhido para determinar a essência da Justiça mostra, então, que a
“estrutura” do homem aparece mais claramente depois de exposta a estrutura da cidade:
“a alma é tripartida porque a cidade também o é; e não o contrário!” (CARDOSO, 2011,
p. 224)2.
Sócrates ordena a cidade (“Todo”) 3 a partir da divisão dos trabalhos (“partes”) 4
com o intuito de suprir as necessidades coletivas e individuais da polis. O princípio que
estrutura a cidade revela que a manifestação da Justiça se dá pela relação entre os
homens. Isto significa que a dikaiosýne é o âmbito próprio para a manifestação do
ordenamento da polis e do homem: Justiça (ordenamento da polis) implica divisão de
trabalhos. Assim, segundo Platão, os cidadãos realizam determinadas tarefas, ocupando
funções específicas e constituindo uma unidade autossuficiente (porque têm todas as
coisas de que precisam). Principalmente, mediante a distribuição dos trabalhos cada
cidadão se reconhece na atividade que deve desenvolver e, por isso, deve ater -se
unicamente a ela5. É este princípio, que aqui ainda permanece velado, o que será
2
Não pretendemos nos ocupar, neste trabalho, do problema específico da “tripartição” (da alma e da cidade) que
não concerne diretamente à nossa investigação.
3
O todo forma as partes, precedendo-as. “Todo” significa “(...) uma unidade que pode ter partes, (...) à qual não
falta nenhuma parte. As partes do todo são múltiplas em um.” (PRADO, 2008, p. 23).
4
Parte, aqui, não é peça do todo, mas o desdobramento deste; parte é sempre parte de um todo já composto (já
determinado como todo), já existente.
5
“Por conseguinte, o resultado é mais rico, mais belo e mais fácil, quando cada pessoa fizer uma só coisa, de
acordo com a sua natureza e na ocasião própria, deixando em paz as outras” (370 c).
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chamado de Justiça, no livro IV 6. Talvez seja neste sentido que Carneiro Leão tenha dito
que “a polis é uma experiência de pensamento” (CARNEIRO LEÃO, p. 55), pois ela não
se apresenta, simplesmente, como um meio escolhido para se chegar à determinação da
dikaiosýne ou para a defesa socrática da mesma; a cidade consegue revelar todos os
limites e possibilidades dos homens, isto é, somente a partir dela a Justiça (que dá a
forma da cidade justa) tem sentido, os homens justos podem ser reconhecidos e a
felicidade, garantida. E, talvez, mais do que isso – pois a polis socrática pretende mostrar
que a Justiça acontece como a realidade de um fazer humano, um fazer que só ganha
sentido nessa unidade-comum (comum-unidade), que é a polis. Ou seja, a dikaiosýne é o
que dá forma a polis e ao homem justo, permitindo, simultaneamente, que os cidadãos
tenham as suas necessidades supridas.
A distribuição dos trabalhos proposta por Sócrates para o ordenamento da polis
apresenta uma peculiaridade: os homens não têm apenas que realizar um trabalho
qualquer, necessário a polis, mas sim uma tarefa (ergon) específica que corresponde a
sua natureza 7. O homem deve permanecer nesta tarefa, que lhe concerne “por si”, isto é,
deve ocupar a parte que lhe cabe sem interferir nas demais (que cabem aos outros
6
“O princípio que de entrada estabelecemos que devia observar-se em todas as circunstâncias, quando fundamos
a cidade, esse princípio é, segundo me parece, ou ele ou uma das suas formas, a justiça. Ora nós estabelecemos,
segundo suponho, e repetimo-lo muitas vezes, se bem te lembras, que cada um deve ocupar-se de uma função na
cidade, aquela para a qual a sua natureza for mais adequada” (433 a).
7
A palavra phýsis, comumente traduzida por “natureza”, não representa, aqui, a destinação do homem a partir de
seu contexto histórico ou de sua constituição “material” (orgânica); representa o âmbito em que cada homem
pode ser quem é de maneira essencial. Ou seja, quando o diálogo platônico fala de “natureza humana” (do que
concerne “por natureza”, isto é, segundo a phýsis ao homem) está apontando para o vir a ser desse ente, enquanto
tal; para a determinação do que ele é, individualmente, no que lhe cabe realizar, em comunidade. Neste sentido,
o questionamento sobre se há determinação da alma é de suma importância, pois o que essa tese aparentemente
diz é que cada homem está predeterminado à execução desta ou daquela tarefa: p.ex., já nasce artesão ou
guerreiro. Porém, o que phýsis designa, nessa tese, é que a partir de uma tarefa específica o homem descobre
aquilo que lhe é essencial. Todo o problema reside em que o homem, diferentemente dos entes “naturais” (como
as árvores, por exemplo) não está previamente constrangido a “seguir” sua natureza, mas deve fazê-lo (eis a tese
da República) para não promover a injustiça (desorganização). O que a “natureza” (tendência essencial) de cada
homem lhe confere não é, em Platão, um princípio natural, conforme entendemos hoje essa expressão. – Para a
concepção grega de phýsis, ver, p.ex., Ilíada, IV 482-486 – o ‘crescer’ de uma árvore – ou VI 118 ss. – a floresta
que dá ‘crescimento vigoroso’ [phýei] às árvores, e Hesíodo, Os Trabalhos e os Dias, v.129 – a raça de prata em
sua “compleição” [fr. taille, gr. phýein] (todas as indicações em COULOUBARITSIS, 2010, pp. 354-356). Em
Chantraine, a ideia mais forte é a de dar nascimento, nascer e crescer, aplicável a qualquer tipo de ente ou fato
(C., 1968, p. 1253). Também Heidegger é muito enfático quanto a isso, nas lições introdutórias à metafísica, de
1935 (H., 1978, pp. 45-47).
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cidadãos). Pode-se, porém, perguntar: se o homem tem a capacidade de realizar mais de
uma tarefa, por que dever-se-ia limitar à realização de apenas uma? Por que é este o
modo (divisão de trabalhos segundo a natureza individual) que dá a estrutura da polis
socrática? (Modo, aliás, que é determinado pela essência da Justiça.) Em suma, como a
ordenação de uma polis justa pode garantir todo o bem dos cidadãos, incluindo a
felicidade, se os restringe à realização de uma tarefa? A Justiça parece uma limitação,
“incapaz”, devido às observações precedentes, de satisfazer “plenamente” o cidadão, que
tem interesses e possibilidades variadas.
Parece-nos que a tese defendida por Platão tem um caráter negativo e não visa o
bem do homem, mas o constrange a ser justo, “obrigando-o” a ser o que ele não quer ou a
ser apenas uma das coisas que quer. Para investigarmos melhor a legitimidade desta
crítica, escolhemos uma passagem da República que trata do assunto.
O livro IV inicia com a questão, dirigida por Adimanto a Sócrates, a respeito da
felicidade de uma das “partes” da polis – os guardiões 8. Essa parte está destinada a
defender os cidadãos (374e), além de cuidar para que a Justiça seja o princípio
estruturante
da
polis
e
do
homem
individual.
Cabem
aos
guardiões
estas
responsabilidades porque há em sua “natureza” o que torna possível o cuidado e a defesa
do equilíbrio essencial da cidade; mas, ao fazer o que lhes é “determinado”, não podem
usufruir de nenhum dos bens da polis como o fazem os outros indivíduos (não têm terras,
casas feitas ao seu gosto, vida familiar comum etc.). Levando em conta que, segundo a
definição de Justiça, cada um deve ocupar a parte que lhe cabe, o que conce rne aos
guardiões não lhes traz nenhum tipo de satisfação, ou bem pouca, ao menos enquanto
guardiões. Parece que seu modo de ser, ligado à tarefa que lhes é própria, deve gerar
infelicidade, na “inevitável” comparação frente aos demais cidadãos. O princípi o da
divisão da cidade foi muito claramente exposto. O resultado desse princípio, porém, leva
Adimanto a levantar o problema mencionado, parecendo opor-se à estrutura básica da
cidade (a Justiça) tal como proposta por Sócrates:
8
Os guardiões, embora também defendam a cidade, não têm essa tarefa como a principal; os soldados
defendem a polis dos inimigos externos. A tarefa específica dos guardiões é cuidar do equilíbrio da polis em suas
partes (os trabalhos, erga).
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Que dirás então em tua defesa, Ó Sócrates, se alguém afirmar que não tornarás estes
homens [guardiões] nada felizes, precisamente por culpa deles, uma vez que a
cidade lhes pertence de fato, mas sem que eles usufruam qualquer bem de sua parte,
como os outros, que possuem campos e constroem casas bonitas e grandes, para as
quais adquirem mobiliário à altura, que fazem os seus sacrifícios aos deuses,
recebem hóspedes e que têm, em especial, aquilo que há momentos referias, o ouro e
a prata e quanto se julgue que constitui a felicidade? Pura e simplesmente, dir-se-á
que parecem uma espécie de guardiões assalariados instalados na cidade, sem
fazerem mais nada senão estar de vigia (Rep. 419 a).
Lidaremos com este problema a partir das seguintes análises: (1) como a
determinação da Justiça, em 433b- 434a, enquanto “a posse do que pertence a cada um e
a execução do que lhe compete”, pode garantir a felicidade de todos os cidadãos com
aquilo que possuem, e evitar, ainda, uma visão hierárquica dos bens que cada um recebe
ao executar sua tarefa própria; (2) como uma delimitada parte dos homens pode ser feliz
usufruindo pouco da polis, em comparação com os demais cidadãos; (3) qual é o sentido
do reconhecimento do ergon individual e coletivo para a organização da cidade, e por que
é este o modo que a torna justa.
Ao definir a Justiça como o “desempenhar cada um a sua tarefa”, Sócrates
chama a atenção não só para aquilo que é próprio ao homem individual (“alma”) e para o
ordenamento da polis (equilíbrio), mas, também, para o fato de que o homem, ocupando
uma “parte” específica da cidade (um trabalho), recebe desta parte os bens que lhe
cabem: os bens (propriedades, posses) definem quem é o cidadão, não porque tenham em
si um valor ou status, mas porque estão associados a um trabalho e modo de vida
delimitado. De acordo com Julia Annas (Apud KEYT, 2011, p. 234):
9
Na Calípolis , ter o que lhe é próprio e fazer o que lhe é próprio vão juntos: todos
têm o que lhes é próprio (isto é, posição, riqueza e honra distribuídas corretamente e
asseguradamente) simplesmente porque todos fazem o que lhes é próprio (isto é, a
base de sua sociedade reflete as diferenças naturais de aptidão).
Talvez possamos pressupor, através disso, que a realização de uma tarefa
determinada mostre a relação que o homem deve ter com o fazer ou com o produzir algo
e com o reconhecimento de si. Ou seja, à medida que faz aquilo que corresponde à sua
natureza, o homem também a reconhece e dela cuida. Neste sentido o ‘produto’ reflete o
9
“Calípolis” ou “Kalípolis”: bela polis, referindo-se à polis socrática.
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cuidado do produtor com o processo do fazer, com o conjunto que envolve a obra; reflete
o cuidado do produtor com a sua tarefa 10 e, em última instância, o cuidado do homem
(produtor) com a justiça da polis – o próprio reconhecimento de si mesmo enquanto
homem, enquanto parte de uma constituição (kalípolis). Tarefa só é tarefa porque exige
sempre e a cada vez um fazer que a afirme como tal. A Justiça, analogamente, só pode
ser operante em uma constituição porque o homem se insere no todo e se modula a partir
deste. Se a dikaiosýne governa o modo como a cidade justa é estruturada, o homem
apreende deste ordenamento aquilo que o torna justo.
Em resposta a Adimanto, Sócrates afirma que a felicidade é pensada a partir da
necessidade do “Todo” (a partir da necessidade de toda a cidade), a qual precede a
necessidade das “partes” (dos indivíduos particulares: da parte que cada um ocupa) e que,
portanto, os guardiões podem ser felizes na situação em que estão inseridos, cumprindo a
tarefa que lhes é determinada.
Diremos que não seria nada para admirar, se estes homens fossem muito felizes
deste modo, nem de resto tínhamos fundado uma cidade com o fito de que esta raça,
apenas, fosse especialmente feliz, mas que o fosse tanto quanto possível, a cidade
inteira. Supúnhamos, na verdade, que seria uma cidade desta espécie que se
encontraria a justiça, e na mais mal organizada que, inversamente, se acharia a
injustiça; observando-as, determinaríamos o que há muito estamos a procurar. Ora,
presentemente estamos a modelar, segundo cremos, a cidade feliz, não tomando à
parte um pequeno número, para os elevar a esse estado, mas a cidade inteira (420 bc).
Se voltarmos ao método escolhido por Sócrates para a determinação da Justiça,
mencionado no início deste trabalho, talvez possamos dizer que tal escolha, por examinar
o menor (homem) à luz do maior (cidade) não somente permite tratar de um assunto
difícil (a essência da Justiça), mas também proporciona uma visão de alcance aos homens
sobre o que é a Justiça na polis, isto é, a determinação da essência da Justiça permite que
os homens possam reconhecê-la na cidade e em si mesmos. Após este reconhecimento
(da estrutura justa da polis) o homem pode refletir mais fundamentadamente sobre sua
10
“Mas nós impedimos o sapateiro de tentar ser ao mesmo tempo lavrador, ou tecelão, ou pedreiro, e só o
deixamos ser sapateiro, a fim de que a obra de sapateiro resultasse perfeita; e, do mesmo modo, a cada um dos
outros atribuímos uma única arte, aquela para a qual cada um nascera e que havia de exercitar toda a vida, com
exclusão das outras, sem postergar as oportunidades de se tornar um artífice perfeito” (374 c).
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conduta ético-política. Por fim, o método escolhido indica a precedência do todo em
relação às partes: primeiro é preciso falar da cidade e depois dos cidadãos em particular.
A tarefa do guardião-filósofo é fundamentar, a partir da essência da Justiça, a
ordenação prescrita para a polis. A fundamentação, aqui, reside em saber e mostrar o que
é bom para os cidadãos e mantê-los nisso (mantê-los em sua parte). Mas como a Justiça
pode determinar o que é bom para toda a cidade? Como a dikaiosýne pode ser a medida
do justo, que prescreve como os homens serão felizes e o que é bom para eles? O inteiro
problema
apresentado
por
Adimanto
reside
em
que
o
guardião
tem
mais
responsabilidades que os demais cidadãos e, por isso, aproveita pouco do que a cidade
pode oferecer. No entanto, esta visão de “pouco” ou de “hierarquia”, diante da
mencionada definição de Justiça, é ilegítima, pois a dikaiosýne pensa no bem da polis
toda através do reconhecimento e divisão das partes. Não é possível, portanto, falar
propriamente em hierarquia em uma polis justa, porque os cidadãos são educados e estão
de acordo com o princípio de que cada um tem o que precisa ter, ocupa a parte que
precisa ocupar, isto é, cumpre a tarefa determinada e específica que condiz com sua
natureza. Assim, a infelicidade na polis justa é impossível. No caso específico
mencionado por Adimanto, os guardiões são felizes porque e enquanto atentam para o
bem de todos os indivíduos. E toda a visão que questiona o contrário é desatenta para a
definição de Justiça que estrutura a cidade 11.
Sócrates ainda retoma, no livro V, a questão sobre a felicidade dos
guardiões, para esclarecer o seguinte:
Se o guardião tentar ser feliz de uma maneira que não faça dele um guardião, e se
não lhe bastar uma vida assim moderada e segura, mas que é, como dissemos, a
melhor; se sob o império de uma opinião insensata e acriançada acerca da felicidade,
for impelido (porque tem esse poder) a assenhorar-se de tudo quanto existe na
cidade, perceberá como Hesíodo foi realmente sábio ao afirmar que “metade é mais
do que o todo” (466 b-c).
11
A educação não garante que os cidadãos permaneçam justos, devido ao delicado equilíbrio da alma humana.
Se os homens que são educados pela e para a justiça fossem capazes de continuar sozinhos neste princípio, os
guardiões não precisariam cuidar para que cada um ocupasse a parte que lhe cabe. Guardar é cuidar do equilíbrio
das partes, e, assim, do todo.
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O melhor para todos os cidadãos é permanecer em suas tarefas, pois serão felizes
com elas. O guardião deve tentar ser feliz como guardião e não como artesão: deve ser
feliz com aquilo que lhe é próprio e com o que esta “propriedade” (a sua parte) lhe
permite ter. Isto lhe garante “fidelidade à vida” (466 c), fidelidade àquilo que o define
enquanto guardião – a sua natureza. Além disso, (aplicando a medida ao caso) metade só
pode valer mais que o todo porque a parte que cabe a cada homem o define como o
homem que deve ser, e porque esta parte lhe confere a verdade sobre si mesmo na
realização do ergon que lhe é próprio. Ao ocupar-se da sua “metade” (parte) o cidadão
atinge a perfeição do seu trabalho (374c), adquire satisfação com o seu fazer. E, por fim,
o mais importante para desfazer qualquer visão hierárquica a respeito da divisão da
cidade em partes:
(...) é preciso que o todo (a cidade) seja feliz e não a parte (uma das classes), pois é o
todo que determina o que cada parte é, isto é, é em função do bem do todo que cada
uma das partes recebe uma função e deve cumpri-la. A felicidade do todo vale mais
que a felicidade da parte. O todo vale mais que a parte. (PRADO, 2010, p.1).
A “metade” vale mais que o todo porque o cidadão, na realização do seu
trabalho, adquire da parte (metade) que ocupa tudo de que necessita, mas, sobretudo,
porque assim garante a estrutura justa do todo. O todo vale mais que a parte porque ele é
a estrutura mesma que dá sentido às partes. Então, se a metade pode valer mais que o
todo, é porque antes o todo vale mais que a parte, isto é, a parte só é definida como parte
de um todo. Não há, na República, maior ou menor “valor” entre as diversas classes
(partes); há, sim, um princípio de “identidade” que confere a cada cidadão uma tarefa.
Por isso, o homem, em sua constituição, tem a responsabilidade de reconhecer aquilo que
lhe é próprio, e mais, de não recuar diante desta responsabilidade, se quiser ser justo. Isto
significa que a essência da Justiça, conforme determinada por Platão, ao menos na
República, nada mais é que o desvelamento e cuidado da estrutura da polis e dos homens.
Assim, não é somente porque os cidadãos têm necessidades que eles precisam
trabalhar (ocupar a parte que lhes cabe), mas porque a dikaiosýne revela como o homem e
a cidade devem ser, ou seja, dá ao cidadão uma parte a ocupar na polis, revelando o modo
desta ocupação e assim dando medida ao todo. Ainda que não sejamos capazes de
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responder, neste trabalho, como a Justiça mede e é medida para a polis justa,
determinando o bem para todos os cidadãos, deixamos a questão apontada para futuras
reflexões.
Referências:
DAVID, Keyt. “Platão e a Justiça”. Em Platão. BENSON, Hugh e orgs. Tradução: Marco
Antonio de Ávila Zingano. Porto Alegre: Artmed, 2011. Pp. 318-332.
CARDOSO, Delamar. “Repensando a tripartição da alma. Reflexões a partir de República
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MEDO E OBRIGAÇÃO NA FILOSOFIA DE HOBBES – Clóvis Brondani
UFFS/UFSC
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Resumo: Este trabalho pretende mostrar que a obrigação política na filosofia de Hobbes não
está fundada no medo das punições do Estado. Argumenta-se que a obrigação está fundada no
contrato, único artifício pelo qual é possível estabelecer relações de obrigação genuína,
segundo Hobbes. O medo, neste sentido, não pode servir de fundamento da obrigação, mas
apenas como garantia da validade do contrato.
Palavras-chave: Hobbes. Obrigação. Medo.
No capítulo XIV do Leviathan, Hobbes afirma que as obrigações nascem dos
contratos, artifícios de transferência mútua de direitos. Entretanto, o filósofo inglês
também admite a fraqueza dos laços linguísticos:
E sendo a força das palavras muito fraca para obrigar os homens a cumprirem seus
pactos (conforme assinalei acima), há na natureza humana apenas duas maneiras
imagináveis de reforçá-las. Estas são o medo das consequências de faltar à palavra
dada, ou a glória ou orgulho de aparentar não precisar faltar a ela (HOBBES, 1997,
p. 120).
Hobbes reconhece a insuficiência de um mero acordo de palavras como garantia
para o cumprimento dos pactos. Sendo o orgulho de não quebrar promessas muito raro
entre os homens, o filósofo argumenta que o medo é a única paixão através da qual se
pode reforçar o cumprimento da palavra dada (HOBBES, 1997, p. 120). Entretanto, na
medida em que no estado de natureza o medo das consequências de se faltar à palavra é
bastante difuso e muitas vezes menor do que a esperança dos benefícios obtidos por esse
ato, a consequência do argumento de Hobbes é que somente o medo das punições do
Estado é eficaz para reforçar o cumprimento dos pactos. Trata-se aqui de um dos
argumentos centrais de toda a filosofia hobbesiana: O medo das punições do Estado é
fator fundamental para a estabilidade social.
Entretanto, esse argumento não implica a conclusão de que o medo do Estado é
ele mesmo o fundamento da obrigação. Seria contraditório que Hobbes recorresse
novamente à esfera das paixões, ou seja, à esfera da imaginação, para fundar a obrigação,
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tendo em vista que um de seus argumentos básicos repousa na impossibilidade de se criar
obrigações nessa esfera devido à fluidez das paixões. Se a obrigação se dá no plano da
linguagem e não no plano das paixões, não parece possível supor que o fundamento da
obrigação seja o próprio medo do Estado ou, ainda menos, o próprio poder do Estado.
Seria desconsiderar vários aspectos da teoria de Hobbes, especialmente a distinção entre
imaginação e razão. Seria desconsiderar também que para Hobbes a instituição do Estado
estabelece um novo tipo de relações entre os homens, as relações de direito, substituindo
as relações de puro poder que imperam no estado natural.
As relações que se estabelecem no interior do Estado civil são de natureza bem
distinta daquelas que se estabelecem no estado natural. Os laços que unem os homens no
interior da sociedade são de natureza jurídica, derivados do ato contratual. Isso significa
que as relações não são reguladas em virtude do poder individual que cada um dispõe
para sua proteção, mas que são relações de direitos e obrigações. Neste caso, obrigações
são genuínas e direitos implicam deveres efetivos por parte dos demais. Esse mesmo
campo jurídico regula as relações entre súdito e Estado, embora neste caso o poder
continue operando como garantia para o cumprimento da lei. No entanto, a natureza
dessa relação se constitui ela também em uma relação de direito e não numa relação de
poder.
Desse modo, pode-se dizer que o que funda o poder do Estado é o direito a usar
o poder, que por sua vez deriva do abandono por parte dos indivíduos de parte de seu
direito natural. Deve-se frisar, além disso, que o abandono desse direito natural implica o
compromisso de não resistência ao exercício do direito por parte daquele a quem o direito
foi abandonado. É desse modo que se funda o poder do Estado. O abandono ou
transferência de direitos é, segundo Hobbes, um ato contratual. Assim, o Estado somente
tem o direito de punir em função do contrato. Não é o seu próprio poder de punir que
funda o seu direito de punir, mas, ao contrário, é o direito cedido pelos indivíduos que
justifica o seu poder 1.
1
É importante esclarecer que ao fundar o direito de punir, Hobbes afirma que este jamais foi cedido diretamente
pelo súdito. O fundamento deste direito é expresso do seguinte modo: “Mas também já mostrei que, antes da
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Hobbes não estabelece, no que diz respeito ao Estado, uma equivalência entre
direito e poder. Muito menos que o direito do Estado é fundado em seu poder
extraordinário. A equivalência entre poder e direito somente é válida no estado de
natureza, e mesmo ali, é uma equivalência parcial, na medida em que o direito não é ele
mesmo um poder, mas apenas uma liberdade para usá-lo.
Desse modo, seria contraditório fundar a obrigação no próprio poder de punir,
quando esse poder somente existe em função do contrato. É a nossa obrigação de não
resistência ao exercício do direito do soberano que origina o seu poder extraordinário.
Portanto, não podemos dizer que estamos obrigados simplesmente porque não podemos
resistir ao seu poder.
Portanto, não é a punição em si que torna obrigatória uma lei, mas sim o fato de
que idealmente teríamos concordado que o soberano fizesse leis num hipotético contrato
em nome do benefício próprio. O direito que o soberano tem de punir deriva do contrato,
isto é, do ato através do qual indivíduos cedem parte de seu direito, desse modo
comprometendo-se em não resistir ao exercício do direito do soberano. É justamente por
isso que certas leis, ainda que sempre justas por derivarem da vontade soberana, podem
ser resistidas pelo súdito, sem que com isso ele incorra em ato injusto. Se fosse o medo
da punição que tornasse obrigatória a lei, não haveria sentido algum em Hobbes ter
estabelecido claramente um direito de resistência, pois nesse caso, sendo o poder do
soberano sempre mais forte do que aquele do indivíduo, não haveria possibilidade
instituição do Estado, cada um tinha o direito a todas as coisas, e a fazer o que considerasse necessário a sua
própria preservação, podendo com esse fim subjugar, ferir ou matar a qualquer um. E é este o fundamento
daquele direito de punir que é exercido em todos os Estados. Porque não foram os súditos que deram ao
soberano esse direito; simplesmente, ao renunciarem ao seu, reforçaram o uso que ele pode fazer do seu próprio,
da maneira que achar melhor, para a preservação de todos eles” (HOBBES, 1997, p. 235). Portanto, o que
importa ao nosso argumento nessa passagem é que o fundamento do direito de punir é, fundamentalmente, o
contrato, pouco importando se os indivíduos jamais teriam concedido diretamente esse direito ao soberano.
Sobre o fundamento do direito de punir ver o texto de Zarka: Hobbes et la pensée politique moderne, capítulo X,
no qual o autor argumenta que o direito de punir é fundado a posteriori no contrato.
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alguma de resistência. Entretanto, Hobbes fala de uma resistência justa, de um direito de
resistência 2.
Certamente podemos não ter poder suficiente para resistir às punições do Estado,
mas esse fato não implica que não tenhamos ainda o direito legítimo de resistir a elas, nos
casos em que a vida é ameaçada. Isso significa que não é a irresistibilidade da força
punitiva do Estado que torna a lei obrigatória. O direito de resistência nasce justamente
do fato de que num contrato eu jamais teria concordado em que soberano fizesse leis que
ameaçassem a minha vida, tendo em vista que dali não poderia resultar nenhum
benefício.
Dizer que não é o medo da punição que funda a obrigação não implica a
conclusão de que o medo e o poder punitivo do Estado não desempenhem papel
preponderante na filosofia política de Hobbes. Ao contrário, eles representam um aspecto
central nessa teoria, pois é justamente o poder punitivo do Estado que garante a validade
do contrato. Por esse motivo que o contrato de instituição do Estado tem uma
característica especial que o diferencia de outros possíveis contratos de transferência de
direitos do estado natural:
Diz-se que um Estado (commonwealth) foi instituído quando uma multidão de
Homens concordam e pactuam, cada um com cada um dos outros, que a qualquer
homem ou assembleia de homens a quem seja atribuído pela maioria o direito de
representar a pessoa de todos eles (ou seja, de ser seu representante), todos sem
exceção, tanto os que votaram a favor dele como os que votaram contra ele, deverão
autorizar todas as decisões desse homem ou assembleia de homens (HOBBES, 1997,
p. 145).
O que caracteriza o contrato social de instituição da soberania é que se trata não
de um contrato no qual indivíduos simplesmente transferem-se mutuamente direitos, mas
um contrato em que indivíduos concordam em ceder parte de seus direitos a um terceiro,
o soberano, o qual, por sua vez, não faz parte do contrato:
Em segundo lugar, dado que o direito de representar a pessoa de todos é conferido
ao que é tornado soberano mediante um pacto celebrado apenas entre cada um e
cada um, e não entre o soberano e cada um dos outros, não pode haver quebra de
2
Passando agora concretamente à verdadeira liberdade dos súditos, ou seja, quais são as coisas que, embora
ordenadas pelo soberano, não obstante eles podem sem injustiça recusar-se a fazer, é preciso examinar quais são
os direitos que transferimos no momento em que criamos um Estado (HOBBES, 1997, p. 175).
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pacto por parte do soberano, portanto nenhum dos súditos pode libertar-se da
sujeição, sob qualquer pretexto de infração (HOBBES, 1997, p. 146).
É justamente o fato de o soberano não fazer parte do contrato, recebendo assim o
direito de punir os infratores da lei, que torna esse contrato válido, diferente do que
poderíamos supor de outros contratos feitos no estado natural, inválidos devido à falta de
garantia de seu cumprimento.
Assim, o poder de punição do Estado é a garantia da validade do contrato e,
portanto, garantia das obrigações. Como Hobbes afirma, um contrat o no qual as partes
contratantes possuam a menor desconfiança mútua em relação ao seu cumprimento não
possui validade. Decorre disso que no estado de natureza, dadas as condições de
insegurança, dificilmente se pode conceber um contrato válido, ainda que Hobbes aponte
algumas exceções, que por si não contradizem o argumento da invalidade geral dos
contratos. Assim, somente a instituição de um Estado com poder de punir os infratores
pode dar conta de por fim à desconfiança que impera no estado de natureza e, desse modo
criar condições para a validade do contrato. Pode-se dizer, então, que o contrato de
instituição da soberania, por suas características que o diferenciam dos demais tipos de
contrato, é o único que pode ser pensado como válido, pois é o único que não somente
cria obrigações, mas também dá origem às condições de validade, ao eliminar a
desconfiança.
A obrigação, portanto, não deriva da força do Estado, mas do próprio contrato,
sendo o poder do Estado a condição de garantia da validade do contrato. Deve-se
considerar que a desconfiança, motivo da não validade dos contratos no estado de
natureza, desaparece – ou, pelo menos, diminui consideravelmente – com a instituição do
poder soberano. Esse é, portanto, o papal da punição: criar uma condição de confiança
mútua sobre o cumprimento da lei. Havendo a confiança, os contratos feitos entre
indivíduos passam a ter validade. Nesse sentido, Ludwig faz uma observação bastante
pertinente sobre a questão: “A obrigação não depende da força do soberano imposta
sobre mim, mas da imposição de seu poder sobre os outros” (LUDWIG, 1998, p. 4). Ou
seja, não é o medo que eu tenho da punição que torna a lei obrigatória, mas sim o fato da
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garantia da punição aos possíveis infratores da lei que exclui a possibilidade de
desconfiança que invalidava os contratos no estado de natureza.
Quando consideramos esta questão não mais a partir de sua estrutura
argumentativa, mas a partir da perspectiva das intenções políticas que Hobbes inúmeras
vezes expressa em sua obra, parece bastante coerente pensar que Hobbes não esteja
fundamentando a obediência simplesmente no medo das punições do Estado. Tornou -se
lugar comum afirmar que o objetivo maior de Hobbes é justificar o poder absoluto do
estado, argumentando contra a irracionalidade da rebelião. Os tratados políticos de
Hobbes são, portanto, dirigidos aos súditos e não aos soberanos. Ora, se há - como parece
ser consenso entre grande parte dos comentadores - uma estratégia política de justificação
da obediência à soberania absoluta, não parece haver sentido nenhum em Hobbes ter
argumentado que súditos devem obedecer simplesmente porque caso não o façam serão
punidos pelo Estado. Esse seria realmente um argumento pouco útil em termos
estratégicos por uma razão muito simples: ninguém precisa ser convencido de que deve
obedecer porque caso contrário será punido pelo Estado. Esta é uma constatação bastante
óbvia, e qualquer indivíduo, por mais tolo que seja, está ciente de que se não obedecer
poderá ser punido. Não parece haver necessidade de um argumento racional para ser
convencido disso.
