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UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ
CLAUDIA FREITAS DOS SANTOS
O PRINCÍPIO DA OPORTUNIDADE NO EXERCÍCIO DA RENÚNCIA À
REPRESENTAÇÃO NA LEI MARIA DA PENHA
BIGUAÇU
2010
1
CLAUDIA FREITAS DOS SANTOS
O PRINCÍPIO DA OPORTUNIDADE NO EXERCÍCIO DA RENÚNCIA À
REPRESENTAÇÃO NA LEI MARIA DA PENHA
Projeto de Monografia apresentado como
requisito final da disciplina de Metodologia da
Pesquisa Jurídica do Curso de Direito, da
Universidade do Vale do Itajaí.
Orientador: Dr. Gilberto Callado de Oliveira
BIGUAÇU
2010
2
CLAUDIA FREITAS DOS SANTOS
O PRINCÍPIO DA OPORTUNIDADE NO EXERCÍCIO DA RENÚNCIA À
REPRESENTAÇÃO NA LEI MARIA DA PENHA
Esta Monografia foi julgada adequada para a obtenção do título de bacharel e
aprovada pelo Curso de Direito, da Universidade do Vale do Itajaí, Centro de
Ciências Sociais e Jurídicas.
Área de Concentração: Direito Penal e Direito Processual Penal
Local, 22 de novembro 2010.
Prof. Dr. Gilberto Callado de Oliveira
UNIVALI – Campus de Biguaçu
Orientador
Prof. MSc. Nome
Instituição
Membro
Prof. MSc. Nome
Instituição
Membro
3
TERMO DE ISENÇÃO DE RESPONSABILIDADE
Declaro, para todos os fins de direito, que assumo total responsabilidade
pelo aporte ideológico conferido ao presente trabalho, isentando a Universidade do
Vale do Itajaí, a coordenação do Curso de Direito, a Banca Examinadora e o
Orientador de toda e qualquer responsabilidade acerca do mesmo.
Biguaçu, novembro de 2010.
Claudia Freitas dos Santos
4
AGRADECIMENTOS
À Deus mestre maior, pela sabedoria de vida que não encontrei nos livros.
Aos Professores que contribuíram nesta jornada. Em especial ao Professor
Orientador Gilberto Callado de Oliveira, pela paciência e dedicação.
À minha filha agradeço a compreensão pelos momentos ausentes e pelo
apoio.
Em especial ao meu esposo Dejair, pela ajuda e compreensão ao longo da
nossa vida em comum, e pelo esforço dedicado nestes cinco anos da nossa
caminhada acadêmica.
À professora Marilene do Espírito Santo, pelas excelentes aulas de Direito
Penal, e carinho e dedicação à nossa turma.
Aos demais professores pelos importantes ensinamentos.
À meus pais que souberam me ouvir com paciência além de acreditar nos
meus ideais, bem como por terem sempre uma palavra de incentivo.
Aos colegas de turma, pelo incentivo e pelo apoio constantes.
À Universidade do Vale do Itajaí, aos diretores, aos coordenadores, aos
professores e aos funcionários por tudo que fizeram por nós alunos do Curso de
Direito.
5
RESUMO
Esse estudo tem como objetivo analisar a Lei Maria da Penha (Lei n. 11.340/2006),
no que se refere à questão da representação da ofendida, e seu direito à renúncia
(ou retratação). Não há entendimento pacífico na doutrina sobre o cabimento de
ação penal pública condicionada ou incondicionada nos casos dos crimes de
violência doméstica ou familiar contra a mulher, portanto, pretende-se avaliar aqui,
com base nas opiniões expressas na doutrina, qual seria o correto entendimento da
referida Lei, no tocante ao direito da vítima de não mover uma ação penal contra o
agressor, caso essa, não seja a sua vontade. Para tanto, avaliam-se as
características das espécies de ação penal presentes em nosso ordenamento
jurídico, suas características, condições e aplicabilidade. É apresentado um histórico
da violência doméstica e das tentativas realizadas para combatê-la, até o surgimento
da Lei Maria da Penha que, representou um avanço no que diz respeito ao combate
contra os crimes realizados contra mulheres no ambiente doméstico ou familiar,
contudo, tal lei é amiúde considerada inconstitucional. Por isso, faz-se necessária
uma análise minuciosa da interpretação da Lei n. 11.340/2006, haja vista, a
manifestação de parte da doutrina, cujas críticas se concentram nas supostas
contradições existentes na redação de alguns dispositivos dessa Lei, face às
disposições de outros diplomas legais.
Palavras-chave: Lei Maria da Penha; Renúncia; Retratação; Representação.
6
ABSTRACT
That study has as objective analyzes the law Maria da Penha (Law n. 11.340/2006),
in what he/she refers to the subject of the representation of the offended, and your
right to the renouncement (or retractation). there is not peaceful understanding in the
doctrine on the pertinence of conditioned public criminal procedure or incondite in the
cases of the crimes of violence domestic or family against the woman, therefore, it
intends to evaluate here, with base in the expressed opinions in the doctrine, which
would be the correct understanding of the referred Law, concerning the victim's right
of not moving a criminal procedure against the aggressor, I marry that, be not your
will. For so much, the characteristics of the present criminal procedure species are
evaluated in our juridical ordnance, your characteristics, conditions and applicability.
A report of the domestic violence is presented and of the attempts accomplished to
combat her, until the appearance of the law Maria da Penha that, it represented a
progress in what he/she concerns the combat against the crimes accomplished
against women in the atmosphere domestic or family, however, such law is frequent
considered unconstitutional. Therefore, it is done necessary a meticulous analysis of
the interpretation of the Law n. 11.340/2006, have seen, the manifestation of part of
the doctrine, whose critics concentrate on the supposed existent contradictions in the
composition of some devices of that Law, face to the dispositions of other legal
diplomas.
Word-key: Law Maria da Penha; Renouncement; Retractation; Representation.
7
"Vivi debruçado sobre os Códigos e posso
dizer-vos que a sociedade e os Códigos não
encontram solução para o problema do amor."
(Humberto de Campos)
8
ROL DE ABREVIATURAS OU SIGLAS
Arts.
- Artigos
CC/02
- Código Civil Brasileiro de 2002
CEJIL
- Centro pela Justiça pelo Direito Internacional
CLADEM
- Comitê Latino-Americano de Defesa dos Direitos da Mulher
CP
- Código Penal
CPP
- Código Processo Penal
CR/88
- Constituição República Federal de 1988
CRFB/1988
- Constituição da República Federativa do Brasil de 1988
MP
- Ministério Público
OEA
- Organização dos Estados Americanos
STJ
- Superior Tribunal de Justiça
STF
- Supremo Tribunal Federal
VPI
- Verificação da Procedência das Informações
9
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ..........................................................................................................10
1
DA AÇÃO PENAL ............................................................................................12
1.1
CONCEITO DA AÇÃO PENAL.....................................................................12
1.2
CARACTERÍSTICAS DA AÇÃO PENAL ......................................................18
1.3
ESPÉCIES DE AÇÃO PENAL NO DIREITO BRASILEIRO..........................20
1.3.1
Ação penal pública condicionada .............................................................20
1.3.2
Ação penal pública incondicionada..........................................................24
1.3.3
Ação penal privada.....................................................................................26
1.4
AS CONDIÇÕES DA AÇÃO PENAL ............................................................30
1.4.1
Possibilidade jurídica do pedido...............................................................31
1.4.2
Interesse de agir .........................................................................................32
1.4.3
Legitimação para agir.................................................................................33
1.4.4
Justa causa .................................................................................................34
2
A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E A LEI 11340/2006 ...........................................37
2.1
BREVES APONTAMENTOS HISTÓRICOS.................................................37
2.2
POSICIONAMENTOS DOS JURISTAS ACERCA DA APLICAÇÃO DA LEI 45
2.3
O PROCEDIMENTO DA LEI MARIA DA PENHA.........................................51
3
O PRINCÍPIO DA OPORTUNIDADE NO EXERCÍCIO DA RENÚNCIA À
REPRESENTAÇÃO LEI MARIA DA PENHA ..................................................56
3.1
RENÚNCIA NA REPRESENTAÇÃO ............................................................57
3.2
REPRESENTAÇÃO E RENÚNCIA NA LEI DOS JUIZADOS
ESPECIAIS CRIMINAIS ...............................................................................59
3.3
REPRESENTAÇÃO E RENÚNCIA NA LEI MARIA DA PENHA...................65
CONCLUSÃO ...........................................................................................................78
BIBLIOGRAFIA ........................................................................................................81
10
INTRODUÇÃO
A Lei nº 11.340 foi promulgada em sete de agosto de 2006 e, entrou em
vigor, 45 dias depois da data de sua promulgação, sendo batizada como Lei Maria
da Penha em homenagem à farmacêutica Maria da Penha Maia Fernandes que, foi
vítima de violência doméstica e empreendeu lutas para a promulgação de uma
legislação mais rigorosa no país. Contudo, esse novo estatuto legal, apesar de
vários avanços, apresenta problemas na interpretação de alguns de seus
dispositivos, mormente o artigo 41, que afasta por completo a aplicação da Lei nº
9.099/95, nos crimes envolvendo violência doméstica e familiar contra a mulher.
Não obstante o seu nobre objetivo, a nova lei suscita divergências no âmbito
doutrinário, pois, alguns dispositivos foram redigidos de modo confuso, o que
possibilita diferentes leituras. Esse estudo analisará o histórico da legislação para
combater a violência doméstica até a promulgação da referida lei, bem como, seus
aspectos positivos e negativos. Um dos temas mais discutidos em relação a esse
estatuto é a representação da ofendida, já que, parte da doutrina considera que a
todas as infrações penais tipificadas pela Lei 11.340/06 aplicam-se ações penais
incondicionadas à representação; por outro lado, muitos autores pensam que o
princípio da oportunidade tem que ser respeitado.
Assim, discute-se aqui, tanto a correta interpretação dos dispositivos dessa
Lei, quanto sua constitucionalidade com base nas opiniões expressas pela doutrina
e, no estudo da natureza das ações penais e a aplicabilidade do princípio da
oportunidade, em respeito à vontade da ofendida de mover ou não a ação penal.
O objetivo dessa pesquisa é analisar a possibilidade de renúncia ou
retratação nos crimes aos quais se aplica a Lei Maria da Penha, haja vista a
polêmica existente na doutrina, sobre a aplicabilidade da ação penal pública
condicionada nesses casos. Para obter esse objetivo, foi utilizado o método dedutivo
na argumentação, pois esse método permite demonstrar, mediante o raciocínio
lógico, a veracidade das conclusões a partir de suas premissas.
Quanto à metodologia empregada, optou-se para a condução desta
pesquisa técnicas de documentação indireta, através da pesquisa documental, como
11
os princípios contidos na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988,
como também das Leis 9.099/95, 11.340/06, jurisprudências, ente outros; a pesquisa
bibliográfica em internet, livros, artigos, jornais e revistas que tem relação com o
tema em estudo, a fim de, alcançar os objetivos do presente trabalho.
O primeiro capítulo aborda a ação penal, suas espécies, características e
condições, tais como a possibilidade jurídica do pedido, a legitimação e o direito de
agir, bem como a justa causa.
A violência doméstica e seu histórico são analisados no segundo capítulo,
no qual também se estuda a Lei Maria da Penha em seus aspectos procedimentais,
além de ser feito um apanhado sobre a opinião expressa por juristas e doutrinadores
a respeito das questões polêmicas que envolvem essa lei.
Já no terceiro capítulo, o foco recai sobre o princípio da oportunidade no
exercício da renúncia à representação. Apresentam-se também as mudanças
procedimentais ocorridas com o advento da Lei 11.340/2006, em comparação ao
que ocorria nos Juizados Especiais Criminais.
12
1
DA AÇÃO PENAL
No sistema processual penal brasileiro, a ação penal pode ser pública ou
privada, sendo que, a primeira pode ser incondicionada ou condicionada à
representação e, esta última, pode ser exclusivamente privada ou privada
subsidiária da pública. Nesse estudo, o mais importante é a avaliação de qual
espécie de ação penal é cabível às práticas delituosas sobre as quais incide a Lei
Maria da Penha, posto que, discute-se o direito da ofendida à renúncia da
representação. Logo, o passo inicial dessa análise deve ser a exposição das
características da ação penal, em suas diferentes formas, para uma avaliação do
procedimento jurídico apropriado em relação aos crimes que se encontram no
escopo da Lei nº 11.340/2006.
1.1 CONCEITO DA AÇÃO PENAL
O conceito de ação penal, nas palavras de Capez está definido como:
[...] o direito de pedir ao Estado-Juiz a aplicação do direito penal
objetivo a um caso concreto. É também o direito público subjetivo do
Estado-Administração, único titular do poder-dever de punir, de
pleitear ao Estado-Juiz a aplicação do direito penal objetivo, com a
conseqüente satisfação da pretensão punitiva1.
Nas civilizações antigas, anteriores ao Código de Hamurábi (Babilônia) e ao
Código de Manu (Índia), se um indivíduo sentia que seu direito havia sido violado,
surgia o desejo de vingança. No entanto, a necessidade de regular a vida em
sociedade fez surgir o Estado e sua sistemática jurídica: o Direito e os direitos
subjetivos e, conseqüentemente, o direito de ação, o qual pode ser definido como o
1
CAPEZ, Fernando. Curso de processo penal. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 101.
13
direito que o cidadão tem de invocar a atividade jurisdicional do Estado com vistas
na solução de seus litígios e no reconhecimento de seus direitos.2
O Estado, sintetizando uma luta secular em que se resume a própria
história da civilização, suprimiu a autodefesa e avocou a si o direito
de dirimir os litígios existentes entre os indivíduos. Assumiu o dever
de distribuir justiça criando, com essa finalidade, tribunais e juízos
para tornar em efetiva a proteção dos direitos e interesses individuais
garantidos pela ordem jurídica.3
As deficiências do julgamento feito por membros da própria sociedade,
juntamente com a arbitrariedade dele decorrente e, aliadas ainda, ao processo de
evolução das sociedades, culminaram na instauração de um instrumento
desvinculado das partes envolvidas no fato para a realização do julgamento. Sobre a
existência da ação e dos seus limites ao sujeito e ao Estado, Marques esclarece:
Se a limitação da autodefesa criou o direito de ação para os
indivíduos, também a limitação da auto-executoriedade de certos
atos estatais fez nascer para o Estado o direito de agir, a fim de que
possa impetrar de seus juízes a aplicação da norma legal.4
A administração da justiça passa a ser responsabilidade do Estado que,
executa tal tarefa por meios legais e civilizados. Só há aplicação de pena por meio
de um processo legal, no qual, o Estado é parte legítima para iniciar a ação se,
provocado pela parte interessada ou se noticiado da ocorrência de algum crime.
Quando o indivíduo se sentir lesado e reclamar a aplicação da sanção que compete
ao Estado aplicar, é dever deste, apurar se há conduta descrita como ilícita e a ela
cominada uma sanção. 5
O direito de ação se fundamenta na inadmissibilidade da autodefesa. É
garantido pela Constituição no inciso XXXV, do art. 5º, da Magna Carta que,
2
BITENCOURT, César Roberto. Tratado de direito penal. 8. ed. rev. ampl. São Paulo: Saraiva,
2003, p. 691.
3
Ibid.
4
MARQUES, José Frederico. Elementos de direito processual penal. Campinas: Kookseller, 1997.
v.I. p. 285.
5
TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo penal. 25ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2003. v. I. p.
291.
14
consagra o direito de acesso ao judiciário, segundo o qual: “A lei não excluirá da
apreciação do poder judiciário lesão ou ameaça a direito”.
O Direito Constitucional transformou a ação em um direito individual, um
direito público subjetivo do cidadão em face do Estado, para a tutela da ordem
jurídica:
[...] foi dado ao indivíduo, não só amparo jurisdicional mesmo contra
a violação de seus direitos, praticada pelo poder público, como ainda
a garantia de que lhe não pode ser subtraído, em nenhum caso, o
direito de invocar o Judiciário, quando sentir atingidos os interesses
que a lei lhe tutela.6
O acesso ao judiciário é uma garantia constitucional, já que, o Estado tomou
para si a tarefa de administrar a justiça. A garantia do direito de ação se funda no
pacto que o Estado celebrou com a sociedade. Se não é permitida a autodefesa, há
o dever de garantir a ordem social, assegurando o direito de ação a todos os
cidadãos. Cintra, Grinover e Dinamarco definem sinteticamente a ação da seguinte
forma: “ação é o direito ao exercício da atividade jurisdicional (ou o poder de exigir
esse exercício)”.7
Todo o cidadão tem o direito de pedir ao judiciário a reparação de ato
danoso por aquele que praticou a lesão ou a ameaça. Nisso, consiste o direito de
ação.
A constituição assegura a todo aquele que afirma ter sofrido lesão ou
ameaça em direito individual o direito de invocar a jurisdição, a
instaurar processo e a pedir a tutela jurisdicional, direito esse a que
se dá o nome de ação 8.
Diversas teorias da ação surgiram ao longo da História. A Teoria Civilista
deriva da conceituação romana de Celso, conforme a qual, a ação era o direito de
pedir em juízo o que se é devido (nihil aliud est actio quan ius, quo sibi debeatur, in
6
MARQUES, 1997, p. 268.
CINTRA, Antonio Carlos Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel, Teoria
Geral do Processo, 23ª ed., Malheiros Editores, 2007, pág.265
8
MARQUES, op. cit., p. 122.
7
15
indicio persequendi). O conceito romano suscitava indagações sobre a natureza do
ius actions, e a doutrina civilística influenciou a maioria dos juristas do século XIX.9
Ainda em meados do século XIX, surgiu na Alemanha, uma polêmica entre
Windscheid e Muther sobre a actio romana e seu desenvolvimento até a ação no
direito da época. Tal polêmica colocou em destaque e separados, o direito e a ação.
Muther, combatendo o rival teórico, defendia que a ação se consistia no direito à
tutela do Estado por parte de quem fosse ofendido em seu direito. A ação é um
direito de invocar a tutela jurisdicional do Estado. É um direito público subjetivo.
Desta forma, distinguia-se o direito subjetivo material, a ser tutelado, do direito de
ação, que era direito subjetivo público10.
