FILOSOFAR: UM INÍCIO Danilo Rodrigues Pimenta Resumo: crítica ao método instrumental segundo o qual a filosofia é trabalhada nas universidades brasileiras. Uma das tendências é, entre outras, a desonestidade intelectual, a saber, a mais grave conseqüência da instrumentalização da filosofia. Entre as conseqüências do método, ocupar-me-ei da desonestidade intelectual. Assim, tentarei mostrar que o início do filosofar não é uma visão de texto, como tradicionalmente é trabalhado nas universidades, mas uma visão de mundo. Palavras-chave: desonestidade, mundo, método á três tipos de pessoas que se interrogam sobre o que as cerca. São eles os cientistas, os religiosos e os filósofos. Essas pessoas avaliam o mundo e possuem respostas diversas sobre o mesmo assunto. O cientista, ao se interrogar sobre a vida, poderá nos dizer que “ainda não se sabe exatamente o momento em que uma vida é concebida, mas que certamente é antes do nascimento e que após o nascimento, se não houver nenhuma fatalidade, a criança se desenvolve, cresce, se reproduz e morre”. Estas são fases da vida dos seres humanos e dos animais. O religioso, ao se perguntar sobre a vida, poderá nos dizer que “a vida, antes de tudo é um dom de Deus e deve ser preservado. Nascemos do ato de amor de nossos pais. Mas, já nascemos com o pecado original, por isso, para nos livrarmos de tal mal devemos ser batizados e educados segundo as leis divinas e devemos, também, fazer da mesma maneira com nossos filhos e netos e depois morremos e teremos a vida eterna. Essas são etapas da vida”. O filósofo, ao se interrogar sobre a vida, pode chegar à conclusão de que “foi jogado no mundo, está desamparado num mundo inóspito e que H FRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia, v. 17, n. 1/2, p. 155-160, jan./fev. 2007. 155 a vida é essencialmente dor e, por isso, ela não vale a pena ser continuada”. Dessa maneira, o filósofo pode fazer uma defesa ética do suicídio e da abstenção da paternidade. Notamos que o cientista recusa todo mistério, ao contrario do religioso. O religioso possui uma verdade revelada, e nela o erro está fora de questão. Para o cientista o erro não está fora de questão, se ele se enganar sobre algum fato, simplesmente, pois ele poderá nos dizer que “me enganei, mas hoje, devido ao avanço tecnológico, pude perceber e corrigir meu erro”. Entretanto, o filósofo procura explicar o mundo a partir dos fatos que o cercam, sem se esconder atrás de escudos, como Deus e a tecnologia. Notamos que para o religioso a fonte do conhecimento está em Deus. Entretanto, para o cientista e para o filósofo o mundo é a totalidade dos fatos, e nele formulamos nosso conhecimento. Nele construímos nossas teorias e doutrinas, nossas ciências e filosofias, produtos superiores de nossa atividade pensante. Pensamentos, opiniões e crenças, teorias e doutrinas, ciências e filosofias constituem sempre, deste ou daquele modo, pontos de vista nossos sobre o mundo que o nosso discurso exprime (PORCHAT, 1975, p. 7). Hoje, se me proponho a filosofar, necessariamente, tenho que buscar compreender as coisas em que estou inserido, fugindo do senso comum, no que tange às explicações filosóficas. Na tentativa de compreender melhor o mundo, o homem coloca suas interpretações em textos orais ou escritos. Assim, ele começa a filosofar. Portanto, o desafio do filósofo é entender a sua própria realidade e expor publicamente seus métodos e soluções. Para isso, cada filósofo possui um método, cada situação requer uma maneira diferente de filosofar. Toda filosofia é uma revolta lógica de visão de mundo. É uma revolta, porque é uma insatisfação, seja com o que lemos, seja com outros fatos. A filosofia também é lógica devido ao fato de que ela exige uma discussão, uma construção de argumentos bem desenvolvidos. Tenho que buscar compreender os fatos que estão ocorrendo em minha volta. Tenho que me posicionar diante da tradição filosófica e dos textos que estão sendo escritos ao meu redor. Não estou falando que devo me posicionar diante de todos os textos que estão sendo escrito ao meu redor, muito menos que devo me posicionar diante de todos os textos da tradição filosófica, pois isso seria humanamente impossível. Além de não me interessar por tudo o que é produzido em filosofia. Filosofia é uma visão de mundo e esta, por sua vez, se insere na experiência do real, ou seja, na experiência da vida cotidia156 FRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia, v. 17, n. 1/2, p. 155-160, jan./fev. 2007. na. O discurso filosófico está intimamente ligado aos grupos a que estou mais diretamente ligado. É relevante lembrar que a filosofia se relaciona às várias visões de mundo, seja a biologia, a arte, a matemática, o cinema etc. O mundo é o referencial e fundamento necessário para filosofar. O filósofo é um ser no mundo, e do mundo e não um ser da leitura exegética. A partir do reconhecimento do mundo, o filósofo formula seus problemas e propõe suas soluções. “O reconhecimento do mundo terá sido apenas o ponto de partida. Mas ele é o único ponto de partida possível para uma sã