Entretanto, o que ocorre na realidade é que os homens, mesmo com medo das
punições, ainda assim desobedecem e rebelam-se contra o poder soberano na esperança
de destruí-lo. E isso ocorre por vários motivos, mas especialmente porque os cidadãos
não acreditam que o poder soberano esteja justificado, ou seja, não acreditam que o
soberano tenha o direito legítimo de governar, e por isso pretendem eliminá-lo. Sempre
que Hobbes analisa as causas da rebelião em todas as suas obras políticas o que sobressai
é sua preocupação com as falsas opiniões que os cidadãos têm a respeito da justificativa
do poder do Estado.
A desobediência não tem como causa unicamente a ausência do medo do Estado,
mas uma opinião a respeito da sua legitimidade. Por isso, indivíduos, ainda que sob o
risco da punição, são movidos à sedição por essas falsas doutrinas.
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Portanto, não parece fazer sentido, sob o ponto de vista de uma estratégia
política de convencimento, argumentar que é o simples medo da punição que fundamenta
a obrigação. Se assim fosse, não haveria sentido em Hobbes dirigir suas obras políticas
aos cidadãos na expectativa de convencê-los da racionalidade da obediência. Teria mais
sentido escrever suas obras direcionadas aos governantes, ensinando-os simplesmente
técnicas de aumentar o poder, na medida em que a simples punição fundamentaria a
obediência. Aos súditos, pouco restaria: o simples argumento que devem obedecer
porque caso contrário serão punidos. No entanto, Hobbes pretende mostrar algo além
disso: que a obediência está fundamentada num contrato hipotético. Não significa, é
claro, que ele deseje uma justificativa histórica do poder. Não significa, portanto, que os
homens tenham em algum momento na história passada realizado um contrato que
justifica o poder atual. Em vez disso, Hobbes quer convencer os cidadãos de que é mais
racional obedecer não apenas porque se pode ser punido pelo Estado, mas porque é a
ação mais racional. É mais racional porque teríamos concordado, numa situação
hipotética, em pactuar cedendo parte dos direitos em nome da segurança. Hobbes
pretende, portanto, convencer os cidadãos de que o poder do Estado tem uma justificativa
mais sólida do que apenas o seu próprio poder de punição. A justificativa está na tese
segundo a qual todos nós concordaríamos em estabelecer e respeitar o Estado porque ele
é uma entidade fundada na razão, na esfera da linguagem, que institui um espaço jurídico
interior do qual podemos ter a garantia de fruir as boas coisas da vida.
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MONTAIGNE, CONSELHEIRO DO PRÍNCIPE: O ÚTIL E O HONESTO –
Gilmar Henrique da Conceição
UNIOESTE
gilmarhenriqueconceiç[email protected]
Resumo: Montaigne indaga se, na defesa do Estado, não há limites éticos para a ação do
príncipe. O príncipe deve se pautar pelo útil ou pelo honesto? Argumenta que o “devoir
publique” é o limite da dedicação a um príncipe e a preservação da liberdade de julgamento.
Ir além dos limites da consciência no serviço público é arriscar a confiança dos outros na
veracidade de suas próprias palavras. Não há razão superior à razão de consciência. Enquanto
para Maquiavel o conceito de utilidade é fundamental, para Montaigne o útil não é honesto,
entretanto aceita separar a utilidade da honestidade. Ainda que a utilidade pública obrigue à
desonestidade, a moralidade deve vigorar no espaço público. A honestidade, no interior do
espaço público, é uma força instituinte da sociedade política. Todavia, a pretensão à verdade o
cuidado com a “paix publique” são definitivamente distintos. Montaigne afirma a
incompatibilidade entre a moral e a política, mas almeja uma política que não ignore o
honesto.
Palavras-chave: Ceticismo. Política. Raison d’État.
Como anuncia o título, a dicotomia entre o bem moral e o mau moral é estudada
em “Do útil e do honesto” (III, 1). Deste capítulo interessa-nos, aqui, especialmente a
discussão política deste tema centrada na razão de Estado. Qual seja, na política, a
melhor conduta é a útil ou a honesta? Não há limites éticos na preservação do Estado?
Esta discussão acerca do que pode ser feito ou não para preservar o Estado
relaciona-se com o que veio a se chamar razão de Estado. Esta se coloca acima de outras
razões, visto que de acordo com ela, cabe ao príncipe zelar acima de tudo pela segurança
do próprio Estado e, no limite, o Estado deve sobreviver a qualquer custo. Assim, fazem
parte do uso da razão de Estado: a violência, a desconfiança, a dissimulação, a corrupção,
o engano, a perfídia e a injustiça. Portanto, de início aceitamos a ideia que o útil não está
colado ao comportamento honesto porque possui um valor prático. Todavia, parece que
Montaigne não distingue uma "boa razão de Estado" de uma "má razão de Estado”, se
forem alheias à ética: “[...] há alguma coisa ilícita até mesmo contra os inimigos [...]” e
acrescenta: “[...] nem todas as coisas são lícitas a um homem de bem para servir a seu rei
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nem à causa geral e das leis” (III, 1, p. 24). Na ótica montaigniana, por razões de Estado,
grandes mentiras são permitidas, mas não pequenas mentiras?
Neste sentido, a partir de Montaigne, quero iniciar com uma indagação: De que
forma o útil e o honesto acontecem na política? Esta pergunta é de fundamental
importância porque nos leva a pensar a relação entre a moral e a política, que constitui
um dos temas mais discutidos nos estudos que se interessam pela razão de Estado. Nas
discussões iniciais da razão de Estado surgem diversas questões, tais como: O poder
surge das armas e da astúcia? O soberano está acima da força coercitiva das leis? A força
coercitiva da legalidade tem sempre a força diretiva da legitimidade? A política prescinde
da moral? A perfídia, a conspiração e a crueldade acompanham necessariamente a ação
política? Ou, numa linguagem mais contemporânea: o chamado terrorismo pode ser
combatido sem o desrespeito aos direitos civis? É indispensável a existência de bases
militares onde tais direitos não valem e onde a tortura é erigida em método de
investigação?
O ponto de partida do conceito de Razão de Estado se situa no limiar da Idade
Moderna e é constituído pelas reflexões importantes e inspiradoras de Maquiavel (1973),
com que começa a emergir, em seus contornos mais gerais, mas não ainda a sua exata
formulação verbal. É possível descobrir, na história do pensamento político, numerosas
antecipações parciais, às vezes bastante agudas, de tal teoria, mas é com Maquiavel que
se registra um salto qualitativo como o começo de uma nova tradição de pensamento. De
modo que os princípios esboçados por Maquiavel, posteriormente viriam a ser
desenvolvidos sob o termo razão de Estado.
Por isso é com Maquiavel que Montaigne (2001) estabelece um tipo de diálogo
sobre a questão do útil e do honesto, até mesmo na condição de conselheiros do príncipe,
em especial no capítulo “Do útil e do honesto” (III, 1), no “Da presunção” ( II, 17) e no
“Da experiência” (III, 13). O segundo momento especialmente significativo desta
tradição está na reflexão e análise acerca da razão e dos interesses de Estado, em sua
maioria, feita por autores italianos e franceses, da segunda metade do século XVI e do
século XVII (BOBBIO, 1986). Devemos-lhes, não só a introdução definitiva da
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expressão Razão de Estado com o significado que ainda hoje conserva, mas também
novas determinações e aprofundamentos desse conceito e das suas implicações, e,
particularmente, uma mais rigorosa distinção entre o interesse particular do príncipe e o
interesse do Estado. Querendo resumir as teses da doutrina da razão de Estado numa
definição tão sintética quanto possível e, consequentemente, genérica e abrangente, a
ideia central que vem com esta tradição afirma que a segurança do Estado é uma
exigência de tal importância que os governantes, para garanti-la, em caso de perigo para
o Estado, são obrigados a violar normas jurídicas, morais, políticas e econômicas, que
consideram imperativas em condições consideradas “normais”.
Nos parágrafos iniciais em “Do útil e do honesto”, Montaigne escreve que “não
há nada inútil na natureza; nem mesmo a inutilidade” e acrescenta que “nosso ser está
cimentado de qualidades doentias; a ambição, o ciúme, a inveja, a vingança, a
superstição, o desespero alojam-se em nós com uma dominação tão natural [...]” (III, 1,
p. 5-6). Portanto, o útil (e o desonesto) é próprio do modo de vida dos homens, mas,
salienta que mesmo assim é condenável. Em outras palavras, afirma a incompatibilidade
entre a moral e a política, mas almeja uma política que não ignore o honesto, porque
ainda que se deixe a razão por uma razão “mais geral e poderosa; porém certamente é
uma infelicidade” (III, 1, p. 19). A participação política de Montaigne ocorre num
contexto
de
radicalização
extrema;
o
que
há
não
é
apenas
conflito,
mas
contestação, recusa das instituições. Nestes anos, a antiga fidelidade ao rei é substituída
por uma “ideologia da razão de Estado”, onde a violência é erigida em método de
governar. A radicalização e a violência dos eventos trazem a tona um antagonismo entre
o poder central e as províncias. Montaigne constata a disputa pelo poder entre as facções
e vê que, na maioria das vezes, o assassinato político marca uma ruptura dos laços sociais
e políticos, que degenera em caos: A sociedade está “partida” em duas partes principais:
o partido protestante e o partido católico: “O pensamento político fratura-se como o
pensamento religioso, com os mesmos resultados mortíferos” (TOURNON, 2004, p. 57).
É problemático, porém, vincular Montaigne à raison d’ État, com o sentido atual
mesmo criticamente, uma vez que este conceito apenas foi desenvolvido, como o
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entendemos atualmente, após a sua morte. Assim, se esta relação feita for direta ela é
anacrônica. Portanto, a rigor não é possível fazer de Montaigne um teórico da razão de
Estado como entendemos hoje, mas, ainda que historicamente, seu pensamento político
deve ser compreendido como parte do debate que precedeu as teorias da razão de Estado.
Com este adendo no estudo das reflexões políticas de Montaigne vale à pena
investigar o sentido que ele pensa aquilo que mais tarde foi desenvolvido e viria a ser
chamada raison d’ État. No questionamento da razão podemos recolocar a discussão
sobre as razões de Estado em sua relação extremamente frágil com o útil e o honesto,
visando sua conservação. Montaigne, aliás, escreve que quer “conservar”: “Eu tinha
apenas de conservar e durar, que são ações silenciosas e imperceptíveis. A inovação tem
grande esplendor, mas é proibida nesta época em que somos pressionados e não temos
senão de defender-nos das novidades” (III, 10, p. 359). Essa ideia é retomada em outros
capítulos: “Todas as grandes transformações abalam o Estado e o desorganizam” (III, 9,
p. 259). O ensaísta, porém, não ignora que a razão de Estado serve de paradigma da
política de conservação. Todavia, “querer”, “dever” e “consciência” definem a relação
entre ética e política. Parece que Montaigne não distingue uma "boa razão de Estado" de
uma "má razão de Estado”, se forem alheias à ética. Compreende e prevê o perigo
insidioso inerente ao sacrifício das virtudes morais e éticas em favor da política do “útil”.
Contraditoriamente, o desafio para a arte de governar impele inexoravelmente às
tentativas de racionalizar a política. De seu lado, não renuncia a uma ética da
responsabilidade e escreve contra tudo aquilo que é legitimado em nome de uma
universal e poderosa razão. Neste debate, retoma Cícero:
A retomada desta terminologia e dos antônimos "útil" e "honesto" vem de Cícero,
que, como veremos, não entendia essas duas palavras em seu estatuto
epistemológico e moral de forma dicotômica. Nas contribuições de Francve,
Lucinges, Montaigne e Charron ao debate temos os sentidos, tanto homólogos,
quanto diferentes para denunciar - é o caso de Montaigne - a ambiguidade histórica
deste conceito, anunciando que é, sobretudo, uma posição contra a razão de estado”
(PANICHI, 2006, p.73 – tradução nossa).
O ponto central para Montaigne é ressaltar a ilegitimidade do poder que busca
violentar à consciência. A natureza engendra a sociedade para uma utilidade comum,
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sendo a sociedade, portanto, o resultado do “l’utile naturel”. Parece que vislumbra as
razões de Estado como ameaçadoras e conclui com a necessidade de se criar uma moral
política contra a própria acepção da “raison d'état”, que vem sendo construída.
Diferente, portanto, da moralidade baseada exclusivamente na razão “superior”, a
moralidade se constrói sem nenhuma exigência de recursos alheios ao homem para
formá-la. Além disso, diverge da ideia de que “razão de Estado, razões de consciência, e
razão civil sejam um único conceito” (PANICHI, 2006 – tradução nossa). Ao se
posicionar negando categoricamente a equação de que a razão de Estado seja igual a
razões de consciência e ao reconhecer que não há necessariamente harmonia entre
política, ética e religião, também questiona se o Estado tem todas as razões e uma lógica
que justifiquem afrontar a razão e a lógica comum. De modo geral, todos devem obedecer
à lei sempre, mas o príncipe nem sempre. Ao se referir à necessidade de obedecer à lei
apenas porque são leis, argumenta sobre o “fundamento místico de sua autoridade” (III,
13, p. 433-434), e não porque sejam justas. Observe-se que escreve que devemos
“disciplina e obediência”, ao rei, mas não, necessariamente “estima”, nem que nos
furtemos a julgá-lo e de exprimir nosso descontentamento:
Devemos submissão e obediência a todos os reis igualmente, pois ela se refere a seu
ofício; mas a estima, não mais que a afeição, só a devemos a seu valor.
Condescendamos, pela ordem política, em pacientemente suportá-los indignos, calar
sobre seus vícios, auxiliar com nossa consideração suas ações indistintamente,
enquanto a autoridade deles necessitar de nosso apoio. Porém, terminado nosso
comércio, não há razão para recusar à justiça e à nossa liberdade a expressão de
nossos verdadeiros sentimentos... (I, 3, p. 21).
Montaigne não quer subversão para o Estado, mas reivindica o exercício da
crítica como um serviço, visto que não há homens que mais do que o príncipe necessitem
de sinceras e livres advertências, mas alerta que é preciso ter ouvidos duros para escutar
um julgamento franco sem revolta (III, 13, p. 441). Entende que o poder político carece
de “advertências” para que atenda ao bem comum e não se corrompa, porém esse
exercício é muito perigoso para quem o faz, pois sempre paira a espada afiada de
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Dâmocles 1, suspensa por um único fio de rabo de cavalo, sobre a cabeça dos que tem
grande poder (como diz o relato do mito). Na maioria das vezes, os poderosos têm
enorme medo de que o poder lhes seja tomado e confundem frequentemente
“advertências”, necessárias ao exercício do poder, com ameaça e sedição, dado que o
poder está habituado com a adulação com que os poderosos são revestidos, como uma
segunda pele, em todas as épocas, tempos e lugares. Julga que a adulação é muito
prejudicial aos príncipes (II, 16, p. 429) 2. Em vista disso, quando se faz “advertências”
aos poderosos se corre muitos riscos. Todavia, parece reivindicar para si o lugar de
conselheiro do príncipe – “sem remuneração” (como ele sempre ressalta), para ser mais
livre naquilo que tem para dizer - desde que pudesse dizer a verdade ao príncipe e
criticar-lhe os costumes, mostrando o que pensam dele e não o que lhe asseguram os
aduladores e os cortesãos 3. Montaigne afirma que teria as credenciais de conselheiro do
príncipe: “Eu teria tido lealdade, discernimento e liberdade suficiente para isso. Seria
uma função sem nome; de outra forma perderia seu efeito e seu mérito” (III, 13, p. 442).
Tal ofício não seria remunerado, para não se corromper. Assim não ignora que tais
serviços prestados a um soberano são rudes e arriscados, por isso exigem, além de muita
afeição e franqueza, muita coragem. De forma que parece levar em consideração que é
preciso um pressuposto básico para a política, que redunda em uma cadeia causal: não há
bom governo (que ouve e que necessita de “advertências”) sem sociedade ativa, não há
sociedade ativa sem consciência política, não há consciência política sem o exercício de
“sinceras e livres advertências” à autoridade do príncipe.
1
Cícero, em “Tusculanae disputationes” relata que Dâmocles (Conselheiro da corte de Dionísio, o Velho) trocou
de lugar com Dionísio, por uma noite. A partir daí “Espada de Dâmocles” se tornou uma expressão que significa
risco iminente que paira sobre o poder.
2
“Não há coisa que envenene tanto os príncipes quanto a adulação, nem coisa pela qual os maus mais
facilmente obtenham crédito em volta deles [...]” (II, 16, p. 429).
3
Em outro lugar Montaigne tece outra crítica observação acerca do posicionamento político dos cortesãos: “Um
cortesão só pode ter direito e vontade de dizer e pensar favoravelmente sobre um senhor que, entre tantos
milhares de súditos, escolheu-o para ser alimentado e engrandecido por sua mão. Este favor e proveito
corrompem não sem alguma razão sua fraqueza, e a ofuscam. Por isso habitualmente vê-se que a linguagem
dessas pessoas é diferente de outra linguagem de qualquer posição, e pouco digna de fé em tal matéria (I, 26, p.
232).
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É com o olhar voltado para tais “opiniões” políticas semeadas nos Ensaios que
nos propomos neste trabalho a situar Montaigne nas discussões que precederam o
conceito de razão de Estado.
No dilema entre obedecer a uma ordem odiosa do príncipe ou obedecer à própria
consciência, Montaigne escolhe desobedecer ao príncipe. É essa sua liberdade: obedecer,
porém estar disposto a desobedecer – e arcar com as consequências penosas disso quando estiver em desacordo com sua consciência. Não deve obediência às ambições
pessoais do governante, mas à razão. O interesse privado é condenável quando busca
manipular a coisa pública em benefício próprio. Em qualquer caso, é terrível a
experiência daqueles que têm de optar entre a salvação pública e a preservação da
honestidade.
Montaigne declara: “Detesto qualquer espécie de tirania, tanto a de palavras
como a efetiva” (III, 8, p. 218). Nosso autor desenvolveu um pensamento centrado na
valorização da amizade, à ordem, à honestidade e ao bem público, todavia rompe com a
servidão cega e com as justificativas ilimitadas da razão de Estado. A obediência pode
ser por “credulidade” ou por “consentimento”. Talvez ressoe aqui nesta temática os
escritos sobre a servidão voluntária de La Boéthie (1999), para quem obedecer porque te r
medo não é servir voluntariamente. Ou seja, é preciso distinguir entre “submeter-se” às
autoridades públicas e “escravizar-se”: ele requer lealdade ao príncipe, mas recusa
prender-se a ele de outra forma que não por um dever público. Com isso procura
delimitar a fronteira entre a liberdade pessoal e a obrigação social. Montaigne legitima a
autoridade da lei à própria lei, e não tanto a autoridade do soberano ou do poder
constituído.
Referências:
AMES, José Luiz. Uma teoria do conflito: Maquiavel e Marx. In: Educere et educare, v.3, n.
6, 2008, p. 55.
BERNS, Thomas. La politique de l’amitié chez Montaigne. Actes Du Colloque International
tenu à University of Chicago (Paris) les 29 et 30 avril 2006.
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BOBBIO, N. Dicionário de Política. Tradução de João Ferreira. Brasília: Editora
Universidade de Brasília, 1986.
BOETHIE. Discurso da servidão voluntária. Tradução de Laymert Garcia dos Santos. São
Paulo: Brasiliense, 1999.
CÍCERO. Dos Deveres (De Officiis). Coleção Textos Filosóficos, 2000.
MAQUIAVEL. O Príncipe. Tradução de Lívio Xavier. São Paulo: Abril Cultural, 1973.
MONTAIGNE. Os Ensaios. Tradução de Rosemary Costhek Abílio. São Paulo: Martins
Fontes, 2000. – (Paidéia).
PANICHI, Nicola. Au-delà de la vertu “innocente: Montaigne et les théoriciens de la raison
d’État”. Actes Du Colloque International tenu à University of Chicago (Paris) lEs 29 et 30
avril 2006.
TOURNON, ANDRÉ. Montaigne. Tradução de Edson Querubini. São Paulo: Discurso
Editorial, 2004.
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NIETZSCHE E O NIILISMO: O COLAPSO DOS VALORES
COSMOLÓGICOS E A NÃO VALORAÇÃO DO DEVIR – Neomar Sandro Mignoni
UNICENTRO
[email protected]
Resumo: Trata-se de uma investigação acerca do niilismo tal como exposto no fragmento 12
de A Vontade de Potência, de Friedrich Nietzsche. De modo mais específico, discute-se o
assim chamado niilismo a partir de sua manifestação enquanto o próprio colapso dos valores
cosmológicos, bem como, por conseguinte, a crença nas categorias da razão enquanto causa
do mesmo. Mediante isso se explicita em que medida a crença nas categorias da razão causa o
niilismo e de que modo o mundo do devir pode ser libertado da valorização mediante
categorias da razão para ser assumido em sua própria natureza.
Palavras-chave: Categorias da Razão. Devir. Niilismo.
Trata-se de uma investigação acerca da crença nas categorias da razão como
causa do niilismo. Discutir-se-á, especificamente, o fragmento 12 de A Vontade de
Potência juntamente com o texto de O Crepúsculo dos Ídolos intitulado Como o
“verdadeiro mundo” se tornou uma fábula. No primeiro, Nietzsche discute o colapso dos
valores cosmológicos e, de modo mais rigoroso, o niilismo como estado psicológico em
duas seções: na primeira apresenta as três formas pelas quais o niilismo ocorre enquanto
estado psicológico e, em vista disso, na segunda parte, constata os resultados de tais
ocorrências. No segundo texto o filósofo trata acerca de como o mundo verdadeiro
converteu-se em fábula além de fornecer substrato para uma superação do niilismo
mediante a supressão do mundo verdadeiro.
Conforme afirmado, o niilismo enquanto estado psicológico ocorre em três
momentos fundamentais. Em primeiro lugar, ele se apresenta à medida que se procura um
sentido – que não está aí – para todo acontecimento. É o momento pelo qual se toma
consciência daquele grande e duradouro desperdício de força na tentativa de recuperar -se
de qualquer modo daquele sentimento de busca por aquele sentido, por aquela
“completeza”, de um mundo total e moralmente ordenado. Qualquer que seja o fim, este
constitui ainda um sentido. O fato é que, através do processo mesmo de todas essas
espécies de representação, algo deve ser alcançado e que, no entanto, com o devir,
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compreende-se que nada é alcançado. Assim, a desilusão com o pretenso fim do devir
constitui a causa do niilismo. O que aqui está em jogo é a consciência de que a hipótese
de fim concernente a todo desenvolvimento é insuficiente; uma vez que o homem não é
colaborador do devir, quanto mais seu centro.
O segundo momento no qual o niilismo se declara enquanto estado psicológico
ocorre quando, sob e em todo acontecimento, se postula uma sistematização, uma
totalidade; isso, de modo a saciar a alma carente de admiração e veneração na
representação de conjunto de governo e de domínio enquanto suprema forma ao nível de
uma unidade, de um monismo. É o momento que em consequência dessa crença o homem
vê-se com um profundo sentimento de conexão e dependência em relação a este todo
sistematizado e infinitamente superior a ele, tal qual uma divindade. Tal homem crê que
o bem universal exige sua entrega; entretanto, para Nietzsche, este universal não existe.
Desta forma, se por meio deste homem não agir um todo infinitamente valioso, então ele
perdeu a crença em seu valor. Tal homem concebeu um fim para poder crer em seu valor.
A última forma pela qual o niilismo enquanto estado psicológico se manifesta
advém da compreensão das outras duas formas. Ou seja, uma vez que nada é alcançado
com o devir e que sob ele não há nenhuma grande unidade na qual como em um elemento
de supremo valor deva o indivíduo submergir de modo completo, a saída é inventar um
novo mundo verdadeiro configurado além deste mundo do devir, o qual deve ser
condenado. Entretanto, ao perceber que tal mundo encontra-se estruturado apenas por
necessidades psicológicas e sendo que não é de seu direito fazer isso, surge a última
forma de niilismo; essa que interdita a crença em um mundo verdadeiro ao des crer de um
mundo metafísico. Assim, a realidade do devir passa a ser admitida como a única
realidade existente; a qual, destituída de caráter ou de valor, nega toda e qualquer
tentativa de elaboração de um mundo além, tornando insuportável este mundo, o qual não
se está disposto a negar.
Assim, por constatar que as categorias de ‘fim’, ‘unidade’ e ‘ser’ não constituem
a descoberta do valor do mundo através dele mesmo e sim uma tentativa de adequação
deste mundo a elas, Nietzsche conclui que a causa do niilismo advém da crença nestas
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categorias. Isso significa dizer que o mundo foi valorizado mediante categorias da razão,
ou seja, valorizamos o Todo mediante categorias “que se referem ao um mundo
puramente fictício” (NIETZSCHE, 1983, p. 381).
Por conta disso, a conclusão final do fragmento 12 é de que a desvalorização do
mundo, nada mais é do que o resultado da tentativa de tornar o mundo avaliável ao
homem através de seus próprios valores. Isso se dá à medida que se demonstram
inaplicáveis, uma vez que psicologicamente constituem apenas determinadas perspectivas
da utilidade, falsamente projetados na essência das coisas, quando sua aplicação resume se à sustentação e o incremento de configurações de domínio em âmbitos puramente
humanos. Ou seja, em última análise, a desvalorização do mundo resultando em niilismo
constitui aquilo que Nietzsche denomina de ingenuidade hiperbólica do homem de
constituir-se como sentido e critério de valor das coisas (cf. NIETZSCHE, 1983, p. 381).
Em outro texto de O Crepúsculo dos Ídolos intitulado Como o “verdadeiro
mundo” se tornou uma fábula Nietzsche não apenas torna explícito de modo prático o
discutido até aqui, como também evoca aquilo que ele denomina como a história de um
erro. Partindo do pressuposto de que o niilismo é resultado da dicotomia dos dois
mundos, da criação de um mundo verdadeiro mediante a atribuição das categorias da
razão, o texto sintetiza a história do niilismo enquanto a história de um erro. Para o Volpi
(1999, p. 57) o início da dicotomia dos dois mundos inicia-se com Platão, de modo que o
texto evoca a história do niilismo-platonismo não apenas como a história da instauração
do niilismo como também a história da proposta e da progressiva destruição desse mundo
verdadeiro.
O texto se divide em seis fases que de modo sintético reconstroem a história do
erro apontado por Nietzsche. Na primeira fase, Nietzsche se refere ao pensamento de
Platão: A existência de um mundo verdadeiro, suprassensível é aqui postulada. Embora
ela seja alcançável pelos sábios, ela ainda não se tornou uma entidade meramente “ideal”,
“platônica”. De acordo com Laiseca (2001, p. 33) a afirmação “eu, Platão, sou a
verdade”, possui forte conotação evangélica, uma vez que alude diretamente à passagem
do Evangelho de João (14,6) quando Jesus refere-se como sendo o caminho, a verdade e a
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vida. Para a autora, tal ressonância não seria casual uma vez que situa Platão como ponte
que conduz ao cristianismo. No fundo o importante neste caso, não é a metafísica
platônica em si mesma, mas as intenções e os instintos pelos quais Platão é guiado. São
elas que permitem um diagnóstico adequado da filosofia platônica, não tanto acerca de
seus postulados teóricos, mas antes das consequências históricas imediatas desenvolvidas
através do platonismo.
Na segunda fase, o mundo verdadeiro torna-se inalcançável por ora, porém é
prometido ao sábio, ao virtuoso, ao devoto, ao pecador que faz penitência. Começa aqui a
ruptura entre o mundo verdadeiro e o mundo aparente. Com isso, o devir passa a ser
desvalorizado. A existência terrena passa a ser transitória, constitui-se de mera aparência
de modo que passa-se a prever a possibilidade de se alcançar, um dia, o mundo
verdadeiro. À medida que a existência humana acontece aqui, mas que tende para o além,
o mundo verdadeiro torna-se então objeto de promessa e de fé. Ele torna-se mais
cativante, mais impalpável, torna-se um platonismo para o povo, torna-se cristianismo
(Cf. VOLPI, 1999, p. 57).
O pensamento de Kant corresponde à terceira fase da história do niilismoplatonismo. Kant representa, aos olhos de Nietzsche, uma nova fase da crença no mundo
verdadeiro. Isso porque ele “busca restaurar novamente a crença em Deus pensado como
o bem supremo, combinado com uma justificação do sentido da vida através da ideia de
uma ordem moral do mundo” (LAISECA, 2001, p. 39). Nesse sentido, o mundo
verdadeiro passa a ser excluído do âmbito da experiência tornando-se indemonstrável nos
limites da pura razão teórica. Contudo, é recuperado como postulado da razão prática
impondo-se como imperativo ainda que reduzido a uma pálida e “desbotada” hipótese
(Cf. VOLPI, 1999, p. 58).
No capítulo seguinte, Nietzsche refere-se à fase do ceticismo e da incredulidade
posterior a Kant e ao Idealismo. É a fase do positivismo incipiente uma vez qu e “em
decorrência da destruição kantiana das certezas metafísicas desaparece a crença no
mundo ideal e em sua cognoscibilidade. Mas isso não significa que o niilismo -platonismo
tenha sido já superado” (VOLPI, 1999, p. 58). À medida que o mundo verdadeiro t ornaXVII Simpósio de Filosofia Moderna e Contemporânea da UNIOESTE
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se incognoscível acerca do qual nada podemos saber, torna-se a rigor impossível defendêlo ou negá-lo. Por conta disso a importância moral-religiosa que possuía enquanto
postulado da razão prática se esvai.
Mediante esta perspectiva, nos dois últimos capítulos de sua síntese Nietzsche
começa a explicitar sua própria perspectiva filosófica. A partir do momento em que o
mundo verdadeiro perde seu valor ele começa a ser abolido ele torna-se inútil, supérfluo.
Por isso é natural que Nietzsche se refira a ele entre aspas, ou seja, ele deve ser
suprimido. É o começo da fase do pensamento matinal, onde Nietzsche pensa aqui na
própria obra de demolição que com A Gaia Ciência alcançou seus primeiros resultados.