A teoria do Direito Concreto à Tutela, por sua vez, surgiu com Adolpho Wach
em 1885 e, contribuiu com a demonstração da autonomia do direito de ação. A ação
é um direito autônomo, pois não teria por base um direito subjetivo, ameaçado ou
violado. Dirige-se contra o Estado, já que, é o direito da vítima exigir proteção
jurídica, mas, também contra o adversário, do qual, é exigida a sujeição. A ação
seria um direito público e concreto, ou seja, um direito existente em casos concretos
em que o direito subjetivo estivesse presente11.
Chiovenda12, discípulo de Wach, teorizou que, a ação é um direito
autônomo, conforme proclamava a doutrina alemã. Porém, para ele, a ação não se
dirige contra o Estado, e sim, contra o adversário. Não há direito de ação contra o
Estado, há apenas o direito de provocar a atividade jurisdicional contra o adversário.
O direito de ação seria um direito potestativo, um direito de poder que visa a um
efeito jurídico a favor de um sujeito e, contra outro. Esta teoria define a ação como o
poder jurídico de realizar alguma condição necessária para a atuação da vontade da
lei13.
9
CINTRA; GRINOVER; DINAMARCO, 2007, p. 250.
MARQUES, 1997, p. 149.
11
CINTRA; GRINOVER; DINAMARCO, op. cit., p. 251.
12
Giuseppe Chiovenda foi um jurista italiano ao qual pode-se atribuir o mérito de dar início ao que,
posteriormente, seria chamado de “Escola Italiana de Direito Processual”. O Código de Processo Civil
Italiano de 1940 apresenta fortes influências suas.
13
CINTRA; GRINOVER; DINAMARCO, op. cit., p. 251.
10
16
A Teoria da Ação no sentido abstrato surgiu na Alemanha e na Hungria, com
Degenkolb e Plosz14, respectivamente. Para estes processualistas não bastava
distinguir a ação do direito material invocado ao qual aquele se condiciona, pois que,
não deixa de haver ação quando uma sentença justa nega o direito invocado pelo
autor, como também, quando a sentença concede o direito a quem não o tenha
realmente. Isso quer dizer que, o direito de ação independe da existência efetiva do
direito invocado. Na Itália, Alfredo Rocco defendeu as idéias de Degenkolb com
fundamentação própria: quando a intervenção do Estado para a tutela de interesses
ameaçados ou violados é solicitada, surge o interesse à tutela daqueles pelo
Estado.15 “Para que se configure o direito de ação é suficiente que o indivíduo se
refira a um interesse primário, juridicamente protegido. Tal direito de ação é exercido
contra o Estado”.16
A Teoria Eclética da Ação, por outro lado, afirma que, o direito de ação é
autônomo e abstrato; considerando que, este só existe quando estiverem presentes
condições que o legitimem no processo. As condições da ação para a teoria eclética
são a possibilidade jurídica do pedido; o legítimo interesse; e, a legitimação para
agir. O erro dessa teoria é confundir ação e direito subjetivo. A ação deve ser um
agir conforme o direito. Hoje há diversas objeções a essas teorias.
A doutrina, em geral, conceitua hoje a ação como um direito subjetivo,
admite o interesse do Estado no exercício da função jurisdicional, mas, não vê nisso
incoerência com a afirmação de existir uma obrigação de exercê-la. O conflito de
interesses não é visto como essencial à noção de obrigação. O obrigado pode ter
interesse no cumprimento de sua obrigação e, nem assim, estará isento dessa
obrigação.17
14
Conforme Fernando da Costa Tourinho Filho: “Ainda no fim do século XIX, dois notáveis juristas,
Plòsz e Degenkolb, em trabalhos que tiveram grande repercussão, proclamaram o caráter abstrato do
direito de ação, na sua forma mais radical. Consideravam a ação como um direito público, subjetivo,
abstrato, genérico, indeterminado. Não se confundia com o direito, porque sua existência independia
de um direito subjetivo material e de que o autor tivesse ou não razão. O réu podia ganhar a
demanda, mas não podia impedir o ingresso do autor em juízo. A ação era um direito que pertencia
mesmo àqueles que não tinham razão” in: TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo penal.
p. 299.
15
CINTRA; GRINOVER; DINAMARCO, op. cit., p. 251.
16
Ibid., p. 252.
17
SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras Linhas de Direito Processual Civil. 12. ed. São Paulo:
Saraiva, 1985. v.1.
17
A tutela jurisdicional é manifesta por meio de medidas cautelares ou
preventivas, além de pressupor um processo de conhecimento; já, a tutela de
execução, reclama atos que visem realizar a sentença proferida em ação de
conhecimento; a tutela jurisdicional cautelar protege os interesses das partes em
perigo devido à demora da providência jurisdicional de conhecimento ou de
execução18.
As ações de conhecimento tendem a obter uma decisão, uma sentença;
reúnem-se em três grupos19:
a) Ações meramente declaratórias: o conflito entre as partes está na incerteza da
relação jurídica que a ação pretende tornar certa, desfazendo a dúvida quanto à
relação jurídica em que se encontram as partes, ou então, declarar a
inexistência desta relação. Fundamentam-se no art. 4º, do CPC20.
b) Ações condenatórias: visam a uma sentença de condenação do réu pela
desobediência ao imperativo legal regulador da espécie posta em juízo.
Pressupõe a violação de um direito subjetivo. O réu condenado a satisfazer uma
dada prestação que não cumpri-la voluntariamente, está sujeito à outra ação: a
ação executiva21.
c) Ações constitutivas: modificam uma situação jurídica anterior. Para que a
sentença crie, modifique ou extinga uma ralação ou situação jurídica entra as
partes, deve declarar se ocorrem as condições legais que autorizem essa
modificação e, havendo tais condições, criar, modificar ou mesmo extinguir a
relação ou situação jurídica em questão22.
As Ações Executivas provocam providências jurisdicionais de execução. A
sentença, na ação condenatória, atribui ao credor um título executivo. Há duas
espécies de ações executivas no sentido amplo: a ação executória, execução de
sentença ou execução forçada; há ainda, as ações executivas em sentido estrito ou
impróprio, mencionadas no art. 585 do CPC23.
18
SANTOS, 1985.
Ibid.
20
Ibid.
21
Ibid.
22
Ibid.
23
Ibid.
19
18
As ações cautelares visam assegurar os efeitos de uma providência
executória no processo de execução. A decisão ou a providência executória, poderá
vir tarde demais, por isso, existem as ações cautelares ou preventivas que visam
providências jurisdicionais urgentes e provisórias, assecuratórias dos efeitos
próprios das sentenças a serem proferidas na ação de conhecimento ou de
execução24.
1.2 CARACTERÍSTICAS DA AÇÃO PENAL
Quando a ação é promovida pelo Estado, por intermédio do representante
do Ministério Público que exerce a titularidade de forma privativa, mediante uma
denúncia, tal como prescreve o artigo 129, I da Constituição Federal, diz-se que, é
uma ação penal pública. Esta é regida pelos princípios da oficialidade,
indisponibilidade,
legalidade
ou
obrigatoriedade,
indivisibilidade
e
intranscendência.25
Tais características são os princípios que regem o procedimento da ação
penal. Resumidamente, pode-se afirmar que: a) A Oficialidade se constitui na
titularidade exclusiva do Estado no direito concreto de punir. b) A Indisponibilidade
determina que os órgãos do Ministério Público têm o exercício, mas, não a
disposição da ação penal. c) A Legalidade ou Obrigatoriedade é o princípio segundo
o qual, se o Ministério Público dispõe de elementos mínimos para a propositura da
ação penal, deve promovê-la. d) A Indivisibilidade determina que a ação penal,
pública e/ou privada, abrange todos os que cometeram a infração. e) A
Intranscendência define que a ação penal é proposta apenas contra a pessoa ou as
pessoas a quem se imputa a prática da infração26.
O Ministério Público é o “dono” da ação penal pública (dominus litis), sendo
quem exerce a pretensão punitiva, ou seja, promove a ação penal pública desde a
24
SANTOS, 1985.
TOURINHO FILHO, 2003, p. 327-9.
26
Ibid., p. 327-335.
25
19
peça inicial, que é a denúncia, até seu estágio final. A titularidade da ação não será
inalterada, pois é do Órgão Ministerial27.
O princípio da oficialidade fundamenta a titularidade do Ministério Público na
ação pública, que é exclusiva, salvo em se tratando de ação privada subsidiária, a
qual é prevista, também, pela Carta Magna, no art.5º, LIX. Já, o art. 24 do Código de
Processo Penal estatui que o Ministério Público promove a ação penal por denúncia.
Depreende-se disso, o princípio da obrigatoriedade por ser uma função institucional
deste Órgão e, não uma escolha de seu arbítrio, mover ou não, a ação penal. Há
ainda, o princípio da indisponibilidade, o qual, proíbe a desistência da ação penal por
parte do Ministério Público, depois desta ter sido iniciada28.
O direito de ação está vinculado a uma pretensão, pela qual, a tutela
jurisdicional é procurada. Por isso, subordina-se as condições relacionadas à
apreciação do mérito da causa. Essas são chamadas de condições da ação, ou
seja, os elementos e requisitos necessários para que se julgue o mérito da
pretensão. “Os pressupostos processuais e as condições da ação formam o juízo de
admissibilidade no processo, para que passe, posteriormente, ao juízo de mérito, quando o
juiz conhecerá e julgará a lide”.29
A máquina estatal não pode ser acionada sem razão, principalmente se, a
conduta violadora tiver pouca gravidade e, se mostrar desproporcional à seriedade
do processo que visa a apurá-la30. Caso,
[...] a conduta não seja grave o bastante para justificar a pretensão
de imposição de uma sanção penal, que é o mais severo modo de
reação do Direito. Um processo criminal não pode ser mais grave e
mais sério do que a conduta que ele visa apurar. Nesse caso,
quando o fato narrado puder ser tratado por outro modo menos
ofensivo à dignidade da pessoa humana, e mais proveitoso
socialmente, não haverá justa causa para a propositura da ação
penal, considerando-se tratar-se o Direito Penal de última ratio para
recompor o tecido social injustamente violado31.
27
MIRABETE, Júlio Fabbrini. Processo penal. 17. ed. São Paulo: Atlas, 2005, p. 111.
Ibid., p. 112.
29
FREIRE, Rodrigo da Cunha Lima. Condições da Ação – Enfoque sobre o Interesse de Agir. 2. ed.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 67.
30
CARVALHO, Luiz Gustavo Grandinetti Castanho de. Lei dos Juizados Especiais criminais. 4. ed.
Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2006, p. 31.
31
Ibid.
28
20
Assim, as ações penais públicas no Direito brasileiro são regidas pelos
princípios mencionados acima. Mas, há diferentes espécies de ação penal, cuja
distinção será exposta no tópico seguinte e, em seus subtópicos. Nesse estudo, a
questão mais importante se relaciona aos traços característicos das ações penais
públicas condicionada e incondicionada, com vistas na análise posterior da
aplicabilidade de uma ou outra, aos crimes de violência doméstica.
1.3 ESPÉCIES DE AÇÃO PENAL NO DIREITO BRASILEIRO
No sistema processual penal brasileiro, a ação penal pode ser pública ou
privada. A primeira pode ser incondicionada ou condicionada à representação; a
última é privada ou privada subsidiária da pública. A divisão tem caráter subjetivo, ou
seja, ocorre em função do sujeito que detém a titularidade da ação penal. Em geral,
a ação penal é pública incondicionada; para que seja considerada privada ou pública
condicionada à representação, deve haver, expressa previsão da lei mediante
normas complementares ao tipo penal incriminador.
1.3.1
Ação penal pública condicionada
O Estado é detentor do direito de punir e, sempre que houver transgressão à
norma, o dever de promover a persecução criminal e a possível punição, observados
os princípios constitucionais, é também do Estado. Face à possibilidade de o
particular não procurar a tutela dos seus direitos, ao sofrer alguma lesão, o que
resultaria na impunidade do criminoso, o Estado não deixou ao indivíduo,
exclusividade para o exercício da ação penal, pois que, raramente quem sofre as
conseqüências de um ato criminoso tem a condição de conduzir a instrumentalidade
de um processo penal em busca da punição. Há casos em que, a ação penal pública
está subordinada à manifestação de vontade do ofendido ou de seu representante
21
legal. Noutros casos, é necessária a requisição do Ministro da Justiça quanto à
necessidade de representação do ofendido. Em relação à requisição do Ministro da
Justiça, ela caracteriza a ação penal pública condicionada32. Tourinho Filho assim
justifica a divisão da Ação Penal:
Nem se compreenderia pudesse o Estado conceber ao particular o
exclusivo exercício da ação penal, mesmo porque (caso o fizesse),
veria periclitar, com funestas conseqüências, a efetiva aplicação da
lei penal. Bastaria a inatividade do particular, e impune ficaria o
criminoso.33
Como detentor legítimo do poder-dever de punir, o Estado instituiu o
Ministério Público e, a ele deu a titularidade para promover a ação penal pública.
Essa titularidade não é absoluta, pois, se a vítima tiver sofrido um trauma na esfera
íntima de sua vida, o Estado, diante disso, deixa a critério da vítima, em
determinados casos, autorizar o Ministério Público a instaurar a ação penal. Alguns
crimes em que a ação penal é condicionada à representação: contágio venéreo;
contra os costumes; ou quando a vítima não pode prover as despesas do processo.
Ainda assim, a ação penal é sempre pública.34
O Ministério Público modernamente não mais é visto como um
adversário do réu, participante de um duelo passional entre dois
argutos e hábeis contendores, numa visão privatística doa processo
penal. Funciona como garantia do réu que o Ministério Público não
seja movido por interesse ligado à pessoa do ofendido ou outro que
não seja a realização da justiça. Em uma ordem jurídica que se
deseja democrática, não há lugar para um processo penal derivado
da persecução de interesses privados individuais, ainda que
relevantes, pois o crime atinge primeiramente valores coletivos
reinantes na sociedade com um todo. O interesse do Ministério
Público é social e difuso, não personificado.35
O artigo 100, do Código Penal, faz as distinções entre as ações penais:
32
TOURINHO FILHO, 2003, p. 318.
Ibid., p. 319.
34
Ibid., p. 319-320.
35
JARDIM, Afrânio Silva. Direito processual penal. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1997.
33
22
Art. 100 – A ação penal é pública, salvo quando a lei expressamente
a declara privativa do ofendido.
§ 1º - A ação pública é promovida pelo Ministério Público,
dependendo, quando a lei o exige, de representação do
ofendido ou de requisição do Ministro da Justiça.
§ 2º - A ação de iniciativa privada é promovida mediante queixa do
ofendido ou de quem tenha qualidade para representá-lo.
§ 3º - A ação de iniciativa privada pode intentar-se nos crimes de
ação pública, se o Ministério Público não oferece denúncia no
prazo legal.
§ 4º - No caso de morte do ofendido ou de ter sido declarado ausente
por decisão judicial, o direito de oferecer queixa ou de
prosseguir na ação passa ao cônjuge, ascendente,
descendente ou irmão.
Assim, há casos em que certas circunstâncias condicionam o início da ação
penal pública. Mesmo sendo pública, a ação depende, contudo, da condição de
procedibilidade, exigida em lei. Condição sem a qual, o Ministério Público não pode
promover a acusação de determinados crimes, por não ter os poderes para
manifestar legitimamente o exercício da ação. Esta pode estar condicionada à
representação do ofendido ou à requisição do Ministro da Justiça. Tal condição não
a torna uma ação privada; será sempre pública, pois, quem a promove é o Ministério
Público36.
Uma vez que a ação seja iniciada, não pode o órgão público desistir de dar
prosseguimento a ela; assim, o poder de disposição do ofendido é limitado, mas,
restringe a atividade persecutória do Estado, já que, terminado o prazo para
representação, extingue-se a punibilidade do autor do crime.37
A representação condiciona tão-só o direito do Estado-Administração
de deduzir em juízo a pretensão punitiva. O Ministério Público não
pode acusar, propondo, assim, a ação penal pública, sem que o
ofendido formule a representação.38
[...]
A ação penal pública condicionada pode depender de representação
do ofendido, nos casos taxativamente previstos em lei. Embora o
crime atinja a um bem jurídico, cuja tutela penal interessa
precipuamente ao Estado, figuras delituosas existem em que a
pretensão punitiva surge quando o sujeito privado, que desse bem
jurídico é titular, também tenha interesse na punição do autor da
infração penal, e isso por motivos vários, que vinculam a própria
36
MARQUES, 1997b, p. 317.
Ibid., p. 318.
38
MARQUES, 1997b, 316-7.
37
23
tutela penal ao poder dispositivo do sujeito passivo do crime. Quando
mais acentuada essa subordinação, o Estado transfere ao titular do
bem jurídico, atingido ou ameaçado, o direito de ação e o direito de
acusar: são os casos de ação penal privada. Hipóteses existem, no
entanto, em que o interesse público na punição do crime fica menos
subordinado à vontade do ofendido, e por isso, lhe não transfere o
Estado o direito de acusar, mas tão só condiciona a sua provocação
o inicio da persecutio criminis: são as hipóteses de ação penal
publica dependente de representação.39
O doutrinador Bitencourt avalia as condições que tornam a ação penal
dependente da vontade do ofendido:
Embora a ação continue pública, em determinados crimes, por
considerar os efeitos mais gravosos aos interesses individuais, o
Estado atribui ao ofendido o direito de avaliar a oportunidade e a
conveniência de promover a ação penal, pois este poderá preferir
suportar a lesão sofrida a expor-se nos tribunais. Na ação penal
publica condicionada há uma relação complexa de interesses, do
ofendido e do Estado. De um lado, o direito legítimo do ofendido de
manter o crime ignorado: e do outro, o interesse público do Estado
em puni-lo: assim, não se move sem a representação do ofendido,
mas iniciada a ação publica pela denuncia, prossegue até decisão
final sob o comando do Ministério publico.40
Tornaghi trata a representação como sendo a “manifestação da vontade do
ofendido” de não se opor ao procedimento e, não exatamente como o consentimento
do ofendido ou de quem lhe supra a incapacidade para a propositura da ação.41
Além da manifestação de vontade do ofendido, conforme já mencionado, há
casos em que a propositura da ação está condicionada à requisição do Ministro da
Justiça, sem a qual, a ação penal não pode ser iniciada.
A requisição é um ato administrativo discricionário e irrevogável, com
que o Ministro da Justiça torna possível a promoção da ação penal.