filosofia” (PORCHAT, 1975, p. 10). A visão de mundo em si não é filosofia, mas é o meio pelo qual é possível o desabrochar da mesma. O que foi dito até agora parece óbvio. Quem poderia pensar que a filosofia não é uma visão de mundo? Com toda certeza, nossos professores que insistem na exegese de textos de filosofia. O início do filosofar não está no lido, mas no refletido. A cultura atual instrumentaliza tudo. Na academia não é diferente. Os cursos de filosofia, salvo algumas exceções, são cursos de filosofia instrumental. Isso soa estranho, mas é uma realidade. Hoje não me estranharia se surgisse um curso técnico de filosofia, em alguma escola técnica, dessas que oferecem cursos técnicos de enfermagem, prótese dentária, processamento de dados etc. Quantos técnicos em filosofia nossas universidades já formaram? Técnicos que sabem muito bem compreender a estrutura interna de um texto, mas não sabem se interrogar sobre o que estão lendo, não têm uma opinião sobre o que lêem. Se tiverem, não têm atitude para apresentar seu posicionamento, visto que não apresentam em público sua opinião sobre o que lê somada a sua experiência pessoal, ou seja, somada a sua visão de mundo. No momento em que o leitor começa a duvidar do que lê se justifica, neste momento, o mero leitor torna-se filósofo. Parece então que quem estuda não vai ter tempo, coragem e autoestima para fazer muita filosofia a não ser que se tornem profissionais – pior ainda, já não tem tempo, coragem e auto-estima para fazerem muita filosofia a não ser se já se tornaram aprendizes de profissionais (BENSUSAN, 2002, p. 2). A técnica de leitura em filosofia induz o estudante ao silêncio filosófico. Assim, no momento em que a filosofia é trabalhada unicamente como uma visão de texto a instituição que deveria propiciar o filosofar faz exatamente o contrario, ou seja, propicia o divórcio entre o estudante de filosofia e o filosofar. Se os cursos de filosofia nada podem fazer para propiciar o surgimento de filosofia, espero que pelo menos nada faça para impedir o FRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia, v. 17, n. 1/2, p. 155-160, jan./fev. 2007. 157 surgimento de filósofos. Propiciar o filosofar é incentivar o debate de idéias. No momento em que a academia trata o mundo com indiferença, o ato do que deveria ser o aprendizado do filosofar, ela, a academia, distancia o aluno do filosofar. Mas temos que nos lembrar sempre que o mundo não é uma sentença para ser colocado entre parênteses1. É relevante lembrar que a academia não é a favor da filosofia, pois ela não gosta da revolta, ela não gosta da crítica. Porém, ela gosta do adaptar, do adaptar a ela. A academia é um mundo da carreira e da repetição. Estimular a filosofia não é estimular o achismo e a proliferação de soluções irresponsáveis. (pelo fato deles, os estudantes, não terem uma base sólida e historiográfica). Mas “a maioria dos filósofos não adquiriu tal formação ‘nem primeiro nem depois’, não adquiriu nunca, eles não tiveram a felicidade de ser nossos alunos... Ter-lhes-á causado um grande mal” (PORCHAT, apud PALÁCIOS, 2004, grifo autor). É relevante observar que essa visão historiográfica tem um grave defeito que é privilegiar o conhecimento do passado não dando importância para o presente e para o futuro. Não devemos abandonar a tradição. Devemos ir ao passado para melhor pensar a contemporaneidade. A academia trata o mundo com indiferença. Notamos isso claramente em cada final de semestre cursado ou quando lemos uma dissertação de mestrado ou tese de doutorado, para não dizer qualquer trabalho que habitualmente são entregues a nossos mestres da não-filosofia. Percebemos que esses textos não são teses sobre o mundo, mas tese de tese e, que quando olhamos sua vasta bibliografia notamos que esta tese de tese foi embasada em várias outras teses de teses. Assim essa tese que inicialmente seria de filosofia se perde no vazio de outras teses de segunda ordem. Nossos professores parecem acreditar que o método de leitura pode ser o início de todo filosofar, pois eles não abandonam esse método doutrinário e anti-filosófico. Nossos mestres da não-filosofia parecem acreditar que é possível extrair o mundo de dentro de um texto. Esses professores não se importam com o filosofar. Se esta hipótese está certa, concordo com o professor da Hilan Bensusan, da Universidade de Brasília, “a filosofia é importante demais para ser deixada nas mãos dos filósofos” (Grifo meu). Bensusan está, neste trecho, afirmando que a filosofia não deve ficar apenas nas mãos dos filósofos cadastrados, com carimbos de profissionais e com um ‘Dr.’ na frente do nome. Procuro ser mais do que um estudante, que se limita a estudar meros jogos de palavras, jogos engenhos e complicados, mas que uma vez apreendidos nos trás status e admiração. Esse status e admiração é o que faz o estudante a assumir a filosofia instrumental e, conseqüentemente, assume de 158 FRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia, v. 17, n. 1/2, p. 155-160, jan./fev. 2007. cabeça erguida a sua não-filosofia. Mas acredito que é