A última fase da síntese, que inclui também agora a abolição do mundo aparente,
assinala a tarefa assumida por Nietzsche de superar o niilismo-platonismo. É o momento
do incipit Zarathustra, a hora do meio dia, da sombra mínima. Aqui se compreende o
porquê é necessário abolir o mundo aparente. Isso não significa que se vá suprimir o
mundo sensível como tal. Para Volpi “se assim fosse, como mundo ideal e mundo
sensível constituem juntos a totalidade do ser, sua abolição levaria ao nada”. Ou seja, não
se trata de abolir a realidade do devir e sim libertá-la do caráter aparente abrindo
caminho para uma nova concepção de sensível. Não basta inverter a velha hierarquia
enaltecendo o sensível e desprezando o suprassensível, não basta efetivar uma mera
inversão do platonismo é “preciso abandonar inteiramente o horizonte do platonismoniilismo, ou seja, a dicotomia ontológica que ele implica e as respectivas categorias”
(VOLPI, 1999, p. 59). Quando Nietzsche escreve o Crepúsculo dos Ídolos ele tem em
mente que tomar o platonismo às avessas não o desembaraça da metafísica, razão pela
qual o ponto alto da humanidade, o início da jornada de Zaratustra só se efetiva após a
supressão do mundo verdadeiro e do mundo aparente (Cf. NIETZSCHE, 1983, p. 333).
Assim, a única realidade a ser admitida é a realidade do devir na qual se proíbe
“toda espécie de via dissimulada que leve a ultramundos e falsas divindades”, porém
“não se suporta esse mundo, que já não se pode negar” (NIETZSCHE, 1983, p. 381).
Por que não é possível suportar a esse mundo? A resposta seria, porque ele ainda é um
mundo aparente. Ou seja, suprimido o mundo verdadeiro resta ainda o mundo aparente,
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porém que é o mundo aparente sem o mundo verdadeiro? Uma farsa! Pois se com os
conceitos de “fim”, “unidade” e “ser” não se pode mais interpretar o caráter global d a
existência então nada mais é alcançado.
Por conta disso, a última fase da síntese do texto Como o ‘verdadeiro mundo’
acabou por se tornar uma fábula inclui também a abolição do mundo aparente. Esta é a
saída de Nietzsche para evitar recair na inversão do platonismo. Na seção B do fragmento
12 três momentos parecem justificar essa tese: em primeiro lugar ocorre a tomada de
consciência de que o mundo não pode mais ser interpretado mediante as categorias da
razão, fato que efetiva o colapso dos valores cosmológicos; daqueles valores com os
quais se incutia ao mundo um valor. O mundo torna-se então desprovido de valor uma
vez que o mundo verdadeiro já não existe mais. Isso permite um segundo momento,
momento este em que se investiga a origem dessa crença. Dado que a origem da crença
reside em nós, se ela se configura apenas como uma aparência de perspectiva, diga -se
fruto de uma mera necessidade humana, então ela pode ser rescindida.
Com isso o mundo é libertado daquela avaliação efetuada via categorias
racionais. Isso faz com que o terceiro momento venha à tona. Ou seja, quando as
categorias são desvalorizadas torna-se demonstrado sua inaplicabilidade ao todo de modo
que já não constituem mais nenhum fundamento para que o todo seja desvalorizado.
Retomando as palavras do próprio filósofo: “O verdadeiro mundo, nós o expulsamos: que
resta? o aparente, talvez?... Mas não! Com o verdadeiro mundo expulsamos também o
aparente!” (NIETZSCHE, 1983, p. 333). Aqui se concretiza o fim do mais longo erro;
aqui a humanidade atinge seu ponto mais alto; aqui começa Zaratustra.
Assim, mediante a compreensão de que Nietzsche-Zaratustra está além da mera
inversão do platonismo, ou seja, de que sua tarefa só se inicia após a total supres são da
dualidade de mundos, o caráter do devir, o qual a partir de agora deverá reger o cosmos,
será o da Vontade de Poder. Enquanto livre jogo de forças o mundo é pura e
simplesmente vontade de poder uma vez que ela é o efetivar-se da força. Seu efetivar-se
emerge de seu constante ‘querer-vir-a-ser-mais-forte’. É mediante este efetivar-se
enquanto impulso de toda força que novas configurações são criadas. Esta é a razão pela
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qual no entender de Scarlett Marton (1990, p. 55) a vontade de poder não se impõe como
nomós, pois ela “não poderia coagir as forças a se relacionarem seguindo sempre o
mesmo padrão”. Do mesmo modo ela não reflete um telos “uma vez que superando a si
mesma, não poderia ter em vista nenhuma configuração específica das forças”.
Assim, o mundo revela-se como um pleno devir no qual a cada mudança outra se
segue de modo que o mundo não teve um início e não terá fim. Esta é razão pela qual
Nietzsche (1983, p. 396) afirma que: “O mundo subsiste; não é nada que vem a ser, nada
que perece. Ou antes: vem a ser, perece, mas nunca começou a vir a ser e nunca cessou
de perecer, - conserva-se em ambos... Vive de si próprio: seus excrementos são seu
alimento”. Não houve um momento inicial porque não se pode atribuir nenhuma
intencionalidade à vontade de poder da mesma forma que não haverá nenhum instante
final uma vez que ao mundo não se deve conferir nenhum caráter teleológico.
Portanto, mediante o colapso dos valores cosmológicos em que a crença nas
categorias da razão causa o niilismo, a solução de Nietzsche é a de rescindir a crença
evitando toda e qualquer infusão de sentido e finalidade ao devir. Só assim o “mais
inquietante de todos os hóspedes” poderá ser superado. Ora, se a tentativa humana de dar
sentido e critério de valor às coisas resultou em niilismo, o único modo de evitá -lo é
suprimindo toda e qualquer valoração. Aqui se torna claro porque Nietzsche finaliza o
Como o ‘verdadeiro mundo’ acabou por se tornar uma fábula com o INCIPIT
ZARATHUSTRA. “Aqui começa Zaratustra”. É a ele que compete ensinar ao homem a
assumir a perspectiva para além de bem e mal, a perspectiva do além do homem.
Referências:
LAISECA, Laura. El nihilismo europeo: el nihilismo de la moral y la tragedia
anticristiana en Nietzsche. Buenos Aires: Biblos, 2001.
MARTON, Scarlett. Nietzsche: Das forças cósmicas aos valores humanos. SP: São Paulo,
Editora Brasiliense, 1990.
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NIETZSCHE. Friedrich Wilhelm. Obras incompletas. Seleção de textos de Gerard Lebrun.
Tradução e notas de Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Editora Nova Cultural, 1983.
(Os Pensadores).
VOLPI, Franco. O niilismo. Tradução de Aldo Vanucchi. São Paulo: Edições Loyola, 1999.
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O CONCEITO DE EMOÇÃO EM SARTRE – Flávia Augusta Vetter Ferri
UNIOESTE
Resumo: Na obra Esquisse d’une Théorie des Émotions, de 1939, Sartre empenha-se em
desenvolver a proposta de uma psicologia fenomenológica, e para tal, o faz através do estudo
do objeto primordial dessa ciência, ou seja, as emoções. Esse texto deixa transparecer, por
parte do filósofo, um significativo amadurecimento de suas reflexões, especialmente no
tocante à criação de novos conceitos e pela interlocução que Sartre estabelece com Husserl e,
principalmente com Heidegger. Sartre mantém sua postura crítica frente à psicologia
tradicional e elabora um estudo sobre as teorias das emoções, dedicando-se primeiramente à
análise das teorias clássicas e da teoria psicanalítica, para em outro momento, apresentar um
esboço de uma teoria fenomenológica. A princípio, ele aborda o que considera limitações e
prejuízos da psicologia, devido a sua maneira de conceber alguns aspectos do ser humano. Em
seguida, Sartre apresenta as aquisições da fenomenologia para enfim, estabelecer possíveis
relações entre ambas. Após criticar as teorias clássicas psicológicas, fazendo uso dos
pressupostos fenomenológicos, Sartre retoma o fundamento primordial da fenomenologia, da
qual primeiramente a consciência é sempre consciência de algo, logo, consciência emocional
é consciência do mundo. Nessa medida, a emoção retorna, a todo instante, ao seu objeto e
dele se alimenta. É presumindo esse caráter fenomenológico da experiência das emoções que
Sartre lança mão do conceito de consciência irrefletida a fim de descrevê-las. Para ele,
primeiramente a consciência emocional é irrefletida e, nesse âmbito, ela apenas pode ser
consciência de si mesma de modo nao-tética. Ela é em primeiro lugar consciência do mundo.
Não é preciso abandonar o nível pré-reflexivo para viver uma emoção. A emoção não é um
acidente, é um modo de existência da consciência, isto é, uma das maneiras como ela
compreende seu ser no mundo, tem um sentido, significa algo e reflete a totalidade das
relações da realidade humana com o mundo.
Palavras-chave: Emoções. Sartre. Cogito pré-reflexivo. Cogito reflexivo.
Na Introdução de Esquisse d’une Théorie des Émotions, o leitor pode se deparar
com o subtítulo Psicologia, fenomenologia e psicologia fenomenológica (SARTRE,
2009, p. 13), o que nos leva comprovar certo movimento realizado por Sartre. A
princípio, ele aborda o que considera como sendo as limitações ou prejuízos da
psicologia, devido a sua maneira de conceber alguns aspectos do ser humano. Em
seguida, Sartre apresenta as aquisições da fenomenologia para, enfim, estabelecer
possíveis relações entre ambas.
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A problemática trazida por Sartre acerca da psicologia, nesse momento, é que tal
ciência aspira ao status de ciência positivista, fato este que acaba por não poder fornecer
senão uma soma de fatos isolados, pois ela obtém seus recursos através, exclusivamente,
da experiência, à maneira do físico que jamais prescinde da observação de seu objeto.
Sartre entende que o psicólogo estuda a emoção como um acidente vindo a analisá -la
isoladamente. Sartre utiliza as teorias tradicionais da psicologia sobre as emoções e abre
um debate filosófico, no qual seu principal argumento é que nenhuma destas concepções
se sustenta, uma vez que estão calcadas no princípio clássico da causalidade. Dessa
maneira, a explicação da emoção é buscada nos processos dela mesma, tais como em
relação às reações corporais. Para ele, os psicólogos não se deram conta de que um fato
considerado isoladamente não permite compreender outra coisa senão ele mesmo. Na
medida em que a ciência psicológica se coloca empiricamente diante de seu objeto, há
uma perda da especificidade dos fatos humanos, uma vez que seria preciso partir do
homem considerado em sua totalidade e não simplesmente fragmentado ou reduzido aos
fatos. Em outras palavras, o que Sartre advoga é que ao pretender ser uma ciência
positiva, a psicologia não pode oferecer mais do que a soma dos fatos het erogêneos, dos
quais a maioria não possui qualquer ligação entre si.
Retomando a ideia de homem, a teoria ontofenomenológica sartriana não confere
a essa ideia uma significação apenas empírica, nem tampouco que a existência humana
esteja separada da sua realidade ou do mundo, já que tais estruturas são completamente
indissociáveis. “O homem é um ser do mesmo tipo que o mundo” (SARTRE, 2009, p. 17,
grifos do autor). Eis o que parece ser a contribuição mais direta da fenomenologia nesse
contexto, uma vez que “uma descrição fenomenológica da emoção trará à luz as
estruturas essenciais da consciência, pois uma emoção é precisamente uma consciência”
(SARTRE, 2009, p. 24). Ela aparece como uma consequência das relações da consciência
com o mundo no qual, todo fato humano é significativo, inclusive as emoções. Enquanto
a psicologia considerar o estado psíquico enquanto fato, não será possível estabelecer
nenhuma significação do mesmo. Ora, não havendo significação, não há existência,
mundo vivido, que encarna os fatos e os interpreta, uma vez que, como bem diz Sartre
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(2009, p. 26, grifos do autor), “a emoção é na medida em que significa”. A partir dessa
afirmação, Sartre considera impossível conceber as emoções como desordens
psicofisiológicas, conforme prescreviam as teorias psicológicas clássicas, mas sim
possuidoras de essência, estruturas particulares, significações e formas de aparecimento.
Sob este prisma, Sartre enfatiza que elas não estão fora da realidade humana, ou seja:
A emoção significa à sua maneira o todo da consciência ou, se colocarmos no plano
existencial, da realidade humana. Ela não é um acidente, porque a realidade humana
não é a soma de fatos; ela exprime sob um aspecto definido a totalidade sintética
humana em sua integridade. E por isto não se deve entender que ela é o efeito da
realidade humana. Ela é essa realidade humana ela própria realizando-se sob forma
de ‘emoção’(SARTRE, 2009, p. 26-27, grifo do autor).
Se houver o propósito de conceber a emoção enquanto um fenômeno de
consciência, tal como os fenomenólogos descrevem, deve-se assumir que a emoção
expressa, a sua maneira, o todo da realidade humana e não um efeito desta. É o homem
que assume sua emoção e, por efeito, ela é, como observa Sartre (2009, p. 27), uma
“forma organizada da existência humana.” Para Sartre, o homem não pode ser analisado
a partir de conceitos empíricos ou reducionistas, de modo que a psicologia, por sua vez,
não pode ser o começo desta análise, já que os fatos psíquicos não estão separados ou
isolados do mundo. É a partir do homem e de sua relação ao mundo que se chega ao
psíquico, isto é, através da consciência, da realidade humana como maneira de existir,
como totalidade sintética que é o sujeito em sua verdadeira essência.
Ao adotar essa perspectiva, Sartre passa a situar a psicologia e a fenomenologia
em âmbitos distintos. A primeira operaria no campo natural, empírico e a segunda, no
campo transcendental. A pretensão de Sartre não é a de constituir um estudo
fenomenológico da emoção, mas através dela, de verificar se a psicologia pode fazer uso
do método e ensinamentos da fenomenologia. Como ele bem explica:
A psicologia não coloca o homem em questão nem o mundo entre parênteses. Ela
toma o homem no mundo [...]. De uma maneira geral, o que a interessa é o homem
em situação. Enquanto tal, ela está subordinada [...] à fenomenologia, já que o
estudo verdadeiramente positivo do homem em situação deveria primeiro ter
elucidado as noções de homem, de mundo, de ser-no-mundo, de situação (SARTRE,
2009, p. 27, grifo do autor).
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Após criticar as teorias clássicas psicológicas, fazendo uso dos pressupostos
fenomenológicos, Sartre retoma o fundamento primordial da fenomenologia, da qual
primeiramente a consciência é sempre consciência de algo. Nessa perspectiva, a
consciência emocional é consciência do mundo. Sartre ilustra esta máxima argumentando
que, obviamente, quando se tem medo, se tem medo de alguma coisa, já que isso ocorre
mesmo quando o objeto desse medo não está claramente definido. Nessa medida, a
emoção retorna, a todo instante, ao seu objeto e dele se alimenta. Em suma, “o sujeito
emocionado e o objeto emocionante estão unidos numa síntese indissolúvel. A emoção é
uma certa maneira de apreender o mundo” (SARTRE, 2009, p. 58).
Ora, é presumindo esse caráter fenomenológico da experiência das emoções que
aparece novamente no pensamento de Sartre o conceito de consciência irrefletida a fim
de descrevê-las. Para ele, primeiramente a consciência emocional é irrefletida e, nesse
âmbito, ela apenas pode ser consciência de si mesma de maneira não tética. Ela se torna,
em primeiro lugar, consciência do mundo. Não é preciso abandonar o nível pré -reflexivo
para viver uma emoção. É importante enfatizar que, embora se permaneça no plano
irrefletido, “uma conduta irrefletida não é de modo algum inconsciente, é uma estrutura
atual de minha consciência. Só que não é consciente de si mesma” (SARTRE, 2009, p.
59), ou melhor, consciente dela mesma não teticamente, onde o Eu não aparece de modo
algum, pois não há necessidade de um retorno sobre si mesmo.
Partindo destas reflexões, Sartre descreve a emoção como “uma transformação
do mundo” (SARTRE, 2009, p. 63). Ele a considera como veículo pelo qual o homem,
diante de uma dificuldade extrema, por meio de uma conduta irrefletida, atua no mundo e
o transforma. Sob esse ângulo, a emoção é uma atitude do homem face ao mundo, no
qual o indivíduo age sobre si mesmo e se modifica, transformando então sua percepção
de mundo e não o mundo propriamente dito. É fundamental salientar que para tal
transformação, o homem se lança a uma nova atitude com todos os recursos de que
dispõe. Ora, a emoção na vida do homem tem a funcionalidade de fazê-lo mover-se,
transformar-se a fim de transformar o objeto. Nas palavras de Sartre, “na emoção é o
corpo que, dirigido pela consciência, muda as relações com o mundo para que o mundo
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mude suas qualidades” (SARTRE, 2009, p. 65). Ao vivenciar um estado emocional, não
se atua efetivamente sobre o mundo ou sobre o objeto, mas a ação se dá à distância, como
se ela alterasse o mundo.
Sartre destaca que, para compreender o processo emocional, é essencial admitir o
duplo caráter do corpo, que se apresenta tanto como objeto no mundo quanto como a
experiência vivida imediata da consciência. A emoção não é um fenômeno corporal, um
produto do corpo, mas da experiência, uma vez que, por si só, o corpo não é produtor de
emoção, embora, qualquer emoção se configure na expressão do corpo e a consciência
emocionada se expresse no corpo em forma de emoção. Como atesta Sartre: A
consciência na sua relação com o mundo só pode alcançar a si mesma de modo que não
pode transformar o objeto. Por meio do corpo, altera suas relações com o mundo para que
o mundo altere suas qualidades. Assim, a emoção aparece sempre por meio de um corpo
alterado, perturbado, que constitui a forma e a significação da emoção. A emoção é uma
experiência psicofísica, sendo que o corpo é o vivido imediato da consciência. Sob a
ótica sartriana, para que haja emoção, é preciso haver uma perturbação do corpo que
mantenha certa conduta: “A perturbação pode sobreviver à conduta, mas a conduta
constitui a forma e a significação da perturbação. Por outro lado, sem essa perturbação
a conduta seria significação pura, esquema afetivo” (SARTRE, 2009, p. 77). Seguindo
Sartre,
[...] a origem da emoção é uma degradação espontânea e vivida da consciência
diante do mundo. O que ela não pode suportar de certa maneira procura captar de
outra maneira, adormecendo, aproximando-se das consciências de sono, do sonho e
da histeria. E a perturbação do corpo não é senão a crença vivida da consciência,
enquanto ela é vista do exterior (SARTRE, 2009, p. 79).
Em suas palavras, “a consciência não se limita a projetar significações afetivas
no mundo que a cerca: ela vive o mundo novo que acaba de constituir” (SARTRE, 2009,
p. 77). Ele refere-se aqui ao mundo mágico da emoção 1. O que Sartre quer dizer é que,
para ele, a emoção será chamada de “uma queda brusca da consciência no mágico”
(SARTRE, 2009, p. 90). Magia, neste sentido, quer dizer cogito pré-reflexivo, embora
1
“Deve-se falar de um mundo da emoção como se fala de um mundo do sonho ou dos mundos da loucura”
(SARTRE, 2009, p. 81).
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não esteja claramente explícito por Sartre. Sob este prisma, ele atesta que a consciência
não possui teticamente consciência de si mesma, portanto não é surpreendente que a
finalidade da emoção não seja admitida por um ato de consciência no seio da mesma. Isso
se deve ao fato de a consciência vir se tornar vítima de sua própria armadilha, pois vive
no mundo acreditando nele. Ela crê e não pode escapar desta condição. Ao viver neste
mundo mágico ao qual se lançou, tende a perpetuá-lo, como Sartre ilustra, “a emoção é
sofrida. Não se pode sair dela à vontade, ela se esgota espontaneamente, mas não
podemos interrompê-la” (SARTRE, 2009, p. 76). A libertação de um estado emocional só
poderá vir através de uma reflexão purificadora ou do desaparecimento total da situação
causadora de tal emoção (Cf. SARTRE, 2009, p. 81). A compreensão do significado e da
finalidade de cada emoção só é possível, todavia, de serem conhecidos através da análise
de cada situação em particular.
Partindo dessas reflexões iniciais, Sartre esboça programaticamente alguns
aspectos decisivos ao concluir essa sua obra. A emoção não é um acidente; ela é um
modo de existência da consciência, isto é, uma das maneiras como ela compreende seu
ser no mundo, sendo portadora, portanto, de um sentido, ou seja, significando algo e
refletindo a totalidade das relações da realidade humana com o mundo. Assim, pode -se
perceber que, precedendo a psicologia, a fenomenologia daria o fundamento para a
psicologia, por se ocupar exclusivamente das essências. Com essas ponderações, Sartre
abre caminho para sua Psicanálise Existencial, apresentada em sua grande obra L'Être et
le Néant: Essai d'ontologie phénoménologique.
Referências:
SARTRE, J-P. Esquisse d’une Théorie des Émotions. Paris: Hermann, 1938.
______. L’être et le néant: essai d’ontologie phénoménologique. Paris: Gallimard, 1943.
______. La Transcendance de L’Ego: Esquisse d’une Description Phénoménologique.
Paris: J. Vrin, 1965.
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______. Uma ideia fundamental da fenomenologia de Husserl: a intencionalidade. Em JeanPaul Sartre, Situações I: críticas literárias, p. 55 – 57. Trad. Cristina Prado. São Paulo: Cosac
Naify, 2005.
______. Esboço para uma teoria das emoções. Trad. Paulo Neves. Porto Alegre: L&PM,
2009. (Coleção L&PM Pocket Plus).
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O CONCEITO MORTE NO PREFÁCIO DA FENOMENOLOGIA DO
ESPÍRITO: A MORTE E SEU SENTIDO METAFÍSICO – Dennis Donato Piasecki
UNIOESTE/CAPES
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Resumo: O presente estudo tem por objetivo analisar o conceito morte tal como desenvolvido
por Hegel em um momento particular da Fenomenologia do Espírito - a saber, o Prefácio
(Vorrede). Para tanto é imprescindível uma demarcação do conceito, justamente para entender
o sentido atribuído por Hegel à morte neste recorte de sua obra. O sentido metafísico1 recorre
à especulação filosófica para demonstrar a morte não apenas como simples negação da vida, o
que ainda ficaria preso às garras do entendimento (Verstand), mas principalmente como o
momento crucial que deve ser reconciliado na universalidade do espírito, que suprassume
desta maneira a oposição da morte no infinito constituir de si.
Palavras-chave: Hegel. Morte. Prefácio.
“A folha que cai, retorna às suas raízes”.
Provérbio chinês
A morte tal como aparece pela primeira vez na Fenomenologia do Espírito,
rigorosamente falando, não se refere diretamente ao conteúdo da Fenomenologia 2 mesma.
Para entender melhor esta proposição, se faz necessário uma breve reflexão de cunho
estrutural e de conteúdo sobre a obra, que posteriormente refletirão na com preensão do
sentido metafísico do conceito aqui estudado.
O Prefácio foi escrito posteriormente ao término da obra, ou seja: Hegel já tinha
todo o desenvolver da consciência fenomenologicamente construída, e podia agora, a
partir do ponto de vista do puro saber - o ponto de chegada daquilo que inicialmente era
apenas consciência natural e agora se desenvolve na esfera do pensamento puramente
1
Entenda-se aqui a metafísica como “a ciência das coisas apreendidas no pensamento”. (Hegel, 1995, p. 77) ou
como sintetizou Santos (2007, p. 51): “Metafísica é a experiência que a razão faz de si na totalidade de suas
manifestações: lógica, natureza, espírito”.
2
Sistema da Ciência. Primeira parte. Ciência da experiência da consciência (Ciência da Fenomenologia do
Espírito). Eis o título completo da obra. Para um aprofundado estudo sobre a relação do título com o lugar que
ocupa a obra no interior do sistema de Hegel, ver (Heidegger, 2008, p. 11-52). O título nas primeiras edições
figurava entre o Prefácio e a Introdução, o que ainda acontece em algumas edições modernas, sendo já um
indicativo da interpretação do Prefácio como uma introdução ao sistema que Hegel pretendia construir (Cf.
INWOOD, 1997, p. 141).
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conceitual – demorar-se nas determinações-de-pensamento no interior de sua Ciência da
Lógica que, no projeto original 3 do filósofo, ocuparia o segundo momento do Sistema da
Ciência, juntamente com as Ciências da natureza e do espírito. Em suma, o tema do
Prefácio é precipuamente o pensar sistematizado.
Portanto, é correto não visualizar o Prefácio como o prefácio da Fenomenologia,
mas como prefácio do Sistema da Ciência 4. Doravante, se justifica considerar a morte,
inserida neste texto, como relacionada sempre ao todo do sistema, e não com uma parte
específica desse todo, no caso aqui a Fenomenologia. “O verdadeiro é o todo. Mas o todo
é somente a essência que se implementa através de seu desenvolvimento” (HEGEL, FE, §
20). O todo, que está em total acordo com seu conceito 5 e que por isso é infinito, assume
em si a série de relações evanescentes que caracterizam as entidades finitas do mundo e,
portanto, apenas ele pode ser considerado o verdadeiro (a essência) na filosofia do
absoluto de Hegel.
Essa conclusiva, mas não estática verdade a que o todo remete, reconciliada nela
a identidade das clássicas dualidades como pensar-ser, subjetivo-objetivo e finito-
3
Projeto original que é o contexto da investigação aqui proposta. Não me deterei neste trabalho na extensa
discussão sobre o lugar que a Fenomenologia ocupa no sistema hegeliano. Aqui basta recordar, como nos sugere
Kervégan (2008, p. 50) que a posição da Fenomenologia no sistema se transforma após 1807. Isso se deve: 1º) a
mudança do plano do sistema: a Fenomenologia deixa de ser sua primeira parte; 2º) a “Filosofia do Espírito”,
terceira parte da Enciclopédia, comporta ela própria uma subdivisão denominada “Fenomenologia do Espírito”
que trata das três primeiras seções da obra homônima. Para Hosle (2007, p. 77; p. 145) pautado em carta de
Hegel a Schelling, escrita em maio de 1807, as mudanças da Fenomenologia em relação ao Sistema já estavam
sendo pensadas durante a redação da mesma, diminuindo a relevância da obra na composição do Sistema da
Ciência. Por isso a premissa de Hosle, de que o Sistema definitivo de Hegel esteja estabelecido na Enciclopédia
das Ciências Filosóficas (1830).
4
Uma possível ligação entre a Fenomenologia e o Prefácio, como bem observado por Hyppolite (2003, pp. 601602), é que este último pode servir de auxílio para a compreensão do derradeiro capítulo da Fenomenologia,
intitulado “O Saber Absoluto” (Das absolute Wissen) que é conhecido muito mais pela sua fama de enigmático
do que propriamente pelo seu conteúdo. É neste capítulo que a identidade do pensar e do ser se configuram como
o resultado da Fenomenologia. Ela se descobre como a ciência do ser e permanência do pensar no ser. O ser se
pensa como Si e o Si como o ser, e este pensamento do Si, esta onto-lógica, que é o pensamento do pensamento e
ao mesmo tempo pensamento de todas as coisas, constitui o saber absoluto. Logo, a complexa condensação do
último capítulo encontraria melhor lapidação no Prefácio, que englobaria no seu texto as disposições já
encontradas como resultado no saber absoluto sem ter que se demorar sobre o processo da experiência; e a partir
daí explanar o todo do Sistema.
5
Hegel, FE, § 33. “Os puros pensamentos se tornam conceitos, e somente então eles são o que são em verdade:
automovimentos, círculos. São o que sua substância é: essencialidades espirituais”.
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infinito6, vigora, não obstante, devido aos momentos efêmeros de sua constituição que se
desenvolvem e desaparecem através das formas de consciência no périplo da
Fenomenologia. Se a verdade da percepção é o entendimento ou se a verdade da
consciência é a razão, isso apenas demonstra que o todo é composto por essas “pequenas
verdades” que em sua totalidade posso chamar de verdadeiro ou verdade absoluta, como
prescrevia Hegel.
De acordo com o clássico estudo de Hartmann (1960) sobre o Idealismo Alemão,
as figuras que se desenvolvem na Fenomenologia e que dão a forma fenomenal ao
espírito 7, têm como características manifestas a finitude e a limitação. Justamente por
isso, tais figuras constituem apenas um aspecto parcial do verdadeiro, que encontra sua
realização plena acima de si mesmo, na autoconfiguração do espírito absoluto. O
absoluto é assim o infinito no finito: o infinito, longe de isolar-se do finito, traz este
consigo, integrando-o como momento seu e constituindo a diferença indiferenciada na
identidade do absoluto 8. Logo, a morte tal como apresentada neste estudo deve ser
apreendida, não como o “verdadeiro” sentido da morte, mas como morte especulativa que
engloba
em
seu
sentido
todos
os
outros
possíveis
de
serem
manifestados
fenomenologicamente e suprassumidos no conceito, no âmbito do puro pensar.
6
Dualidades que são criticadas de forma pontual na obra de 1802, Fé e Saber. Nela, Hegel cria uma refutação
das filosofias da subjetividade de Kant, Jacobi e Fichte que separaram o absoluto do saber e o entendimento da
razão, absolutizando assim o infinito e o finito como separados, e o absoluto nessa relação permanecendo como
uma vacuidade da razão. Para Hegel, o idealismo dessas filosofias é um “idealismo do finito, o finito tomado
como forma ideal; com o finito real é posta absolutamente e de igual modo a ambos a idealidade finita, quer
dizer, o conceito puro, uma infinitude absolutamente contraposta à finitude” (HEGEL, 2007, p. 30-31).
7
Em seu Fragmento de Sistema, datado em 1800, Hegel oferece uma definição bastante peculiar de espírito:
“Pode-se chamar de ‘espírito’ a vida infinita, em oposição à multiplicidade abstrata, dado que ‘espírito’ é a união
concordante, vivente, do múltiplo, em oposição ao múltiplo enquanto [própria] configuração (que constitui a
multiplicidade que se inclui no conceito de vida); não em oposição ao mesmo, enquanto mera multiplicidade
morta, separada dela, porque neste caso o espírito seria mera unidade que se chama lei, e que é algo meramente
pensado, algo carente de vida.” (HEGEL, 2003, p. 401)
8
Em sua tese de doutorado – A metafísica do conceito (2003) – Alfredo de Oliveira Moraes explana esta relação
do infinito (todo) com o finito (parte) na constituição do absoluto: “O raciocínio simplificado seria o de que não
há totalidade sem partes, uma totalidade não se constitui como um todo indiferenciado, para só então fazer
brotar, de dentro de si, as partes; pelo contrário, a totalidade somente se define como tal a partir de suas partes,
nelas se realiza e as integra, elevando-as à sua verdade, ainda que as transcenda, na medida em que é mais que a
soma das partes” (MORAES, 2003, p. 72).
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Posto isto, passo agora a me deter sobre a citação da obra hegeliana que enseja as
especulações que aqui serão levantadas sobre o conceito morte. Ressalto, principalmente
se tratando do pensamento de Hegel, que privilegia a organicidade textual, que jamais se
analisa uma citação deslocada do seu contexto. Isso pode ser considerado um crime
contra a filosofia do autor em questão. No entanto, por se tratar de um conceito
específico o objeto de nossa investigação e que o mesmo não aparece mais no decorrer do
Prefácio com a conotação 9 que Hegel aqui lhe confere 10 e que o mesmo tem uma ligação
explícita com as outras tematizações da morte na obra como um todo, acredito em minha
absolvição por parte do tribunal acadêmico. No parágrafo 32 do Prefácio lê-se:
A morte – se assim quisermos chamar essa inefetividade – é a coisa mais terrível; e
suster o que está morto requer a força máxima. A beleza sem-força detesta o
entendimento porque lhe cobra o que não tem condições de cumprir. Porém não é a
vida que se atemoriza ante a morte e se conserva intacta da devastação, mas é a vida
que suporta a morte e nela se conserva, que é a vida do espírito. O espírito só
alcança sua verdade na medida em que se encontra a si mesmo no dilaceramento
absoluto (HEGEL, 2002, p. 44).