Ele se funda em motivos de ordem política, ligados a persecução
penal. Trata-se de condição excepcional da persecutio criminis,
motivada pelas razoes de ordem política que o legislador acolheu
para, em certos casos, a ela subordinar a atividade acusatória do
Ministério Público.42
39
MARQUES, 1997b, p. 316.
BITENCOURT, 2003, p. 693.
41
TORNAGHI, Hélio. Instituições de processo penal. Rio de Janeiro: Forense, 1959. v. II.
42
MARQUES, 1997b, p. 316.
40
24
A requisição do Ministro da Justiça não obriga o Ministério Público a
promover a ação; autoriza-o a isso, mas, se houver causa impeditiva, o Ministério
Público pode pedir o arquivamento da requisição, pois, continua encarregado de
avaliar se há ou não condições impeditivas.43
1.3.2
Ação penal pública incondicionada
Quando a prática de um crime for constatada e não for exigida a
representação do ofendido ou de seu representante legal, nem requisição do
Ministro da Justiça e nem se trate de ação privada, a regra é que seja proposta a
ação pública incondicionada44.
Em tais casos o Ministério Público pode dar início à ação penal, mesmo que
a parte ofendida se oponha à propositura da ação. Devem, no entanto, ser
observadas as condições para o exercício da ação, quais sejam, a possibilidade
jurídica do pedido, o interesse de agir e a legitimação para agir, para que não haja
rejeição da denúncia pelo Juiz, pela falta de uma das condições exigidas por lei para
a propositura da ação. O órgão do Ministério Público propõe a ação incondicionada
sem que haja manifestação da vontade de quem quer que seja, bastando estarem
preenchidas as condições que tornem possível a acusação. Conforme Marques, a
existência da informatio delicti, na ação incondicionada, é suficiente para que o
Ministério Público ofereça a acusação.45
Os princípios que regem a ação penal pública incondicionada determinam
que o Ministério Público tenha o exercício da ação penal, contudo é o Estado que
pode punir. Como não pode fazê-lo diretamente, institui órgãos para fazê-lo. O
Ministério Público tem o dever de promover a ação penal de oficio; por isso se fala
em princípio da oficialidade. O Ministério Público é agente da ação penal, de forma
que ele:
43
MARQUES, 1997b, p. 316.
Ibid.
45
Ibid., p. 306-7.
44
25
Promove-a (a ação penal) desde a peça inicial, que é a denúncia até
os termos finais, em primeira e segunda instâncias. Acompanha-a,
está presente a todos os atos, fiscaliza a seqüência dos atos
processuais; zela pela observância da lei até a decisão final. Dono,
mas não proprietário, porque não pode dispor da ação, não pode
desistir, não pode renunciar ao direito-dever de promovê-la em nome
do Estado.46
O dever de promover a ação decorre do fato de que aquele que praticou o
delito não deve ficar impune. O Ministério Público está obrigado a promover a ação
penal se houver prova da materialidade ou indícios suficientes da autoria.
Entretanto, o Poder Judiciário pode arquivá-la ou alterá-la, como esclarece Marques:
Na ação penal pública, o dominus litis é o Ministério Publico. O juiz
pode dar definição jurídica diversa ao fato delituoso em que se funda
a acusação (Código de Processo Penal, artigo 383), ou alterar in
melius a configuração dos fatos (idem, artigo 384), sem ouvir o
Ministério Público: é a aplicação do princípio narra mihi factum, dabo
tibi jus. Mas não é permitida a alteração in pejus da acusação, com a
mutatio libeli, sem que o Ministério Público adite a denuncia (artigo
384, parágrafo único). O mesmo sucede, se o aditamento da
acusação tiver por objeto a inclusão de novo réu.47
Se o Ministério Público não promover a ação penal no prazo da lei, o
ofendido tomará seu lugar, o que caracteriza a ação subsidiária da pública, conforme
art. 100 § 3º, do Código Penal48. Já a Constituição Federal, em seu art. 5º, LIX,
dispõe que “será admitida ação privada nos crimes de ação pública, se esta não for
intentada no prazo legal”.
46
AZEVEDO, Paulo Vicente de. Curso de direito judiciário penal. São Paulo: Saraiva, 1958. v. I.
p.195.
47
MARQUES, op. cit., p. 307.
48
Ibid., loc. cit.
26
1.3.3
Ação penal privada
Além da ação penal pública, propriamente dita, há a ação privada. As ações
de iniciativa privada são classificadas em: a) privada subsidiária da pública; b)
privada propriamente dita ou exclusivamente privada; c) privada personalíssima.
Sobre a ação subsidiária da pública, a inércia do Ministério Público dentro
dos prazos legais torna possível a propositura da ação pelo ofendido, caso em que
se tem ação privada subsidiária da pública. O ofendido pode iniciar a ação através
da queixa, porém, isso não a torna privada, é ainda pública e, mesmo promovida
pelo ofendido, rege-se pelos princípios da ação penal pública.”O Estado que privou o
ofendido de promover ação prometendo fazê-lo, deve restituir-lhe aquele direito, se,
embora por convicção, não quer acionar em determinado caso”.49
A garantia está prevista pela Carta Magna, no art. 5º, “LIX: Será admitida
ação privada nos crimes de ação pública, se esta não for intentada no prazo legal”.
O Ministério Público pode, entretanto, intervir em todos os termos do
processo.
Pode também repudiar a queixa e oferecer denúncia substitutiva, ou
ainda aditá-la, e como se o processo houvesse começado com a denúncia, pode
fornecer os elementos de prova.
A ação privada como subsidiária da ação pública, é absolutamente
sustentável, pois o Estado, ao incumbir-se de movê-la, deve
acautelar o interesse do ofendido no caso em que o órgão dele,
Estado, não a intenta.50
O doutrinador Tornaghi considera que a ação privada subsidiária da pública
é a restituição de um direito: “O Estado que privou o ofendido de promover ação
prometendo fazê-lo, deve restituir-lhe aquele direito, se, embora por convicção, não
quer acionar em determinado caso.51
49
TORNAGHI, 1959, p. 357.
Ibid., p. 75.
51
Ibid., p. 353.
50
27
Já a ação penal exclusivamente privada fica regulada pelo artigo 100, do
Código Penal, o qual dispõe que a: “[...] ação penal é pública, salvo quando a lei
expressamente a declara privativa do ofendido”.
A ação penal pública é regra, a privada, exceção. A ação penal privada é:
Aquela em que o direito de acusar pertence, exclusiva ou
subsidiariamente, ao ofendido ou a quem tenha qualidade para
representá-lo. Ela se denomina ação privada, porque o direito seu
titular é um particular, em contraposição à ação penal pública, em
que o titular do jus actionis é um órgão estatal: - o Ministério
Público.52
A única distinção entre a ação penal pública e a privada está na legitimidade
de agir. Numa, o membro do Ministério Público é o titular da ação; na outra, a
titularidade da ação é do ofendido ou de quem legalmente o represente.
Nas hipóteses previstas na legislação penal, como no crime de dano, por
exemplo (art. 163, IV, do CP), a ação penal só se inicia com o oferecimento de
queixa do ofendido ou de seu representante, conforme determina o Art. 167 do CP.
Quando isso acontece, o Ministério Público atua como fiscal da lei.
A doutrina não é pacífica sobre a atuação do ofendido como acusador e há,
amiúde, argumentos contrários à denominação “ação penal privada”, visto que toda
ação tem natureza pública. Por isso, a reforma da Parte Geral do Código Penal, em
1984, substituiu o termo “ação penal de iniciativa privada” pela expressão “ação
penal de iniciativa privada”.53
A ação penal diz-se pública quando movida pelo Ministério Público; e
diz-se de iniciativa privada quando movida pelo ofendido. Claro,
porém, que a terminologia não modifica o caráter da ação, que é
sempre pública porque toda ação tem como sujeito passivo o Estado
e em um dos seus pólos existe a atividade do direito público.54
No entanto,
52
MARQUES, 1997b, p. 321.
CINTRA; GRINOVER; DINAMARCO, 2007, p. 283.
54
Ibid.
53
28
A despeito das críticas, inúmeras legislações, inclusive a nossa,
admitem a ação privada não só em face da tenuidade do interesse
público lesionado, e, conseqüentemente, predominância do interesse
particular sobre o interesse social, como também porque o strepitus
fori – o escândalo – poderá ser mais prejudicial à vítima que a
impunidade do ofensor.55
Há
conveniência,
em
certos
casos,
na
ação
penal
condicionada
exclusivamente à vontade do ofendido, pois a publicidade do delito, a visita do
ofendido aos tribunais, ou o encontro com o ofensor em audiência, podem se
mostrar mais prejudiciais que a própria lesão sofrida. Embora o Estado sempre sofra
com uma infração penal, pois seu cometimento abala a ordem jurídica, há situações
que são de maior interesse ao particular que ao Estado. A predominância absoluta
do direito estatal não condiz com os imperativos do bem comum. Além do mais, na
ação penal privada, o Estado transfere ao particular apenas o direito de acusar, pois
ainda é unicamente seu o direito de punir.56
As ações exclusivamente privadas são aquelas promovidas mediante queixa
do ofendido ou de quem tenha qualidade para representá-lo. Se o ofendido for
menor de 18 anos, a ação só pode ser proposta por seu representante legal. O art.
33 do CPP, contudo, determina que:
Se o ofendido for menor de 18 anos, ou mentalmente enfermo, ou
retardado mental, e não tiver representante legal, ou colidirem os
interesses deste com os daquele, o direito de queixa poderá ser
exercido por curador especial, nomeado, de ofício ou a requerimento
do Ministério Público, pelo juiz competente para o processo penal.
Por outro lado, quando o ofendido for menor de 21 e maior de 18 anos, tanto
ele quanto seu representante legal podem exercer o direito de queixa (art.34 CPP).
Se o ofendido estiver morto ou for declarado ausente por decisão judicial, o direito
de oferecer queixa passa ao cônjuge, ascendente, descendente ou irmão (art. 100, §
4º, do CP; art. 31 CPP).57
55
TOURINHO FILHO, 2003, p. 433.
GRECCO, Rogério. Curso de direito penal. 6. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2006, p. 747.
57
FERNANDES, Antônio Scarance. Processo penal constitucional. 3. ed. rev. atual. e ampl. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p.179.
56
29
A ação privada personalíssima é aquela em que o exercício é dado
exclusivamente ao ofendido. Este exercício é vedado mesmo ao representante legal
e até em caso de morte ou ausência declarada do ofendido.
A ação de iniciativa privada rege-se pelos princípios da oportunidade ou
conveniência, da disponibilidade, da indivisibilidade e da intranscendência.
Pelo princípio da oportunidade, a faculdade de promover a ação penal é
concedida ao ofendido. Assim, ele tem discricionariedade para decidir se ajuizará
queixa crime caso julgue conveniente. Difere da ação penal pública, regida pelo
princípio da obrigatoriedade, ou da legalidade, em que a propositura da ação é
obrigatória quando a materialidade e a autoria do delito são conhecidas.”[...] pelo
princípio da oportunidade, que vigora na ação penal privada, o seu titular, que é o
ofendido ou seu representante legal, promove a ação penal se quiser”.58
O ofendido pode renunciar ao seu direito de queixa, conforme os artigos 59
e 50 do Código Penal, ou deixar de intentá-la no prazo decadencial (seis meses),
acarretando na extinção da punibilidade do autor do fato (art. 107, IV e V, do Código
Penal). Esse princípio se manifesta desde a fase inquisitiva, em que a lavratura do
auto de prisão em flagrante e a instauração de inquérito policial dependem de
expressa manifestação de vontade do ofendido59.
Sobre o Princípio da disponibilidade, Marques afirma que:
Na ação penal privada, tem o querelante a faculdade não só de
propor ou deixar de propor a acusação, como ainda o direito de
desistir do prosseguimento da instância ou de perdoar o autor do
delito. O ofendido pode dispor da ação penal: a) deixando de propôla, pura e simplesmente, dentro de seis meses contados da data em
que teve conhecimento do crime, caso em que ocorrerá a
decadência do jus accusationis; b) renunciando ao direito de queixa,
tácita ou expressamente; c) perdoando ao querelado, depois de
instaurado o processo criminal; d) deixando ocorrer a perempção da
instância.60
Sobre este princípio, Grecco ensina que:
58
TOURINHO FILHO, 2003, p. 437-8.
GRECCO, 2006, p. 698.
60
MARQUES, 1997b, p. 326-7.
59
30
[...] Mesmo depois da sua propositura, o particular pode, valendo-se
de determinados institutos jurídicos, dispor da ação penal por ele
proposta inicialmente, a exemplo do que ocorre com a perempção,
na qual o querelante poderá deixar de promover o andamento do
processo durante trinta dias seguidos, fazendo com que a ação penal
seja considerada perempta, extinguindo-se, assim, a punibilidade,
nos termos do art. 60, I, do Código de Processo Penal, c/c o art. 107,
IV, última figura do Código Penal61.
Quanto ao Princípio da indivisibilidade, o artigo 48 do Código de Processo
Penal dispõe que: “A queixa contra qualquer dos autores do crime obrigará ao
processo de todos, e o Ministério Público velará pela sua indivisibilidade”.
Ou seja, a possibilidade de intentar ação penal contra um dos co-autores do
delito escapa à discricionariedade do ofendido, o qual deve, obrigatoriamente, incluir
todos na queixa crime.
Pelo Princípio da intranscendência, a ação penal limita-se à pessoa ou
pessoas responsáveis pelo delito, não podendo a culpa ser transmitida a terceiros.
1.4 AS CONDIÇÕES DA AÇÃO PENAL
Há determinadas condições mínimas para a propositura da ação penal. O
juiz, ao receber um pedido, deve observar se estão presentes os pressupostos
necessários à sua apreciação integral, quais sejam, a legitimidade ad causam, o
interesse em agir e a possibilidade jurídica do pedido. Condições sem as quais,
pronuncia-se a carência da ação. “[...] embora abstrata, a ação não é genérica, de
modo que, para obter a tutela jurídica, é indispensável que o autor demonstre uma
pretensão idônea a ser objeto da atividade jurisdicional do Estado”.62
As condições da ação são os requisitos preliminares ao julgamento de
mérito, estando ausente um ou mais de um desses requisitos, ocorre a carência de
ação (CPC 301, X), e o juiz fica impedido de examinar o mérito. A consequência da
61
GRECCO, op. cit., p. 701.
THEODORO JUNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil, v.1, 30. ed., ed. Forense,
1999, p. 52.
62
31
carência da ação é a extinção do processo sem a apreciação do mérito (CPC 267,
VI).63
A seguir, será feita uma breve análise da possibilidade jurídica do pedido, do
interesse de agir, da legitimidade de agir e da justa causa, enquanto condições da
ação penal.
1.4.1
Possibilidade jurídica do pedido
A pretensão formulada pelo autor deve ter possibilidade de reconhecimento
pelo ordenamento jurídico. Por exemplo, seria juridicamente impossível, num país
onde não há o divórcio, formular um pedido semelhante. Ou então, uma contenda
que envolvesse dívidas oriundas de jogo, atividade ilícita para o ordenamento e que
o art. 814 do Código Civil deixa fora da apreciação judiciária. Ou seja, o pedido é
juridicamente possível se puder se adequar, ainda que abstratamente, ao direito
material correspondente à pretensão.64
Já Theodoro Júnior trata tal conceituação como equívoca:
[...] o cotejo do pedido com o direito material só pode levar a uma
solução de mérito, ou seja, à sua improcedência, caso conflite com o
ordenamento jurídico, ainda que a pretensão, prima facie, se revele
temerária ou absurda.[...] Impõe-se restringir a possibilidade jurídica
do pedido ao seu aspecto processual, pois só assim estaremos
diante de uma verdadeira condição da ação, como requisito prévio de
admissibilidade do exame da questão de mérito.65
Ao exercer o direito de ação, dois pedidos que são feitos pelo autor da
demanda: um contra o Estado, que é imediato, no qual requer a prestação
jurisdicional; o outro pedido é contra o réu e é mediato, em que requer sua
condenação. O pedido imediato sempre é possível, mesmo se o juiz rejeitar a
63
NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil Comentado,
ed. RT, 9ª ed., 2006, p. 436.
64
CINTRA; GRINOVER; DINAMARCO, 2007, p. 274.
65
THEODORO JUNIOR, 1999, p. 55.
32
denúncia ou a queixa, ele aplica o Direito ao caso concreto. A impossibilidade
jurídica do pedido só pode se referir, pois, ao seu aspecto mediato.
1.4.2
Interesse de agir
O interesse processual é uma condição da ação segundo a qual não convém
ao Estado acionar a máquina judiciária se isso não produzir qualquer resultado útil.
Há, pois, na ação, o interesse de direito substancial pretendido pelo autor e outro
interesse na efetiva prestação jurisdicional de entrega daquele bem, o interesse de
agir ou processual. O exercício do direito de ação pressupõe um conflito de
interesses, o que move a ação é o interesse na composição da lide (interesse de
agir) e não o interesse em lide (interesse substancial)66.
Quanto à nomenclatura, Nery Júnior afirma que:
[...] se deve preferir o termo da lei ao equívoco “interesse de agir”,
eivado de falta de técnica e precisão, além de constituir-se em
velharia do sistema CPC de 1939. Nada justifica manter-se o velho e
ilegal nome antigo. Agir pode ter significado processual e
extraprocessual, ao passo que “interesse processual” significa,
univocamente, entidade que tem eficácia endoprocessual.67
Pode-se entender a ausência do interesse de agir como a falta de
perspectiva plausível da ação penal, pela difícil percepção dos contornos de
tipicidade do fato questionado, o que desaconselha o acionamento do aparato
repressivo-penal do Estado. Ou seja, sem a perspectiva remota de sucesso que se
exige de todo pedido de provimento judicial, a condição da ação prevista no artigo
43, inciso III, do Código está ausente68.
66
SANTOS, 1985, p. 172.
NERY JUNIOR; NERY, 2006, p. 436.
68
MARQUES, 1997b, p. 167.