melhor ser Sócrates descontente que ser um porco satisfeito. Ou seja, é melhor ser um pequeno filósofo do que ser um grande comentador. Percebemos que a política da não-filosofia e da engorda de currículo gera um certo desespero e, por sua vez, esse desespero trás consigo a desonestidade intelectual. Percebemos que alunos que estão trilhando o caminho da filosofia profissional precisam apresentar inúmeros trabalhos em eventos para ser um candidato mais forte para renovar sua iniciação científica ou para ser um concorrente mais forte a uma vaga de mestrado. Assim, os estudantes que estão nessa situação acabam apresentado várias vezes o mesmo trabalho mudando apenas o título, para possuir mais de um certificado de apresentação do mesmo trabalho, porém com outro título. Em uma seleção, seja de iniciação científica ou de mestrado a comissão de seleção não saberá que o currículo que está em suas mãos foi construído por meio da desonestidade intelectual. Mas isso nada mais é do que fruto dessa árvore podre que é o academicismo. A profissionalização da filosofia é um convite à falsificação. Nossos mestres cavam um abismo entre o aluno e o filosofar. Cabe a nós, sabermos se somos interessados apenas em história da filosofia ou se somos interessados em fazer filosofia, se queremos ser um Sócrates descontente ou um porco satisfeito. Os cursos de filosofia não cumprem o que deveria ser o papel, isto é, transmitir informações e produzir conhecimento. Segundo Badiou, “a principal questão da filosofia é hoje a de saber como ela pode proteger e salvar o desejo de filosofia” (BADIOU, 2002, p. 14). Mas qual será o futuro da filosofia? Ainda podemos ter esperanças? O que mudar? Como mudar? Certamente não devemos esquecer os clássicos, mas devemos ir contra esse hábito comentarístico. Acredito que podemos ser otimistas no que se refere ao futuro da filosofia2. Mas, para isso, devemos estuprar a filosofia acadêmica, devemos expor publicamente nossas próprias soluções para nossos problemas filosóficos. Devemos combater com filosofia esse método doutrinário e anti-filosófico. A filosofia é feita de ruptura. Com ruptura a filosofia avança. Aliás, foi das insatisfações das explicações mitológicas que surgiu a filosofia e nesse caminho devemos continuar. Começamos a filosofar quando nos sentimos capazes de avaliar, criticar e propor. Mas, enfim, o que fazer para proteger e salvar o desejo de filosofia? Devemos salvar a revolta lógica, isto é, devemos salvar as nossas insatisfações para com o dado (tudo que nos cerca, inclusive nós mesmo) e devemos salvar também os nosso poder argumentativo. Pois, somente assim, seremos capazes de expor com coerência e originalidade a filosofia como visão de mundo. FRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia, v. 17, n. 1/2, p. 155-160, jan./fev. 2007. 159 Notas 1 2 Oswaldo Porchat compartilha dessa idéia em seu texto “Filosofia e visão comum do mundo”, publicado em Manuscrito III, I, Campinas, 1975. Também podemos ser otimistas quanto ao presente. O solo filosófico está cada vez mais fértil (apesar de não estar com a intensidade que nós, filósofos, desejamos), ou seja, há debate filosófico no Brasil. Há vários estudiosos que procuram por si mesmo. Isto é, que não se limita a meros comentários vazios filosoficamente. Referências BADIOU, A. Para uma nova teoria do sujeito. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2002. BESUSAN, H. Meus aspectos favoritos do ensino de filosofia (São políticos? São educacionais? Ou são apenas filosóficos?). Goiânia, Mimeografado. GHIRALDELLI JUNIOR, P. Caminhos da filosofia. Rio de Janeiro: DP&A, 2005. PALÁCIOS, G. A. De como fazer filosofia sem ser grego, estar morto ou ser gênio. Goiânia: Ed. da UFG, 1997. PALÁCIOS, G. A. Alheio olhar. Goiânia: Ed. da UFG, 2004. PORCHAT, O. A filosofia e a visão de mundo?. In: Manuscrito III, I. Campinas: Ed. da Unicamp, 1975. Abstract: in this article, I am going to do a critic about the instrumental method underneath the philosophy is developed at brazilian universities. Among tendencies, the intellectual deshonesty is the one that results in the more serious consequence of the ‘instrumentalized’ philosophy. In this sense, I am going to analyse the intellectual dishonesty. Thereafter, I am going to explore a beginning of making philosophy not through a text vision, as often worked at universities, but through a worldview. Key words: making philosophy, instrumental method, intellectual dishonesty, worldview Texto apresentado como comunicação no dia 06 de dezembro de 2005, na Universidade Federal de Goiás, no Workshop Futuro e Limites da Filosofia. Instituição financiadora: Fonds Nacional Suisse. DANILO RODRIGUES PIMENTA Graduado em Filosofia pela Universidade Federal de Goiás. Integrante do Grupo de Pesquisa A melancolia e o devir do corpo, no qual se pesquisa o pensamento de Albert Camus, na Universidade Federal da Bahia/UFBA, coordenado pelo Prof. Dr. Lourenço Leite. E-mail: [email protected] 160 FRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia, v. 17, n. 1/2, p. 155-160, jan./fev. 2007.