Primeiramente deve-se compreender o que seria esta inefetividade que Hegel
entende também como morte. Ao que parece, Hegel está fazendo uma crítica das
filosofias do entendimento11 ou metafísicas da subjetividade, que trabalham no intuito de
9
Alguns podem levantar a constatação de que a passagem, por ser em grande medida metafórica, seja de
validade pequena ou inferior na compreensão das intenções de Hegel sobre seu sistema. Porém, contrapondo esta
ideia, os estudos de Lakkof e Johnson (1999) no campo da linguística cognitiva, apontam para algo que
denominam consciência encarnada, onde a razão não transcende o corpo, mas é fundamentalmente determinada e
formada por nossa natureza física e nossas experiências corpóreas. A estrutura da razão nasce do corpo e do
cérebro. Com este pressuposto, descobriram que a maior parte dos pensamentos humanos é metafórica e que as
metáforas primárias possibilitam que nossos conceitos corpóreos básicos sejam aplicados a domínios abstratos e
teóricos. Exemplos: “Acho que não peguei esta ideia”; “grande dia”; “calorosa acolhida”; “a vida é uma grande
viagem”. Nosso pensamento e linguagem contém centenas de metáforas primárias, a maioria das quais nós
usamos sem ter consciência delas; e, uma vez que se originam das experiências corpóreas mais básicas – como a
vida e a morte – as metáforas primárias tendem a ser as mesmas na maioria das línguas.
10
Encontramos, na Fenomenologia, referência explícita ao termo morte (Tod) em vinte e nove (29) passagens;
em palavras cognatas na língua portuguesa como: morrer (Absterben) uma (1) referência; morto (a) (tot) trinta e
nove (39) menções; mortificação (Kasteien) uma (1) citação; mortais (Sterblichen) duas (2); morre (stirbt) nove
(9); morreu (gestorben) quatro (4) e; morrem (sterben) uma (1) alusão.
11
Como bem explicita Oliveira (2002, pp. 247-248): “As ‘filosofias do entendimento’ são precisamente as que
absolutizam a finitude e por isso nunca superam a contradição, pois nunca vão além do finito. Na obra Fé e
saber ele considerou as ‘filosofias da reflexão’ de Kant, Jacobi e Fichte como os exemplos, no pensamento de
sua época, de filosofias finitistas, que põem absolutamente a esfera da finitude, de tal modo que o Absoluto só
pode ser atingido pela fé. O típico dessa posição é postular uma contraposição absoluta entre finitude e
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chegar à pensamentos “fatiados”, determinados e rígidos, que instauram um imediatismo
conhecido e fixo do concreto (real). Hegel crê que essa separação das determinações
feitas pelo entendimento, ademais ser algo essencial no processo do pensamento, é
inefetiva devido ao seu isolamento do todo que compõe o espírito. Seriam determinações
bem conhecidas; mas mortas, estáticas, não fluidas. Em outras palavras: seriam
abstrações sem vida. A abstração é a morte que interrompe a vida. Pensar abstratamente é
matar a coisa mesma, fixando-a e finitizando-a através do entendimento.
Em ensaio escrito logo após a publicação da Fenomenologia, intitulado Quem
pensa abstratamente? (1995), Hegel transpõe para uma linguagem pitoresca, comparando
com seu estilo muitas vezes sisudo de expor ideias, o processo de separação que o
entendimento empreende, transformando o concreto do todo num amontoado de
abstrações esparsas. Segundo Hegel, a sociedade culta de sua época, dita do
Esclarecimento, tem verdadeiro pavor de palavras como pensar e abstrato. Isso se deve
ao elevado grau metafísico que as mesmas vêm ocupar nas consciências da época. Mas o
filósofo aponta que esse desvio de olhar que a sociedade encena ao se deparar com o
pensamento abstrato, não é porque ele é desnecessário, mas é porque este lhe é superior e
mais nobre e a sociedade o evita por não poder compreendê-lo.
Mas na sequência de seu texto, Hegel afirma que quem pensa abstratamente é o
homem sem instrução, não o instruído, como de fato se acreditam ser as pessoas da boa
sociedade. Fica latente a ironia na escrita hegeliana ao exemplificar sua proposição.
Imagine um assassino sendo levado ao patíbulo. Para a maioria das pessoas ali presentes,
ele não passa de um assassino, mas algumas mulheres comentam, ao vê-lo passar, sobre
sua beleza e força. Ao que o povo reage indignado sobre a possibilidade de se pensar tão
erroneamente de que um assassino possa ser belo ou forte... “Pensar abstratamente
significa isto: ver no assassino somente o fato abstrato que ele é um assassino e através
desta simples qualidade anular toda a essência humana ainda remanescente nele”
(HEGEL, 1995, p. 237).
infinitude. Por essa razão, o verdadeiro Absoluto está para além do conhecimento e só é atingível na fé e no
sentimento”.
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Logo, aquele que pensa abstratamente (aquele que pensa as coisas separadas,
divididas, fragmentadas) não pensa filosoficamente: reduz o todo às partes. O que Hegel
aponta é que a bela sociedade não conhece profundamente o que é o pensamento abstrato
que tanto abomina como também – constantemente, diga-se de passagem – pensa
abstratamente. Em suma, na filosofia de Hegel, os pensamentos são derivados uns dos
outros, formando um sistema concreto, ao invés de um agregado distinto e abstrato de
determinações fixas sem ligação. O fato para Hegel acreditar que os nossos conceitos
devem ser unidos desse modo derivativo é que os conceitos, segundo ele, formam a
essência da consciência, “à qual faltaria uma unidade apropriada se os seus conceitos
fossem um simples agregado” (INWOOD, 1997, p. 42).
A morte é o mais terrível simplesmente porque ela aniquila a unidade da vida,
retirando dela o elã que lhe confere a fluidez do todo. Todavia, o funesto da morte, tal
como Hegel desenvolve na passagem, não é tanto pelo fato que ela mortifica uma série de
abstrações vazias que não se reconciliam na unidade da razão, presas a uma lógica do
entendimento, mas sim que seu resultado, o morto ou as determinações de pensamento
tranquilas, deve necessariamente ser sustentado ou suprassumido em vida. Carregar o
morto é tarefa árdua; para cumprir este trabalho se faz urgente uma força hercúlea 12 do
espírito para unificar a multiplicidade das coisas finitas fixadas pelo entendimento.
Ora, mas é o entendimento a potência absoluta ou a força mais maravilhosa.
Dividir o concreto, decompor as representações para melhor analisá-las é inevitável:
“uma vez que o concreto, só porque se divide e se faz inefetivo, é que se move” (HEGEL,
2002, p. 44). Porém, seguindo Hegel, o resultado do trabalho do entendimento, é o nada
maravilhoso, o separado ou abstrato, por seu caráter de imediatez e oposição não
reconciliada no âmbito do pensamento, ou seja, um resultado inefetivo. Então, se
pergunta, o que é que movimenta o dividido, já que o entendimento apenas opõe e fixa as
12
Para satisfazer os mais eruditos, recordo dos famosos doze trabalhos de Hércules que nos chegaram através da
mitologia greco-romana. Em seu primeiro trabalho, ordenado por Euristeu, Hércules devia matar o terrível leão
de Neméia. Efetivou seu trabalho e levou o leão morto nas costas até o mandante da tarefa. Como não bastasse,
retirou a pele do animal e começou a vesti-la como escudo protetor, pois não havia nada que pudesse penetrar
em sua couraça. A cabeça do leão lhe servia como elmo. Podemos retirar do mito a imagem da morte sustentada
em vida e como mantenedora dessa mesma vida. (Cf. BULFINCH, 2002, p. 172)
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determinações de pensamento, sem preocupar-se com o anelo entre elas? O que é que
realmente carrega o morto das abstrações vazias e que tem imensa energia para suportar
tamanho encargo?
“O pensar” – responde Hegel. Na razão, a atividade do pensamento consegue
reconciliar a beleza sem-força (a subjetividade que foge do finito e fica reclusa no belo
sentimento – fé – do mais além do absoluto) com o entendimento, que vê apenas finitude
em todos os lugares da verdade do ser e cobra da beleza aquilo que ela não pode realizar:
a objetificação de seu anseio pelo absoluto, tornando aquela intuição sentimental do
infinito algo passível de ser tomado como coisa, fixa, abstrata. Desse modo, a atividade
do pensamento seria tanto subjetiva quanto objetiva, pois unificando os dois polos
contrastantes, consegue a realização do absoluto, a junção do pensar e ser, numa síntese
viva que carrega em si todo o peso dos cadáveres de abstrações e sentimentalidades
vazias.
No Prefácio, Hegel passa de chofre sobre a (não) relação entre a denominada
beleza sem-força e o entendimento. Mas no seu escrito de 1802, Fé e saber 13 (Glauben
und Wissen) o filósofo explicita em pormenores estes momentos como constituidores das
Reflexionsphilosophie 14. Nessa obra, Hegel investiga sobre o lugar que o absoluto e o
particular, o infinito e o finito, o condicionado e o incondicionado ocupam nas obras de
Kant, Jacobi e Fichte. O filósofo de Stuttgart expõe nestes termos a vinculação da beleza
subjetiva e o entendimento:
Esse poder, que é conferido ao entendimento pela beleza subjetiva e que parece
contradizer inicialmente o seu anelo, o qual voa para além do finito e para o qual o
entendimento não é nada, esse poder é tanto um lado necessário quanto esforçar-se
contra ele, na exposição das filosofias desta subjetividade. É exatamente por meio de
sua fuga do finito e da fixidez da subjetividade que o belo se torna para a
subjetividade coisas em geral; o bosque, os troncos de madeira; as imagens, coisas
13
Segundo Oliver Tolle (2007, p. 10) não apenas pela sua proximidade com a Fenomenologia do espírito, mas
principalmente porque se propõe examinar a relação entre fé e razão na obra dos três autores, que ainda estavam
vivos, que o ensaio Fé e saber pode ser visto como uma antecâmara para o nascimento da filosofia do espírito
absoluto.
14
Notem que filosofias do entendimento podem ser consideradas sinônimas das filosofias da reflexão. Isso se
deve ao fato de que uma das características da reflexão é que ela concebe o sujeito refletidor como distinto e
externo em relação aos objetos em que se reflete. Reflexão, neste sentido, é semelhante ao entendimento e
contrasta com a intuição, fé e especulação. Não pode fazer jus ao absoluto, porque está confinada às formas
finitas do conhecimento (Cf. INWOOD, 2002, p. 279).
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que têm olhos e não vêem, ouvidos e não ouvem; se os ideais não podem ser
tomados na realidade completamente inteligível como blocos de madeira e pedras,
tornam-se ficções e cada referência a eles aparece como jogo destituído de essência
(HEGEL, 2007, pp. 22-23).
Segundo Hegel, esses três pensadores conduziram à perfeição o idealismo da
finitude, ao mesmo tempo em que assinalaram as suas limitações teóricas. Para eles “o
absoluto não pode ser contra e tampouco para a razão, mas ele está acima da razão”
(HEGEL, 2007, p. 20) o que se traduz numa incapacidade da razão em poder afirmar o
conhecimento do absoluto, demonstrando assim uma marca indelével de sua finitude.
Hegel ilustrou essa limitação da razão através da expressão bastante famosa na filosofia:
“Deus está morto” (HEGEL, 2007, p. 173) 15.
Para escapar dessa prisão a que o espírito fica detido, numa filosofia da
subjetividade, faz-se necessário que a razão, que é a possibilidade de se pensar além das
oposições rigidamente fixadas pela reflexão, se torne a superação real dos antagonismos
abstratos que surgem de seu próprio seio. Neste sentido, Hegel não nega a pertinência do
pensamento reflexivo, mas transforma-o “em um momento do desenvolvimento da
racionalidade” (FELIPPI, 1998, p. 72).
Esse desenvolvimento deve ter como
enfrentamento a vida perante a morte, a energia do pensar contra as abstrações mortas
ceifadas pelo entendimento.
Neste sentido, se detendo sobre o texto objeto da investigação aqui proposta,
observa-se que o temor da morte, que pode causar um momento de vacilação e retenção
da vida em si mesma e, dessa forma, a mesma ficando inerte no terreno de um
pensamento fixo e tranquilo, não se contrapondo com a diferença, deve ser superado para
possibilitar a vida do espírito. O espírito só é o que é na medida em que suporta a morte
15
“Gott ist tot”. Hegel antecede o Zaratustra de Nietzsche em pelo menos oitenta anos, sabendo que a expressão
ficou popularizada a partir de seu Assim falou Zaratustra, datado de 1885. Este diagnóstico dado por Hegel à
cultura do Iluminismo, diz respeito ao rompimento da religião e da razão na constituição do sujeito moderno, que
não necessitava mais de um além suprassensível para determinar as condições do conhecimento, encontrando em
si mesmo todas as condições para o acesso a este. Contudo, esta situação negou ao mesmo sujeito moderno o
acesso ao absoluto, deixando-o isolado do todo. No circuito da Fenomenologia, encontramos referência à morte
de deus no § 752, onde Hegel vai trabalhar as ideias da religião manifesta no âmbito do Espírito que tomou
consciência-de-si através da religião. A morte de deus seria o resultado da consciência infeliz que é a perda da
essência da sua certeza de si, tanto perda da substância como do Si.
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na vida, não se recusando ao embate do movimento das determinações que acabam lhe
proporcionando seu devir de si mesmo. O pensar que conserva em si os cadáveres das
oposições abstratas se mantém em atividade justamente por esta tarefa: carregar a morte
nas costas como um sacrifício metafísico.
Esta metafísica da morte mantém uma estreita orquestração com a vida, como
bem observou Simmel (1998). A formulação hegeliana − de que toda coisa atrai o seu
contrário e forma com ele uma síntese superior, à qual está certamente subsumida, mas
aonde precisamente ela vem assim a "si"− em nenhum outro lugar revela mais o seu
sentido profundo do que na relação entre a vida e a morte. A vida em si atrai a morte
enquanto contrário. Consequentemente a vida e a morte se encontram no mesmo degrau
do ser como tese e antítese. Assim se eleva acima de ambas algo de superior: o espírito,
que se transforma inerentemente às tensões da vida e da morte, não sendo mais atingido
pelas suas oposições, mas mantendo-se justamente pela reconciliação destas em si
mesmo. Apesar de sua inferioridade em relação ao espírito, a vida é, para Hegel, uma
potente metáfora para a unificação ativa de diversidade e diversificação da unidade
envolvida no espírito e suas formas. “A lógica dialética é viva, em contraste com a lógica
morta do entendimento” (INWOOD, 2002, p. 322).
Isto não quer dizer que a morte seja eliminada pela razão. Enquanto o
entendimento cria a morte através de suas abstrações, existe na razão, segundo Hegel, um
reconhecimento da realidade da morte. A razão, diferente do entendimento, apreende a
morte como algo efetivo, que ocorre, transforma, exerce um papel no processo da vida do
espírito: a morte é aquilo que é terrível e dilacerante, mas que não deve ser escamoteada
jamais.
Como aponta Morin (1997, p. 264) em estudo já clássico sobre a temática da
morte, sempre é afirmada pela razão “a vontade cavalgar a morte sem jamais cair da
montaria”. É esta vontade de manter o pensamento nas águas-mães da morte, mas sem
ceder nem um pedaço de terreno ao irracional, que faz do pensamento de Hegel a
prodigiosa síntese do trágico e do racional; síntese dominada pela preocupação de
integrar a morte na razão, de compreendê-la como função, exigência, necessidade. O
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espírito tende sempre a negar o particular, o finito, no qual se aliena necessariamente
para se realizar, e do qual, para conseguir a reconciliação, deve se libertar. Toda finitude
deve ser negada; todo particular deve ser universalizado. Este é o movimento da
dialética, isto é, do real.
Neste sentido, podemos considerar a morte como o alimento indigesto d a vida no
seu desenvolver. A vida do espírito é a mais enérgica, mais heroica e mais vitoriosa
justamente por encarar e sustentar em si o mais terrível: a própria morte. O finito é o
desaparecimento da morte no suprassumir de si mesmo no infinito.
Mas est e
desaparecimento não é um produto do entendimento que desvia seu olhar do todo, para
não ter que prestar contas de suas operações analíticas no âmbito do conhecimento.
Morte e finitude estão estreitamente associadas numa filosofia do devir do espírito, na
qual a afirmação e a aniquilação do finito fundam incessantemente o infinito que se
realiza no próprio movimento, na construção da verdade. Se a lógica do entendimento
pronuncia o discurso da morte que acompanha a vida, como a sua outra face, a
Fenomenologia do Espírito vai ser “a teoria dessa morte, a doutrina da negação que
prepara para o conhecer metafísico e para a vida que é ser e razão” (FERREIRA, 1992, p.
269).
Por tudo que foi exposto até agora, algumas conclusões sobre o sentido
metafísico da morte podem ser derivadas. A morte, tal como situada no Prefácio, referese ao sistema de Hegel como um todo; não está relacionada diretamente a delimitar a
morte num sentido fenomenológico, que necessitaria aí do envolvimento da consciência,
no campo da experiência para sua depuração conceitual. No plano da morte metafísica, o
que se compreende por morte natural ou biológica não aparece como relevante na
compreensão do sentido aqui proposto. Esta “forma” de morte é desenvolvida
principalmente na sua Filosofia da natureza, momento do espírito que aparece antes do
surgimento da consciência.
Apesar de a morte metafísica ser traduzida por Hegel através de metáforas, na
sua tentativa de explicar como se dá a reconciliação do espírito consigo mesmo, que
necessita da morte (as abstrações fixas e inefetivas do entendimento) para encontrar sua
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verdade enquanto pensamento na razão, não se deve menosprezar sua importância só
porque se utiliza desta figura de linguagem. É possível que só através de uma metáfora
Hegel conseguisse dar cabo de sua ideia: não é uma fuga do pensamento conceitual; ao
contrário, é uma forma do espírito se expressar e de se mostrar em sua integridade e
movimento, buscando indicar que na confrontação da vida com a morte, no perder -se da
vida no dilaceramento terrível e absoluto que é a morte, é que o verdadeiro – o resultado
imanente das oposições de vida e morte e de tantas outras que se fecham no horizonte de
uma finitude não suprassumida – se apresenta.
Talvez a melhor forma de terminar e sintetizar esta simples apresentação sobre o
sentido metafísico da morte seria voltar ao texto hegeliano Quem pensa abstratamente?
Nele, após a execução do assassino em questão – o belo e forte assassino – uma velha
mulher que trabalhava no hospital para onde fora levado o corpo,
Mata a abstração do assassino e trá-lo de volta á vida e á honra. A cabeça decapitada
sido colocada sob o cadafalso e o sol brilhava. “Que belo”, disse ela, “a graça divina
do sol resplandece sobre sua cabeça”. Aquela mulher viu que a cabeça do assassino
tinha sido iluminada pelo sol e que, portanto, ainda tinha valor. Ela o elevou da
punição do cadafalso para a graça divina do sol. Ela não realizou a conciliação
através de violetas e de um sentimentalismo vaidoso, mas viu no sol elevado o
criminoso ser acolhido pela graça (HEGEL, 1995, p. 238).
Da mesma forma, ocorre com o espírito. Eleva as abstrações mortas para fazer
delas vivas novamente, reconciliadas no ser e no pensar, no contínuo fluxo da vida
espiritual. Não esqueçamos: pensar a morte apenas como morte é ainda fazer uma
abstração. Parece ser esta a advertência de Hegel.
Referências:
BULFINCH, Thomas. A idade da fábula. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002.
FELIPPI, Maria Cristina Poli. O Espírito como herança. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1998.
FERREIRA, Manuel J. Carmo. Hegel e a justificação da filosofia. Lisboa: Imprensa
Nacional, 1992.
HARTMANN, N. A filosofia do Idealismo alemão. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1983.
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HEGEL, G.W.F. Enciclopédia das ciências filosóficas. Ciência da lógica. São Paulo:
Edições Loyola, 1995.
______. Fé e saber. São Paulo: Hedra, 2007.
______. Fenomenologia do espírito. 2. Ed. Petrópolis: Vozes, 2003.
______.
Fragmento de sistema. In.: Escritos de juventud. Madrid: Fondo de Cultura
Economica, 2003.
______. Quem pensa abstratamente? In.: Síntese Nova Fase, Belo Horizonte, v. 22, n. 69,
1995.
HEIDEGGER, Martin. La Fenomenologia del espíritu de Hegel. Madrid: Alianza Editorial,
2008.
HYPPOLITE, J. Gênese e estrutura da Fenomenologia do espírito de Hegel. 2. Ed. São
Paulo: Discurso Editorial, 2003.
HÖSLE, V. O Sistema de Hegel. São Paulo: Loyola, 2007.
INWOOD, M. Dicionário Hegel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997.
KERVÉGAN, J.F. Hegel e o hegelianismo. São Paulo: Loyola, 2008
LAKOFF, George; JOHNSON, Mark. Philosophy in the Flesh. Nova York: Basic Books,
1999.
MORAES, Alfredo de Oliveira. A metafísica do conceito. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2003.
MORIN, Edgar. O homem e a morte. Rio de Janeiro: Imago, 1997.
OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Para além da fragmentação. São Paulo: Edições Loyola,
2002.
SANTOS, José Henrique. O trabalho do negativo. São Paulo: Edições Loyola, 2007.
SIMMEL, George. Metafísica da morte. In.: Revista Política e Trabalho, UFPB, n. 14, 1998.
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O CONFLITO EM MAQUIAVEL E AS RECIPROCIDADES COM O PODER
EM FOUCAULT – Anemar Michaell Wanes Moraes Ansolin
UNIOESTE
[email protected]
Resumo: A proposta deste trabalho é tentar achar possíveis ligações nos pensamentos dos
filósofos Nicolau Maquiavel (1469-1527) e Michel Foucault (1926-1984) para lançar um
novo olhar interpretativo nas teorias de diferentes momentos históricos, com a pretensão de
mostrar que tanto Maquiavel quanto Foucault instituíram uma maneira realista de observar a
política e os jogos de poderes mutáveis que fizeram com que ela fosse encarada sob novas
perspectivas, prudentes para a constituição de uma nova arte de governar que se fazia
necessário devido as transformações dos saberes gerados em momentos de revolução.
Palavras-chave: Poder. Conflito. Jogo de Forças.
Nicolau Maquiavel viveu num momento em que a História passava por grandes
inovações no pensamento, nas artes e consequentemente na maneira de pensar a política.
Podemos dizer que o Renascimento foi um momento de grandes rupturas e Maquiavel
contribuiu sendo peça fundamental para uma inovadora forma de visualizar a política,
abalando com o que até então vinha sido estabelecido. O período renascentista abriu uma
fissura naquilo que vinha sendo projetado sob o viés do pensamento político medieval,
carregado de todo um misticismo que se subverteu no desenrolar de Roma e que se
cristalizou numa arquitetura política que moldou as formas de governo.
A práxis romana, antes centrada numa arte bélica, passa a dar lugar a uma vida
contemplativa que instituiu a disciplina com luz a uma vida eterna, e que será o norte das
formas de organização política em boa parte do período medieval, e, mais tarde, será
superada com o pensamento humanista que vai se instituir antes do período renascentista.
Digamos que o humanismo surgiu e fez mudar a rota das estratégias de governo
constituídas sob o foco da medievalidade, abrindo uma fissura no pensamento teológico
proporcionando novas concepções de saberes que influenciarão drasticamente todo o
aparato político que se institui. O teocentrismo dá lugar a um antropocentrismo.
Os primeiros humanistas viam na paz e na estabilidade as condições para um
bom andamento social, buscavam ainda em axiomas (não místicos, mas, ainda
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generalizáveis sob uma perspectiva ética) a possibilidade de se estabelecer um mé todo
que possibilitaria uma harmoniosidade do Estado. Essa forma de pensar subentende que
o andamento deve seguir a modelos, e, mesmo o modelo teológico sendo abandonado, um
novo modelo de cidadão ainda é pensado, mas agora numa supervalorização do sujeit o
como racionalmente generalizado.
O que diferencia Maquiavel desses humanistas é uma desvalorização da ética no
seio da atividade política e uma visualização do conflito como algo produtor, mas não
somente produtor de coisas negativas, é no dissenso que surgirá a possibilidade de se
instituir boas leis que por um determinado momento conterão as desordens públicas. Para
Maquiavel não há uma permanência da ordem, é na desordem que ele vê a possibilidade
de produção de ordenamentos funcionais em uma sociedade compreendida num jogo de
forças. Foi na desunião entre plebe e senado que se pode pensar a liberdade, segundo ele
nos Discursos Sobre a Primeira década de Tito Lívio, (2007, p. 21):
Direi que quem condena os tumultos entre os nobres e a plebe parece censurar as
coisas que foram a causa primeira da liberdade de Roma e considerar mais as
assuadas e a grita de que tais tumultos nasciam do que os bons efeitos que eles
geravam; e não consideram que em toda república há dois humores diferentes, o do
povo, e o dos grandes, e que todas as leis que se fazem em favor da liberdade
nascem da desunião deles.
A interligação desses diferentes humores: “o povo deseja não ser comandado
nem oprimido pelos grandes e os grandes desejam comandar e oprimir o povo”
(MAQUIAVEL, 2009, p. 109) que se dará na ascensão de um príncipe que, segundo
Maquiavel, deve possuir uma “astúcia afortunada” (2009, p. 109), talvez seja um dos
fatores que torna possível a leitura republicana de sua obra, uma vez que a estabilidade
entre esses humores só será possível na incorporação do civismo tanto pelo povo quanto
pelos grandes. Essa incorporação se dará quando a pátria se tornar um bem comum na
atividade cívica, tanto da parte dos pequenos quanto na dos grandes e isso só é possível
no desenrolar da ação livre.
Pensar a busca pela liberdade numa ação conjunta entre grandes e pequenos,
entre um governo onde o príncipe é entendido dentro de um jogo de forças que
direcionará suas ações de governo conforme a necessidade atual de uma sociedade que se
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move positivamente no desenrolar de seus conflitos, faz com que possamos pensar que a
atividade administrativa não se dá sem a permanente participação de ambas as condições
de existência, o que sugere uma estratificação de lei que emerge desse jogo de forças , não
uma lei permanente (um axioma verdadeiro que estabilizaria o conflito e cessaria os
humores objetivando-os numa normatividade permanente, ideal), mas algo surgido de
uma determinada realidade que necessitou ter uma percepção momentânea, algo que
suprisse as necessidades daquela ocasião e que estabilizasse o conflito sem cessá-lo num
imperativo, justamente porque a lei normaliza, mas não extingue os tumultos.
Podemos perceber que não há passividade total do povo, o povo está
completamente ligado ao movimento que gera a constituição da lei e que a estratificação
da mesma, se dá na interligação dos humores gerado na busca pela liberdade. Pensar esse
jogo de forças em Maquiavel, movimento que a sociedade possui e que move a delegação
do legislador, faz com que o pensador florentino supere as demais concepções de governo
que até então vinham sendo estabelecidas do período grego ao final da medievalidade.
Essa “necessidade” do conflito à cena política e a ideia da ação do legislador sendo
elaborada numa melhor forma de reger essas tensões, de estratificar algo que se institui nesse
jogo de forças sem apego a nenhum preceito ideal ou moral, é um grande diferencial na teoria
de Maquiavel, e talvez, o que possa nos dar a possibilidade de fazer uma ponte com o
pensamento contemporâneo, especificamente o de Michel Foucault.
As últimas obras de Foucault trazem o poder como ponto nevrálgico do seu
aparato conceitual, não um poder ditador, mas, que se encontra como fonte das
realizações humanas e por elas articulado. O autor analisa o poder dentro de um novo
horizonte, dentro do seu tempo, do seu espaço e das suas relações, sendo possível
perceber toda uma política da sua constituição e do seu controle. Para ele, este conceito
não é concebido como inerente ao sujeito, mas estratégico, desenvolvido numa rede de
relações. O exercício do poder produz saberes, de modo que saber e poder estão
diretamente implicados.
Essa forma de analisar o poder é um afastamento de uma forma que ele vai
chamar no volume I da História da sexualidade: a vontade de saber (1988) de “jurídicoXVII Simpósio de Filosofia Moderna e Contemporânea da UNIOESTE
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discursiva”, confrontando as teorias anteriores. Não se analisa mais um poder que vem de
cima; trata-se de um poder que se encontra dentro de correlações de forças móveis e
múltiplas, as quais se articulam no discurso e o têm como seu efeito e instrumento.
Parece-me que se deve compreender, primeiro, como a multiplicidade de correlações
de forças imanentes ao domínio onde se exercem e constitutivas de sua organização;
o jogo que, através de lutas e afrontamentos incessantes as transforma, reforça,
inverte; os apoios que tais correlações de força encontram umas nas outras,
formando cadeias ou sistemas ou, ao contrário, as defasagens e contradições que as
isolam entre si; enfim, as estratégias em que se originam e cujo esboço geral ou
cristalização institucional toma corpo nos aparelhos estatais, na formulação da lei,
nas hegemonias sociais. A condição de possibilidade do poder, em todo caso, o
ponto de vista que permite tornar seu exercício inteligível até em seus efeitos mais
“periféricos” e, também, enseja empregar seus mecanismos como chave de
inteligibilidade do campo social, não deve ser procurada na existência primeira de
um ponto central, num foco único de soberania de onde partiriam formas derivadas e
descendentes; é o suporte móvel das correlações de força, que devido a sua
desigualdade, induzem continuamente estados de poder, mas sempre localizados e
instáveis. (FOUCAULT, 1988, p. 88/89).
Trata-se de analisar o poder não mais num centro legítimo, ou num mecanismo
geral que ordena a esfera social, mas entender o poder espalhado em todas as
extremidades que agem a partir da dominação e da sujeição, ou seja, em formas
institucionais mais locais que corporificam técnicas de saber e intervenções violentas .
Não se trata de analisar quem detém o poder ou quem está no topo, e sim da constituição
progressiva, material e real dos súditos, das suas forças, dos seus desejos, dos seus
pensamentos. Trata-se de estudar os corpos periféricos e múltiplos constituídos como
sujeitos pelos efeitos de poder.