67
33
1.4.3
Legitimação para agir
A legitimidade para a causa é a pertinência subjetiva da ação. O titular do
direito subjetivo material, que tem interesse na tutela estatal, está legitimado
ativamente para a causa. Por outro lado pode demandar apenas aquele que é titular
da obrigação correspondente, o que está legitimado passivamente. A parte autora é
um dos sujeitos da relação processual, que requer a tutela jurisdicional face a parte
ré.69
Diz-se que se trata de legitimação ordinária para a causa, que é a
regra geral: aquele que se afirma titular do direito material tem
legitimidade para, como parte processual (autor ou réu), discuti-lo em
juízo70
O Código de Processo Civil enuncia, em seu art. 6º: “[...] ninguém poderá
pleitear, em nome próprio, direito alheio, salvo quando autorizado por lei”.
Os casos excepcionais em que a substituição processual é autorizada pelo
sistema jurídico estão previstos na Constituição Federal (art. 5º, XXI e LXX; art. 129,
III e § 1º; art. 103), ou seja, casos em que se dá o pleito em nome próprio de direito
alheio. Somente nos casos de ilegalidade, desvio de poder ou falta de atribuições é
lícito que o Poder Judiciário determine o trancamento do inquérito:
Nada obsta a titularidade para a instauração do inquérito civil ter sido
outorgada, privativamente, ao Ministério Público, não quer isto dizer
que o exercício daquela faculdade não esteja sujeito à observância
de critérios e exigências mínimas que o autorizam e o legitimam, sob
pena de se verificar abuso ou mesmo eventual excesso de poder,
passíveis de correção por órgão disciplinar ou mesmo pelo Poder
Judiciário, com efeito71.
Há a necessidade defender, com fundamento jurídico, a existência de justa
causa para a instauração do inquérito civil público, do inquérito policial e da própria
69
MARQUES, 1997b, p. 167.
Ibid.
71
SILVA, Paulo Márcio. Inquérito Civil e Ação Civil Pública - Instrumentos da Tutela Coletiva. Belo
Horizonte: Del Rey, 2000, p. 102.
70
34
ação penal. Apesar da autonomia e independência dos institutos do direito
processual penal com o inquérito civil público, existe semelhança entre eles. Há
casos em as normas punitivas do processo administrativo se aproximam dos
princípios do direito penal, já que quando um fato tem a natureza de infração
disciplinar, pode no âmbito penal, com a instauração de um inquérito policial, de uma
ação penal, pois ofende também os interesses sociais gerais previstos nas leis
penais.
1.4.4
Justa causa
A justa causa exprime toda razão que justifique a legitimidade ou
procedência de um ato perante o direito. Conforme Silva, significa:
O motivo que possa ser alegado, porque está amparado em lei ou
procede de fato justo. Mas, a rigor, segundo o sentido de justa, que
significa o que convém ou o que de direito, e causa, motivo, razão,
origem, é necessário que o que se alega ou se avoca, para mostrar a
justa causa, seja realmente amparado na lei ou no direito, ou, não
contrariando a este, se funde na razão e na eqüidade.72
Como forma de evitar o excesso ou abuso de poder, o direito elegeu como
elemento essencial à instauração de inquéritos policiais, ações penais ou processos
administrativos, uma justa causa para contrapor a causa genérica ou inconsistente.
Dessa forma, para que alguém seja indiciado, processado e julgado, é preciso haver
justa causa para a acusação, como ensina Moura:
Tomando-o como sustentáculo, segue-se que, para que alguém
possa ser submetido a julgamento, deve existir justa causa para a
acusação, sob pena desta se transformar em instrumento de coação
ilegal, contra a liberdade jurídica do acusado, passível de ser
mediada por meio de hábeas corpus.73
72
SILVA, De Plácido e. Vocabulário Jurídico. 22. ed. Atualizado por: Nagib Slaibi Filho e Gláucia
Carvalho. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 810.
73
MOURA, Maria Thereza Rocha de Assis. Justa Causa para a Ação Penal. São Paulo: RT, 2001,
p. 18.
35
Tourinho Filho define a justa causa como aquela:
[...] que é conforme o direito, [...] se o juiz recebe uma denúncia por
fato atípico, cabível o remédio heróico, por falta de justa causa; se
recebe uma denúncia sem lastro probatório, falta o interesse
processual e, de conseguinte, justa causa. Aliás, a expressão ‘falta
de justa causa’ é tão ampla que chega a abranger todas as outras
hipóteses elencadas nos demais incisos do art. 648.74
A autora Moura assevera que:
A justa causa para a ação penal de natureza condenatória, no direito
penal brasileiro, não sobressai apenas dos elementos formais da
acusação, mas, também e de modo principal, de sua fidelidade para
com a prova que demonstre a legitimidade da acusação. [...] Desta
conclusão emana que não basta que a peça acusatória impute ao
acusado conduta típica, ilícita e culpável. A denúncia ou queixa deve
guardar ressonância e estrita fidelidade aos elementos que lhe dão
arrimo, sem o que não passará de ato arbitrário, autoritário, que a
ordem jurídica não pode tolerar. [...] Segue, ainda, que a
necessidade da existência de justa causa para a acusação serve
como mecanismo para impedir, em hipótese, a ocorrência de
imputação formal infundada, temerária, caluniosa e profundamente
imoral.75
A justa causa é a condição mínima exigida para que não ocorra uma
acusação sem fundamento e temerária, desatrelada de provas diretas e movida por
interesses que não são jurídicos. Apesar do caráter administrativo preparatório, ou
inquisitorial do inquérito civil, trata-se de um procedimento que fundamenta uma
futura ação civil pública, e não pode ser instaurado sem que haja uma causa que o
justifique, de modo que os direitos fundamentais do cidadão em à sua vida privada,
honra, intimidade e imagem sejam preservados. Assim, Mazzili elucida que:
É certo que a instauração de um inquérito civil pressupõe seu
exercício responsável, até porque, se procedida sem justa causa
poderá ser trancado por meio de mandado de segurança.76
74
TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Código de Processo Penal Comentado. São Paulo:
Saraiva, 1997, v. 2, p. 123.
75
MOURA, 2001, p. 291.
76
MAZZILI, Hugo Nigro. O Inquérito Civil. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 162.
36
Assim, só existe a obrigatoriedade da instauração de procedimentos ou
processos legais se a descrição circunstanciada e detalhada dos fatos, juntamente
com as provas, reforça a tese de que aconteceu a prática de uma infração. Deve
haver um juízo de probabilidade de condenação que justifique a instauração do
processo. Esse juízo inicial de probabilidade indica, ainda que de modo superficial,
que um ato ilícito foi cometido pelo indivíduo acusado. Sem isso a investigação e a
acusação são insustentáveis, pois a opinio delicti deve ser justa, plausível e ter
bases no texto legal. A razão jurídica tem que ser convincente e plausível, pois a
acusação não pode ser genérica ou decorrente de presunções e suspeitas sob pena
de se tornar em instrumento de coação ilegal contra a liberdade jurídica do
acusado.77
77
MOURA, 2001, p. 18.
37
2
A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E A LEI 11340/2006
2.1 BREVES APONTAMENTOS HISTÓRICOS
Todos os indivíduos têm um papel na sociedade, e o papel exercido pela
mulher, ao longo da história foi e é constantemente desvalorizado. A mulher já foi
vista como um ser inferior, cuja vida estava restrita às necessidades exclusivas da
família, afastada da esfera pública. O termo família origina-se do latim famulus, que
significa conjunto de escravos domésticos, no qual se incluíam a mulher, os filhos e
agregados. O pater famílias era um instituto jurídico estabelecido em Roma que
expressava o poder de vida e de morte que o homem tinha sobre todos os membros
da família. Ele era a única pessoa plena de direitos, de acordo com a lei. Tal
concepção prevaleceu por séculos, e no Brasil, até o novo Código Civil Brasileiro ser
sancionado e publicado, em 10 de janeiro de 2002. O artigo 233, capítulo II, do
Código Civil Brasileiro de 1916, dispunha que “o marido é o chefe da sociedade
conjugal, função que exerce com a colaboração da mulher, no interesse comum do
casal e dos filhos.”78
As representações acerca da mulher, seja na relação familiar ou na
sociedade, passam pelas concepções de fragilidade, dependência e
submissão, que dão ao homem o direito de tutela sobre ela. Essa
situação é freqüentemente posta como se fosse uma questão
inerente à natureza da mulher e não fruto de uma ideologia que
tende a reproduzir uma ordem social uníqua, baseada em relações
de poder contraditórias79.
Mesmo antes da era cristã há documentos que atestam a condição desigual
da mulher como algo institucionalizado. No Código de Hamurábi, por exemplo, havia
um artigo que determinava que a mulher repudiada pelo marido deveria se tornar
escrava da segunda esposa. Podia-se, ainda, quitar um débito pelo oferecimento da
78
BRAGHINI, Lucélia. Cenas repetitivas de violência doméstica: um impasse entre eros e tanatos.
Campinas: Unicamp, 2000, p. 24ss.
79
SILVA, Marlise Vinagre. Violência contra a mulher: quem mete a colher? São Paulo: Cortez,
1992, p.26.
38
esposa em servidão temporária, por período estipulado entre credor e devedor. Isto
é, a mulher era vista como uma espécie de mercadoria.80
As conquistas de lugares de destaque na sociedade por parte das mulheres
não evitaram que, ainda hoje, a diferença de papéis entre homens e mulheres seja
evidente. O que é resultado de um processo histórico.81
A sociedade humana, na qual ainda prevalece a ideologia patriarcal
(que estabelece a supremacia masculina) ainda impede o pleno
desenvolvimento das mulheres, discriminando-as de diferentes
maneiras.82
Da discriminação, uma das conseqüências é a violência, cuja história na
sociedade civil está atrelada à própria história da humanidade e está hoje tão
presente quanto nunca.
[...] o tema violência está presente em nosso cotidiano como um dos
fenômenos sociais mais inquietantes do mundo atual [...] Esse
fenômeno aparece em todas as sociedades; faz parte, portanto, de
qualquer civilização ou grupo humano: basta atentar para a questão
da violência no mundo atual, tanto nas grandes cidades como
também nos recantos mais isolados.83
A violência abarca o constrangimento físico e o moral, e pode ser
conceituada como:
[...] constrangimento físico ou moral, uso da força, coação, torcer o
sentido do que foi dito, estabelecer o contrário do direito à justiça –
que se baseia faticamente no dado, dar-se à ética -, negar a livre
manifestação que o outro expressa de si mesmo a partir de suas
convicções.84
80
TELES, Maria Amélia de Almeida; MELO, Mônica de. O que é violência contra a mulher. São
Paulo: Brasiliense S.A., 2002, p. 29.
81
Ibid., p. 30.
82
Ibid., p. 17.
83
GAUER, Ruth M. Chittó. Alguns Aspectos da fenomenologia da violência. In: ______. GAUER,
Gabriel J. Chittó; GAUER, Ruth M. Chittó (Org.). A fenomenologia da violência. Curitiba: Juruá,
2004, p. 13.
84
GAUER, op. cit.
39
A violência contra a mulher atinge todas as classes sociais, raças, etnias e
até mesmo posições profissionais e econômicas. Dentre os fatores que geram a
violência de gênero, a cultura patriarcal é determinante, a partir dela os homens
sentem-se donos de suas mulheres e se vêem no direito de praticar qualquer ato
violento contra elas85.
Nas relações antagônicas de poder entre homens e mulheres a
ideologia dominante tem o papel fundamental de difundir e reafirmar
a supremacia masculina e a inferioridade feminina. Quando a mulher,
em geral o pólo dominado desta relação, não aceita como natural o
lugar e o papel a ela impostos pela sociedade, os homens recorrem a
artifícios mais ou menos sutis para fazer valer seus privilégios – a
violência simbólica (moral e/ou psicológica) e a física, que se
manifesta nos espaços lacunares em que a ideologização da
violência simbólica não se fez garantir.86
Essa violência originada na discriminação histórica contra as mulheres se
funda na construção e consolidação de ações explícitas e implícitas que visam a
submissão feminina:
A violência é uma das mais graves formas de discriminação em
razão do sexo/gênero. Constitui violação aos direitos humanos e das
liberdades essenciais, atingindo a cidadania das mulheres,
impedindo-as de tomar decisões de maneira autônoma e livre, de ir e
vir, de expressar opiniões e desejos, de viver em paz em suas
comunidades; direitos inalienáveis do ser humano.87
Geralmente, as agressões são praticadas por maridos ou companheiros e,
em função do fator cultural, não raro, a sociedade percebe a violência doméstica
como um fenômeno natural, a ser tratado como um problema de ordem privada,
numa aprovação tácita do fato. Não há dúvida de que:
[...] a violência sofrida pela mulher não é exclusivamente de
responsabilidade do agressor. A sociedade ainda cultiva valores que
incentivam a violência, o que se impõe a necessidade de se tomar
consciência de que a culpa é de todos. O fundamento é cultural e
85
SILVA, 1992, p. 57-60.
Ibid., 57-8.
87
TELES; MELO, 1959, p. 23.
86
40
decorre da desigualdade no exercício do poder e que leva a uma
relação de dominante e dominado.88
A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 226, parágrafo 8º, atribui ao
Estado a responsabilidade de coibir a violência doméstica, numa primeira menção
da questão pela legislação brasileira. A Lei n. 9.099/95 instituiu os Juizados
Especiais Criminais, já previstos na Constituição Federal. Tais Juizados visavam à
simplificação da Justiça Penal, ao possibilitar soluções mais rápidas a casos de
menor potencial ofensivo, assim considerados em razão da pena cominada em
abstrato. Assim, muitos casos de violência doméstica eram tratados como violação
de menor potencial ofensivo e quase que na totalidade dos casos, paravam nos
juizados. Mas estes se mostraram ineficazes no combate à violência doméstica
porque esses casos passaram a ser banalizados, já que a pena cominada ao
agressor, quase sempre, não passava do pagamento de uma cesta básica ou
prestação de serviços à comunidade.89
A Lei n. 11.340, de 7 de agosto de 2006 (Lei Maria da Penha), no seu artigo
5º, considera violência doméstica como aquela: “[...] compreendida no espaço de
convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as
esporadicamente agregadas”.90
A Lei foi assim denominada devido ao que aconteceu com a farmacêutica
Maria da Penha Fernandes. Em 29 de maio de 1983, em Fortaleza, Ceará, ela foi
atingida por um tiro de espingarda enquanto dormia. O tiro foi dado por seu marido,
o economista Marco Antônio Heredia Viveiros, um colombiano naturalizado
brasileiro. O tiro atingiu a coluna da vítima, destruiu a terceira e a quarta vértebras, e
a deixou paraplégica. Marco Antônio negou a autoria do disparo, atribuindo-o a um
88
DIAS, Maria Berenice. A lei maria da penha na justiça: a efetividade da lei 11.340/2006 de
combate à violência doméstica e familiar contra a mulher. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p.
15.
89
BUGLIONE, Samantha. Justiça: a mulher enquanto metáfora do direito penal. Discursos
sediciosos: crime, direito e sociedade, Rio de Janeiro, n. 9, ano 5, jul. 2000. p. 214.
90
BRASIL. Lei n. 11.340, de 7 de agosto de 2006. Cria mecanismos para coibir a violência
doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8o do art. 226 da Constituição Federal, da
Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da
Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre
a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de
Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2006/Lei/L11340.htm>. Acesso em jun. 2010.
41
suposto assaltante. Depois de uma semana, ao retornar à sua casa, a vítima sofreu
um outro atentado. Maria da Penha recebeu uma descarga elétrica enquanto tomava
banho. O autor do crime declarou que tal descarga elétrica não poderia produzir
qualquer lesão à vítima. As agressões foram premeditadas, pois, dias antes das
agressões, ele tentou convencer a esposa a celebrar um seguro de vida, do qual ele
seria beneficiário. A prova testemunhal de empregados do casal, a intenção do
agressor de que sua esposa celebrasse um contrato de seguro, bem como o
encontro da espingarda utilizada no crime foram dados decisivos91.
Marco Antonio foi levado a júri em 1986 e acabou condenado. No
entanto, a defesa recorreu e o júri foi anulado, por falha processual.
Novamente julgado em 1996, o agressor pegou 10 anos e 6 meses
de reclusão. Houve apelação até os tribunais superiores, e Marco
Antonio ainda permaneceu livre até 2002 quando, finalmente, foi
preso, passados 19 anos da primeira tentativa de homicídio.
Atualmente, porém, já beneficiado pela progressão no regime
prisional, cumpre pena em liberdade e reside no Estado do Rio
Grande do Norte.92
Os procedimentos legais e instrumentos processuais brasileiros vigentes à
época colaboraram para a morosidade da Justiça. Em razão disso, o Centro pela
Justiça pelo Direito Internacional (CEJIL), o Comitê Latino-Americano de Defesa dos
Direitos da Mulher (CLADEM) e a vítima formalizaram denúncia à Comissão
Interamericana de Direitos Humanos da OEA. Assim, a Comissão da OEA publicou
o Relatório nº 54, de 2001, no qual concluiu que:
[...] a República Federativa do Brasil é responsável da violação dos
direitos às garantias judiciais e à proteção judicial, assegurados pelos
artigos 8 e 25 da Convenção Americana em concordância com a
obrigação geral de respeitar e garantir os direitos, prevista no artigo 1
do referido instrumento pela dilação injustificada e tramitação
negligente deste caso de violência doméstica no Brasil. Que o
Estado tomou algumas medidas destinadas a reduzir o alcance da
violência doméstica e a tolerância estatal da mesma, embora essas
medidas ainda não tenham conseguido reduzir consideravelmente o
padrão de tolerância estatal, particularmente em virtude da falta de
efetividade da ação policial e judicial no Brasil, com respeito à
violência contra a mulher. Que o Estado violou os direitos e o
91
ELUF. Luisa Nagib. A Lei Maria da Penha. 2007. Disponível em:
<http://pfdc.pgr.mpf.gov.br/clipping/abril/a-lei-maria-da-penha-1>. Acesso em: 29 de maio de 2010
[s.p.]
92
Ibid.
42
cumprimento de seus deveres segundo o artigo 7 da Convenção de
Belém do Pará em prejuízo da Senhora Fernandes, bem como em
conexão com os artigos 8 e 25 da Convenção Americana e sua
relação com o artigo 1 da Convenção, por seus próprios atos
omissivos e tolerantes da violação infligida.93
O Relatório recomendou ainda que se mitigasse a tolerância estatal à
violência doméstica contra a mulher no Brasil, de forma a:
[...] simplificar os procedimentos judiciais penais a fim de que possa
ser reduzido o tempo processual, sem afetar os direitos e garantias
do devido processo [e estabelecer] formas alternativas às judiciais,
rápidas e efetivas de solução de conflitos intrafamiliares, bem como
de sensibilização com respeito à sua gravidade e às conseqüências
penais que gera94.
Mas, a violência doméstica não se circunscreve àquela praticada contra a
mulher, mas na maior parte dos casos ela é a vítima desse tipo de violência.
O artigo 5º da Lei Maria da Penha dispõe que: “Configura violência
doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero
que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou
patrimonial”.
Em termos conceituais, violência doméstica é mais abrangente que violência
contra a mulher, mas esta última pode ocorrer em maior escala, já que não ocorre
apenas no ambiente doméstico.
O agressor possui várias formas para externar sua agressividade e, faz-se
necessário distinguir em que consiste a conduta do agressor.
A Lei Maria da Penha tratou, no seu artigo 7º, da definição das formas de
violência doméstica e familiar contra a mulher, para uma melhor adequação típica:
Art. 7o São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher,
entre outras: I - a violência física, entendida como qualquer conduta
93
ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Comissão Interamericana de Direitos Humanos
(2000). Relatório n° 54/01. Caso 12.051: Maria da Penha Maia Fernandes. 4.abr.2001. Disponível
em: <http://www2.fpa.org.br/portal/modules/news/article.php?storyid=227>. Acesso em jun. 2010.
94
Ibid.
43
que ofenda sua integridade ou saúde corporal; II - a violência
psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause dano
emocional e diminuição da auto-estima ou que lhe prejudique e
perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar
suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante
ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento,
vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem,
ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou
qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à
autodeterminação; III - a violência sexual, entendida como qualquer
conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de
relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação
ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de
qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer
método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao
aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou
manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos
sexuais e reprodutivos; IV – a violência patrimonial, entendida como
qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição
parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho,
documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos
econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades;
V - a violência moral, entendida como qualquer conduta que
configure calúnia, difamação ou injúria.
Esta não é uma enumeração estanque das formas de violência contra a
mulher que a lei abrange, já que o caput do art. 7º traz a expressão “entre outras”.
Pode-se ver que a violência física, apesar de ser a mais facilmente comprovada, não
é a única forma de agressão praticada. A interpretação das formas elencadas pode
definir a violência física como:
A ofensa à vida, saúde e integridade física. [...] [A violência
psicológica] é a ameaça, o constrangimento, a humilhação pessoal.
[A violência sexual é] o constrangimento com o propósito de limitar a
autodeterminação sexual da vítima, tanto pode ocorrer mediante
violência física como através de grave ameaça (violência
psicológica). [A violência patrimonial é a] retenção, subtração,
destruição de instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens,
valores e direitos ou recursos econômicos. [E a violência moral,] em
linhas gerais, são os crimes contra a honra da mulher.95
Deve-se ponderar, ainda, sobre a possibilidade de ocorrência não explícita
de violência ou aquela que não deixa marcas. Há situações em que não é fácil
95
PORTO, Pedro Rui da Fontoura. Violência doméstica e familiar contra a mulher: lei 11.340/06:
análise crítica e sistêmica. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 25.
44
comprovar as agressões, o que serve, por vezes, como justificativa para que não
seja feito o registro da ocorrência, como explicita Silva:
Além do fato de não haver provas materiais (lesões, por exemplo)
nos casos de violência simbólica e até em algumas situações de
agressão física (por exemplo, alguns agressores preferem atingir
regiões que não deixam marcas visíveis, como a cabeça, cujos sinais
são ocultados pelo cabelo), outro fator obstaculizante do
encaminhamento legal é a dificuldade de se oferecerem testemunhas
oculares. No caso da chamada violência doméstica, é comum sua
ocorrência no espaço do lar, onde quase sempre não é presenciada
por ninguém.96
O âmbito doméstico é definido pelo vínculo e pelas relações exigidas para a
caracterização da violência doméstica ou familiar contra a mulher; é compreendido
como o espaço em que se dá alguma forma de agressão referida no artigo 7º da Lei
n. 11.340/2006. Para tanto, basta que se consume na unidade doméstica de
convívio entre pessoas, mesmo que estas estejam apenas esporadicamente
agregadas e não tenham vínculo afetivo ou familiar entre si.
Já não prevalece o caráter espacial do lar ou de coabitação, mas sim
o vínculo familiar decorrente do parentesco natural, por afinidade ou
por vontade expressa (civil). [...] dispensa-se tanto a coabitação sob
o mesmo teto, quanto o parentesco familiar, sendo suficiente relação
íntima de afeto e convivência, presente ou pretérita. A adjetivação
‘íntima’ já pressupõe que se trata de uma relação de caráter sensual,
ao menos, inspirada em interesses sexuais, e não simples
amizade97.
Por muito tempo, as agressões praticadas contra as mulheres não eram
vistas como crime, na sociedade brasileira, pelo fato de ocorrerem no âmbito
privado, em relações íntimas. E até recentemente a violência praticada contra a
mulher no âmbito familiar não recebia a devida atenção da sociedade, do legislador
e do Poder Judiciário. No cenário internacional, o reconhecimento integral dos
direitos humanos da mulher só veio a ocorrer em 1993, na Declaração e Programa
de Ação de Viena. O artigo 18 da Declaração de Viena dispõe que “os direitos
96
97
SILVA, 1992, p. 59. (grifos da autora)
PORTO, 2007, p. 25.
45
humanos das mulheres e das meninas são inalienáveis e constituem parte integral e
indivisível dos direitos humanos universais.”98
2.2 POSICIONAMENTOS DOS JURISTAS ACERCA DA APLICAÇÃO DA LEI
Para Dias, o Estado era omisso em sua obrigação de punir ao condicionar à
representação a ação penal relativa às lesões corporais leves e lesões culposas,
pois transmitia à vítima, segundo critério subjetivo de conveniência, a iniciativa pela
busca de apenação para seu agressor99.
O
autor
Campos
considera
que
a
relutância
na
aceitação
da
constitucionalidade e aplicação da Lei 11.340/2006 resulta do viés tradicionalista do
pensamento penal crítico brasileiro100.
A violação do princípio da igualdade entre homens e mulheres é o principal
argumento de quem defende a inconstitucionalidade da Lei Maria da Penha. Maria
Amélia assevera que ao adotar uma postura de gênero frente ao princípio da
igualdade que a Constituição Federal proclama, a lei é desigual entre os sexos, pois
dispensa às mulheres mecanismos de proteção mais eficientes que os oferecidos
aos homens situações semelhantes de violência doméstica101.
Já Campos pensa que a Lei Maria da Penha promove a discriminação
sexual, pois rompe com o princípio da igualdade, já que não há justificativa
constitucional para que a dois crimes idênticos, mas com sujeitos passivos
diferenciados, sejam aplicadas penas diferenciadas. A autora ainda considera que, a
despeito de que a Lei Maria da Penha objetive que a mulher vítima de violência
doméstica tenha pleno exercício dos direitos fundamentais à vida, à igualdade, e à
98
ALMEIDA, 2001, p. 81.
DIAS, Maria Berenice. A impunidade dos delitos domésticos. Disponível em:
[http://www.mariaberenicedias.com.br/site/content.php?cont_id=132&isPopUp=true].
100
CAMPOS, Carmen Hein de. Lei Maria da Penha: mínima intervenção punitiva, máxima
intervenção social. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais. v. 16. n. 73.
101
CASTANHO, Maria Amélia Belomo. Questões de gênero no processo de exclusão social: a
violência doméstica contra a mulher e o acesso à justiça. In: Revista de Direito das Famílias e
Sucessões, n. 3, abril 2008, p. 25.
99
46
dignidade humana, os critérios usados para sua aplicação (sujeito passivo do sexo
feminino, violência no âmbito familiar ou doméstico) são inconstitucionais por
excepcionarem o exercício dos direitos fundamentais em razão do sexo, o que gera
uma desigualdade fundamental. Embora a Constituição de 1988 tenha consagrado o
princípio da igualdade, não houve efetivamente uma ruptura com a cultura das
relações patriarcais de poder, em que as mulheres são colocadas no papel de
vítimas da violência moral, física, sexual e psicológica102.
Freitas e Mendes também consideram a Lei inconstitucional por ofensa aos
artigos 5º, caput e inciso I, e 226, § 5º, da Constituição da República, nos quais se
trata da inviolabilidade do direito à igualdade entre homens e mulheres:
A nova legislação é inconstitucional porque foi elaborada com o
intuito de beneficiar exclusivamente a mulher, em desfavor do
homem, o que afronta o princípio da igualdade, sendo este norma
supraconstitucional ao qual todas as outras devem obediência,
servindo como garantidor contra injustiças e para tolher
favoritismos103.
Há, contudo, uma corrente na doutrina que não vê ofensa ao princípio
constitucional da igualdade na nova Lei, considerando-a um instrumento de
transformação social que procura corrigir situações em que o sexo ainda constitui
fator de desigualdade:
[...] estão sendo tratados desigualmente homem e mulher, tendo em
vista que a mulher fragilizada pela violência tem de ser protegida
para alçar o status de igualdade. O fato de homens poderem sofrer
violência doméstica, além de configurar situação isolada, não
compondo a conjuntura sócio-econômica e histórica do país, já
possui a salvaguarda na legislação em vigor, de forma que a Lei de
Violência Doméstica vem na exata medida de efetivar o princípio da
igualdade104.
102
CAMPOS, Roberta Toledo. Aspectos constitucionais e penais significativos da Lei Maria da Penha.
In: De Jure, Revista Jurídica do Ministério Público do Estado de Minas Gerais. n. 8. p. 282.
103
FREITAS, Aldilene Vieira de; MENDES, Patrícia de Gouveia. A inconstitucionalidade da Lei Maria
da Penha sob o prisma da igualdade constitucional. Revista Direito e Liberdade Edição Especial,
Mossoró, vol. 5, n. 1. Disponível em:
<http://www.esmarn.org.br/ojs/index.php/revista_teste/article/view/159/169>. Acesso em jun. 2010.
104
SOUZA, Luiz Antônio de; KÜMPEL, Vitor Frederico. Violência doméstica e familiar contra a
mulher: Lei 11.340/2006. 2ª ed. São Paulo: Método, 2008, p. 68.
47
Outro item aventado pela crítica à Lei Maria da Penha se refere à opção do
legislador em afastar, nos crimes disciplinados por esta lei, independentemente da
pena prevista, a incidência da Lei 9.099/95. Isso violaria o princípio da isonomia
entre autores de delitos de menor potencial ofensivo, pois trata diferentemente os
crimes praticados em relações de violência doméstica e aqueles mesmos delitos
quando fora do âmbito doméstico.
A opinião de Rangel é que a Constituição Federal determina que as
infrações de menor potencial ofensivo devem ser julgadas nos Juizados Especiais
Criminais, assim:
Por mais que o legislador queira evitar impunidade dos crimes de
violência doméstica e familiar contra a mulher não pode fazê-lo
rasgando a Constituição da República. Há limites e balizas
constitucionais que devem ser respeitados105.
A questão mais polêmica é o afastamento da necessidade de representação
nos delitos de lesão corporal leve. A Lei nº. 9.099/95, na seção das disposições
finais, incluiu a representação como condição de procedibilidade para a ação penal
pública nos crimes de lesão corporal leve, até então independente da manifestação
de vontade da vítima. Como a Lei nº.11.340/06
vetou a aplicação da Lei nº.
9.099/95, instalou-se um debate jurídico sobre a necessidade de representação
nesses delitos, se praticados contra mulher nas circunstâncias que o artigo 5º da Lei
Maria da Penha enumera. Aqueles que sustentam a manutenção da necessidade de
representação da vítima baseiam-se nos métodos interpretativos teleológico e
sistemático. Conforme esse posicionamento, a intenção da nova Lei em relação à
inaplicabilidade da Lei nº. 9.099/95 está restrita aos benefícios da transação penal,
da conciliação extintiva da punibilidade e da suspensão condicional do processo.
Além disso, a recente Lei traz dispositivos que tratam do procedimento de tomada
da representação e da retratação da representação106; Já os juristas que defendem
que a necessidade de representação foi afastada fazem uso do método
interpretativo gramatical e também do teleológico, considerando que na redação do
105
RANGEL, Paulo. Direito Processo Penal.16ª ed. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2009. p. 186.
JESUS, Damásio de. A questão da renúncia à representação na ação penal pública por crime
de lesão corporal resultante de violência doméstica ou familiar contra a mulher (Lei n. 11.340,
de 7 de agosto de 2006). São Paulo: Atlas, 2006.
106
48
artigo 41 não foi indicada qualquer restrição, o que afastaria, por completo, sua
aplicação em detrimento da a aplicação da Lei nº. 9.099/95. Ademais, a intenção da
nova Lei seria apresentar um tratamento mais rigoroso e eliminando o modelo
conciliatório proporcionado pela necessidade de representação107.
Em regra, as ações penais são públicas incondicionadas, conforme já
destacado, contudo o inciso I, art. 12, da Lei Maria da Penha determina que, em
todos os casos nos quais uma mulher tenha sido vítima de violência doméstica, a
autoridade policial deverá: “I – ouvir a ofendida, lavrar o boletim de ocorrência e
tomar a representação a termo, se apresentada”.
A representação pode ser ou não efetivada pela vítima de violência
doméstica ou familiar. Deduzir-se-ia daí que a espécie da ação penal, apropriada
para aplicar a Lei Maria da Penha, é a contida no § 1º do art. 100 do Código Penal:
“A ação pública é promovida pelo Ministério Público, dependendo, quando a lei o
exige, de representação do ofendido [...]”.
Tal interpretação para a aplicação da Lei Maria da Penha fomenta, pois, uma
ação penal pública condicionada à representação, o que é ratificado pelo artigo 16
desta lei:
Art. 16. Nas ações penais públicas condicionadas à representação
da ofendida de que trata esta Lei, só será admitida a renúncia à
representação perante o juiz, em audiência especialmente designada
com tal finalidade, antes do recebimento da denúncia e ouvido o
Ministério Público.
Em tese, se não há interesse da vítima em processar criminalmente seu
agressor, o Ministério Público não poderia oferecer denúncia, e se oferecida e
recebida, o processo seria nulo. Se a ação penal relativa à Lei Maria da Penha fosse
incondicionada, não seria necessária qualquer representação da vítima. Bastando
concluir o inquérito sem representação, com posterior denúncia do Ministério
Público, e recebimento pelo juiz. Porém, a redação é imprecisa, pois a lei não trata
de ações penais condicionadas à representação da ofendida e sim de infrações
107
GOMES, Luiz Flávio; BIANCHINI, Alice. Lei da violência contra a mulher: renúncia e representação
da vítima. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 1178, 22 set. 2006. Disponível em:
<http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=8965>. Acesso em: 28 jun. 2010.
49
penais de ação penal condicionada à representação da ofendida. Trata-se, portanto,
de desistência da representação já formalizada. Fala-se em renúncia se a
representação não chegou a ser formalizada. As dificuldades começam com a
utilização confusa, dos termos jurídicos, renúncia e retratação. Tourinho Filho
considera renúncia como a abdicação do direito de promover ação penal privada e a
retratação, citada pelo Código Penal, em seu artigo 102, e pelo Código de Processo
Penal, em seu artigo 25, como a abdicação da vontade de ver instaurado o inquérito
policial ou de que seja oferecida a denúncia108.
Logo, o termo renúncia empregado pela lei, parece ter o sentido de
retratação ao direito de representação. O legislador estabeleceu que tal expediente
só produzirá efeitos se exercido até o recebimento da denúncia, admitindo uma
lacuna temporal entre o oferecimento da denúncia pelo Ministério Público e o seu
efetivo recebimento pelo juízo. Se nesse período, a ofendida se retratar, haveria a
falta de uma condição de procedibilidade da persecução criminal, ou seja, a
representação. Contudo, tal orientação não encontra lastro nem Código de Processo
Penal, no seu artigo 25, e nem no Código Penal, no artigo 102. Esses diplomas
legais determinam que uma vez oferecida a denúncia, a representação é irretratável,
não havendo distinção entre o momento do oferecimento e do recebimento da
denúncia, como ocorre na Lei Maria da Penha. De acordo com Tourinho Filho, não
se deve confundir início da ação penal com o seu ajuizamento nem com a
instauração da relação processual. Se o Promotor de Justiça já ofertou a denúncia, a
representação se tornou irretratável109. A partir desse momento o princípio da
indisponibilidade da ação penal norteia a atuação do Ministério Público, o que
impede o recuo do órgão acusador, consoante o art. 16 da Lei Maria da Penha.110
A mudança ocorrida na Lei Maria da Penha, em torno da idéia de
representação nas ações penais públicas condicionadas, pode ser vista já no artigo
10 da referida Lei, segundo o qual a autoridade policial, tomando conhecimento “da
iminência ou da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher”, terá o
poder/dever de agir de ofício, adotando “as providências legais cabíveis”, como
108
TOURINHO FILHO, 2003, p. 295.
Ibid, p. 310.
110
COSTA JÚNIOR, Quintino Farias. Ação Penal Pública Condicionada e a Lei Maria da Penha:
algumas considerações. Disponível em:
<https://www2.mp.pa.gov.br/sistemas/gcsubsites/upload/40/acao_penal_publica.pdf>. Acesso em
jun. 2010.
109
50
ocorre nas ações penais públicas incondicionadas. Sua atuação não estaria, pois,
vinculada à manifestação expressa da vítima.111
Costa Júnior denomina isso de representação tácita, à semelhança da
renúncia tácita de que trata o código penal artigo 104.
Assim, se até o oferecimento da denúncia, respeitado o prazo
decadencial previsto no código de processo penal, artigo 38, a
ofendida não apresentar sua retratação, convalidado estarão todos
os atos até então já praticados em desfavor do agressor, autorizando
com isso, ao Ministério Público, ingressar em juízo com a
competente ação penal. Deixa de ser assim, portanto, a
representação da vítima, em sua acepção estrita, uma conditio sine
qua non, para adoção das medidas legais cabíveis, quando se tratar
de crimes relacionados com a violência doméstica e/ou familiar.112
E continua afirmando que:
Melhor andaria o legislador, se tivesse expressamente declarado de
ação pública incondicionada, as condutas típicas previstas no código
penal, quando relacionadas com a violência doméstica e/ou familiar,
pois na verdade, foi o que fez de forma oblíqua113.