O poder deve ser analisado como algo que circula, ou melhor, como algo que só
funciona em cadeia. Nunca está localizado aqui ou ali, nunca está nas mãos de
alguns, nunca é apropriado como uma riqueza ou um bem. O poder funciona e se
exerce em rede. Nas suas malhas os indivíduos não só circulam mas estão sempre
em posição de exercer este poder e de sofrer sua ação; nunca são o alvo inerte ou
consentido do poder, são sempre centro de transmissão. Em outros termos, o poder
não se aplica aos indivíduos, passa por eles. Não se trata de conceber o indivíduo
como uma espécie de núcleo elementar, átomo primitivo, matéria múltipla e inerte
que o poder golpearia e sobre o qual se aplicaria, submetendo os indivíduos ou
estraçalhando-os. Efetivamente, aquilo que faz com que um corpo, gestos, discursos
e desejos sejam identificados e constituídos enquanto indivíduos é um dos primeiros
efeitos de poder. Ou seja, o indivíduo não é o outro do poder: é um de seus primeiros
efeitos. O indivíduo é um efeito do poder e simultaneamente, ou pelo próprio fato de
ser um efeito, é seu centro de transmissão. O poder passa através do indivíduo que
ele constitui. (FOUCAULT, 1979, p. 184).
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Percebe-se, nas relações de poder, uma mudança mais que considerável no
decorrer dos séculos, ou seja, uma grande transformação é notada nas operações do
poder. Nota-se, então, as monarquias sendo gradativamente modificadas e se
convertendo, pouco a pouco, em sociedades disciplinares. Nessa modificação surgem as
instituições de disciplina, como as escolas, as fábricas e as prisões. Enquanto no poder
monárquico a preocupação estava centrada na vigilância e na apropriação dos bens dos
súditos, o poder disciplinar, em vez de se apropriar e de retirar, tem a função de ad estrar,
fazendo-o para se apropriar ainda melhor e ter uma maior retirada de lucros. Através das
tecnologias de poder específicas, as disciplinas tornam a sociedade mais forte, uma vez
que as forças de produção são aumentadas.
Nota-se que o poder disciplinar é forte justamente porque não está centrado em
um único ponto de apoio (como é o poder na forma soberana), e sim porque está
espalhado em vários mecanismos de que a sociedade dispõe. O poder não é mais um foco
central, pois ele foi multiplicado, distribuído, e está, ao mesmo tempo, em toda parte.
Podemos perceber, na obra de Foucault, que a história deu margem para tratar a
passagem de uma nova perspectiva de interpretações do poder, o qual constitui uma
forma de pensar o homem dentro de sistemas que ignoram uma verdade que poderia ser
pensada inerente ao sujeito, mas que é investida conforme as necessidades sociais.
Percebemos a partir das obras de Foucault que a sociedade passou por um intenso
processo de mutação, o que significa que uma mesma política jamais se faria útil para um
ordenamento governamental, visto que as fissuras que cada momento histórico obteve
fizeram com que fossem necessárias novas estratégias surgidas no desenrolar das
perspectivas de conhecimento geradas em momentos de revolução.
Essa perspectiva de poder entendida como o movimento produtor das realidades
políticas que Foucault nos faz pensar, nos aproxima, acredito, com o pensamento político
de Maquiavel, sendo que o autor renascentista também pensou uma arte de governar que
fizesse parte daquele momento histórico específico, daquela episteme que não se ligaria
aos métodos das artes anteriores. Vimos que para o autor florentino, a unidade cívica
possibilitada pela gerência do jogo de forças opostos, se aproxima do que Foucault
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considera seu conceito de poder. É na relação desses opostos que surgiu a possibilidade
de criar boas leis que regerão a sociedade naquele momento em que ela necessitou desse
saber, dessa estratificação de lei que conteria aquele específico momento.
Outro fator importante que pode ser analisado a partir dos dois autores é a
possibilidade de pensar o poder não mais aliado unicamente à ideia de soberania, visto
que para ambos os filósofos, o jogo de forças que permite a ação positiva do poder se dá
numa ação conjunta, transpessoal. Para Maquiavel: na contenção dos humores pelo
príncipe que rege, e, para Foucault: nas reciprocidades encontradas nos diferentes pontos
articuladas pelos mecanismos que possibilitaram as estratificações de saberes. Em
nenhum entendemos o movimento do poder restrito numa ação vertical, mas numa trama
de relações necessárias e inerentes à sociedade.
Percebemos em ambos os autores a possibilidade de entender a arquitetura do
governo pelo estudo da história ocidental, desse estudo, podemos ver que os dois
filósofos provocaram uma inversão do pensamento mobilizado por toda teoria do
conhecimento refletida na forma de ordenamento da sociedade. De um lado, Maquiavel
monta todo seu arcabouço teórico movimentado pelo seu território (Florença)
desterritorializando-se para achar uma teoria que visse nos equívocos de Roma uma
sinonímia com as tensões políticas de Florença, mostrando que numa espécie de jogo de
forças podemos compreender a possibilidade de um ordenamento momentâneo que se
desprende de qualquer imperativo. Do outro lado, vemos Foucault com sua teoria do
poder que também é compreendida nesse jogo de forças que estratificam saberes e
identificam aquilo que possibilita uma espécie de cientificidade entendida no que ele
chama de dispositivos. E que, também, é desprendido dos imperativos elaborados na
formação do conhecimento no ocidente, ou seja, no enaltecimento de uma filosofia que
pressupõe um ponto de partida incondicional que sustentaria todas as artes de governo.
Esses fatores, penso, é o que possibilita uma articulação entre as ideias desses
autores de momentos tão diferentes. Autores que tiveram suas ideias fora de uma
linearidade histórica e que se mantiveram atuais até mesmo para o que ainda possa vir
enquanto arte de governo.
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Referências:
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro,
Edições Graal, 1988.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Organização e tradução de Roberto Machado.
Rio de Janeiro, Edições Graal, 1979.
MAQUIAVEL, Nicolau. Discursos sobre a Primeira Década de Tito Lívio. São Paulo,
Martins Fontes, 2007.
MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo, Hedra, 2009.
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O DESENVOLVIMENTO DE UMA ÉTICA AMBIENTAL SEGUNDO
PETER SINGER – Victor Mateus Gubert Teo
UNICENTRO/ PET Filosofia
[email protected]
Resumo: O presente trabalho busca apresentar, de forma breve, a corrente ética concebida por
Peter Singer, visto as inúmeras discussões acerca de uma ética ambiental coerente com a
realidade dos dias atuais. Com a intenção de se compreender a ética concebida por Peter
Singer, deve-se fazer uma abordagem de porquê o interesse fornece uma base segura para que
se formule uma ética universal, em seguida abordar-se-á o conceito de pessoa, para que se
chegue a ampliação do circulo moral, através do princípio de igual consideração de interesses
semelhantes. Desta forma, o autor sugere uma abrangência do circulo moral, afim de estender
sua ética a todos os seres que habitam a terra.
Palavras-chave: Peter Singer. Bioética. Ética Ambiental.
Para que se compreenda a ética que Peter Singer formula e, como, a partir desta
ética se amplia o circulo moral, torna-se necessário esclarecer o conceito de pessoa, que
advém de uma separação do sentido da palavra ser humano; primeiro, o ser humano é
aquele que apresenta características biológicas da especie Homo Sapiens; segundo, o ser
humano é entendido como ser que apresenta indicadores de humanidade, por indicadores
de humanidade Singer compactua com uso do termo de Joseph Fletcher, teólogo
protestante e estudante de ética, e entende que todo ser humano deve possuir
“consciência de si, autocontrole, senso de futuro e passado, capacidade de relacionar -se
com os outros, preocupação com os outros, comunicação e curiosidade”. 1
Analisando esta afirmação nota-se que os sentidos de “ser humano” se
equivalem, mas não coincidem. Desta forma, Singer propõe que: ser humano denomine
os indivíduos pertencentes a espécie Homo Sapiens e que pessoa denomine indivíduos
que apresentem indicadores de humanidade. Esta concepção de pessoa é empregada por
John Locke e é na obra deste que Singer encontrará sustentação para sua definição de
pessoa, baseado em indicadores de humanidade. De acordo com Locke pessoa é “um ser
inteligente e pensante dotado de razão e reflexão e que pode considerar-se a si mesmo
1
Singer, p.96, 2002.
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como aquilo que é, a mesma coisa pensante, em diferentes momentos e lugares” 2. Podese perceber que essa definição elege duas características intrínsecas ao conceito, são
elas: a racionalidade e a autoconsciência. A partir disso e, tendo em vista os dois
sentidos atribuídos a ser humano, Peter Singer compreende que nem todo membro da
espécie Homo Sapiens acumula características da racionalidade e da autoconsciência, ou
seja, existem dentro da nossa espécie indivíduos que não são pessoas. Singer então,
propõe que, uma vez encontradas em indivíduos de outras espécies as características
de racionalidade e autoconsciência, tais indivíduos podem ser entendidos como pessoa,
mesmo que sejam não humanas.
Para que estes seres que apresentam indicadores de humanidade sejam
abrangidos pelo círculo moral do referido autor, eles devem possuir, além de
características que os considerem pessoas, um interesse comum a todos os indivíduos
dessa comunidade moral, e é em decorrência disso que Singer expõe o princípio de igual
consideração de interesses semelhantes.
Para explicar o princípio de igual consideração de interesses semelhantes Peter
Singer afirma que os conceitos éticos trazidos até os dias atuais, não dão conta de
abranger toda a comunidade humana. Pode-se observar esta falha, por exemplo, na teoria
de justiça de John Ralws, que tenta abranger o todo e, peca por menosprezar os interesses
de alguns indivíduos humanos. E é em decorrência disso que Singer busca algo que seja
compartilhado por todos os seres humanos, afim de formular uma ética ambiental. O
autor afirma que “[...] um interesse é sempre um interesse, seja lá de quem for esse
interesse” 3, e essa ideia de interesse é algo comum a toda a humanidade. Uma ética
baseada na questão do interesse seria possível? Singer acredita que sim, e discorre sobre
a relevância de levar os interesses em consideração relembrando o primeiro capítulo do
seu livro Ética Prática, que versa sobre a universalidade da ética.
[...] vimos que, ao fazer um juízo ético, devo ir além do ponto de vista pessoal ou
grupal, e levar em consideração os interesses de todos os que forem afetados por
eles. Isso significa que refletimos sobre os interesses, e não como meus interesses,
ou como os interesses dos australianos ou de pessoas com descendência europeia.
2
3
Locke, 1986, p. 318.
Singer, p.30, 2002.
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Isso nos proporciona um princípio básico de igualdade: o princípio de igual
consideração de interesses.4
Quando se fala em igual consideração de interesses, leva-se em conta todos os
interesses dos que são afetados pelas deliberações morais humanas. Desta forma, não se
hierarquiza o valor de cada individuo, delibera-se conforme o interesse dos mesmos.
Assim Singer discorre sobre a necessidade de se levar em conta os interesses de todos os
seres que são abrangidos pelo seu círculo moral.
O argumento para estender o princípio de igualdade além de nossa própria espécie é
simples, tão simples que não requer mais do que uma clara compreensão da natureza
do princípio de igual consideração de interesses. Como já vimos, esse princípio
implica que a nossa preocupação com os outros não deve depender de como são, ou
das aptidões que possuem (muito embora o que essa preocupação exige
precisamente que façamos possa variar, conforme as características dos que são
afetados por nossas ações). É com base nisso que podemos afirmar que o fato de
algumas pessoas não serem membros de nossa raça não nos dá o direito de explorálas e, da mesma forma, que o fato de algumas pessoas serem menos inteligentes que
outras não significa que os interesses possam ser colocados em segundo plano. 5
Sônia T. Felipe, concorda com Peter Singer e afirma que: “o princípio de igual
consideração de interesses semelhantes, ordena considerar igualmente interesses
semelhantes, independentes da aparência biológica dos sujeitos desses interesses” 6. No
entanto, deve-se encontrar agora um interesse específico que seja compartilhado por toda
a comunidade humana, afim de justificar esta ética universal baseada no utilitarismo 7.
Peter Singer elege o interesse de indesejabilidade da dor, considerando que todo
ser que possui um sistema nervoso central, ou seja, que possua a capacidade de sentir
prazer ou dor, sempre prefere sentir prazer ao invés de dor. O autor delimita desta forma
seu circulo moral, abrangendo somente seres sencientes, possuidores de um sistema
nervoso central. A opção por fundamentar a abrangência do circulo moral no principio de
igual consideração de interesses faz com que, de acordo com Singer, um maior número
4
Idem, ibidem.
Singer, p. 67. 2006.
6
Felipe, Sônia T., p.11-12, 2006.
7
A ética de Singer é considerada utilitarista por pautar-se na ideia que a igual consideração de interesse funciona
como uma balança, pesando imparcialmente os interesses. “As verdadeiras balanças favorecem o lado em que o
interesse é mais forte, ou em que vários interesses se combinam para exceder em peso um menor número de
interesses semelhantes; mas não levam em consideração quais interesses estão pesando” (Singer, p.31, 2002).
5
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de indivíduos humanos sejam contemplados por este círculo. Nota-se que a ética
concebida pelo autor, abrange todos os seres humanos, não menosprezando assim, os
interesses de nenhum indivíduo da espécie homo sapiens, pois como visto no capítulo
anterior, as teorias éticas apresentadas, pecavam neste aspecto. Nesse sentido a proposta
do autor apresenta-se positiva, pois exclui juízos éticos baseados em comportamentos
racistas, sexistas e inclui fetos, bebês e pessoas com sérias deficiências mentais.
Felipe assegura que o princípio formulado por Singer através da senciência e que
leva em consideração o interesse, pode ser uma base segura para formular juízos éticos.
Com base na senciência, Singer estabelece o princípio ético que deve orientar as
decisões e ações de sujeitos morais: o da igual consideração de interesses
semelhantes. Esse princípio de igualdade, tem, para Singer, validade universal, pois
aplica-se à proteção de todos os seres sencientes. A integridade de um ser senciente
não pode ser violada em favor dos interesses de quaisquer outros seres, sencientes
ou não. Interesses sencientes são da mesma ordem. Violar uns, para beneficiar
outros, é discriminar uns, em favor de outros. 8
Singer sofre várias críticas sobre a formulação do seu princípio, apesar disso o
filósofo argumenta:
O princípio de igual consideração de interesses é tido, às vezes como um princípio
puramente formal, desprovido de substância e demasiado fraco para excluir uma
prática não igualitária. Já vimos, porém, que ele exclui o racismo e o sexismo, pelo
menos em suas formas mais extravagantes. Se examinarmos o impacto do princípio
na sociedade hierárquica imaginária baseada em testes de inteligência, poderemos
ver que ele é forte o bastante para proporcionar uma base que permita rejeitar
também essa forma mais sofisticada de não igualitarismo.9
E complementa afirmando que “[...] esse princípio é um princípio mínimo de
igualdade, e não um princípio igualitário perfeito e consumado. Contudo a forma mais
consumada de igualitarismo seria difícil de justificar, tanto em termos gerais quanto em
sua aplicação a casos especiais[...]” 10.
Para ampliar o círculo moral, Peter Singer reforça que nenhum juízo ético deve
levar em consideração o próprio ponto de vista, dessa forma, o princípio que determina a
forma de agir de um sujeito moral deve ser aceito por outro que esteja em condições
8
Felipe, Sônia T. p.107. 2006.
Singer, p.31-32, 2002.
10
Idem, p.34-35, 2002.
9
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semelhantes ao primeiro. Considerando que o princípio que norteia o juízo ético deve ser
aplicável à diferentes seres em condições semelhantes, Singer apresenta a possibilidade,
como já dito acima, de ampliação da comunidade moral
através
da
utilização do
principio da igual consideração de interesses semelhantes. Nesse sentido, considerando
que tanto animais quanto seres humanos são capazes, ainda que de forma distinta, de
sentir prazer e dor e, que isso é uma condição prévia para se ter um interesse comum,
uma ação realmente ética tem de levar em consideração que, mesmo sendo seres
diferentes, ambos tem interesses semelhantes, pois tanto os seres humanos como os
animais não humanos preferem sentir prazer e não dor.
Peter Singer ainda afirma que animais não-humanos e seres humanos não são
iguais. "Em nenhum momento, Singer afirma que animais e humanos são iguais, apenas
que alguns interesses de humanos e de animais são semelhantes e, por isso, devem ser
tratados igualitariamente na ética, sem levar em conta cor, raça, seres ou espécie" 11. Spica
acredita que o que Singer pretende ao afirmar que animais não-humanos e seres humanos
não são iguais é que, uma vez que, homens e animais tem o mesmo interesse, esses
interesses devem ser tratado, no campo da ética, da mesma maneira.
Afirmei agora que, ao mesmo tempo que esse princípio proporciona uma base
adequada para a igualdade humana, essa base não pode ficar restrita aos seres
humanos [...] vou sugerir que, tendo aceito o princípio de igualdade como uma
sólida base moral para as relações com outros seres de nossa própria espécie,
também somos obrigados a aceitá-la como uma sólida base moral para relações com
aqueles que não pertencem à nossa espécie: os animais não-humanos12.
O interesse, comum sugerido pelo autor, é o da indesejabilidade da dor e, é a
partir de ideias como sofrimento, prazer e dor que o autor inclui animais sencientes no
circulo moral, sem deixar de lado, no entanto, a afirmação que ele comunga com Locke,
de que alguns animais sencientes e pessoas não são a mesma coisa, já que a pessoa é
capaz de se perceber no futuro, ela prefere viver e, por isso sua vida ganha um valor
intrínseco. Este desejo pode se encontrar apenas em animais que tem consciência de si. 13
11
Spica, p. 225, 2004.
Singer, p.65, 2002.
13
Singer cita algumas experiências com chipanzés e gorilas que demonstram ter conhecimento de si mesmo, e
apresentam senso de futuro e passado.
12
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Percebe-se com isso, que para Singer somente a vida de pessoas com consciência de si é
insubstituível.
É evidente que uma teoria como essa não poderia passar despercebida, uma vez
que, de certa maneira acaba, com nosso isolamento e mexe com as estruturas e nossa
possível superioridade. O próprio Singer nos alerta que há muito a ciência vem
mostrando que o limite entre nós e outras espécies é bastante tênue e, de certa forma,
fruto de um acidente. Além disso, de acordo com Singer nossa estranheza em relação a
essa teoria é explicável e se dá pelo fato de que nós, enquanto espécie, temos por hábito
nos mantermos afastados de outras espécies.
Peter Singer pretende com sua teoria alargar a visão que se tem de ética,
deslocando o foco, antes voltado unicamente para o homem. Baseado no princípio de
igual consideração de interesses semelhantes ele concebe que seres sencientes podem
e devem ser inclusos na comunidade moral. Assim é a ideia de interesse que deve pautar
toda a ética. Como visto acima, dentro ética de Singer é possível estabelecer uma
diferenciação entre animais sencientes possuidores de interesse e pessoas que possuam,
além de interesses, uma vida com valor intrínseco. A ética que Peter Singer propõe é
extremamente pertinente se for levada em consideração o elevado número de discussões
que vêm se desenvolvendo tendo como temática a relação homem ambiente/seres vivos,
visto que ela consegue abarcar todas as formas de vida que possibilitam o
desenvolvimento humano.
Com o desenvolvimento de sua corrente a ética, Peter Singer, procura evidenciar
que existe um interesse comum a todos os seres humanos, e que esse interesse é
compartilhado tanto por seres humanos como não-humanos. Desta forma, os ecossistemas
que possibilitam a vida destes seres, são abrangidos por sua teoria, já que as ações dos
homens interferem diretamente na disposição da vida natural, alterando o habitat de todos
os seres terrestres. Pode-se perceber que Singer ao mesmo tempo em que amplia o círculo
moral, o delimita conceitualmente, uma vez que para ele, só participam do circulo moral
aqueles seres que possuem a capacidade de sentir prazer e dor, ou seja, seres sencientes.
Ainda o autor afirma que a única vida que possui valor em si, é a vida humana p ois:
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Não é uma arbitrariedade afirmar que a vida de um ser autoconsciente, capaz de
pensamento abstrato, de planejar o futuro, de ações complexas de comunicação e
assim por diante, é mais valiosa do que a vida de um ser que não possua essas
capacidades.14
O que Peter Singer oferece é uma nova possibilidade de pensar essa relação, de
uma forma que os seres humanos entendam que tratar de interesses semelhantes de forma
diferente, somente porque alguns desses interesses são da nossa espécie é no mínimo
incoerente. No mais, a ética concebida pelo autor não se caracteriza como um
extremismo, podendo ser tratada de uma forma relativamente tranquila, e mais, podendo
ser cobrada, já que ao que parece Singer considera, em seus estudos, a atual capacidade
humana de agir de acordo com essa possível ética.
Referências:
FELIPE, Sônia T. “Da Considerabilidade Moral dos Seres Vivos: a bioética ambiental de
Kenneth E. Goodpaster”. Ethic@ 5, Florianópolis 2006b, p. 105-118.
_______, Sônia T. “Por uma questão de Justiça Ambiental. Perspectivas Críticas à Teoria de
John Rawls”. Ethic@ 5, n.3, Florianópolis 2006b, p. 05-31.
LOCKE, J. 1986. Ensayo sobre el entendimiento humano. México, Fondo de Cultura
Económica.
SINGER, Peter. Ética Prática. 3°. ed. São Paulo: Martins Fonte, 2002.
_______, Peter. Libertação Animal. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010.
SPICA. Marciano, A. “Do Valor da Vida, dos Interesses, Do Sujeito”. Ethic@ 3, n.3,
Florianópolis 2006b, p. 223-237.
14
Singer, p.32, cap. 1, 2010.
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O DIÁLOGO COMO UM INSTRUMENTO DE APRENDIZADO:
POSSIBILIDADES PARA UM ENSINO DE FILOSOFIA – Cosmo Rafael Gonzatto
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Resumo: A passagem de um modelo de ensino denominado tradicional para o progressista ou
escola nova, trouxe algumas dificuldades quanto a metodologia de ensino usada pelos
professores dentro da sala de aula. Nesse sentido o texto se propõe a refletir sobre um modelo
educacional de filosofia em que seja possível desenvolver o aprendizado através do dialogo.
O texto foi divido em duas partes: na primeira falaremos de como pode se tornar possível
ensinar através de uma prática investigativa dialógica. E na segunda parte mostraremos de que
maneira o tema ao ser analisado e a partir das ideias de Lipman como o filósofo pode ajudar a
contribuir para a prática docente.
Palavras-chave: Diálogo. Filosofia. Lipman.
Introdução
Nos últimos anos a sala de aula tornou-se objeto do surgimento de diversos
modelos educacionais, cada um apresentando uma característica própria em relação ao
ensino-aprendizagem entre professor e aluno. Atualmente, com a passagem de um
modelo educacional denominado tradicional para um modelo crítico possibilitou o
surgimento de novas metodologias de ensino dentro da sala de aula.
Com base nessa perspectiva, o presente texto tem como principal objetivo
contextualizar um modelo educacional de filosofia em que seja possível desenvolver a
relação entre conhecer e aprender através de uma prática investigativa ancorada pelo
diálogo.
Tomando como base o atual cenário educacional, em que muitos dos nossos
educadores estão desatualizados ou até mesmo acostumados a repetir sempre os mesmos
hábitos, os quais carregam em sua prática educacional uma forte influência do modelo
educacional tradicional de ensino, surge a seguinte problemática: como é possível fazer
da sala de aula um local onde os alunos possam aprender através do diálogo? Quais
metodologias de ensino o professor deve usar para despertar nas aulas de filosofia nos
alunos o interesse pelo conteúdo? É possível ensinar sem levar em consideração toda
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aquela transmissão de conhecimento que era a principal característica da escola
tradicional? Se possível, que metodologia deve ser essa?
Tentando dar conta das perguntas apresentadas, o texto foi divido em duas
partes: na primeira falaremos de como pode se tornar possível ensinar através de uma
prática investigativa dialógica. E na segunda parte mostraremos de que maneira o tema
ao ser analisado e a partir das ideias de Lipman como o filósofo pode ajudar a contribuir
para a prática docente.
O conceito de diálogo na sala de aula
Infelizmente as relações atuais com o saber nas escolas estão muito vinculadas
ao acúmulo de conhecimentos que o educando recebe do seu professor, do que com a
construção desse saber que ele deveria desenvolver no decorrer das suas relações
interpessoais, tanto no âmbito escolar como fora dele. Nesse sentido, pergunta-se: que
metodologia de ensino seria possível para dar conta de tal problema no processo de
aprendizado?
Segundo Tonieto, para Lipman existem dois paradigmas opostos da prática
educativa: o paradigma padrão da prática normal e o paradigma reflexivo da prática
crítica. No primeiro, paradigma compreendemos a prática educativa como uma
transmissão de conhecimentos, o conhecimento que já está pronto ou elaborado é
transmitido do educador para o educando. Essa transmissão do conhecimento se dá como
algo acabado e pronto, e que não precisa ser explicado ao aluno. Portanto, cada disciplina
fica responsável por uma parte do conhecimento que deve ser transmitido aos alunos, os
quais têm como única função absorver esses conhecimentos que lhe são transferidos.
O paradigma reflexivo é caracterizado pela participação dos educandos nas
chamadas comunidades de investigação, as quais são orientadas pelos educadores. Nessa
comunidade de investigação os alunos são estimulados através do seu educador a
pensarem sobre o seu próprio conhecimento e suas compreensões de mundo. Os
conteúdos das disciplinas deixam de ser pensados como algo a ser dado ou transmitido,
para algo que possa ser investigado através de problemas.
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Podemos dizer, então, que as diferenças existentes entre esses dois paradigmas
nos ajudam a pensar as condições necessárias para dar conta dos problemas encontrados
no atual cenário educacional. Uma nova elaboração do processo educacional, que tenha
como base o paradigma reflexivo, e que possua como principal característica dentro da
sua metodologia de ensino o diálogo.
Nesse sentido, “a defesa de uma prática dialógica em sala de aula não é nenhuma
novidade em educação, pois muito se fala sobre isso, porém pouco se faz” (TONIETO,
2007, p. 21). Dessa forma, o que seria uma educação baseada em um processo
investigativo dialógico?
O modelo educacional organizado de acordo com o paradigma padrão pouco
incentiva os alunos a pensarem, e a solução dos problemas apresentados se preocupa
apenas com o produto final, o qual previamente é dado como pronto. Impossibilitando
assim, que os alunos possam ser incentivados a investigar, e a sala de aula se torna um
local de pouco interesse dos mesmos pelo conteúdo. Ao pensar a educação dentro do
paradigma reflexivo, a educação agora não pode mais ter como única preocupação o
produto acabado, mas sim o processo de investigação.
Para que seja possível, essa prática dentro da sala de aula deve ser deixado de
lado o paradigma-padrão, e substituí-lo pelo paradigma da comunidade de investigação.
Essa expressão “comunidade de investigação” foi usada pelo filósofo pragamatista
Charles Sanders Peirce para designar um grupo de cientistas envolvidos numa mesma
investigação. Os cientistas trabalham em grupo levantando hipóteses para tentar
solucionar problemas.
A investigação para Peirce surge com a inquietação diante de um problema. Esse
problema passa a ser questionado e investigado para se poder dar início a sua solução.
Esses problemas não surgem do nada, eles fazem parte do nosso cotidiano, são as nossas
crenças. Então investigamos uma crença que estamos em dúvida para se poder
estabelecer uma nova crença sobre ela. Mas, a comunidade de investigação nunca cessa,
as crenças que hoje são reconhecidas como verdadeiras, amanhã poderão ser substituídas
por outras. A comunidade de investigação não existe por si própria, ela depende da
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opinião de todos que compartilham essas crenças, pois é a soma de todos esses indivíduos
que compartilham essas crenças que proporcionará um resultado.
Mas para que essa comunidade possa existir e se manter firme, é necessário que
exista um conjunto de regras que as possam manter em ordem. “A comunidade, nesse
sentido, não é algo imposto como modelo de organização, mas algo construído e
experienciado pelos participantes no decorrer da investigação” (TONIETO, 2007, p. 29).
Porém, a comunidade não se sustenta pela ausência de regras, as mesmas devem ser
elaboradas e discutidas conforme as experiências são vivenciadas no decorrer do seu
funcionamento. Tanto os resultados obtidos, como as regras estabelecidas podem ser
questionadas e substituídas para melhor manter o funcionamento da comunidade. A
comunidade de investigação é caracterizada pelo diálogo, e, ao contrário do que muitos
acreditam, é o diálogo que possibilita à reflexão. “É por meio do diálogo que se torna
possível o desenvolvimento do raciocínio e da capacidade de argumentação regradas pela
lógica, assim como a investigação sobre problemas que nos interessam enquanto seres
humanos” (TONIETO, 2007, p. 31). Durante uma discussão filosófica os participantes
devem pensar sobre o seu próprio pensamento, sobre o pensamento do outro,
desenvolvendo assim outras habilidades cognitivas, portanto pode se dizer que o diálogo
dentro de uma comunidade de investigação ajuda a desenvolver um pensamento de ordem
superior.
Novas possibilidades de aprendizado através do diálogo
O ensino de filosofia nas últimas décadas tem ficado bastante restrito as
universidades ou a uma pequena parcela de uma classe econômica social mais elevada da
qual podiam ter acesso a ela através das redes privadas de educação. Nesse sentido,
estudar filosofia ficou restrito a estudo dos conceitos filosóficos de determinados
filósofos dentro de uma universidade, o que acabou por tornar o ensino de filosofia para
crianças e adolescentes desnecessário.
Tentando dar conta dos problemas expostos, tentaremos resgatar nessa parte do
texto a importância do ensino da filosofia entre as crianças e defender a prática do
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mesmo através do uso do diálogo, devolvendo assim a filosofia aquele espírito socrático
que ela possui e a oportunidade de estar ao alcance de todos. Portanto, cabe agora ao
professor conseguir através do diálogo, desenvolver estratégias que possibilitem às
demais alunas conseguir investigar o problema proposto, e chegar a um conceito comum
sobre o tema. E como fazer isso?
É importante criar um ambiente propício à prática do diálogo. O professor deve
usar estratégias que facilitem o aprendizado na sala de aula. Deve tentar envolver os
alunos através do diálogo numa prática de investigação acerca do problema proposto.
Para que isso possa ter bons resultados é importante que o educador observe os cinco
passos de uma aula de filosofia elaborados por Kohan. Tais passos podem auxiliar o
professor a conduzir uma aula de filosofia por meio do diálogo investigativo. Muitos
educadores, por não conseguirem dar conta dessa proposta, não conseguem compreender
o diálogo como sinônimo de aprendizado. Para alguns deles é sinônimo de desobediência,
de baderna, de desorganização dentro da sala de aula. Pois, é bastante complicado
conseguir sair de um paradigma educacional em que os alunos ficam todos quietos
ouvindo o que professor tem a ensinar e começam a ser os sujeitos ativos da construção
do seu próprio conhecimento. Ao contrario do que pensam muitos desses educadores o
diálogo é um forte instrumento que pode auxiliar no processo de aprendizagem dos
alunos. Quando bem utilizado ajuda nesses impulsos saudáveis que os alunos possuem e
que precisam ser organizados cuidadosamente.
Como educador é importante salientar a importância de alguns aspectos que
devem ser tomados como prioridade dentro de uma comunidade de investigação.
Devemos ter consciência da individualidade, da própria linguagem, bagagem cultural que
cada educando traz para dentro da sala de aula. Pois é através dessas suas
individualidades que, quando colocadas junto com as demais no coletivo, nos ajudarão a
pensar as respostas para as questões que estão sendo investigadas.