No tocante à renúncia, Cunha e Pinto declaram que:
Sabendo que renúncia significa abdicação do exercício de um direito,
clara está a impropriedade terminológica utilizada pelo legislador,
quando, na realidade, pretendeu se referir à retratação da
representação, ato da vítima (ou de seu representante legal)
reconsiderando o pedido-autorização antes externado (afinal, não se
renuncia ao direito já exercido!). Mas mesmo essa alternativa
encontra óbice na letra do art. 25, do CPP, que não admite a
retratação depois de ofertada a denúncia. In casu, a audiência
tratada no dispositivo em estudo é realizada quando já se tem a
denúncia, conforme de verifica da parte final do artigo em comento,
ao tempo, portanto, que não mais seria admitida a retratação. Vê-se,
assim, que a partir do advento da Lei Maria da Penha, os arts. 25 do
CPP e, 102 do CP, passaram a receber uma nova leitura, de tal
maneira que a retratação, nos casos de violência doméstica e
familiar, passa a ser admitida mesmo após a oferta da denúncia.114
111
COSTA JÚNIOR, 2010.
Ibid.
113
Ibid.
114
CUNHA, Rogério Sanches; PINTO, Ronaldo Batista. Violência doméstica: Lei Maria da Penha
(lei 11.340/2006) comentada artigo por artigo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 75
112
51
Desse modo, o advento da Lei Maria da Penha fez com que se
estabelecessem divergências na doutrina com relação ao direito de representação
no crime de lesão corporal leve. Alguns entendem que a ação penal deve ser pública
incondicionada,
outros
entendem
que
deve
ser
pública
condicionada
à
representação da ofendida. Tais divergências ocorrem justamente porque a Lei
Maria da Penha, no seu artigo 41, veda expressamente a aplicação da Lei n.º
9.099/95, dispondo que: “[...] aos crimes praticados com violência doméstica e
familiar contra a mulher, independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei n.
9.099, de 26 de setembro de 1995”.
O autor Souza é da mesma opinião e declara que:
No que diz respeito à necessidade de representação naquelas
condutas tipificadas no artigo 129, § 9º, do CP, seja nas hipóteses
contempladas como violência intrafamiliar (1ª parte), seja nas
hipóteses previstas na última parte do dispositivo, temos que a ação
penal é pública incondicionada, a uma, porque estamos diante de um
tipo diferente daquele da cabeça do art.129 e com na diferenciada,
sendo um tipo qualificado e, além disso, por força do disposto no art.
41 da Lei 11.340/06, afasta-se a aplicação da exigência da
representação quando se tratar de violência doméstica e familiar
praticada contra a mulher, pois veda-se a aplicação da Lei 9.099/95
como um todo, inclusive do seu art. 88. 115
Mas há na doutrina pensamento diverso, segundo o qual o conteúdo do § 9º
descreve o tipo especial do crime de lesão corporal leve, logo, a ação penal só pode
ser condicionada à representação do ofendido.116
2.3 O PROCEDIMENTO DA LEI MARIA DA PENHA
A legislação brasileira não previa violência doméstica como um tipo
específico. Mas casos de lesão à integridade física, ou psicológica contra
115
SOUZA, Sérgio Ricardo de. Comentários à lei de combate à violência contra a mulher: lei
Maria da Penha 11.340/06. 2. ed. rev. e atual. Curitiba: Juruá, 2008, p. 81.
116
Ibid.
52
ascendente, descendente, irmão ou cônjuge, poderia haver o aumento de pena em
virtude do que dispõe o artigo 61, inciso II, alíneas ‘e’ e ‘f’, do Código Penal: as
agravantes genéricas previstas para tais crimes. A Lei 9.099/1995, que criou os
Juizados Especiais Cíveis e Criminais agravou a falta de proteção específica, pois,
embora tivesse o objetivo de agilizar o trâmite processual, acabou por tornar o
julgamento dos crimes de lesões corporais leves e crimes contra a honra algo
banalizado. Os mecanismos de solução de conflitos menos formais, visando à
celeridade, incentivavam a conciliação e a renúncia do direito de representação por
parte das vítimas. A tentativa inicial de conciliação estimulava as mulheres a
conciliar com o autor da agressão, em nome da harmonia familiar. Se a tentativa de
conciliação não prosperasse, o autor, preenchendo as condições do art. 76, § 2° da
Lei 9.099/95, era intimado para uma audiência de transação penal, na qual era
proposta, pelo Ministério Público, o cumprimento de uma pena restritiva de direitos,
tal como a prestação de serviço à comunidade, ou pagamento de prestação
pecuniária à vítima, comumente revertida em cestas básicas. A denúncia só era
oferecida pelo Ministério Público se a proposta de transação penal não fosse
aceita117.
Se deflagrada a ação penal, caso o autor preenchesse os requisitos do art.
77 do CP e 89 da Lei 9.099/95, ele poderia ser beneficiado ainda com a suspensão
condicional do processo. E mesmo quando a ação penal transcorria normalmente,
se os autores fossem condenados à pena privativa de liberdade, esta ainda poderia
ser substituída por uma das penas restritivas de direito que o art. 44 do CP prevê. A
aprovação da Lei nº 10.886 acrescentou o § 9°, ao art. 129 do Código Penal,
criando a modalidade do crime de violência doméstica, mas casos desse tipo
continuaram a ser julgados conforme a Lei 9.099/95118.
Os arts. 13 a 17 estabelecem as disposições gerais aplicáveis ao processo
criminal. Fica permitida a aplicação subsidiária do Código de Processo Penal, do
Código de Processo Civil, do Estatuto da Criança e do Adolescente, do Estatuto do
Idoso, além de outras normas específicas. A competência jurisdicional será fixada de
117
KATO, Shelma de. Lei Maria da Penha: uma lei constitucional para enfrentar a violência doméstica
e construir a difícil igualdade de gênero. In: Revista brasileira de ciências criminais. v. 16, n. 71, p.
276.
118
Ibid.
53
acordo com a opção da vítima: o local de seu domicílio, de sua residência, do lugar
do fato do crime ou do domicílio do agressor119.
A Lei 11.340/2006 trouxe mecanismos específicos para coibir a violência
contra a mulher. A tutela prevista na Lei Maria da Penha é um sistema jurídicoholístico em que se busca um atendimento integrado à mulher vítima de violência
doméstica. De início, uma das alterações trazidas pela lei foi a criação das Varas de
Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher. Além disso, nos casos de violência
doméstica e familiar contra a mulher, a lei veda expressamente a aplicação de
penas de cesta básica ou prestação pecuniária, e também a substituição da pena
que implique no pagamento de multa120.
Os principais mecanismos oferecidos pela Lei de tutela à mulher no
campo penal e processual penal são os seguintes: a) dá nova
redação ao § 9º do art. 129 do CP modificando a pena que passa a
ser de 3 meses a 3 anos e cria uma agravante genérica ao CP (arts.
43 e 44); b) autoriza a prisão preventiva e modifica a Lei de
Execuções Penais (arts. 20, 42 e 45); c) veda a incidência da Lei
9099/95 (art. 41); d) cria medidas protetivas de urgência para o
agressor e para a ofendida (arts. 22 e 23); e) autoriza a criação em
cada Estado dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra
a Mulher através de Lei Estadual (art. 14). 121
Havendo a ocorrência de um crime proveniente de violência doméstica e
familiar contra a mulher, a autoridade policial ao tomar conhecimento da notitia
criminis, deverá lavrar o boletim de ocorrência (art. 6º do CPP), adotando as
seguintes providências, de acordo com o artigo 11 da Lei 11.340/06:
No atendimento à mulher em situação de violência doméstica e
familiar, a autoridade policial deverá, entre outras providências: I garantir proteção policial, quando necessário, comunicando de
imediato ao Ministério Público e ao Poder Judiciário; II - encaminhar
a ofendida ao hospital ou posto de saúde e ao Instituto Médico Legal;
119
ALVES, Fabrício da Mota. Lei Maria da Penha: das discussões à aprovação de uma proposta
concreta de combate à violência doméstica e familiar contra a mulher. Jus Navigandi, Teresina, ano
10, n. 1133, 8 ago. 2006. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=8764>. Acesso
em jun. 2010.
120
CAMPOS, Carmen Hein de. Lei Maria da Penha: mínima intervenção punitiva, máxima
intervenção social. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo: Revista dos
tribunais, n. 73, jul./ago. 2008. Disponível em:
<http://www.mp.ba.gov.br/biblioteca/sumarios/criminais/073.pdf>. acesso em jun. 2010.
121
FREITAS, Jayme Walmer de, Impressões objetivas sobre a lei de violência doméstica.
<http://www.boletimjuridico.com.br/doutrina/impressao.asp?id=1699>. [s./p.]
54
III - fornecer transporte para a ofendida e seus dependentes para
abrigo ou local seguro, quando houver risco de vida; IV - se
necessário, acompanhar a ofendida para assegurar a retirada de
seus pertences do local da ocorrência ou do domicílio familiar; V informar à ofendida os direitos a ela conferidos nesta Lei e os
serviços disponíveis.
A autoridade policial que tomar conhecimento de casos de violência
doméstica e familiar contra a mulher, deverá adotar o procedimento seguinte:
Art. 12. Em todos os casos de violência doméstica e familiar contra a
mulher, feito o registro da ocorrência, deverá a autoridade policial
adotar, de imediato, os seguintes procedimentos, sem prejuízo
daqueles previstos no Código de Processo Penal:
I – ouvir a ofendida, lavrar o boletim de ocorrência e tomar a
representação a termo, se apresentada; II – colher todas as provas
que servirem para o esclarecimento do fato e de suas circunstâncias;
III – remeter, no prazo de 48 (quarenta e oito) horas, expediente
apartado ao juiz com o pedido da ofendida, para a concessão de
medidas protetivas de urgência; IV – determinar que se proceda ao
exame de corpo de delito da ofendida e requisitar outros exames
periciais necessários; V – ouvir o agressor e as testemunhas; VI –
ordenar a identificação do agressor e fazer juntar aos autos sua folha
de antecedentes criminais, indicando a existência de mandado de
prisão ou registro de outras ocorrências policiais contra ele; VII –
remeter, no prazo legal, os autos do inquérito policial ao juiz e ao
Ministério Público.
§ 1º O pedido da ofendida será tomado a termo pela autoridade
policial e deverá conter:
I – qualificação da ofendida e do agressor; II – nome e idade dos
dependentes;
§ 2º A autoridade policial deverá anexar ao documento referido no §
1º o boletim de ocorrência e cópia de todos os documentos
disponíveis em posse da ofendida.
§ 3º Serão admitidos como meios de prova os laudos ou prontuários
médicos fornecidos por hospitais e postos de saúde.
Deve-se ler com atenção o inciso I, que orienta a autoridade policial a “tomar
a representação a termo, se apresentada”. Aparentemente, o boletim de ocorrência,
o depoimento da ofendida, o exame de corpo delito e os depoimentos do agressor e
de testemunhas não são suficientes para o Ministério Público oferecer denúncia. A
representação da ofendida é uma exigência da Lei Maria da Penha. De acordo com
o art. 100, § 1º, do Código Penal, o Ministério Público só tem legitimidade para
denunciar um agressor se houver representação:
55
Art. 100 – A ação penal é pública, salvo quando a lei expressamente
a declara privativa do ofendido.
§ 1º - A ação pública é promovida pelo Ministério Público,
dependendo, quando a lei o exige, de representação do ofendido ou
de requisição do Ministro da Justiça.
Conforme o autor Mirabete:
Depende a instauração do inquérito policial de representação da
vítima em casos expressos em lei, hipótese de ação pública
condicionada. A representação, uma espécie de notitia criminis
postulatória, é um pedido – autorização em que o interessado
manifesta o desejo de que seja proposta a ação penal pública (item
24.5) e, portanto, como medida preliminar, o inquérito policial. Pode
ser ela dirigida à autoridade policial, ao juiz ou ao órgão do Ministério
Público (item 39). Nos termos dos arts. 100, § 1º, do CP e 24 do
CPP, podem oferecê-la o ofendido ou quem tenha poderes para
representá-lo (representante legal ou procurador com poderes
especiais). A representação oral ou sem assinatura autenticada deve
ser reduzida a termo (art. 39, § 1º). Sem a representação, nos casos
em que é ela exigida, não se pode instaurar o inquérito policial122.
Contudo, a Lei Maria da Penha não impede a instauração de inquérito
policial, mesmo se não for oferecida representação na ocasião da lavratura do
boletim de ocorrência.
122
MIRABETE, 2005, p. 103.
56
3
O PRINCÍPIO DA OPORTUNIDADE NO EXERCÍCIO DA RENÚNCIA À
REPRESENTAÇÃO LEI MARIA DA PENHA
A ação penal rege-se por alguns princípios, no que diz respeito ao direito do
ofendido de não se expor, desde que considere que o procedimento processual lhe
será mais danoso que o próprio delito do qual foi vítima, é importante que se cite o
princípio da oportunidade. Para Nucci, este princípio é:
O que rege a ação penal privada, conferindo o Estado ao particular,
ofendido pela ação delituosa de alguém, a faculdade de ingressar
com ação penal contra o agressor. Enquanto a ação penal pública
regula-se pelo princípio da obrigatoriedade, devendo o Estado ajuizar
ação penal contra infratores, a ação penal privada fica ao critério e
disponibilidade da vítima.123
Já, o doutrinador Avena comentando este princípio, afirma que:
[...] à vítima do crime, ao seu representante legal ou aos seus
sucessores (na hipótese do art. 31 do CPP) compete decidir sobre o
ajuizamento ou não. Isso porque, em muitos casos, a exposição
natural de um processo criminal pode ser ainda mais prejudicial do
que a própria sensação de impunidade provocada pela inércia em
acionar o agente criminoso.124
Para os crimes previstos pela Lei Maria da Penha, quando a ação é
condicionada à representação, a aplicação deste princípio é oportuna, pois a
exposição da vítima pode lhe ser mais danosa que a própria agressão sofrida,
cabendo-lhe, então, decidir sobre a conveniência da propositura da ação penal. É
fundamental que se respeitem os princípios que regem nosso ordenamento jurídico
e a aplicação do princípio da oportunidade, numa ação penal pública condicionada,
123
NUCCI, Guilherme de Souza. Código Processual Comentado. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais Ltda, 2008. p. 142.
124
AVENA, Norberto Cláudio Pâncaro. Processo Penal: Esquematizado. São Paulo: Método, 2009.
p. 175.
57
é uma garantia ao cidadão de que a justiça está atuando de acordo com os
princípios constitucionais.
Os princípios constituem idéias gerais e abstratas, que expressam
em menor ou maior escala todas as normas que compõem a seara
do direito. Poderíamos mesmo dizer que cada área do direito não é
senão a concretização de certo número de princípios, que constituem
o seu núcleo central. Eles possuem uma força que permeia todo o
campo sob seu alcance. Daí por que todas as normas que compõem
o direito constitucional devem ser estudadas, interpretadas,
compreendidas à luz desses princípios. Quanto os princípios
consagrados constitucionalmente, servem, a um só tempo, como
objeto da interpretação constitucional e como diretriz para a atividade
interpretativa, como guias a nortear a opção de interpretação. 125
Nestes princípios confluem os valores mais relevantes da ordem jurídica, pois a
Constituição não é um mero conjunto de regras justapostas. Ela deve ser um
sistema em harmonia, e os princípios constitucionais consubstanciam as premissas
da ordem jurídica, irradiando-se por todo o sistema. Eles orientam a justiça no
tocante aos caminhos que devem ser percorridos126.
3.1 RENÚNCIA NA REPRESENTAÇÃO
A representação do ofendido consiste em uma espécie de pedidoautorização através da qual ele ou seu representante legal manifestam o desejo de
que a ação penal seja instaurada. Nos crimes de ação penal pública condicionada,
em que o interesse privado é mais afetado que o interesse público, há a
necessidade de representação. Em tais casos, instaurar um processo para a
apuração do delito, poderia acarretar danos ainda maiores para o ofendido, por isso
125
BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito constitucional. 21ª .ed. São Paulo: Saraiva, 2000. p.
57.
126
BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição. São Paulo: Saraiva, 1996,
p. 142-143.
58
fica a seu critério a busca pela reparação do dano sofrido, ou a preferência por
resguardar-se de outro dano ainda maior127.
Alguns crimes em que a ação penal cabível é condicionada à representação
são os de perigo de contágio venéreo (art.130, § 2º), em que a exposição pública do
fato pode trazer mais danos ao ofendido do que o perigo de dano do delito, além dos
crimes contra a dignidade sexual (arts. 213 a 219). Nesses casos, aplica-se a ação
penal condicionada (art. 225, parágrafo único e súmula 608 STF)128.
Há o entendimento consagrado na Jurisprudência de que a formulação da
representação não exige procedimento especial, bastando a manifestação do desejo
de instaurar ação criminal contra o agressor, por parte da vítima ou de seu
representante legal. Contudo, este deverá prestar todas as informações úteis para a
apuração do fato, tal como dispõe o art. 39, §2º do Código de Processo Penal, cujo
caput prevê que a representação pode ser dirigida ao Juiz, ao Ministério Público ou
à autoridade policial. Não há necessidade estrita de que esta representação seja
feita por intermédio de profissional dotado de capacidade postulatória, já que se trata
de figura processual129.
A
natureza
jurídica
da
representação
é
vista,
na
doutrina,
com
posicionamentos diferentes. Alguns autores compreendem a representação como
um direito material; para outros, é de natureza mista, ou seja, como pressuposto da
ação e, por fim, há entendimento de que a representação é de natureza processual.
A posição dominante, contudo, entende que a representação tem a natureza
processual, da qual compartilham Bettiol, Marques, ente outros130.
O autor Tourinho Filho ensina que:
Sendo a representação aquela condição à qual se subordina a
propositura da ação penal, nos casos previstos em lei, inegavelmente
sua natureza é processual. [...] A despeito de ser processual sua
natureza, há nela consideráveis aspectos penais, pois o seu nãoexercício acarreta a decadência, que é causa extintiva de
punibilidade131.
127
MIRABETE, 2005, p. 111.
Ibid.
129
Ibid.
130
Ibid.
131
TOURINHO FILHO, 2003, p. 308.
128
59
O prazo para o direito de representação ser exercido é de seis meses, a
partir do dia em que seja tomado conhecimento da autoria do crime, pela vítima ou
por seu representante legal (arts.103 do Código Penal e 38 do Código Processual
Penal). O art. 38 do Código de Processo Penal tem, in verbis, o seguinte conteúdo:
[...] salvo disposição em contrário, o ofendido, ou seu representante
legal, decairá do direito de queixa ou representação, se não o
exercer dentro do prazo de seis meses contado do dia em que vier a
saber quem é o autor do crime.
Se a vítima for menor de idade, o prazo é contado a partir do dia em que seu
representante legal tomar conhecimento do fato, desde que tal conhecimento não se
dê após o representado atingir a maioridade. Se o representante legal desconhecer
o fato até essa data, o prazo contará a partir do momento em que a vítima atingir a
maioridade. Por outro lado, se a vítima for doente mental, tal cômputo não se aplica,
pois a representação legal não cessa sem que cesse a incapacidade. Assim, o prazo
não fluirá para a vítima, e contam-se seis meses depois que o representante legal do
ofendido venha a tomar conhecimento da autoria do fato.
Ao se falar em retratação, deve-se fazer uma distinção: há a retratação a
que se refere o art. 107, VI do Código Penal Brasileiro, que é de natureza penal,
porque quem se retrata é o autor do delito, o que acarreta, nos casos previstos em
lei, extinção da punibilidade. A retratação prevista no art.25 do Código de Processo
Penal, por outro lado, é de natureza processual e é feita pela pessoa a quem couber
o direito de exercê-la.
3.2 REPRESENTAÇÃO E RENÚNCIA NA LEI DOS JUIZADOS ESPECIAIS
CRIMINAIS
As iniciativas de combate à violência contra a mulher, originadas
principalmente em grupos feministas, trouxeram a questão à tona, no Brasil, a partir
de meados dos anos setenta. Em 1980, o SOS–Mulher, em São Paulo, foi a primeira
60
forma de atendimento concreto à mulher. Nesse serviço, militantes feministas faziam
plantões e orientavam mulheres que apresentavam situações de violência
doméstica.132
Em 1985, criou-se a primeira Delegacia de Defesa da Mulher, numa
iniciativa conjunta do Conselho Estadual da Condição Feminina e pelo então
Secretário Estadual da Segurança de São Paulo, Michel Temer. Após, outras foram
criadas.133
Mas a criação de delegacias especializadas não fez os casos de agressões
contra mulheres diminuírem. Assim, em 26 de setembro de 1995, a publicação da
Lei n. 9.099/95 trouxe grandes mudanças ao sistema penal brasileiro134. Os
objetivos dessa Lei era dar maior acesso à Justiça para a população e simplificar os
procedimentos para promover a rápida atuação do direito.135
[...] Orientados pelos princípios da busca de conciliação, esses
juizados julgam casos de contravenção e crimes considerados de
menor poder ofensivo, cuja pena máxima não ultrapassa dois anos
de reclusão. Aqui, os princípios da informalidade e da economia
processual dispensam a feitura do inquérito policial; o boletim de
ocorrência foi substituído pela elaboração de um "termo
circunstanciado" que traz um relato dos fatos e a caracterização das
partes e pode ser encaminhado, com presteza, ao Tribunal.136
Os Juizados Especiais Criminais deveriam, então, realizar o julgamento e
processamento dos crimes tidos como de menor potencial ofensivo, cujo conceito
inicial encontrava-se na Lei n. 9.099/95:
Art. 61. Consideram-se infrações penais de menor potencial ofensivo,
para os efeitos desta Lei, as contravenções penais e os crimes a que
132
SILVA, 1992, p. 84-86.
DEBERT, Guita Grin; GREGORI, Maria Filomena. Violência e gênero: novas propostas, velhos
dilemas. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 23, n. 66, 2008. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010269092008000100011&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em jun. 2010.
134
A Constituição Federal de 1988 dispôs sobre a criação dos juizados especiais:
“Art. 98. A União, no Distrito Federal e nos Territórios, e os Estados criarão: I – juizados especiais,
providos por juízes togados, ou togados e leigos, competentes para conciliação, o julgamento e a
execução de causas cíveis de menor complexidade e infrações penais de menor potencial ofensivo,
mediante os procedimentos oral e sumaríssimo, permitidos, nas hipóteses previstas em lei, a
transação e o julgamento de recursos por turmas de juízes de primeiro grau.”
135
DEBERT; GREGORI, [s./p.].
136
Ibid.
133
61
a lei comine pena máxima não superior a 2 (dois) anos, cumulada ou
não com multa.137
Ou seja, os crimes cometidos contra a mulher, cujas penas não
ultrapassassem dois anos, eram processados e julgados pelos Juizados Especiais
Criminais, e desse modo a maioria dos casos de violência, tais como a contravenção
penal de vias de fato, os crimes de lesão corporal de natureza leve, a difamação, a
injúria e a ameaça eram processados nos Juizados Especiais Criminais, nos quais
há duas fases, uma preliminar, não judicial, e a segunda fase, judicial.
A fase preliminar se inicia com a lavratura do Termo Circunstanciado pela
autoridade policial e, é:
Destinada à tentativa de conciliação – que poderá conduzir à
autocomposição em matéria civil e penal, ou em uma delas -,
constitui a grande novidade introduzida no sistema penal brasileiro
com respaldo no art. 98, I, CF. 138
As formas de autocomposição a que a conciliação pode conduzir são a
renúncia e a transação. Composição dos danos civis e, após o oferecimento da ação
penal, a suspensão condicional do processo.
A renúncia ocorre quando o titular da pretensão cede e deixa de exigir a
tutela dos direitos ou interesses dos quais se entendia possuidor. A submissão é a
cessão do titular da resistência. Estas são formas de concessão unilaterais, por
conseguinte, são mais raras do que a transação.139
A transação penal está prevista no caput do artigo 76 da Lei 9.099/95, que
dispõe:
[...] havendo representação ou tratando-se de crime de ação penal
pública incondicionada, não sendo caso de arquivamento, o
137
BRASIL. Lei n. 9.099, de 26 de setembro de 1995. Dispõe sobre os Juizados Especiais Cíveis e
Criminais e dá outras providências. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9099.htm>. Acesso em jun. 2010.
138
GRINOVER, Ada Pellegrini et. al. Juizados especiais criminais: comentários à lei 9.099, de
26.09.1995. 5. ed. rev. atual. amp. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 127.
139
ibid., p. 128.
62
Ministério Público poderá propor a aplicação imediata de pena
restritiva de direitos ou multas, a ser especificada na proposta.140
[...]
A transação penal é instituto decorrente do princípio da oportunidade
da propositura da ação penal, que confere ao seu titular, o Ministério
Público, a faculdade de dispor da ação penal, isto é, de não
promovê-la, sob certas condições. Nos termos da Lei [...] adotado o
princípio da discricionariedade regulada, o Ministério Público
somente poderá dispor da ação penal nas hipóteses previstas
legalmente, desde que exista a concordância do autor da infração e a
homologação judicial. A transação penal é o novo instrumento de
política criminal de que dispõe o Ministério Público para, entendendo
conveniente ou oportuna a resolução rápida do litígio penal, propor
ao autor da infração de menor potencial ofensivo a aplicação sem
denúncia e instauração de processo, de pena não privativa de
liberdade.141
Os três incisos do § 2º do artigo 76 da Lei n. 9.099/95 determinam as
condições em que a elaboração da proposta e a homologação da transação penal
não são possíveis:
Art. 76. [...] § 2º - Não se admitirá a proposta se ficar comprovado: I ter sido o autor da infração condenado, pela prática de crime, à pena
privativa de liberdade, por sentença definitiva; II - ter sido o agente
beneficiado anteriormente, no prazo de cinco anos, pela aplicação de
pena restritiva ou multa, nos termos deste artigo; III - não indicarem
os antecedentes, a conduta social e a personalidade do agente, bem
como os motivos e as circunstâncias, ser necessária e suficiente a
adoção da medida. 142
Não se trata de condições da ação, já que ainda não há ação nem processo.
São apenas os requisitos cuja ausência impede a proposta de transação e o acordo
homologado por sentença. Embora a transação penal seja uma espécie de sanção
penal, sua aplicação não gera reincidência. A aceitação da proposta caracteriza
submissão voluntária do autor do fato à pena não privativa de liberdade, mas não
caracteriza seu reconhecimento da culpabilidade penal.143
140
BRASIL. Lei n. 9.099, de 26 de setembro de 1995. Dispõe sobre os Juizados Especiais Cíveis e
Criminais e dá outras providências. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9099.htm>. Acesso em jun. 2010.
141
PAZZAGLINI FILHO, Marino et al. Juizado especial criminal: aspectos práticos da lei n°
9.099/95. 2. ed. São Paulo: Atlas, 1997, p. 47.
142
BRASIL, op. cit.
143
GRINOVER et. al., 2005, p. 171.
63
Não havendo êxito na fase não judicial, a ação penal será proposta,
conforme dispõe o artigo 77 da Lei supracitada:
Art. 77. Na ação penal de iniciativa pública, quando não houver
aplicação de pena, pela ausência do autor do fato, ou pela não
ocorrência da hipótese prevista no art. 76 desta Lei, o Ministério
Público oferecerá ao Juiz, de imediato, denúncia oral, se não houver
necessidade de diligências imprescindíveis.144
Outro instituto inovador presente na Lei n. 9.099/95 é a suspensão
condicional do processo, prevista no artigo 89. Para o qual exigem-se certos
requisitos, objetivos e subjetivos, inseridos no caput do mesmo artigo:
Art. 89. Nos crimes em que a pena mínima cominada for igual ou
inferior a um ano, abrangidas ou não por esta Lei, o Ministério
Público, ao oferecer a denúncia, poderá propor a suspensão do
processo, por dois a quatro anos, desde que o acusado não esteja
sendo processado ou não tenha sido condenado por outro crime,
presentes os demais requisitos que autorizariam a suspensão
condicional da pena (art. 77 do Código Penal).145
Grinover et al. comentam que:
[...] na suspensão do processo o que se suspende é o próprio
processo [...]. O momento do oferecimento da denúncia é o
corretamente adequado, em princípio, para a concretização da
proposta de suspensão. Sendo aceita, o juiz pode suspender o
processo. O que temos, em síntese, em termos conceituais, é a
paralisação do processo, com potencialidade extintiva da
punibilidade, caso todas as condições acordadas sejam cumpridas,
durante determinado período de prova. Concretizado o plano traçado
com o consenso do acusado, sem que tenha havido revogação,
resulta extinta a punibilidade, isto é, desaparece a pretensão punitiva
estatal decorrente do fato punível descrito na denúncia.
Considerando que o acusado aceita entrar em período de prova
desde logo, sem discutir a culpabilidade, já se falou em sursis
antecipado. Isso dá uma idéia do instituto. Cuidando-se de acusado
primário (bons antecedentes, boa personalidade etc.) e de pena
144
145
BRASIL, 1995.
BRASIL, op. cit.
64
mínima que comportaria o sursis, o Ministério Público poderá propor
desde logo a suspensão do processo.146
Mas, a despeito de todo o progresso que a criação dos Juizados Especiais
Criminais representou, não houve efetivamente melhora no tratamento dado aos
casos de violência contra a mulher em âmbito doméstico ou familiar, pois na maior
parte dos casos não havia punição ao agressor, haja vista a inclinação destes
Juizados
na busca pela conciliação das partes, ou mesmo devido às punições
convertidas em pagamento de cestas básicas. A Lei 10.455/2002 foi um primeiro
passo para conferir proteção especial à mulher vítima de violência doméstica, ao
acrescentar a parte final do parágrafo único do artigo 69 da Lei 9.099/95: “Em caso
de violência doméstica, o juiz poderá determinar, como medida de cautela, seu
afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a vítima”.
Já a Lei 10.886/2004 acrescentou o § 9º ao artigo 129 do Código Penal, o
qual foi modificado pela Lei 11.340/06 (aumento da pena máxima de um para três
anos e diminuição da pena mínina de seis para três meses de detenção). Esse
acréscimo ao CP estabeleceu um subtipo penal de lesão corporal decorrente de
violência doméstica. Em caso de lesão corporal leve, a ação seria condicionada, já
que:
[...] a lei 9.099/95, rompendo tradição do nosso processo penal
quanto aos crimes de lesão corporal leve e culposa, havia
estabelecido em seu art. 88 que estes crimes dependem de
representação, sendo, portanto, de ação penal pública
condicionada147.
A mudança introduzida no ordenamento jurídico em relação ao crime de
lesões corporais leves deve-se à experiência da aplicação do Código Penal, com a
invocação freqüente de princípios de bagatela, e ausência de interesse para
justificar o emprego da sanção penal148.
146
GRINOVER et. al., 2005, p. 253.
GONÇALVES, Ana Paula Schwelm; LIMA, Fausto Rodrigues de. A lesão corporal na violência
doméstica: nova construção jurídica. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 1169, 13 set. 2006.
Disponível em <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=8912>. Acesso em jun. 2010.
148
MELLO, Adriana Ramos (org.). Comentários à Lei de violência doméstica e familiar contra a
mulher. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. p. 86.
147
65
Efetivamente, foi a Lei Maria da Penha que modificou esse quadro, reduzindo
as possibilidades de que os crimes de violência doméstica contra a mulher fiquem
impunes, além do impedimento da transação penal que encorajava os agressores a
persistirem em suas práticas, pois que o mero pagamento de cestas básicas ou a
prestação de serviços comunitários não representavam punições severas o
bastante.
3.3 REPRESENTAÇÃO E RENÚNCIA NA LEI MARIA DA PENHA
A Lei Maria da Penha não faz menção à natureza da ação penal nas
infrações de que trata. Uma interpretação sistemática do que dispõe seu artigo 41,
que afastou a incidência da Lei 9.099/95, nos crimes praticados contra a mulher,
desde que, presente a violência doméstica e familiar, permite o entendimento de que
o delito de lesão corporal leve volta a ser de ação penal pública incondicionada,
como antes do advento da Lei 9.099/95149.
Contudo, o artigo supracitado se refere a crimes, não faz menção a
contravenções penais. Logo, deduz-se que a aplicação da Lei n. 9.099/95 ainda
pode ser aplicada em certas situações de violência doméstica contra a mulher, tal
como pensam Cunha e Pinto:
Dentro do amplo espectro de violência doméstica e familiar (art. 7º)
encontram-se alguns comportamentos que configuram meras
contravenções penais, como por exemplo (e as mais comuns): vias
de fato (art. 21), perturbação do trabalho ou sossego alheio (art. 42),
importunação ofensiva ao pudor (art. 61) e perturbação da
tranqüilidade (art. 65). Nesses casos (referindo-se o art. 41, da Lei
11.340/2006, apenas a ‘crimes’) continua aplicável a Lei 9.099/95 (e
suas medidas despenalizadoras), ressalvando-se, apenas, as
proibições trazidas no art. 17 da Lei 11.340/2006 (‘é vedada a
aplicação, nos casos de violência doméstica e familiar contra a
mulher, de penas de cesta básica ou outras de prestação pecuniária,
bem como a substituição de pena que implique o pagamento isolado
de multa’)150.
149
150
GOMES; BIANCHINI, 2006.
CUNHA; PINTO, 2007, p. 126.
66
Os autores Gomes e Bianchini afirmam que, no caso de violência doméstica
ou familiar contra a mulher não mais se lavra o termo circunstanciado (mesmo
quando a infração não conta com pena superior a dois anos) e procede-se à
instauração de inquérito policial. Uma vez concluído o inquérito, segue-se (na fase
judicial) o procedimento pertinente previsto no CPP. A ação penal nos crimes de
lesão corporal dolosa simples contra a mulher nas condições previstas na Lei
11.340/2006 passou a ser, segundo os autores, pública incondicionada.151
Mas o direito de representação vem expresso no artigo 12, I, da referida Lei:
Art. 12. Em todos os casos de violência doméstica e familiar contra a
mulher, feito o registro da ocorrência, deverá a autoridade policial
adotar, de imediato, os seguintes procedimentos, sem prejuízo
daqueles previstos no Código de Processo Penal: I - ouvir a
ofendida, lavrar o boletim de ocorrência e tomar a representação a
termo, se apresentada.
De acordo com a autora Kato, apenas nos crimes de ameaça contra a honra
e contra a liberdade sexual, a vítima pode renunciar à representação formulada (art.
225 do CP). Isso deve ser feito antes do recebimento da denúncia, em audiência
específica, com a oitiva do Ministério Público (art. 16)152.
Sabendo que renúncia significa abdicação do exercício de um direito,
clara está a impropriedade terminológica utilizada pelo legislador,
quando, na realidade, pretendeu se referir à retratação da
representação, ato da vítima (ou de seu representante legal)
reconsiderando o pedido-autorização antes externado (afinal, não se
renuncia ao direito já exercido!). Mas mesmo essa alternativa
encontra óbice na letra do art. 25, do CPP, que não admite a
retratação depois de ofertada a denúncia. In casu, a audiência
tratada no dispositivo em estudo é realizada quando já se tem a
denúncia, conforme de verifica da parte final do artigo em comento,
ao tempo, portanto, que não mais seria admitida a retratação.Vê-se,
assim, que a partir do advento da Lei Maria da Penha, os arts. 25 do
CPP e, 102 do CP, passaram a receber uma nova leitura, de tal
maneira que a retratação, nos casos de violência doméstica e
familiar, passa a ser admitida mesmo após a oferta da denúncia.153
151
GOMES; BIANCHINI, 2006.
KATO, 2010.
153
CUNHA; PINTO, 2007, p. 75.
152
67
A renúncia, como se vê, significa abdicação do exercício de um direito,
porém, o legislador faz uso do termo renúncia à representação em referência ao ato
– da vítima, ou de seu representante legal – de reconsiderar o pedido externado
anteriormente. A renúncia (ou retratação) à representação da vítima só é admissível
se feita perante o juízo, conforme o artigo 16 da referida Lei:
Art. 16. Nas ações penais públicas condicionadas à representação
da ofendida de que trata esta Lei, só será admitida a renúncia à
representação perante o juiz, em audiência especialmente designada
com tal finalidade, antes do recebimento da denúncia e ouvido o
Ministério Público.