Outro aspecto importante, que ainda deve ser observado, dentro de uma
comunidade de investigação é a diferença entre diálogo e conversação. Através da
conversação, os educandos apresentando as suas opiniões a respeito de um determinado
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assunto, não levando em consideração as suas capacidades argumentativas , mas apenas
querendo defender o seu ponto de vista através de uma opinião pessoal.
No diálogo acontece o contrário, os envolvidos desejam investigar os problemas
e formular regras para a conduta humana através de critérios lógicos, desenvolvendo um
raciocínio com argumentos coerentes e justificáveis que possam ser aceito diante dos
critérios elaborados na comunidade de investigação, lembrando que essas opiniões feitas
dentro da comunidade devem ir além de preconceitos e opiniões pessoais.
A investigação dentro da sala de aula deve nos permitir avançar em questões que
antes de se iniciar o diálogo pareciam simplesmente questões aceitáveis, mas que agora
passam a ter um caráter problemático, buscando assim o questionamento e a investigação
das mesmas até nos levar a uma conclusão. É através do diálogo que podemos dar conta
desses problemas que são apresentados em sala de aula, pois na medida em que eles
começam a ser investigados, cada argumento é colocado em confronto com os demais,
provocando assim um impulso para o outro, até se poder chegar a conclusão de uma
investigação. Dentro de uma conversação não existe desenvolvimento, esse movimento
progressista que possibilita o desenvolvimento da investigação. Em uma conversação
aqueles que participam ficam presos a ela, submetidos a essas simples respostas de
caráter pessoal que os participantes carregam em si sustentando informações e que
impossibilita esse movimento. Na conversação temos um elo de cooperação que liga os
participantes, enquanto que no diálogo é um exame, uma investigação, um
questionamento, o que exige dos participantes que eles estejam dispostos a tentar resolver
os problemas em questão.
Portanto, através desse breve esclarecimento tentamos apresentar a diferença
entre discussão e diálogo. A discussão pode ocorrer por si própria, como pode estar em
um diálogo, só que quando se tem apenas uma discussão não temos a investigação em
sala de aula, é preciso do dialogo para que isso possa acontecer. “A discussão orientada
dialogicamente caracteriza-se pelo confronto de ideias e pensamentos, ao passo que a
discussão orientada pela conversa é apenas uma disputa entre opiniões com o objetivo da
persuasão” (TONIETO, 2007, p. 35). Devemos, ter cuidado em uma discussão dialógica
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com as respostas que são produzidas no decorrer do seu processo e com aquilo que
alguns educadores gostariam que essas respostas chegassem, ou seja, esse debate pode
muitas vezes ser direcionado a um resultado que o professor deseja de antemão ou pode
ser o fruto das ideias oriundas do debate.
Mas, isso não quer dizer que a discussão
filosófica não necessite de um mediador, de alguém que ajude a orientar esse diálogo.
Pelo contrário, é necessário, pois o mediador será aquele que ficará de responsável para
que não aconteçam opiniões contraditórias, incoerências nas falas e que se não se perca o
foco da discussão. O mediador solicitará aos educando que de exemplos para justificar a
sua opinião, ele ajudará a estabelecer critérios de julgamento e raciocínio.
Considerações finais
Pelo exposto, conceitualizamos o atual cenário educacional a partir de uma
perspectiva de Lipman sobre a educação. Na primeira parte caracterizamos o atual
cenário educacional a partir de dois modelos classificados por Lipman: o paradigma
padrão da prática normal e o paradigma reflexivo da prática crítica. Negando o
paradigma padrão, passamos a substituí-lo pelo paradigma da comunidade de
investigação como base para o processo de aprendizado dentro da sala de aula. Na
segunda parte mostramos a importância do diálogo investigativo dentro de uma
comunidade de investigação como processo de aprendizado. Fizemos uma breve analise
do atual cenario educacional relacionando com os conceitos de Lipman.
Educar através do diálogo possibilita aos educandos que eles possam aprender a
fazer o uso das suas habilidades cognitivas, aprender a organizar a sua própria
experiência, para que através dela possam usar como aprendizado. A educação agora
deixa de ser a transmissão do conhecimento do mundo adulto, para a investigação
dialógica dos problemas que afetam o mundo das crianças, levando em consideração os
conhecimentos que elas possuem e que passam a ser abordados com um caráter
problemático.
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Referências:
FÁVERO, Altair A; CASAGRANDA, Edison A. Diálogo e Aprendizagem: orientações
teórico-metodológicas do ensino de filosofia com crianças. In: A filosofia com crianças e o
diálogo como princípio educativo. 3 ed. Passo Fundo: Clio, 2004. p. 39-65
FÁVERO, Alcemira Maria (org); Diálogo & investigação: perspectivas de uma educação
para o pensar In: A prática dialógica na comunidade de investigação: possibilidades de uma
educação para o pensar. Passo Fundo: Méritos, 2007. p. 19-43
KOHAN, Walter O (org); WAKSMAN (org), Vera. Filosofia para Crianças na Prática
Escolar. Petrópolis: Editora Vozes, 2000.
LIPMAN, Matthew. A Filosofia vai à Escola. São Paulo: Summus, 1990.
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O FUNDAMENTO DA MORALIDADE EM HUME VEM DO SENTIMENTO
OU DA RAZÃO? – Luana Pagno
Universidade Federal da Fronteira Sul
[email protected]
Resumo: O presente artigo irá demonstrar alguns elementos da filosofia moral de David Hume
procurando esclarecer o fundamento da moralidade. Desta forma, através de uma interpretação dos
principios gerais da moral embasados na obra do filósofo, procurou se fazer uma interpretação se é o
sentimento ou se é a razão que infere no momento de considerar determinada ação ou qualidade boa
ou ruim, e em que medida elas inferem, segundo a concepção moral de Hume. Assim o artigo irá
demosntrar a argumentação do filósofo para chegar a conclusão e quais os pontos positivos desta
teoria moral.
Palavras-chave: Moralidade. Sentimento. Razão. Decisão. Dever.
Introdução
A questão da moral é estudada desde os primórdios e atualmente ainda é algo
problemático para a filosofia. A filosofia antiga, tendo a influência de Deuses poderosos
teve sua teoria moral embasada no seu contexto histórico se assegurando nas poesisas
homéricas e em outros aspectos religiosos (crenças) que influênciaram muito as teorias
morais da época. Já a filosofia moderna muito marcada pelo desenvolvimento das
ciências, não foi limitada pela religião mas teve um grande envolvimento da razão.
David Hume (1711-1776), filósofo, ensaísta e hitoriador moderno de origem inglesa,
percursor da tradição empirista, procurou valorizar as capacidades de entendimento do
ser humano tanto para definição do conhecimento de objetos exteriores tanto para julgar
práticas morais, foi grande influência para a filosofia moderna justamente pelas suas
obras que foram grande marco para filosofia empirista. A obra que serviu-se de base para
este artigo foi "Investigações sobre os princípios da moral" (2004).
O fundamento da moralidade faz menção àquilo que serve de base para julgar
oque é chamado de certo e oque é chamado de errado, ou seja qual o fundamento que é
utilizado para tratar do que é moral ou não, essa é o problema encontrado por Hume ao
estudar os princípios morais, a derivação dos mesmos. Ao fazer essa investigação, a
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primeira questão proposta por Hume é saber se os princípios morais derivam da razão ou
do sentimento. Se derivam do sentimento esses princípios seriam fundamentados em um
sentido interno uma sensação imediata que temos anteriormente das nossas atitudes, ma s
se derivam da razão então são julgados através da inteligência, da argumentação, de
induções e etc. Ou seja a grande questão que se trata aqui é saber se aquilo que julga o
que é certo ou errado é ensinado pela educação e ai julgado pela inteligência ou se é algo
interno em nós que provém da natureza humana, neste caso o sentimento interior.
A razão pode estabelecer fundamentos da moral?
Ao fazer o estudo sobre o contexto histórico da filsofia moral, Hume percebe que
ao longo do tempo houve muitas contradições entre teorias modernas e antigas, disputas,
discussões, analogias, sobre as distinções morais, sendo assim, o filósofo procura
explicar que se as distinções morais foram julgadas ao longo do tempo, elas foram
julgadas justamente por que continham nelas algo de verdadeiro, que a razão tem
capacidade de julgar. Hume pensa que só se pode disputar sobre a verdade e não sobre o
gosto. Assim o filósofo afirma “oque existe na natureza das coisas é a norma de nosso
julgamento, mas a norma do sentimento é o que cada pessoa sente dentro de si”(HUME,
2004 ,p.227). Ou seja o dicernimento dos fundamentos da moral pode ser percebido pela
razão, visto que ao longo do tempo as distinções morais foram disputadas no campo da
racionalidade, e enquanto ao sentimento, me parece que o sentimento para Hume, em
primeira instância, limita-se ao que cada qual sente no interior de si e por isso não pode
ser qualificado para julgar atos morais ou imorais. Porém, isso gera um novo problema,
pois o filósofo reconhece que algumas coisas são próprias da natureza das virtudes e
outras próprias da natureza do ódio, logo fica dificultoso definir que a razão julga se algo
é virtuoso ou não, ja que isso é próprio da natureza desses conceitos, por exemplo ser
amável é qualidade da virtude.
Então como poderia a razão qualificar previamente que determinado objeto
produza amor ou produza ódio?
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A importância do sentimento
Prosseguindo a especulação, aparece a importãncia do sentimento. No decorrer
da seção 1 Hume explica que a finalidade de toda especulação moral é ensinar-nos nosso
dever. Esse dever é tido pelas representações que temos dos resultados de virtudes e de
vícios, e que pelo hábito nos faz aceitar melhor as virtudes do que os vícios. É importante
salientar aqui que para Hume é próprio da natureza do ser humano buscar a felicidade, e
que a felicidade é alcançada pela virtude e não pelo vício, o reconhecimento de que algo
é bom ou ruim está no nosso sentimento de aprovar ou não determinado fato, e quando
explica que pelos hábitos aceitamos melhor as virtudes, refere-se às experiências que nos
fizeram felizes ou não. Assim sendo, o nosso entendimento, que podemos tratar aqui
como nossa razão, não tem controle sobre os afetos que dirigem as ações das pessoas, de
que forma pode-se esperar dele o esclarecimento das distinções morais? Ou seja o nosso
entendimento não tem como julgar ou decidir pelas nossas afeções sendo que elas tem
base no que sentimos. Assim Hume explica que as inferências e conclusões feitas pelo
entendimento “revelam verdades, mas, quando as verdades que elas revelam são
indiferentes e não engendram desejo ou aversão, elas não podem ter influência na
conduta e no comportamento” (HUME, 2004 p.228) . Assim a razão não pode julgar as
coisas sem se basear no sentimento, primeiro por que se assim fosse a razão seria como
um juízo um ato universal e não levaria em conta o que as pessoas sentem umas pelas
outras, seria uma regra imposta seguida apenas como uma obrigação e então se perderia o
verdaderio valor da moralidade em si, como o filósofo explica a moralidade não mais
guiaria nossa vida e nossas ações não teria um exercício prático apenas algo teórico não
distinguindo pelo sentimento. Para esclarecer melhor essa questão, para Hume, a esfera
do sentimento pela qual julgamos o nobre, o generoso, o decente está separa da esfera do
entendimento, a esfera do sentimento é por nós abraçada e conservada, ja a esfera do
entendimento tende através de deduções, argumentos e evidência apenas satisfazer
curiosidades.
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Razão e sentimento juntas colaboram para definir os fundamentos da moral
A conclusão que Hume chega é que tanto o sentimento como a razão tem
influência na definição do fundamento da moral. Hume explica que o julgamento que
fazemos para definir se determinadas ações são amavéis ou odiosas, boas ou ruins, se nos
trazem conforto ou não, esses julgamentos são executados a partir de um sentimento
interno natural do ser humano, e que a partir dele conseguimos definir ações que nos
causam felicidade ou não.
É provável que a sentença final que julga caracteres e ações como amáveis ou
odiosos, louváveis ou reprensíveis; aquilo que lhes impõe a marca da honra e da
infâmia da aprovação ou da censura, aquilo que torna a moralidade um principio
ativo e faz da virtude nossa felicidade e do vício nossa miséria- é provavel, eu dizia,
que essa sentaça se apoie em algum sentido interno ou sensação que a natureza
tornou universal na espécie inteira. (HUME, 2004,p.229)
Mas qual o papel da razão? A razão esta relacionada com o caminho como
chegamos nesse sentimento e como o preparamos para julgar as ações, desta forma, pode
ser que em muitos casos o afeto venha antes e depois é julgado pela razão, mas em outros
casos, como o da moral é preciso análisa-lo racionalmente antes para depois expelir um
sentimento adequado, assim como Hume descreve:
Alguns tipos de beleza, especialmente a das espécies naturais, impõem-se a nosso
afeto e aprovação desde a primeria vista, e se não produzem esse efeito é impossível
que qualquer raciocínio consiga corrigir essa influência ou adaptá-las melhor ao
nosso gosto e sentimento. Mas em muitas espécies de beleza, particularmente no
caso das belas-artes, é preciso empregar muito raciocínio para experimentar o
sentimento adequado, e um falso deleite pode muitas vezes ser corrigido por
argumentos e reflexão. (HUME, 2004,p.230)
Em relação a moral, ela assemelha-se as segundas espécies de beleza acima
descritas, por que necessita de um raciocínio ou reflexão sobre determinadas ações para
influênciar a mente humana, o afeto.
Em que medida a razão e o sentimento participam nas decisões?
Após chegar a conclusão de que tanto o sentimento como a razão tem influência
na fundamentação da moral, o problema agora é definir em que medida estes participam
das decisões de aprovação e desaprovação das ações morais.
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Desta forma Hume explica que a razão pode entender o fim e a tendência das
ações, mas não pode definir censura ou aprovação das qualidades ou ações pois isso é
papel do sentimento. Portanto a razão, segundo o filósofo, pode, com embasamento em
regras morais já estabelecidas por experiências passadas decorrer se determinada ação é
boa ou ruim, mas, quem experimenta e sente a aprovação e a censura das ações é o
sentimento interno.
Para confirmar isso, Hume procura explicar que a razão quando analisa
determinado objeto, tem um entendimento total dele fazendo com ele torne -se algo
evidente, como por exemplo ao analisar um objeto com 3 lados a razão já infere que é um
triangulo, porém para fazer isso com a moral, precisa ter noção de diversas relações e
ações para aprovar ou não as coisas, e esse noção só pode ser determinada pelo
sentimento, por que é o sentimento que sente o que é bom ou ruim:
É preciso que um sentimento venha manifestar-se aqui, para estabelecer a
preferência pelas tendências úteis sobre as nocivas. Esse sentimento só pode ser um
apreciação da felicidade dos seres humanos e uma indignação perante sua desgraça,
já que esse são os diferentes fins que a virtude e o vício tem tendencia a promover.
Aqui portanto a razão nos informa sobre as diferentes tendencias das ações e a
benevolência faz uma distinção em favor das que são úteis e benéficas (HUME,
2004,p. 369).
Então visando que o objetivo das açoes e qualificações é alcançar a felicidade, o
sentimento sente-as e aprova ou censura, já a razão pode prever ou sobre oque é
verdadeiro e falso, pode mostrar meios para atingir a felicidade alcançando o sentimento
desta, mas so o sentimento pode sentir e decidir oque faz bem ou oque faz mal.
Considerações Finais
A filosofia moral de Hume, ao que parece, em nenhum momento dispensa o
sentimento ou a razão, mas tenta fazer uma conciliação dos dois procurando demosntrar
qual a participação dos mesmos na definição dos fundamentos da moral. O interessante é
que quem julga se determinada ação ou qualidade é moral ou imoral é o sentimento, mas
quem raciocínia (através de experiências passadas) sobre determinada ação é a razão que
pode ajudar o sentimento, pode definir se algo é falso ou verdadeiro e pode traçar o fim
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destas ações. O ponto interessante da filosofia de Hume é essa conciliação entre o
sentimento e a razão e a importância do hábito, da experiência. Se compararmos a
filosofia moral de Hume como o utlilitarismo de Stuart Mill, percebemos em
determinadas circustâncias que as duas tem pontos parecidos, um deles é a ideia de que
os seres humanos buscam a felicidade e outro aspecto e a base racional que há no
utilitarismo de calcular a felicidade para que alcance o maior número possível de pessoas
e a importância do sentimento perante os outros que é assegurado nas duas, e ainda a
independência de uma religião. É interessante fazer essa comparação por que de uma
forma bem discreta o utilitarismo é bem utilizado atualmente nas questões éticas, e
portanto essa conciliação entre um sentimento e a razão sendo que cada um tem seu
papel, é atualmente bem praticada nas decisões que incidem com critérios morais, deste
modo vale a pena refletir sobre certas coisas: oque é mais forte nas decisões de aprovação
e censura das ações, a razão ou o sentimento pelos outros? De que forma que poderia o
sentimento ser mais levando em conta do que a razão? Ou razão ser mais levada em conta
do que o sentimento? É algo a se discutir pois é possível ter um sentimento de aversão
sobre determinado fato, e ai ao mesmo tempo a razão pode esclarecer que determinado
fato é imoral, mas por alguma circustância pode-se agir imoralmente, logo estará se
usando mais a razão do que o sentimento de aversão. Acredito que na filosofia de Hume,
poderíamos educar a razão para lidar com determinado sentimento em determinadas
circunstâncias, e então me parece que a razão é mais forte, e pode ser mais levada em
conta do que o sentimento para distinguir ações morais, e também fundamentá-las.
Referências:
HUME, David. Investigação sobre o entendimento humano e sobre os princípios da
Moral. São Paulo: Editora Unesp, 2004.
RAWLS, John. História da Filsofia Moral. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
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O IMPASSE ENTRE POPPER E O CÍRCULO DE VIENA. A LINGUAGEM
ENQUANTO PROBLEMA FILOSÓFICO – Antônio Carlos Persegueiro
UNIOESTE
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Orientador: Remi Schorn
Resumo: O texto1 foca o embate firmado entre Karl R. Popper e o Círculo de Viena. Neste, a
linguagem desponta como questão plausível, demandando maiores investigações. Em seguida,
se registra a elaboração de formulações a partir das quais, de acordo com o Círculo, a
linguagem será exaurida de elementos subjetivos e histórico-naturais. Contudo, embora
simpático a tal propósito, Popper apontará insuficiências atinentes à iniciativa dos positivistas
lógicos. Frente a isso, indaga-se: qual é, afinal, a limitação detectada por Popper, e ademais,
que avanço pode ser extraído desta contenda? Ao respondê-la, visualizar-se-á a inserção da
linguagem entre distintas e peculiares abordagens que, mesmo antagônicas, convergem em
direção à ampliação e enriquecimento do conhecimento acerca dos sinais cuja atribuição é,
por excelência, manifestar e traduzir pensamentos racionalmente ordenados.
Palavras-chave: Impasse. Popper. Círculo de Viena. Linguagem.
A epistemologia de Karl Raimund Popper (1902-1996) é marcada por diversos
conflitos estabelecidos com o Círculo de Viena (Weiner Kreis)2 ou positivistas lógicos.
Entre eles, merece atenção a divergência erigida em torno da linguagem, tida por Popper
como um dos destacáveis problemas filosóficos, sendo precedida somente pela indagação
cosmológica 3. Contudo, apesar de a última estar em um nível fundamental e, portanto, de
maior profundidade, cumpre dizer que, em virtude de delimitação, não será abordada
1
Comunicação inicialmente apresentada sob a forma de Resumo Simples durante o XV Encontro Nacional da
ANPOF, realizado entre 24 e 28 de outubro de 2012, em Curitiba, PR.
2
O Círculo de Viena trata-se da união de matemáticos, lógicos e filósofos que, emergindo do racionalismo,
empirismo e neoempirismo, sob a eleição de Frederick Schlick, particularmente nos anos vinte do século XX,
põem-se em oposição e refutação à metafísica, tendendo, portanto, à sua negação ou, antes disso, detecção de
incoerências e limitações. Embora sem um rigoroso cronograma de atividades, o Círculo, também conhecido
como Movimento de Vanguarda, exerceu, factualmente, notáveis influências em Popper, demais autores e
correntes filosóficas e científicas da atualidade.
3
Para Popper (1972: p. 535), a cosmologia é o plano de fundo sobre o qual repousam a filosofia e a ciência.
Tanto que, a partir da versão inglesa, publicada em 1953, de Logik der forschung, “[...] o problema da
Cosmologia: o problema de compreender o mundo – inclusive nós próprios e nosso conhecimento como parte do
mundo” passa a ser denominado por Popper de questionamento filosófico fundamental.
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neste recorte, nem, tampouco, relacionada à linguagem. Tratar-se-á, pontualmente, da
linguagem à altura de problema filosófico.
Desse modo, acentua-se que, pouco antes de Popper publicar, em 1932 – no
âmbito do Círculo de Viena – a Lógica da Pesquisa Científica (Logik der forschung), “o
propósito deles [membros do Círculo] era fazer da filosofia uma disciplina científica
oposta a toda ‘especulação’ e a todo ‘dogmatismo’.” (QUELBANI, 2009: p. 10). Havia,
por assim dizer, o empenho em encontrar e, logo após, eliminar componentes
essencialistas, idealistas e teologizantes deste saber. No entanto, faz -se oportuno
ressalvar, em relação ao Círculo, o constante exercício com vistas ao “esclarecimento de
problemas e enunciados, não, porém, em propor enunciados ‘filosóficos’ próprios”
(HAHN, NEURATH & CARNAP, 1986: p. 10). De igual modo, alicerçados na análise
lógica4, depuravam enunciados e proposições, buscando declarar quais eram portadores
de relevância filosófica.
Assim procedendo, por que, no campo da linguagem, segundo o Movimento de
Vanguarda, faz-se pertinente assinalar e classificar enunciados e proposições em
genuinamente filosóficos ou não? Ora, pelo fato de, sobretudo no início do século XX,
ocorrer diversas menções aquilo que, na verdade, fora intitulado de pseudoproblemas. E
em que consistem? Conforme o Círculo, em questões nebulosas, de ordem metafísica e,
ademais, desprovidas de conexões com a empiria. Podem até mesmo ser expressas de
modo impactante, porém, carecendo do legítimo status de problema. Sob tal perspectiva,
os pseudoproblemas impregnavam a pauta investigativa da época, gerando, com efeito,
entre demais elementos, certa confusão no pesquisador.
Por outro lado, no âmbito do Círculo, juntamente com a fundamentação da
ciência e a base empírica – temas altamente plausíveis – houve o direcionamento dos
4
Embora, de modo geral, seja possível afirmar a presença da análise lógica desde os Diálogos de Platão, textos
do Corpus Aristotelicum e, mais tarde, o legado kantiano, entre outros, a acepção empregada pela matriz
analítica, da qual comungam tanto os positivistas lógicos, quanto Popper, trata da decomposição de sentenças e
argumentos. Sobretudo no tocante ao Círculo de Viena, havia a convergência em torno de “uma filosofia que
concebe a análise da linguagem como método filosófico, como procedimento através do qual a reflexão
filosófica se desenvolve” (MARCONDES, 2004: p. 17). Tal instrumento será muito válido, além de legítimo à
abordagem ora expressa.
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estudos à linguagem. E, frente a esta última, ensejou-se perquirir, acima de tudo, as
sentenças filosóficas. Mas como? Com que instrumentos? Conforme se depreende, a
alternativa encontrada foi a adoção de “um sistema de fórmulas neutro, um simbolismo
liberto das impurezas das linguagens históricas, bem como a busca de um sistema total de
conceitos” (HAHN, NEURATH & CARNAP, 1986: p. 10). Consequentemente, tais
recursos favoreceram a emersão da linguagem enquanto objeto, expressa através de
representação gráfico-fonológica específica. Tanto que, o maior exemplo disso foi o
fomento à lógica simbólica em detrimento à estrutura textual tradicional. Portanto, a
intenção do Círculo é aplicar ao plano linguístico a concepção científica do mundo, ou
seja, reduzir, por meio da análise lógica, a linguagem somente ao que pode ser enunciado
e decomposto.
Por conseguinte, assistiu-se, mesmo sob curto período, ao crescimento e declínio
do Círculo. Todavia, sem tratar das causas que levaram à rápida dissolução – indo desde
a rotatividade de membros (obrigados a buscar asilo político nos Estados Unidos e outros
países), instabilidades políticas na Áustria e, lamentavelmente, o assassinato d e Frederick
Schlick – constitui fato a influência exercida sobre Popper e demais pensadores. Isso
porque, via de regra, as discussões efetuadas pelos positivistas lógicos visavam também
“elaborar instrumentos intelectuais para o quotidiano; para o quotidia no do erudito, mas
também para o quotidiano de todos os que de algum modo colaboraram na consciente
configuração da vida” (HAHN, NEURATH & CARNAP, 1986: p. 09). Eis, no
concernente aos propósitos do Movimento de Vanguarda, um indício favorável à
congregação de intelectuais ao grupo, especialmente indivíduos das mais distintas áreas
de formação, dada a ênfase em torno dos recursos e habilidades supracitados.
Em contrapartida, no tocante a Popper, infere-se que, entre as discordâncias
acerca da linguagem, merece atenção a discussão efetuada com Victor Kraft, destacável
membro do Círculo. Nesta, o filósofo constata que ele [Kraft], ao ser contestado:
[...] ficou chocado quando eu predisse que a filosofia do Círculo se transformaria
numa nova forma de escolasticismo e de verbalismo. Essa previsão, no meu
entender, concretizou-se. Refiro-me à concepção programática de que a tarefa da
Filosofia é a ‘explicação de conceitos’ (POPPER, 1977: p. 89).
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Decorrente dessa declaração, Popper manifesta insatisfação, pois, a seu ver, os
positivistas lógicos poderiam perpassar tanto o debate em torno do sentido das
expressões, quanto a definição de conceitos em geral. E ainda, a associação aos
escolásticos ocorre devido à repetição de exercícios filológicos e investigações
empreendidas nos idos tempos medievais. Assim, ponderadamente observando, de um
lado, Popper cria expectativas em torno do trabalho filosófico realizado pelo Movimento
de Vanguarda; por outro, detecta limitação nesta abordagem. Contudo, ora recuando, ora
se aproximando aos positivistas lógicos, Popper afirma que, particularmente na década de
vinte, os últimos “[...] preferiram ver-me antes como aliado, do que [como] crítico. Eles
imaginavam que podiam esquivar-se à minha crítica mediante algumas concessões –
preferivelmente mútuas – e com o auxílio de certos estratagemas verbais” (POPPER,
1977: p. 95).
Na verdade, os vanguardistas acreditavam que, por meio de sentenças
afirmativas à concepção científica do mundo aliada ao reducionismo linguístico, iriam
minimizar as discordâncias de Popper, ou, quem sabe, torná-las sem importância.
Todavia, ao que parece, isso não aconteceu, pois “([...] lutar contra o positivismo lógico
não era um de meus interesses principais), os positivistas lógicos não sentiram que sua
doutrina estivesse seriamente ameaçada” (POPPER, 1977: p. 95). 5 E, doravante,
pressuposta tal constatação, sublinha-se a pertinência quanto ao estudo da linguagem
alimentado pelo impasse em questão. Isso porque, mediante convívio com os
vanguardistas, Popper fora estimulado a melhor observar, criticar e refutar a apresentação
deste que é – senão o maior – um dos expressivos temas filosóficos da
contemporaneidade.
A propósito, quando se trata de definições e significações de termos, mesmo
enfatizando a contrariedade de Popper ao Círculo, há de se indagar: não ocorre uma
inclinação à filosofia da linguagem? Tal pergunta surge, seja naturalmente, seja pelo
pertencimento desses componentes à subárea filosófica ora destacada. Contudo, conforme
se depreende, ao ser inquirido sobre a procura pela certeza – diga-se, não à moda
5
Parênteses inseridos por Popper.
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cartesiana – seguida de evidências que atestem a fragilidade da teoria do conhecimento
de senso comum, Popper nega categoricamente a dita inclinação. Segundo o autor, “não
tenho o mínimo interesse por definições ou pela análise lingüística de palavras e
conceitos” (POPPER, 1975: p. 81). Procura, distintamente, efetuar a análise lógica
conjugada ao racionalismo crítico para, então, depurar a linguagem de elementos
subjetivos, arbitrários e, ademais, de todos os que, uma vez confrontados, comprometam
a objetividade.
Desse modo, descartada a hipótese a partir da qual Popper não assinala
propensão à filosofia da linguagem ou a uma modalidade específica da referida,
direcionar-se-á, propriamente, o recorte ao impasse com o Círculo de Viena. No entanto,
embora admita ter herdado a linguagem enquanto problema com base no que ouvira e
lera a respeito das atividades do Movimento de Vanguarda, Popper, enfaticamente,
reafirma que:
[...] a causa da dissolução definitiva do Círculo de Viena e do Positivismo Lógico,
no meu entender, não foram os muitos e graves erros doutrinários (muitos dos quais
apontei), mas o declínio do interesse por minutiae (“enigmas”)6 e, em especial, por
questões relativas a significados de palavras; ou seja, pelo escolasticismo. (POPPER,
1977: p. 97)
Após preconizar a faina do positivismo lógico como um todo, Popper acentua o
grave distanciamento de grandes problemas filosóficos, relegados ao segundo plano,
quando muito, por diversos autores da tradição. Não obstante, longe de menosprezá-los,
bem como as questões tidas enquanto “molas propulsoras” de seus escritos, sistemas,
reflexões, etc., Popper enseja interpelá-los, criticá-los e questioná-los. Sob esse ponto de
vista, extrai-se que a detecção do officium escholasticus constitui, em termos de
linguagem, um evidente retrocesso.
Feitas tais considerações, ao ser observada a postura de Popper, emerge uma
exceção. Qual seja: a de que, em seu fecundo trajeto intelectual, fora defendida a
necessidade da cosmologia como grande problema. Para tanto, da juventude à
6
Constata-se um erro de tradução por parte da edição brasileira. O genitivo da palavra latina minutiae (minúcias,
pequenos itens) é, via de regra, traduzido ao inglês por minute (minuto) e ao português, igualmente, por minuto.
Todavia, a mesma palavra, no nominativo, quer dizer pequenos itens. Em todo caso, é provável que Popper, ao
escrevê-la, tenha se referido justamente à última significação.
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maturidade, o filósofo a justificou textualmente e, a rigor, de forma plausível 7. Além
disso, o convívio com os positivistas lógicos e a posterior transferência de Christchurch a
Londres – eventos notórios – fomentaram, minuciosamente, em Popper, a constatação de
limitações tanto do Círculo de Viena, quanto, mais tarde, de ex-membros isolados ou
simpatizantes da virada linguística (the linguistic turn). Registrados os diferenciais
supracitados e, igualmente, associados ao presente impasse, visualiza-se, portanto, que,
atinente à linguagem, as limitações do Círculo de Viena diziam respeito a atitudes
dogmáticas e, em certo sentido, indutivistas.
Entre essas ações, é possível afirmar a existência do determinismo lógico. O
referido aparece, ora sutilmente, ora de modo enfático, na crença em torno da concepção
científica de mundo, preconizada pelo Círculo. Contudo, para poder observá-lo, cumpre
acentuar que, nas investigações dos positivistas lógicos, há o direcionamento de
enunciados
e
proposições
rumo
à
universalização
gráfica,
ignorando-se
as
particularidades e, paralelamente, os aspectos histórico-naturais da linguagem. Isso
ocorre, notoriamente, de forma determinada. Mas, para melhor visualizar o determinismo
lógico, basta efetuar a comparação com Popper, haja vista a atenção dirigida ao impasse
em torno da linguagem. Assim sendo, o determinismo lógico é detectado em virtude de,
justamente, Popper seguir o indeterminismo. Esta proposta congrega, no âmbito
filosófico-científico, por exemplo, ordem e caos, dúvida e certeza, previsibilidade e
imprevisibilidade, dentre outros componentes, de tal forma que os elementos
supracitados podem coexistir; porém, nunca ante a hipótese de constatá-lo a partir de
dentro do Círculo.
Apesar de, em parte, louvar a concepção científica do mundo, Popper, em
contraposição, tenderia à crítica e refutação antes mesmo da elaboração de um programa.
E ainda, aludindo aos dogmas que impregnavam os trabalhos do Círculo, depreende-se
7
Para melhor validá-la, recorrer-se-á a trechos de A lógica da pesquisa científica e do Pós-escrito O universo
aberto. Um argumento para o indeterminismo. Também é possível inserir, todavia extrapolando as proposições
desta fala, o texto da velhice, (redigido por Popper e organizado por seus alunos e ex-alunos) O mundo de
Parmênides. Ensaios sobre a Ilustração Pré-socrática. Neste, de forma original, o filósofo reforça, entre outros
pontos, o papel da cosmologia, indo da Hélade a parte do Helenismo. Porém, urge justificar que, dada a
profundidade e extensão, opta-se em, portanto, não abordá-lo.
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que os mesmos são manifestos através da crença quase cega de seus adeptos. Com efeito,
a fé “inquestionável” ora destacada é oriunda da concepção científica de mundo
conjugada ao reducionismo linguístico. Para atestá-la à altura, basta considerar, modéstia
a parte, o modo como as contestações de Popper eram acolhidas e, se eram, até que ponto
iriam.
Se, entretanto, as insuficiências mencionadas foram detectadas, sobretudo
através das frequentes críticas e contraposições, qual é, afinal, o avanço de Popper nesta
contenda? A ruptura com os dogmas, interpretações unívocas e demais imposições, de
modo a perpassar o domínio da linguagem. Dito isso, frente aos positivistas lógicos, é
possível afirmar que “enunciar claramente o problema e examinar, criticamente, as várias
soluções propostas” (POPPER, 1972: p. 536) já é, sem sombra de dúvidas, um
considerável avanço. Conexo a este exercício, há a abertura de precedentes para a
objetividade, a ser arduamente perquirida pela Filosofia e Ciência. Nesta busca, também
ocorre, por assim dizer, a abertura a múltiplas saídas, ou melhor, hipóteses e tentativas de
resolução, dada a intrínseca ligação com o modelo indeterminista, pressuposto, portanto,
a partir da filosofia popperiana.
Juntamente com a superação do que fora estudado pelo Círculo de Viena,
desponta ainda, no mesmo plano, outro avanço: a condição de a razão, para além de
palavras, conceituações, significados e definições, almejar e, logo após, tornar público,
na linguagem, a elaboração de afirmações, proposições, teorias, hipóteses, derivações e,
finalmente, proposições primitivas 8. Embora, a grosso modo, tal passagem soe de forma
natural ao entendimento, cumpre registrar que o avanço em questão resulta de milhões de
anos nos quais, graças à concomitância entre mente e conhecimento objetivo, seguida de
outros fatores, culminou, então, no elevado nível evolutivo no qual a humanidade se
encontra atualmente.
Aliado a este verdadeiro salto, Popper, em sincronia ao presente avanço,
esclarece (por meio de nota) que, não somente frente a modalidade de linguagem
8
Sugere-se a consulta ao quadro “Dois aspectos da linguagem”, proposto por Popper em O conhecimento e o
problema corpo-mente. Neste, o filósofo declara a incontestável importância da coluna à direita em detrimento à
esquerda. Cf. Anexo*.
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elaborada e ajustada, como é o caso do discurso empregado pela Filosofia e Ciência, mas
também, a partir do cotidiano,
Nossa linguagem comum está cheia de teorias; que a observação é sempre uma
observação à luz de teorias; que só o preconceito indutivista leva as pessoas a
pensarem em uma possível linguagem fenomênica, livre de teorias, distinguível de
uma ‘linguagem teórica’; e, enfim, que o estudioso está interessado em explicações,
ou seja, em teorias passíveis de provas, dotadas de poder explicativo: aplicações e
predições interessam-nos apenas por motivos teóricos – porque podem ser utilizadas
como provas de teorias (POPPER, 1972: p. 61).
O desmembramento intitulado comum adquire corroboradamente, a mesma
importância das modalidades avançadas, representação simbólica e os idiomas modernos,
como o Inglês e o Português, por exemplo. Contudo, unido a esta equiparação, reside a
ênfase conferida à teoria, permeadora de ambas. Para tais enunciados serem expressos,
sem desejar fazer apologias a Popper, está mais do que clara a intenção do filósofo, a
saber, elevar o conjunto de sinais com os quais se expressam e traduzem pensamentos a
um nível aprimorado e depurado! E ainda, uma vez perpassadas as limitações dos
vanguardistas, a linguagem e, nesta, de modo especial, as proposições apresentadas tanto
oralmente, quanto através da escrita, adquirem maior pertinência, a ponto de fomentarem
o exame das teorias nela incutidas. Eis, portanto, a emergência gerada pelo impasse
polarizado entre Popper e o Círculo de Viena que, muito além de um atrito interpretativo
e meras discordâncias, sublinha que, por excelência, “a linguagem se torna indispensável
como o meio de argumentação, de discussão crítica” (POPPER, 1975: p. 135).
Referências:
HAHN, Hans; NEURATH, Otto & CARNAP, Rudolf. A concepção científica do mundo. O
Círculo de Viena. In: Cadernos de História e Filosofia da Ciência. No. 10. Campinas:
UNICAMP. Págs. 05-20. 1986.
MARCONDES, Danilo. Filosofia analítica. Rio de Janeiro: Zahar, 2004.
QUELBANI, Mélika. O Círculo de Viena. São Paulo: Parábola, 2009.
POPPER, Karl Raimund. Autobiografia intelectual. São Paulo: Cultrix, 1977.
______. A lógica da pesquisa científica. São Paulo: Cultrix, 1972.
______. Conhecimento objetivo. Belo Horizonte: Itatiaia, 1975.
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ANEXO
QUADRO DOS DOIS ASPECTOS DA LINGUAGEM.*
Palavras
podem formular
Conceitos, designações ou
termos
Afirmações.
Proposições, teorias,
podem ser
Significativas
hipóteses ou asserções.
Verdadeiras.
e o respectivo
Verdade.
Significado
pode ser reduzido por meio de
Definições
Derivações.
a
Conceitos primitivos
Proposições primitivas.
___________
* Cf. POPPER, Karl Raimund. O conhecimento e o problema corpo-mente. Lisboa: 70,
2002. Pág. 48.
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O PENSAMENTO COMPLEXO E A FORMAÇÃO CIDADÃ – Darlan Faccin
Weide, Waldemar Feller
UNICENTRO
[email protected]
Palavras-Chave: Pensamento Complexo. Paradigma da Complexidade. Edgar Morin.
Edgar Morin está entre os intelectuais que consideram que a ciência moderna
promoveu uma racionalidade reducionista e fragmentária que não é adequada a realidade,
que se mostra complexa nas suas inter-relações. Esta falsa racionalidade, abstrata e
unidimencional, que se sobressai em diversas partes, tem gerado uma inteligência
parcelar, compartimentada, mecânica, disjuntiva, que quebra o complexo existente no
mundo, produz fragmentos e fraciona os problemas, tornando-se incapaz de considerar o
contexto, o complexo sistema planetário, o que tem gerado inconsciência e
irresponsabilidade.
Da proposta de Morin, como horizonte geral, buscou-se investigar as bases
epistemológicas do paradigma da complexidade e suas implicações na formação da
cidadania. Tendo como desdobramentos específico o estudo da concepção de ciência
proposta por Edgar Morin através do paradigma da complexidade em contraposição à
ciência clássica e seus métodos. Bem como, busca-se a compreensão das bases do que é
entendido por ciência na modernidade e seus reflexos na formação do cidadão.
O tema, pensamento complexo e seus desdobramentos para o dia-a-dia, tornou-se
objeto de estudo, uma vez que reorienta a forma de pensar o conhecimento e
problematiza o processo de formação de cidadania, no caso, a educação. Diferente do
paradigma positivista, o paradigma da complexidade centra o seu objeto de investigação
na objetividade-subjetividade, pois uma não existe sem a outra. Dessa forma, realça-se o
caráter multidimensional do pensamento epistemológico complexo proposto por Morin
(1996; 2008), que considera o conhecimento parcelar como limitado e insuficiente.
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Morin propõe uma reavaliação do que é entendido como ciência na atualidade,
enfatizando que a ciência moderna é reducionista e fragmentária e não dá conta da
realidade que é complexa em suas inter-relações.
A ciência deve reatar com a consciência política e ética. O que é um conhecimento
que não se pode partilhar, que permanece esotérico e fragmentado, que não se sabe
vulgarizar a não ser em se degradando, comanda o futuro da sociedade sem se
comandar, que condena os cidadãos à crescente ignorância dos problemas de seu
destino? Uma ciência empírica privada de reflexão e uma filosofia sem ciência e
ciência sem consciência são radicalmente mutiladas e mutilantes [...] (MORIN,
2008, p.11).
Em defesa da religação dos saberes, Edgar Morin percebeu que a maior urgência
no campo das ideias não é rever doutrinas e métodos, mas elaborar uma nova concepção
do próprio conhecimento. No lugar da especialização, da simplificação e da fragmentação
de saberes, propôs o conceito de complexidade.
O problema do conhecimento é um desafio, pois, segundo concebe, “só podemos
conhecer, como afirmará Pascal, as partes se conhecermos o todo em que se situam, e só
podemos conhecer o todo se conhecermos as partes que o compõem. Nossos grandes
problemas deixaram de ser particulares para se tornar globais” (MORIN, 2008).
O pensamento complexo tem como princípio a dialógica, isto é, compreende os
contrários sem necessidade de exclusão. É um um conhecimento voltado para o
conhecimento, pois conforme concebe, o conhecimento supõe ao mesmo tempo separação
e comunicação.
[...] que permite o nosso conhecimento limita o nosso conhecimento, e o que limita o
nosso conhecimento permite o nosso conhecimento. O conhecimento do
conhecimento permite reconhecer as origens da incerteza do conhecimento e os
limites da lógica dedutiva-identitária. O aparecimento de contradições e de
antinomias num desenvolvimento racional assinala-nos os estratos profundos do real
(MORIN, 1997, p. 47).
Nas obras Introdução ao Pensamento Complexo (1990) e Ciência com
Consciência (2008) chama a atenção do leitor para os problemas da ciência moderna,
principalmente o modelo de ciência cartesiana, fundado na distinção radical entre sujeito
e o objeto do conhecimento. Modelo esse que tem orientado os fundamentos da ciência
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ocidental e que para Morin é uma inteligência cega que isola o sujeito e a coisa
observada.
O desenvolvimento do conhecimento científico é poderoso meio de detecção dos
erros e de luta contra as ilusões. Entretanto, os paradigmas que controlam a ciência
podem desenvolver ilusões, e nenhuma teoria científica está imune para sempre do erro.
Além disso, o conhecimento científico não pode tratar sozinho dos problemas
epistemológicos, filosóficos e éticos.
O saber tornou-se cada vez mais esotérico (acessível aos especialistas) e anônimo
(quantitativo e formalizado). O conhecimento técnico está igualmente reservado aos
experts, cuja competência em um campo restrito é acompanhada de incompetência
quando este campo é perturbado por influências externas ou modificado por um
novo acontecimento. Em tais condições, o cidadão perde o direito ao conhecimento
(MORIN, 2006, p. 19).
As ciências se acostumaram a afastar o erro das suas concepções, porém precisase integrar os erros nas concepções para que o conhecimento avance (MORIN, 2000). O
conhecimento não é espelho fiel à verdade, embora se tenha a impressão de que aquilo
que se percebe é a verdade quando, mais precisamente, é uma forma de compreensão da
verdade, um apanhado de elementos limitados pela possibilidade de perceber e assimilar.
A subjetividade do conhecedor altera a percepção e a interpretação da verdade.
A complexidade em Morin aparece como um novo paradigma gerador de uma
nova concepção de ciência. Uma ciência que tem um conhecimento de si mesma, uma
capacidade de se auto-analisar e se conceber levando em consideração a realidade de
forma total e não de uma forma compartimentada e recortada do contexto do real.
A maneira de proceder da ciência clássica, ao não levar em conta os diversos
níveis de interação entre o que é estudado e o todo, é uma forma divorciada da realidade.
Vista dessa forma, a ciência se mostra presa à técnica como algo puramente formal que
se presta a realizar cálculos precisos, que não tem valor a não ser dentro de uma proposta
determinista e reducionista, voltada para um fim sem nenhuma consciência das
consequências, que pode acarretar tal atividade na vida do cidadão.
O problema do paradigma da complexidade mostra uma nova maneira de se
encarar o conhecimento produzido pela ciência, uma vez que realiza questionamentos
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metodológicos contundentes com relação à maneira que se entende ciência dentro da
perspectiva da modernidade. Bem como, suscita a questão de como Morin entende a
ciência dentro de uma concepção complexa do fazer científico.
A postura de indagação contínua faz Morin refletir sobre a provisoriedade das
"verdades" e "conclusões". Sobretudo, que o conhecimento nunca é total, mas
multidimensional. Propõe-se a construir um conhecimento que religa, que é inacabado e
inacabável. Trabalha com o conceito de auto-ética, com a urgência de "constituição" de
uma identidade humanitária, de uma consciência planetária.
Na obra A cabeça bem-feita: repensar a reforma, formar o pensamento (2006)
chama atenção para a importância da educação na mudança de mentalidade onde o
conhecimento é transmutado em sabedoria, e a ciência, em sapiência para toda a
existência. Para ele mais vale uma cabeça bem-feita que bem cheia.
[…] O significado de “uma cabeça bem cheia” é óbvio: é uma cabeça onde o saber é
acumulado, empilhado, e não dispõe de um princípio de seleção e organização que
lhe dê sentido. “Uma cabeça bem-feita” significa que, em vez de acumular o saber, é
mais importante dispor ao mesmo tempo de: - uma aptidão geral para colocar e tratar
os problemas; - princípios organizadores que permitam ligar os saberes e lhes dar
sentido (MORIN, 2006, p.21).
Para tanto, a escola usará a contribuição da cultura das humanidades e da cultura
científica que ajudarão a manifestar a complexidade do ser humano preparando o cidadão
para o que Morin chama de um mundo incerto. Para enfrentá-lo é necessária a formação
de um novo cidadão, com formação voltada para “uma cabeça bem feita” e não apenas
cheia.
A pesquisa possibilitou entender que Morin ao discutir o papel da ciência no
mundo atual, propõe uma religação das ciências. Tal entendimento ajuda na reflexão do
lugar da ciência nos dias atuais, bem como, no redimensionamento do espaço e das
condições que o cidadão tem para apropriação e construção do conhecimento na sua
formação.
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Referências:
MORIN, Edgar. Ciência com consciência. Trad. Maria D. Alexandre e Maria
Alice Sampaio Dória. 11.ed. Rio de Janeiro: Bertand Brasil, 2008. 350p.
______. O método 3: o conhecimento do conhecimento. 2.ed. Portugal: Europa-America,
1996. 227p.
______. Sete saberes necessários a educação do futuro. 2.ed. São Paulo: Cortez; Brasília:
UNESCO, 2000. 118 p.
______. A cabeça bem-feita: repensar a reforma, formar o pensamento. Trad. Eloá Jacobina.
12.ed. Rio de Janeiro: Bertand Brasil, 2008. 350p.
______. Meus demônios. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997. 274p.
______. Introdução ao pensamento complexo. Porto Alegre, RS: Sulina, 2007. 120 p.
VEGA-PENA, et. Al. Edgar Morin: ética, cultura e educação. São Paulo: Cortez 2001. 175p.
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O PODER DE MICHEL FOUCAULT – Jandrei José Maciel
Universidade Federal da Fronteira Sul – UFFS
[email protected]
Resumo: O Presente tem por objetivo analisar a definição e significação do conceito de
poder, segundo a visão do filósofo francês Michel Foucault. Procura-se analisar em duas
obras do autor, quais são a definições dadas por ele sobre o significado do poder, quais as
medidas tomadas por ele para alcançar uma definição sobre este tema, como seu pensamento
diferencia-se de outros pensadores que abordam o mesmo assunto. Com a leitura das obras e
de comentadores percebe-se que o que Foucault procura em todo seu trabalho fazer é a
abordagem fora da concepção tradicional, como se pôde verificar sua definição de poder
difere-se da concepção de poder, feita por outros filósofos tais como Thomas Hobbes na obra
“O Leviatã” que trata este conceito de forma “jurídica” e opressora.
Palavras-chave: Poder. Microfísica do poder. Panópticon. Exercício do poder.
1. Introdução
No presente artigo pretende-se fazer uma análise interpretativa do poder segundo
a visão do filósofo francês Michel Foucault. Procura-se analisar em duas obras do autor,
quais são a definições dadas por ele sobre o significado do poder, quais as medidas
tomadas por ele para alcançar uma definição sobre este tema, como seu pensamento
diferencia-se de outros pensadores que abordam a questão do poder. Com a leitura das
obras e de comentadores percebe-se que o que Foucault procura em todo seu trabalho
fazer é a abordagem fora da concepção tradicional, como verificaremos mais adiante, sua
definição de poder difere-se da concepção “jurídica” de poder do Filósofo Thomas
Hobbes na obra “O Leviatã”. Outra analise foucaultiana é que o estado não é mais visto
como uma referência da analise do poder, mas como parte deste. O poder em Foucault
não é analisado e usado como uma força repressora, que impõe limites e castigos, ou
ainda como uma prática negativa, o que a sua abordagem pretende focar é a de uma
forma de poder “produtivo”, que podemos chamar de disciplinador, que “modela” o
indivíduo às normas sociais.
As principais obras analisadas na produção deste trabalho são: “Microfísica do
Poder” obra em que Foucault caracteriza o poder não como uma “macro” abordagem,
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como comumente é feita (governo de um estado, governo de um rei), mas como diz -nos o
título da obra “Microfísica do poder” em suas “micro partes” em suas pequenas
manifestações ou micro relações, como por exemplo como se caracteriza o poder na
família, na escola, nos hospitais, presídios, etc... A segunda obra a ser analisa é “Vigiar e
Punir”, nela o autor faz uma análise histórica do poder, como ele é caracterizado em seu
exercício, como por exemplo nos hospitais, escolas e presídios, a principal analise a ser
feita nesta obra, está no capítulo terceiro, onde o assunto abordado é a disciplina, este
capítulo possui como título “O panoptismo”, mesmo nome dado ao conceito proposto
pelo Filosofo Jeremy Bentham que é tomado como um instrumento de poder, tem a
função principal de aplicar aos indivíduos submetidos disciplina e obediência.
2. Foucault e o poder
Foucault em sua obra “Microfísica do Poder”, revela que se fazer uma análise do
conceito de Poder, deve-se tomar cinco precauções, para que não se caia em uma analise
meramente comum do conceito de poder: como primeira medida ou precaução é a de que
não se deve analisar as formas regulares e legitimas do poder em seu centro, mas analisar
o poder em suas extremidades e ramificações, onde o poder torna-se uma cada vez menos
uma visão jurídica de seu exercício.
A segunda medida diz respeito a não conduzirmos nossa análise no lado em
que este aborda a intenção, pelo lado interno, como por exemplo formular a seguinte
pergunta “ quem tem o poder e o que pretende com ele?”, devemos abordá-lo em sua face
externa, onde ele se relaciona com seu alvo, onde ele se implanta e produz seus efeitos
reais.
A terceira precaução a ser observada é de não tomar o poder como um fenômeno
de dominação entre os indivíduos, classes ou um grupo sobre outro, mas ter a percepção e
entendimento que o indivíduo faz parte do poder e não o possui, o indivíduo é o primeiro
efeito do poder e não um “núcleo”, centralizador deste, o poder passa pelos indivíduos
que ele mesmo constituiu.
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Quarta medida é a de não fazer uma interpretação do que seja o poder partindo
do centro para as extremidades, mas fazer esta análise ao contrário partindo das
extremidades de sua relação para conseguirmos compreender como ele exerce.
A quinta e ultima precaução metodológica é de que o poder deve ser tomado com
uma instrumento formado e formador de saberes e que não são instrumentos ideológicos.
As definições de poder de Foucault, são baseadas na “ramificações” do poder,
nas relações em que ele se faz presente, como por exemplo, nas escolas, nos hospitais, a
definição de poder dada por ele, principalmente na obra “Vigiar e Punir” é um poder que
não tem a única função de reprimir os homens sujeitos a ele, mas uma força que é capaz
de proporcionar algo de produtivo a eles, como pode-se verificar no conceito de
“Panópticon de Bentham”, apresentado por Foucault nesta obra, nele ao poder é
percebido como uma força diciplinadora a seus submetidos, trata-se de uma ferramenta
de poder que é permanentemente e eficaz, pois os indivíduos adquirem, através do medo
de uma vigilância constante a necessidade de comportamento.
A análise de Foucault sobre o poder, como pôde-se perceber nas metodologias
por ele aplicadas ao estudo deste conceito e que orienta a seguir, difere-se muito das
análises do poder por outras áreas de estudos tais como a forma jurídica. A abordagem de
poder neste modelo, que utilizaremos para comparar com o pensamento foucaultiano é a
do filósofo moderno Tomas Hobbes, na obra “O Leviatã”.
3. Poder no Leviatã de Tomas Hobbes
Na obra do filósofo moderno Tomas Hobbes, denominada “O Leviatã”, é
desenvolvida uma ficção política, em que os homens inicialmente estão submetidos a
uma sociedade livre, sem nenhuma lei, sem nenhum impedimento, esta situação esta
denominada pelo autor de “Estado de Natureza”ou “Estado Natural”, nele não impera
nenhum tipo de poder comum, todos dependem apenas de
suas próprias forças e
capacidades para a garantira a sobrevivência, por isso segundo Hobbes, esta condição
seria favorável á uma guerra de todos contra todos, em que cada indivíduo em busca das
manutenção de sua vida usaria de todos os meios para alcançar tal objetivo, a única lei
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que persistiria seria a “lei do mais forte”, onde só sobreviveria aquele que fosse mais
habilidoso, rápido e esperto. Como podemos perceber no relato de Tomas Hobbes:
“[...] Outra consequência da mesma condição é que não há propriedade, nem
domínio, nem distinção entre o meu e o teu; só pertence a cada homem aquilo que
ele é capaz de conseguir, e apenas enquanto for capaz de preservá-lo. É pois esta a
miserável condição em que o homem realmente se encontra, por obra simples da
natureza. Embora com uma possibilidade de escapar a ela, que em partes reside nas
paixões, e em parte em sua razão. As paixões que fazem os homens tenderem para a
paz são o medo da morte, o desejo daquelas coisas que são necessárias para uma
vida confortável, e a esperança de consegui-las através do trabalho.” (HOBBES,
2008, p. 111).
A descrição de Hobbes para que os homens libertem-se desta condição de
miséria é de que cada indivíduo renuncie todos os seus direitos naturais de liberdade, em
favor de uma pessoa que lhe garanta os direitos à sobrevivência e que garanta a satisfação
das necessidades básicas de sobrevivência e uma vida razoavelmente confortável.
Essa forma de poder que se dá pela junção de todos os poderes, individuais,
forma a sociedade “hierarquizada”, pois todos os homens em seu estado livre e/ou natural
cansados de viver com a desconfiança e o medo não resistiriam ao “acordo” de
transferência de seus “poderes” a uma pessoa ou estado que lhe garantisse o bem maior
que é a sobrevivência e o a possibilidade de uma vida mais justa e melhor. Essa forma de
poder é o que denomina-se de poder absoluto,
Hobbes denomina este suposto
centralizador dos poderes de “Leviatã”, um “homem” com o corpo constituído de parte
dos corpos de seus súditos, retratando assim que o seu poder é constituído pela somas de
poderes que a ele foram transferidos. Constituindo o estado contratual, a liberdade dos
indivíduos no estado de natureza segundo Hobbes é o fundamento do surgimento e
dominação do estado sobre os indivíduos, este tipo de formulação segundo Foucault
marca o surgimento da política moderna.
4. O poder na concepção de Foucault se difere do Leviatã
Na concepção de Foucault o poder não deve ser analisado na concepção
abordada por Thomas Hobbes; como um poder concentrado nas mãos de um indivíduo
(Leviatã) que possui a partir de um acordo feito, o poder de dominação e de decidir o
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futuro dos concordantes deste contrato, indivíduos este que estão sujeitos a penalizações
caso fujam da condições que ele propunha, e nem sempre tem a garantia de
sobrevivência. O poder segundo Foucault deve ser analisado em suas relações com os
indivíduos, não deve ser analisado a partir de seu centro (detentor do poder), mas a partir
dos indivíduos que são atingidos por ele, pois os indivíduos são passiveis do poder. A
análise foucauldiana é a de um poder positivo, que não procura aproveitar-se de seus
indivíduos, mas que transmite além da proteção assumida no pacto de submissão algo que
lhes seja útil.
O poder visto por Foucault é o que pode-se chamar de microfísica, o poder que
não se concentra no campo político ou em uma forma de domínio ou repressão que pode
chamar-se de ”macro- poder”, para Foucault o poder está dividido em micro poderes, o
que faz com que analise de suas estruturas volte-se mais as suas ramificações ou seja aos
indivíduos afetados pelo poder, não a um indivíduo ou instituição centralizadora do
poder.
5. O Panoptismo
O conceito de Panoptismo como já dito anteriormente é um conceito bastante
conhecido e discutido na Foucault, pois ele retrata claramente a visão do filósofo sobre o
poder, ele interpreta este conceito como um instrumento de poder, que tem por objetivo
uma forma de controle, disciplina e transformação dos indivíduos a ele submetidos.
Foucault descreve este conceito na terceira parte do livro “Vigiar e Punir”.
O conceito
do Panoptismo não é uma criação de Foucault,mas sim uma interpretação da ideia de
Panópticon de Bentham, pelo filósofo Jeremy Bentham por volta dos anos de1785
quando propôs ema estrutura para um presídio com vigilância permanente e que
denominou de “Panópticon”.
O poder nesta ideia está vinculado à vigilância, o Panópticon não representa
apenas um local onde o poder está centralizado, mas é também o local onde o poder se
exerce juntamente com o saber. Em sua obra Foucault, revela que o conceito acima
descrito tem como principal objetivo induzir nos detentos a noção de uma poder
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permanente, pois mesmo o “vigia” não estando dentro da torre, a imaginação é de que ele
esteja lá, segundo ele o objetivo que esta forma de vigilância tem é de que; “Fazer com
que a vigilância seja permanente em seus efeitos, mesmo se é descontínua em sua ação;
que a perfeição do poder tenda a tornar inútil a atualidade de seu exercício; […] que os
detentos se encontrem presos em uma relação de poder que eles mesmos são portadores.”
( FOUCAULT, 2008, p.166).
Diante do “Panópticon” são os próprios detentos que fazem o poder, pois
mentalmente os indivíduos vão temer a presença do vigia, mesmo perante uma possível
ausência dele.
O Panópticon é a forma de exercício de poder em que o detentor do poder não
visa a repressão, não como uma prática negativa do poder mesmo que seja em um
presídio, hospital ou escola, mas visa o adestramento dos indivíduos, fazendo com que o
comportamento deles seja regulado de forma autônoma e constante, sem que nenhuma
“força” física seja utilizada para alcançar tal objetivo.
6. Considerações finais
Diante das análises feitas neste trabalho pode-se ter a analise de que Foucault
diferencia-se das concepções já comuns de interpretação do conceito de poder, mostrando
que este não tema apenas um lado negativo e subversor, mas que pode proporcionar aos
indivíduos a ele submetidos benefícios, tais como a disciplina e o controle de suas ações
criando uma forma de poder próprio interior. A exemplo do conceito analisado como
modelo de detenção e expressão de poder, o “Panópticon de Bentham”.
Já pode-se ter uma clara ideia da distinção do pensamento de Michel Foucault
poder, de como ele se exerce, e de como se relaciona com os indivíduos, se comparado à
análise de Thomas Hobbes, na sua obra “O Leviatã”, citada no trabalho, a abordagem
jurídico política do poder feita por Hobbes tema como principio ser um mecanismo de
domínio, controle e repressão utilizado pelo estado, ou mais precisamente por um
soberano do estado, este que só que chega ao poder devido ao contrato feito com os
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súditos que mediante a este acordo sedem ao estado ou a esta pessoa detentora do poder
todos os seus direitos em troca de proteção.
Referências:
FOUCAULT, Michel; MACHADO, Roberto (Rev.). Microfísica do poder. 22. ed. São
Paulo: Graal, 2006a..
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 20. Ed. Rio de Janeiro: Graal, 1979.
______. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 37. ed. Petrópolis: Vozes, 2008.
HOBBES, Thomas. Leviatã, ou, matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil.
2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
VEIGA-NETO, Alfredo. Foucault & a Educação. 3. ed. Belo Horizonte: Atêntica Editora,
2011.
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O PONTO DE PARTIDA DA LÓGICA: O PENSAMENTO – Leandro A.
Xitiuk Wesan
UNIOESTE/CAPES
[email protected]
Resumo: Neste texto ter-se-á em vista demonstrar que o conceito de lógica tem como
fundamento o pensamento e seu desenvolvimento, que surge como subjetivo, mas consegue
ultrapassar até sua dimensão objetiva. A questão está em ter uma compreensão do pensamento
que se desenvolva para além do entendimento. Tal exigência é assumida por Hegel em sua
lógica especulativa. Os modelos de filosofia da modernidade se desenvolveram a partir do
princípio da identidade e da diferença, que é o mecanismo de atuação do entendimento, a
lógica do Eu e do Não-Eu. Hegel vai considerar o pensamento a partir seu início como
consciência subjetiva, em uma consciência ordinária, até a passagem do subjetivo ao objetivo.
Palavras-chave: Lógica. Ontologia. Pensamento.
Na Enciclopédia das Ciências Filosóficas 1 de 1830, o conceito da lógica está
presente nas seções que Hegel chamou de o Conceito Preliminar e o Conceito Mais
Preciso da lógica. No Conceito Preliminar da lógica, Hegel fará uma análise sobre a
objetividade da metafísica, discutindo com os modelos de filosofia apresentados na
modernidade. O ponto de partida da ontologia de Hegel é a fundação de uma lógica,
apresentada como a ciência do pensar, que leva em consideração o conceito de lógica
formal e de lógica transcendental.
A questão apresentada por Hegel refere -se em
compreender a lógica em um sentido real-efetivo, desenvolvendo o conceito formal da
lógica, fazendo a união da forma com o conteúdo. No que tange ao Conceito mais
Preciso da lógica, Hegel demonstrará conceitualmente a fundação de uma lógica
especulativa, que implica desenvolver o conceito da lógica. Neste texto ter-se-á em vista
demonstrar que o conceito de lógica tem como fundamento o pensamento e seu
desenvolvimento, que surge como subjetivo, mas consegue ultrapassar até sua dimensão
objetiva.
1
Ao citar a Enciclopédia ter-se-á em vista a forma canônica, portanto será feito do seguinte modo: Enciclopédia,
ano de edição, número do parágrafo e, em caso de adendos ou anotações, será feita, também a referência.
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Foi Aristóteles quem transformou a lógica em uma ciência filosófica particular,
criando um modelo rigoroso que passa pela escolástica da Idade Média e chega intacta,
exceto alguns acréscimos, na modernidade. A primeira consideração possível a respeito
do conceito da lógica é que ela é a ciência do pensamento. Neste ponto Hegel está de
acordo com Aristóteles. Todavia, a questão desloca-se para a compreensão adequada das
implicações que tal proposição cria. Hegel reconhece que “o pensar [...] segundo suas
leis, é, aliás, o que constituía ordinariamente o conteúdo da Lógica. Aristóteles é o
fundador dessa Ciência” (Enciclopédia, 1830, § 20, Adendo). A crítica de Hegel à lógica
de Aristóteles refere-se ao formalismo do conceito aristotélico de lógica. Pode-se avaliar
em um pensamento tanto sua validade, referente à forma, quanto sua verdade, referente
ao conteúdo. A lógica formal se detém apenas em avaliar a forma do pensamento,
tornando-se uma ciência abstrata, vazia de conteúdo. A lógica de conteúdo distingue-se
da lógica formal por ampliar seu alcance até o conteúdo do pensamento, buscando o
verdadeiro. A lógica transcendental de Kant e a lógica especulativa de Hegel são lógicas
que assumem as determinações formais do pensamento, mas que não se limitam ao
universal abstrato. A lógica aristotélica guia-se pelos princípios da identidade e da
contradição, sendo que a partir destes princípios é possível verificar a validade dos
argumentos e das inferências de um pensamento, mas, no entanto, tal lógica encontra seu
limite na ontologia, ciência do ser, que busca a verdade das investigações metafísicas. A
questão é que esta compreensão da lógica foi utilizada na modernidade como método de
investigação de objetos metafísicos, gerando, assim, uma metafísica dogmática devido ao
caráter abstrato de sua produção.
Hegel diz no § 19 da Enciclopédia que a “lógica é a ciência da ideia pura, ou
seja, da ideia no elemento abstrato do pensar” (Enciclopédia, 1830, § 20), sendo que é a
partir do desdobramento desta proposição que Hegel fará o desenvolvimento do conceito
da lógica. Entendida, então, como ciência da ideia pura, a lógica deve ter um objeto. A
questão: qual é o objeto da lógica? Hegel diz que a verdade é o objeto da lógica. No § 1
da Enciclopédia delimita-se este objeto, contrapondo a familiaridade de objetos que a
filosofia tem com a religião, Hegel diz que “a filosofia tem, de fato, seus objetos em
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comum com a religião. As duas têm a verdade por seu objeto...”. Não obstante, no
Adendo 2 do § 19, Hegel reconhece, também, a proposição de que o objeto da lógica seja
o pensar. Aqui entra em questão a relação entre a verdade e o pensar. A ideia de lógica
demonstra pensamento objetivo e verdade como idênticos. Põe-se agora a seguinte
questão: a verdade pode ser conhecida? Esta questão fundamenta toda a problematização
da ciência da lógica e faz parte do projeto onto-gnosiológico de Hegel, que tenta
demonstrar que a razão, entendida em um sentido diferente do sentido do modelo da
filosofia moderna, pode alcançar o verdadeiro. Esta tese apresentada por Hegel trava
polêmica com o modelo de filosofia moderna, polemizando com filosofias que se guiam
por princípios formais, como o caso da ontologia dogmática, juntamente com as
filosofias que se guiam por princípios empíricos, como a filosofia crítica. A questão da
metafísica formal, criticada por Kant, onde adquire o título de metafísica dogmática, é
que a razão, em sentido de uma faculdade de entendimento, pode conhecer a verdade por
seu exercício, independente da experiência para fornecer seu conteúdo. Questões, então,
como teologia, cosmologia e psicologia podiam ser resolvidas a partir da lógica de
entendimento, se guiando pelos princípios formais do pensamento. O ceticismo de Hume
apresenta-se como primeira crítica a esta metafísica, onde a verdade do suprassensível foi
posta em dúvida. Em seguida, a filosofia crítica de Kant demonstra cientificamente a
impossibilidade de a metafísica ser entendida como ciência se tiver pressuposto tal
método em seu conteúdo. De um lado, então, apresentam-se os modelos dogmáticos da
metafísica que acreditam serem capazes de alcançar a verdade, ou mesmo já terem
alcançado, de outro, temos a filosofia crítica que julga ter encontrado os limites e alcance
da razão, mostrando sua insuficiência em conhecer os objetos da metafísica. Dentro desta
disputa põe-se em jogo a capacidade da razão: numa perspectiva, a razão já alcançou seu
desenvolvimento máximo, sendo capaz de conhecer a verdade; noutra, a razão limita-se a
pensar os objetos metafísicos, mas não lhe é possível conhecê-los.
“A verdade é uma excelsa palavra, e a Coisa ainda mais excelsa” (Enciclopédia,
1830, § 19, adendo 1). A posição de Hegel é de que a verdade pode ser conhecida. Surge,
então, a questão: como a verdade pode ser conhecida? Depois da filosofia crítica de Kant
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não sobrou mais espaço para abstrações na filosofia. Todavia, os limites encontrados por
Kant na Crítica da Razão Pura não estão de acordo com o projeto hegeliano de fundação
de uma lógica-ontológica. Em vista desta problemática, Hegel fará a retomada e
desenvolvimento do conceito da lógica, tematizando a partir dos modelos criados na
filosofia moderna. Diz Hegel que “na medida em que a Lógica tem essa base, devemos
fazer dela uma ideia mais digna do que se costuma habitualmente.” (Enciclopédia, 1830,
§ 19, adendo 1), deixando claro que sua pretensão ao resgatar a lógica em seu sistema
não tem a ver com a retomada intacta de conteúdo, mas vai demonstrar como que o
lógico pode se desenvolver do abstrato ao real, a partir de um método chamado por Hegel
de especulativo.
Na Fenomenologia do Espírito Hegel dirá a respeito da metafísica formal:
“[...] tal formalismo sustenta que essa monotonia e universalidade abstrata são o
absoluto; garante que o descontentamento com essa universalidade é incapacidade
de galgar o ponto de vista absoluto e de manter-se firme nele. Outrora, para refutar
uma representação, era suficiente a possibilidade vazia de representar-se algo de
outra maneira; então essa simples possibilidade [ou] o pensamento universal tinha
todo o valor positivo do conhecimento efetivo. Agora, vemos também todo o valor
atribuído à ideia universal nessa forma de inefetividade: assistimos à dissolução do
que é diferenciado e determinado, ou, antes, deparamos com um método
especulativo onde é válido precipitar no abismo do vazio o que é diferente e
determinado” (Fenomenologia do Espírito, p. 33, 2002).
Segundo o método da metafísica formal, que produz determinações abstratas,
pode-se demonstrar a validade de uma ideia filosófica a partir de uma argumentação
lógico-formal, isto é, a partir da apresentação da ideia em seu elemento abstrato. Uma
filosofia que segue este princípio pode, por exemplo, reunir provas para fundamentar sua
teologia a partir do uso abstrato da razão, o entendimento. O problema é que ao fixar seu
conteúdo através da universalização abstrata, esta filosofia pode se dissolver através do
exercício da dialética, mesmo em seu sentido subjetivo, isto é, na sofística, ou em seu
elemento fundamental, a saber, o ceticismo. O método especulativo da metafísica
dogmática apresenta a universalidade vazia, sem efetividade. A lógica especulativa de
Hegel pretende ser efetiva, dar conta do real, ser o positivamente-racional.
A metafísica dogmática limita-se ao pensar enquanto entendimento, enquanto
produção abstrata do universal, sendo, então, sem efetividade. Ora, na filosofia
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especulativa o pensamento vai além do entendimento, ele visa se despojar das
representações subjetivas, ou seja, ir-além da representação. A filosofia moderna está
marcada por um tipo de racionalidade que se tornou paradigma filosófico, um modelo
que tem como fundamento a oposição entre sujeito e objeto. A filosofia moderna é
marcada pela emergência da subjetividade. É certo que foi com Descartes que esta nova
base epistemológica se fundou, a partir do cogito cartesiano. Logo, a filosofia moderna se
funda sob o eu. Estas filosofias que se fundam sob a consciência do Eu são chamadas de
idealismos subjetivos, justamente por terem como alicerce a subjetividade. Se o
pensamento for tomado exclusivamente em sentido de entendimento, a filosofia encontra
seu limite ou em representações subjetivas, ou em universais abstratos. Neste sentido, os
limites encontrados por Kant estão corretos e Hegel admite a validade de tal tese.
Todavia, Hegel propõe que o pensamento pode ir-além de sua determinação primeira, isto
é, o entendimento.
Bougeois, em sua apresentação da Enciclopédia para a tradução francesa, situa,
segundo a filosofia hegeliana, a filosofia de Kant e Fichte no âmbito do entendimento:
“Hegel deixa pois de reduzir pensamento ao pensamento tal como é ordinariamente
praticado, inclusive na filosofia kantiana-fichtiana em que a proposta de edificar o
sistema da razão contradiz-se a si mesma, por confiar-lhe a execução ao
entendimento – fechado na separação do universal e do particular, do Eu e do NãoEu, da identidade e da diferença. A reflexão conduzida a seu termo na especulação,
supera as abstrações do entendimento, e realiza, como razão, a exigência da
totalidade” (Enciclopédia, p. 390, 1995).
A questão está em ter uma compreensão do pensamento que se desenvolva para
além do entendimento. Tal exigência é assumida por Hegel em sua lógica especulativa.
Os modelos de filosofia da modernidade se desenvolveram a partir do princípio da
identidade e da diferença, que é o mecanismo de atuação do entendimento, a lógica do Eu
e do Não-Eu. Hegel vai considerar o pensamento a partir seu início como consciência
subjetiva, em uma consciência ordinária, até a passagem do subjetivo ao objetivo. Esta
passagem era feita pela metafísica dogmática através de um universal abstrato, uma
lógica positiva vazia de conteúdo. A passagem ao objetivo na filosofia de Hegel
compreende o desenvolvimento do lógico, onde o entendimento apresenta-se apenas
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como primeiro lado, que será suprassumido nos momentos posteriores. O pensamento
tem, portanto, um lado subjetivo e outro objetivo. Hegel esclarece esta questão no § 20
da Enciclopédia:
Tomemos o pensar em sua representação que fica mais próxima; então ele aparece:
1) primeiro em sua significação habitual subjetiva, como uma das atividades ou
faculdades espirituais, ao lado de outras – da sensibilidade, da intuição, da fantasia
etc.; do desejar, do querer etc. Seu produto, a determinidade ou a forma do
pensamento, é o universal, o abstrato em geral. O pensar, enquanto atividade, por
conseguinte é o universal ativo, e de fato o universal que se atua; enquanto o ato – o
produzido – é justamente o universal. O pensar, representado como sujeito, é o
[sujeito] pensante, e a expressão simples do sujeito existente como [ser] pensante é
Eu (Enciclopédia, 1830, § 20).
Verificamos, desta forma, que o pensamento, segundo o fundamento
gnosiológico pode ir além da subjetividade, transformando-se em objetividade. A
gnosiologia, ou teoria do conhecimento, na modernidade opõe sujeito e objeto, desta
forma criando um dualismo do fenômeno. Este dualismo em Kant aparece como
consequência de um dualismo anterior a esta oposição, a saber, o dualismo que opõe
consciência e natureza. O racionalismo de Kant visa conduzir a consciência a sua
maturidade, seja no âmbito da crítica razão pura e prática. Ao ler a filosofia crítica como
um projeto arquitetônico, percebemos que os limites que a razão pura encontra podem ser
superados pela razão pura prática, onde a liberdade e Deus são postulados resgatados pela
necessidade. A questão é que ao ruir com o fundamento ontológico da filosofia,
derrubam-se, também, as consequências que foram derivadas deste princípio, como a
moral, filosofia política, teologia, cosmologia. Kant ao ruir o fundamento da antiga
metafísica fez cair por terra a moral.
A retomada de Hegel do conceito de lógica tem por questão a fundação de uma
gnosiologia que fundamenta sua ontologia, por isto a identidade entre pensamento e ser,
entre ontologia e lógica.
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Referências:
HEGEL, G. W. F. Enciclopédia das Ciências Filosóficas. A Ciência da Lógica, Volume I.
Trad. de Paulo Meneses. São Paulo: Loyola, 1995.
________________: Ciencia de la Logica. 2 vol. 6ª ed. Trad.: Augusta e Rodolfo Modolfo.
Buenos Aires: Librarie Hachette, 1993.
________________: Fenomenologia do Espírito. Trad. Paulo Meneses. 7 ed. Rev. Petrópolis,
RJ: Vozes: Bragança Paulista, 2002.
HARTMANN, Nicolai. A filosofia do idealismo alemão. Tradução José Gonçalves Belo.
Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1960.
OLIVEIRA, Manfredo A. Lógica transcendental e lógica especulativa, in: Filosofia na crise
da modernidade, 3ª. Ed., São Paulo: Loyola, 2001, p. 29-40.
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O PROBLEMA DA LIBERDADE SOB O ASPECTO DA QUARTA
MOTIVAÇÃO DAS AÇÕES HUMANAS – Felipe Cardoso Martins Lima
Pontifícia Universidade Católica do Paraná
[email protected]
Resumo: Pretende-se apresentar nesta pesquisa uma análise da noção de liberdade a partir da
filosofia de Schopenhauer. Objetiva-se, por um lado, comentar a ideia de uma liberdade
consciente no fenômeno, na qual são enaltecidos os aspectos do conhecimento do todo da
vida, e, por outro, ressaltar a presença crucial de uma Besonnenheit der Vernunft
(Clarividência de razão), anunciada por Schopenhauer como um meio termo entre
conhecimento intuitivo e abstrato. Propõe-se, então, debater essa noção, uma vez que, embora
tal Besonnenheit der Vernunft se dê no âmbito místico, serão demonstradas algumas
possibilidades interpretativas, das quais se sobressalta a impossibilidade crucial da liberdade
no âmbito fenomênico, seja na esfera negativa (asceta), seja no horizonte afirmativo
(conquistador de mundos). Assim, para alcançar o objetivo fundamental dessa tese, a
investigação se fundamentará nos quadros principais do pensamento schopenhaueriano, a
partir da análise rigorosa das três motivações das ações humanas e, em especial, de uma
quarta motivação - própria do asceta -, apresentada no parágrafo 48 dos suplementos.
Palavras-chave: Liberdade. Vontade. Ascetismo.
Schopenhauer é herdeiro da problemática kantiana da terceira antinomia, isto é,
da distinção entre caráter inteligível e de caráter empírico. Mas é na própria noção de
caráter que ele mostra ao mesmo tempo seu distanciamento. Se Kant demarcou o terreno
próprio do caráter inteligível e empírico, por sua vez Schopenhauer interpretaria a coisa
em si como forma de manifestação da Vontade no indivíduo, conferindo a qualidade de
imutabilidade à noção de caráter. Essa reviravolta implicará a presença da ideia de um
destino implacável para cada indivíduo, uma vez que tal caráter denotará um sentido
pessoal, constante e inato.
Ele observa que apesar de haver uma essência universal, a vontade individual
representaria um fragmento desta e, em cada ação específica, se lançaria de acordo com
os motivos mais resolutos, ou seja, de acordo com os motivos abstratos mais
determinantes para a vontade. Por isso, mesmo envolvendo seu pensamento num
dualismo entre o inteligível e o empírico, ele faz emergir deles a ideia de caráter como
ato singular da vontade, uma vez que por esse princípio fica pressuposto como uma
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característica específica, um modo peculiar de ser, inalterável por toda a vida. Por fim,
tal postulação intrínseca ao indivíduo representaria um determinismo do qual somente
poderia se dissociar pela rara negação da Vontade de vida, isto é, mediante a aniquilação
do próprio caráter no horizonte ascético.
Com isso, é possível notar que a noção de caráter, em interface com a
problemática da dupla causalidade pode ser relacionada ao princípio de razão suficiente
de Schopenhauer, mais precisamente às raízes da causalidade, isto é, o princípio de razão
de devir e o princípio de razão de agir. Nesse sentido, Schopenhauer associa ao segundo
a tarefa de perguntar sobre o fundamento do querer. Assim, para o filósofo, a “lei de
motivação” atesta o motivo como elemento precedente ao ato, formulando a tese de que a
ligação constitutiva entre motivo e ato constituiria a própria relação de causa e efeito
(causa-motivo, efeito-ato) como busca de fundamento, encontrando-se a mesma
“causalidade vista a partir de dentro”.
É essa causalidade que determinará o caráter empírico, pois assumiu a forma de
motivação, portanto, do fenômeno em suas diversidades individuais de manifestações
como atos da Vontade espraiados no tempo e no espaço sob o absoluto rigor da
necessidade e dos motivos. Por sua vez, o caráter inteligível, além de ser livre, está
inteiramente presente e alicerçado em cada caráter empírico, mas representará a Vontade
tomada como coisa em si. Diz Schopenhauer
Foi, porém, Kant que primeiro esclareceu este ponto importante por meio de sua
grande doutrina de que o caráter empírico que, como fenômeno, apresenta-se no
tempo e numa multiplicidade de ações tem por fundamento o caráter inteligível que
é a qualidade da coisa em si daquele fenômeno e, por isso, independe do espaço e do
tempo, da multiplicidade e da mudança. Só a partir daí torna-se explicável a tão
espantosamente rígida imutabilidade dos caracteres experimentada por todos.1
Mas tal separação configurará a total eliminação da liberdade no âmbito
fenomênico. De fato, todos os fenômenos estão submetidos ao domínio do princípio de
razão suficiente, inclusive as ações humanas, pois essas devem seguir necessariamente a
1
SCHOPENHAUER, Arthur. Sobre o fundamento da moral. Trad. de Maria. Lúcia M. O. Cacciola. São Paulo:
Martins Fontes, 2001, p. 193.
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determinação de um motivo e também a de um caráter. A esse respeito, Schopenhauer
comenta:
Entende-se por necessário tudo aquilo que resulta de dada razão suficiente [...]
Trata-se, porém, da ordem dos fatos que porventura tratam a necessidade da
consequência como sempre absoluta quando for dada a razão suficiente. Não é
somente ao concebermos uma coisa como consequência de razão determinada que
reconhecemos sua necessidade; e, inversamente, apenas reconhecemos que uma
coisa depende, como efeito de uma razão suficientemente conhecida, concebemo-la
2
necessária, dado que todas as razões são necessitantes.
Assim, admitir a liberdade equivaleria a conceber a exclusão de uma razão
suficiente perfeitamente determinada. Ora, se a Vontade em si é livre, não está submetida
ao domínio do princípio de razão suficiente, então pode se considerar a não-necessidade
como um de seus aspectos principais. Sendo assim, Schopenhauer é enfático ao afirmar
que a liberdade tomada em sentido negativo não pode estar correlacionada com as
relações de causa e efeito, pois essas já pressupõem a necessidade, que, por sua vez,
submete todos os fenômenos individuais: “Seja como for, o vocábulo livre significa o que
não é necessário sob relação alguma, o que não depende de toda razão suficiente” 3.
Todavia, a necessidade de toda determinação causal tem de concordar com a
essência do ser, no caso do homem, com o caráter. Todas as ações individuais sempre
estarão em consonância com o próprio caráter. Eis o que defende Schopenhauer: “O
homem em si não muda nunca: como agiu em um caso, tornará a agir quando iguais
circunstâncias se repetirem” 4. É a partir da ideia de um determinismo das ações humanas,
e buscando sua compreensão, que se é levado a entender melhor a supressão da liberdade
no plano fenomênico. Assim sendo, a exteriorização da liberdade no mundo empírico não
se deve apenas ao aspecto contraditório, mas também a uma reconsideração da dimensão
do ser. Isso se torna possível porque afirmar uma manifestação da liberdade consciente
pressupõe afirmar também a existência do fenômeno excepcional da negação da Vontade
de vida. Por conta dessa contradição subjacente, o indivíduo negaria o seu próprio querer,
subtraindo, do mesmo modo, a afirmação do corpo.
2
SCHOPENHAUER, Arthur. O libre arbitrio. p. 158.
Ibidem, p. 159
4
Ibidem, p. 226.
3
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É importante notar que se inicia um rompimento decisivo das relações de causa e
efeito - sendo causa equivalente a motivo, e efeito equivalente a ato ou vontade
individual. Essa supressão viabilizaria a liberdade consciente das ações, uma vez que o
princípio de razão deixaria de impor sua necessidade ao fenômeno. Schopenhauer
adverte, então, que “o único caso no qual aquela liberdade também pode se tornar
imediatamente visível no fenômeno é quando põe fim ao que aparece” 5.
Entretanto, quando se analisa a figura do místico, vê-se que nela perpassa o
sentimento da compaixão, uma vez que o místico representa um prolongamento dela. Isso
leva a necessidade de uma revisão do viés ético para ser possível compreender a
constituição de uma mística pela clareza constitutiva da consciência, isto é, do
conhecimento do todo da vida.
Quando se detém no estabelecimento do fundamento da moral, mais
precisamente a própria compaixão, não apenas se constata o desprendimento em relação
ao eu, mas também a preocupação em favor do não eu, sucumbindo nesse processo o
conhecimento abstrato, próprio da razão. Todavia, a intuição tem um papel fundamental
para o fenômeno espontâneo da mitleid, que, do mesmo modo, representaria uma etapa
antecedente à renúncia definitiva do asceta.
A ética Schopenhaueriana busca suas raízes no mundo empírico e nada tem a ver
com reflexões abstratas, uma vez que não corresponde a prescrição de regras de conduta,
como na ética kantiana, ou ainda, no ensinamento, pois, segundo Barboza 6, “é tão
quixotesco esperar de uma ética a formação de virtuosos, nobres e santos quanto da
estética a formação de poetas, pintores e músicos”. Ainda assim, Schopenhauer mantém
um particular interesse sobre a compaixão. Todavia, o método de abordagem da questão
se mostra um tanto frágil, pois a caracteriza como um aspecto misterioso para a ética,
tendo seu fundamento qualificado na experiência.
5
SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e como representação. Trad. de Jair. Barboza. São Paulo:
Unesp, 2005, p. 508
6
BARBOZA, Jair. Infinitude subjetiva e estética: natureza e arte em Schelling e Schopenhauer. São Paulo:
Unesp, 2005, p. 262.
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Para melhor compreender como isso complica o campo da teorização da
liberdade em Schopenhauer é necessário examinar o conceito de motivações, situadas no
agir e particularizadas pelo princípio de razão. Seriam três as formas em que se
apresentam as motivações humanas, não sendo apropriado considerar apenas o egoísmo,
mas também a maldade e a compaixão.
Há em suma apenas três motivações das ações humanas, e só por meio do estímulo
delas é que agem todos os motivos possíveis. Elas são: a) egoísmo, que quer seu
próprio bem (é ilimitado); b) maldade, que quer o mal estar alheio (chega até a mais
extrema crueldade); c) compaixão, que quer o bem estar alheio (chega até a nobreza
7
moral e a generosidade).
Schopenhauer apresenta a motivação egoísta como uma das maiores expressões
da afirmação da Vontade de vida, presente na wirklichkeit (efetividade) dos fenômenos.
Com relação a essa efetividade, “o querer tudo para si e nada para o outro” expressaria
unicamente a natureza do egoísta. Além disso, o filósofo concebe o egoísmo como sendo
a primeira motivação antimoral, motivação essa que se revela essencial, motor da
diversidade das ações humanas 8 e dos animais.
A partir dessas considerações, seria possível perceber certas limitações no
conhecimento dos indivíduos egoístas, sobretudo em termos metafísicos, pelo fato de não
reconhecerem a unidade e a identidade da Vontade em todos os seus níveis. Assim, nada
obsta o egoísta de aniquilar tudo aquilo que põe resistência a seus intentos. Seus
interesses estão acima das necessidades alheias e, tomando o eu como a única verdade, o
egoísta conceberia a pluralidade dos fenômenos como meras representações. Dessa
forma, o egoísta reconhecer-se-ia como um mero ente particularizado e totalmente
distinto dos outros.
As considerações de Schopenhauer sobre o egoísmo ilimitado se baseiam no
pensamento oriental budista; nessa perspectiva, a ilusão do conhecimento não se
apresentaria a partir do nada, mas em função do Véu de Maia. Nesses termos, o indivíduo
permaneceria distante do conhecimento da Vontade, enxergaria o mundo apenas
7
SCHOPENHAUER, Arthur. Sobre o fundamento da moral. Trad. de Maria. Lúcia M. O. Cacciola. São Paulo:
Martins Fontes, 2001, p. 137.
8
Eigennutz (interesse próprio). Trata-se de um egoísmo guiado pela razão, ou seja, próprio do homem.
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submetido aos fenômenos. Sob a égide do Véu de Maia, a essência do mundo estaria
representada no próprio eu do indivíduo, uma vez que a realidade do egoísta é
compreendida como sendo imediata, pois se daria por si e para si. Por conta dessa
motivação, apenas seu próprio bem-estar estaria em jogo; o restante dos fenômenos se
apresentaria de forma mediata para ele, por meio de suas representações. Schopenhauer
entende que:
O egoísmo, de acordo com sua natureza, é sem limites: o homem quer conservar
incondicionalmente sua existência, a quer incondicionalmente livre da dor à qual
também pertence toda penúria e privação, quer a maior soma possível de bem estar,
quer todo o gozo (...). Tudo que se opõe ao esforço do seu egoísmo excita sua má
vontade, ira e ódio; procurará aniquilá-lo como a seu inimigo (...) “tudo para mim e
nada para o outro” é sua palavra de ordem. (...) Se fosse dado, pois, a um indivíduo
escolher entre a sua própria aniquilação e a do mundo, nem preciso dizer para onde a
9
maioria se inclinaria.
É importante notar que agora não estão em jogo apenas as motivações egoístas cujo objetivo é o bem-estar de si próprio -, mas também a malevolência, que diferente do
egoísmo, visa fundamentalmente o mal-estar alheio. De acordo com Schopenhauer, a
malevolência - segunda motivação antimoral - é proveniente de uma colisão entre um
egoísmo e outro. Embora haja de antemão o interesse próprio (Eigennutz), a malevolência
se torna mais complexa porque há um choque impetuoso entre dois ou mais egoísmos.
Tendo a aniquilação alheia como desejo principal, a malevolência é um produto da
racionalidade em termos de planejamento de uma ação. Essa característica da
malevolência, já indicada como motivação antimoral, pressupõe o ódio como motor da
ação; a razão, por sua vez, serve como instrumento para o algoz por em prática suas
pretensões contra a vítima. Assim, a maldade se apresenta em potencialidade e
desenvolvimento, expressando a imutabilidade do caráter maldoso.
Por outro lado, a compaixão se revela como caridade desinteressada. O indivíduo
compassivo reconhece no outro a sua própria essência, a ponto de estabelecer uma
identidade com a dor alheia. Essa característica permitiria que se enxergasse além do Véu
de Maia, restringindo ou eliminando o principium individuationis; dessa maneira se
dissiparia a diferença entre o eu e o não eu, restando somente a identificação do
9
SCHOPENHAUER, Arthur. Op. cit. 2001, p. 136.
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compassivo com o sofredor. No entanto, a compaixão não se baseia em conceitos
abstratos; em verdade, ela se revelaria na participação imediata na dor do outro.
Nesses termos, o ponto de partida do místico na filosofia schopenhaueriana é
identificado na caridade, que pressupõe o sentimento da compaixão. Desse modo,
“podemos considerar as ações que lhe são concordes, por exemplo, a caridade, como
início da mística 10”.
Esse é o ponto crucial da problemática apresentada, pois
Schopenhauer apresenta duas questões importantes: “Em que repousa a tão grande
diferença no comportamento moral dos homens 11?” “Pode ela [a ética] transformar um
homem de coração duro num compassivo e, daí, num justo e caridoso 12?”. Partindo
dessas indagações, o filosofo conclui que a diferença ética entre os caracteres seria inata
e indelével, pois cada caráter carrega consigo no transcorrer de sua vida o selo impresso
do determinismo. Nesse sentido, as três formas de motivação estão plenamente presentes
e alicerçadas em relações diferentes. Assim, as ações se realizam em consonância com os
motivos. Todavia, ainda que Schopenhauer realize uma singular análise das três
motivações pela dimensão das ações humanas, emerge daí a possibilidade de uma
redenção absoluta, ou de uma negação da Vontade não só livre de motivações, mas
também de sofrimentos que a assolam constantemente. Sendo assim, as virtudes morais
como a caridade e a justiça, quando são puras, nascem da própria vontade que
transpassou o principium individuationis e se reconheceu como idêntica em todos os seus
fenômenos. Estamos diante de um primeiro estímulo para a mortificação da vontade
individual.
Em O mundo como vontade e como representação, a Vontade era caracterizada
por sua trajetória pelos diversos reinos da natureza. Atingindo o conhecimento de si via
intuição estética ou intuição geral do mundo a Vontade alcançaria, inevitavelmente, uma
clareza de consciência que viabilizaria a decisão pela própria afirmação ou negação.
Neste último caso (negação da Vontade), embora haja comumente dois graus de
10
P/P, cap. VIII, “Acerca da ética”, § 115, p. 201.
Fundamento, tr. bras., p. 190 [Grundlage, SW, III, p. 645]
12
Idem, ibidem.
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intensidade 13, lança-se a tese de que seria possível um terceiro grau, este marcado pela
mística. Destarte, a liberdade consciente derivaria da supressão de todo o querer que
conduz o homem às inclinações ilimitadas do egoísmo, conduzindo-o ao reconhecimento
da Vontade para além do conhecimento turvado pelo Véu de Maia. Isso porque a
exteriorização da liberdade consciente na esfera empírica acaba ficando comprometida.
Por isso, deve-se questionar, a partir do que foi exposto, sobre o modo como aconteceria
a exteriorização da liberdade consciente no fenômeno, seja no que tange à negação, seja
no tangente à afirmação completa da Vontade de vida. Outro questionamento admissível
é se haveria alguma possibilidade de o asceta ser motivado a 
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