Desse modo, as retratações feitas na delegacia só terão efeito se forem
confirmadas também em juízo. Caso a vítima não compareça em juízo, Ministério
Público dará continuidade ao processo penal. Tal alteração garante que a vítima terá
contato pessoal com o Juiz e o Ministério Público, os quais, especializados no trato
da violência doméstica que são, podem conscientizar a vítima sobre a necessidade
do processo, e sugerir um acompanhamento multidisciplinar ao agressor e à própria
vítima como forma de prevenção de futuras agressões.154
Ainda, a retratação em juízo, também tem o intuito de verificar se a ofendida
está sofrendo algum tipo de pressão. As vítimas de violência doméstica podem
retirar a representação oferecida contra o agressor tencionando preservar a
harmonia familiar. Tal possibilidade está prevista na Lei Maria da Penha, e deve
receber atenção especial do Ministério Público e Juiz, que têm o poder de analisar
se a atitude da vítima é espontânea. Reiteração da violência doméstica, maus
antecedentes criminais do agressor e gravidade das circunstâncias no momento da
violência são fatores desfavoráveis à retratação. Tal faculdade de retratação da
vítima só pode ser exercida em caso de lesão corporal leve. Se a lesão for grave ou
quando houver tentativa de homicídio, a ação criminal é incondicionada.155
Em relação ao artigo 16, da Lei nº 11.340/2006, que dispõe da “renúncia” ao
direito de representação, há, em parte da doutrina, a interpretação de que tal artigo
154
155
Ibid.
CUNHA; PINTO, 2007.
68
traz uma impropriedade em sua redação. Essa leitura decorre de que, juridicamente,
o significado de renúncia é abdicação do direito de representar, ou seja, é um ato
unilateral anterior ao oferecimento da denúncia. Caso esta tenha sido oferecida, é
cabível apenas a retratação. Entende-se, pois, que ao falar em renúncia, o legislador
tencionava mencionar aquilo que se entende por retratação.156
Segundo tal corrente interpretativa, não há nenhuma incompatibilidade entre
os artigos 41 e 16 da Lei 11.340/2006. Tendo o artigo 41 excluído a representação
em casos de lesão corporal culposa e lesão simples e havendo no artigo 16 a
referência à representação da mulher, já que este último dispositivo dispõe que
apenas nas ações penais públicas condicionadas à representação, a renúncia (ou
retratação) pode ser admitida perante o Juiz, em audiência designada para tal
finalidade.157
De acordo com o artigo 25 do Código de Processo Penal, a retratação só é
possível até o oferecimento da denúncia. Já a Lei 11.340/2006 determina que a
retratação (à qual chama de renúncia) só pode acontecer depois de recebida a
denúncia; o Juiz tem liberdade de aceitar ou não essa retratação. Maria Lúcia Karan
considera que o fato de a retratação só poder ser feita perante o Juiz em audiência
especialmente designada, com a oitiva do Ministério Público, inferioriza a mulher,
pois força que ela ocupe uma posição passiva e vitimizadora, tratando-a como
alguém incapaz de tomar decisões por si própria158.
O autor Nogueira, por outro lado, critica o excesso de formalismo:
Criou-se formalismo que contraria um dos princípios e critérios
básicos que regem o funcionamento dos juizados especiais criminais
(o da informalidade- art. 62 da Lei 9.099/95). E esse formalismo, que
chega ao ponto de exigir audiência presidida pelo magistrado para
que se faça a renúncia ou desistência da representação, não
protegerá a mulher vítima de violência doméstica ou familiar, pois
ninguém poderá impedi-la de renunciar ao direito de representar ou
desistir da representação que eventualmente já tenha formulado.
Deverá ela requerer a designação de audiência para essa finalidade?
E se requerer e deixar de comparecer? Seria caso de conduzi-la
coercitivamente, apenas para que ela renuncie ou desista da
representação? Isso atentaria contra a dignidade da mulher, um dos
156
GOMES; BIANCHINI, 2006.
Ibid.
158
KARAN. Maria Lúcia. Violência de Gênero: O Paradoxal entusiasmo pelo rigor penal. Boletim
IBCCRIM, São Paulo, v.14, n. 168, nov, 2006, p. 6-7.
157
69
pilares da lei (art. 3º). Assim como a formalidade criada, que
representa um excesso de proteção, de um lado paternalista e de
outro inócua, que a grande maioria das mulheres, na atualidade,
certamente, não desejarão invocar159.
Os princípios constitucionais são de valor fundamental à ordem jurídica, e
têm a função sistêmica de convalidar normas hierarquicamente inferiores, além de
revogar aquelas que sejam dissonantes com seus preceitos fundamentais. As leis
infraconstitucionais devem guardar obediência aos princípios constitucionais como
normas de hierarquia superior, como salienta Grecco:
Sejam os princípios expressos ou implícitos, positivados ou não,
entende-se, contemporaneamente, o seu caráter normativo como
normas com alto nível de generalidade e informadoras do todo o
ordenamento jurídico, com capacidade, inclusive, de verificar a
validade das normas que lhe devem obediência160.
O pesquisador Mendes ensina que:
Os direitos individuais enquanto direitos de hierarquia constitucional
somente podem ser limitados por expressa disposição constitucional
(restrição imediata) ou mediante lei ordinária promulgada com
fundamento imediato na própria Constituição (restrição mediata)161.
Uma importante questão decorrente da interpretação do artigo 41 da Lei nº
11.430 é sobre a delimitação da vedação explícita que se encontra no referido
dispositivo legal. Há certa dúvida na doutrina sobre a extensão da vedação referente
às previsões anteriores dispostas nos artigos 88 e 89 da Lei nº 9.099/95. Conforme
uma primeira corrente doutrinária, que faz uso da interpretação literal, o artigo 41 da
Lei nº 11.340 impossibilitaria a aplicação dos artigos 88 e 89 da Lei nº 9.099/95, pois
veda a aplicação da Lei dos Juizados Especiais como um todo, sem exceção a
nenhum dispositivo. A inaplicabilidade do artigo 88 da Lei nº 9.099/95 baseia-se no
159
NOGUEIRA, Fernando Célio de Brito. Notas e reflexões sobre a Lei nº 11.340/2006, que visa
coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 1146, 21
ago. 2006. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=8821>.
160
GRECCO, Rogério. Curso de Direito Penal. 2. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2003. p. 59
161
MENDES. Gilmar Ferreira. Direitos Fundamentais e controle de constitucionalidade. 3. ed.
São Paulo: Saraiva, 2004, p. 28.
70
fato de que a determinação da ação penal pública condicionada para as lesões leves
em geral não estar presente no Código Penal, mas no referido dispositivo. Desse
modo, teria retorno a regência do artigo 100 do CP, que impõe a ação penal pública
incondicionada, aumentando ainda mais a demanda desnecessária na Justiça
Comum,
pois
a
vítima
é
obrigada
a
se
submeter
à
instrução
penal
independentemente de sua vontade.
Os doutrinadores Gomes e Bianchini, sugerem ainda uma outra questão:
Dentre todos os delitos que, no Brasil, admitem representação
acham-se a lesão corporal culposa e a lesão corporal (dolosa)
simples. Nessas duas hipóteses a exigência de representação (que é
condição específica de procedibilidade) vem contemplada no art. 88
da Lei 9.099/1995 (Lei dos Juizados Especiais). Esse dispositivo não
foi revogado, sim, apenas derrogado (ele não se aplicará mais em
relação à mulher de que trata a Lei 11.340/2006 - em ambiência
doméstica, familiar ou íntima). Note-se que o referido art. 88 só fala
em lesão culposa ou dolosa simples. Logo, nunca ninguém
questionou que a lesão corporal dolosa grave ou gravíssima (CP, art.
129, § 1º e 2º) sempre integrou o grupo da ação penal pública
incondicionada. Considerando-se o disposto no art. 41 da nova lei,
que determinou que “aos crimes praticados com violência doméstica
e familiar contra a mulher, independentemente da pena prevista, não
se aplica a Lei 9.099/1995”, já não se pode falar em representação
quando a lesão corporal culposa ou dolosa simples atinge a mulher
que se encontra na situação da Lei 11.340/2006 (ou seja: numa
ambiência doméstica, familiar ou íntima)162
De acordo com esta corrente doutrinária, vedação do artigo 41 da Lei nº
11.430/06 não abarca o artigo 88 da Lei nº 9.099/95, já que esse dispositivo não se
refere à condição de procedibilidade exclusiva para as ações penais de competência
do Juizado. Ou seja, o artigo 88 da Lei dos Juizados trata da necessidade de
representação aos crimes de lesão corporal leve e lesão corporal culposa, previstos
no Código Penal, que podem ser de pequeno ou médio potencial ofensivo163. A
própria Lei nº 11.340/06 dá a entender, conforme seu artigo 16, que a necessidade
de representação se mantém.
Portanto,
legislador
manteve
expressamente
a
necessidade
de
representação para o início da ação penal nos crimes previstos em lei. Tal
162
GOMES; BIANCHINI, 2006.
163
GOMES; BIANCHINI, 2006.
71
entendimento, no referente às lesões corporais praticadas com violência doméstica,
deriva do fato que a condenação do réu, em tais casos, vincula-se fortemente à
cooperação da vítima na sua instrução probatória, porque a materialidade delitiva
exige sua colaboração na realização do exame de corpo delito.164
Segundo o autor Nogueira:
O que quis a lei vedar foram os benefícios decorrentes da aplicação
da Lei do Juizado Especial Criminal aos crimes praticados com
violência doméstica e familiar contra a mulher. Devemos buscar no
conjunto das normas trazidas pela nova lei a vontade e os objetivos
do legislador ao editá-la. Para isso, não podemos interpretar
isoladamente determinados preceitos nela contidos. Devemos
conjugar as disposições da lei, sem perder de vista os valores nela
resguardados e as finalidades da lei. É a interpretação teleológica ou
finalística da lei. Desse modo, segundo nossa interpretação, podem
ser extraídas as seguintes conclusões da conjugação dos arts. 16, 17
e 41 da Lei 11.340/06: [...] persiste a exigência de representação nos
casos do art. 129, § 9º, do CP, e art. 21, da LCP (por analogia); no
caso do art. 147 do CP, o parágrafo único exigia e exige tal condição
de procedibilidade; se o legislador pretendesse banir referida
condição da Lei 11.340/06 ação penal pública, não teria trazido a
previsão do art. 16 da lei, que impõe formalidade para a renúncia à
representação.165
Nesse sentido, veja-se a manifestação jurisprudencial abaixo:
PROCESSO PENAL. CRIME DE LESÃO CORPORAL DE
NATUREZA LEVE (VIOLÊNCIA DOMÉSTICA). LEI MARIA DA
PENHA.
AÇÃO
PENAL
PÚBLICA
CONDICIONADA
À
REPRESENTAÇÃO DA VÍTIMA.
1. A ação penal nos crimes de lesão corporal leve cometidos em
detrimento da mulher, no âmbito doméstico e familiar, é pública
condicionada à representação da vítima.
2. O disposto no art. 41 da Lei 11.340/2006, que veda a aplicação da
Lei 9.099/95, restringe-se à exclusão do procedimento sumaríssimo e
das medidas despenalizadoras.
3. Nos termos do art. 16 da Lei Maria da Penha, a retratação da
ofendida somente poderá ser realizada perante o magistrado, o qual
terá condições de aferir a real espontaneidade da manifestação
apresentada, o que, no caso, ocorreu.
4. Recurso especial provido.166
164
NOGUEIRA, Fernando Célio de Brito. A Lei n. 11.340/06: violência doméstica e familiar contra
a mulher, perplexidades à vista. 2006. Disponível em:
<http://www.lfg.com.br/artigos/Lei_11_340_Violencia_domestica.pdf >. Acesso em jun. 2010.
165
NOGUEIRA, op. cit.
166
STJ. RECURSO ESPECIAL Nº 1.128.963 - PE (2009/0137534-1) Rel.: Min. Jorge Mussi. 21 jun.
2010.
72
E ainda nesse sentido:
APELAÇÃO CRIMINAL – LESÃO CORPORAL LEVE E AMEAÇA –
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA – LEI MARIA DA PENHA – VÍTIMA QUE,
NA AUDIÊNCIA PREVISTA NO ART. 16 DA LEI N. 11.340/06,
MANIFESTA O DESEJO DE NÃO PROCESSAR O ACUSADO –
POSSIBILIDADE – AÇÃO PENAL PÚBLICA CONDICIONADA À
REPRESENTAÇÃO – EXTINÇÃO DO FEITO – PRECEDENTES –
RECURSO DESPROVIDO.
VOTO
Trata-se de recurso de apelação interposto pelo representante do
Ministério Público contra a decisão que julgou extinto o feito, ante o
desejo da vítima de não processar o acusado Olides Recalcati pela
prática dos crimes previstos nos arts. 129, § 9º, e 147, todos do CP
(lesões corporais leves e ameaça, com base na Lei Maria da Penha).
O recurso não merece provimento. Isso porque, consolidado nesta
Corte de Justiça o entendimento de que a ação penal, nos crimes de
violência doméstica previstos na Lei n. 11.340/06, é pública
condicionada à representação, e que a vítima, até a audiência
prevista no art. 16 da referida lei, tem o direito de manifestar o desejo
de processar ou não o seu agressor, o que pode implicar no não
recebimento da denúncia, ou, caso tenha sido recebida sem a
realização da audiência, na extinção do feito, como ocorreu na
hipótese dos autos (fls. 44 a 47).167
Por meio de uma interpretação ampliativa, parte da doutrina, contudo,
entende que nenhum dispositivo da Lei 9.099/95 pode ser aplicado aos casos de
violência doméstica e familiar contra a mulher. Essa corrente conta com o método de
interpretação literal a seu favor e sustenta que: “Todo o espírito da lei foi no sentido
de maior agravamento da situação do agressor”.168
É assim que:
[...] os crimes que devem depender de representação são aqueles
em que o interesse privado à intimidade das vítimas sobrepujam o
interesse público em punir o crime. Em caso de violência doméstica,
a solução é exatamente oposta. É interesse público que tal violência
cesse, não podendo o Estado tolerá-la em nenhuma hipótese169.
TJSC - Apelação Criminal n. 2008.035084-4, Relator: Des. Rui Fortes. 21 abr. 2010.
CUNHA; PINTO, 2007, p. 204.
169
GONÇALVES; LIMA, 2006.
167
168
73
Os autores Gomes e Bianchini consideram que:
Não existe nenhuma incompatibilidade, de outro lado, entre o art. 41
e o art. 16. O primeiro exclui a representação nos delitos de lesão
corporal culposa e lesão simples. No segundo existe expressa
referência à representação da mulher. Mas é evidente que esse ato
só tem pertinência em relação a outros crimes (ameaça, crimes
contra a honra da mulher, contra sua liberdade sexual quando ela for
pobre, etc).170
Já a corrente restritiva defende que a limitação contida no artigo 41 da Lei
11.340/2006 se refere apenas aos institutos despenalizadores dessa lei, tais como a
composição civil, a transação penal e a suspensão condicional do processo. Assim,
para essa corrente, persiste a regra do artigo 88 da Lei 9.099/95, que prescreve
como de ação pública condicionada à representação os crimes de lesão corporal
leve. A Lei 11.340/2006 (art. 12, I; art 16) menciona a representação, logo a nãoaplicação da Lei 9.099/95 somente se referiria aos seus institutos despenalizadores.
O artigo 17 da Lei 11.340/2006, que veda a aplicação de penas de cesta básica ou
prestação pecuniária, corroboraria esse entendimento. Outro argumento é que o
crime de lesão corporal leve está previsto no artigo 129, caput, do Código Penal, e a
Lei 9.099/95 apenas alterou a natureza da ação penal relativa a esse crime, ou seja,
não se refere aos Juizados Especiais171.
No caso da lesão corporal dolosa leve, todavia, não há como se
interpretar literalmente o art. 41 da Lei Maria da Penha. Menos
porque o crime está definido no Código Penal e a Lei dos Juizados
Especiais Criminais tenha sido empregada tão-somente como meio
de modificar a disciplina geral da matéria, no Código Penal.172
Impor uma ação penal ao ofensor no caso de lesão corporal leve, contra a
vontade da mulher implica num retrocesso e pode ser um entrave à boa convivência,
que deve nortear as relações amorosas e familiares173: “As chances de um
acertamento do conflito entre as partes são muito maiores se a vítima tiver a faculdade de
170
GOMES; BIANCHINI, 2006.
MELLO, 2007, p. 84-5.
172
Ibid., p. 86.
173
DIAS, 2007, p. 120.
171
74
fazer uso, como instrumento de negociação, do direito de livrar o agressor do processo
criminal”.174
Além disso, o princípio da proporcionalidade não poderia admitir que crimes
de menor gravidade praticados em situação de violência doméstica estejam sujeitos
à ação penal pública incondicionada, enquanto outros de maior gravidade estejam
sujeitos à ação penal privada ou à ação penal pública condicionada à representação,
em circunstâncias similares quanto ao interesse na preservação da privacidade e
intimidade da vítima. Considerando a alteração trazida pela Lei 12.015/2009, podese exemplificar a ofensa ao princípio da proporcionalidade: é impensável que um
crime de estupro, mediante grave ameaça praticado pelo marido contra a esposa de
18 anos ou mais, sujeite-se à ação pública condicionada à representação e que um
crime de lesão corporal leve praticado em circunstâncias análogas esteja submetido
à ação pública incondicionada175.
Embora boa parte da doutrina focalize seu caráter repressivo, deve-se ter
em mente, na interpretação da Lei 11.340/2006, a orientação do moderno direito
penal, com princípios como o da intervenção mínima176.
Nucci comenta o princípio da intervenção mínima ou subsidiariedade do
direito penal:
[...] o direito penal não deve interferir em demasia na vida do
indivíduo, retirando-lhe autonomia e liberdade. Afinal, a lei penal não
deve ser vista como a primeira opção (prima ratio) do legislador para
compor os conflitos existentes em sociedade e que, pelo atual
estágio de desenvolvimento moral e ético da humanidade, sempre
estarão presentes. Há outros ramos do Direito preparados a
solucionar as desavenças e lides surgidas na comunidade,
compondo-as sem maiores traumas177.
O amparo e a assistência que podem ser proporcionados à mulher, ao
ofensor e familiares, por meio do atendimento multidisciplinar, visam à pacificação
dos conflitos e à restauração da harmonia familiar e doméstica. Assim, um
174
Ibid., loc. cit.
JOTA, Rodrigo Batista. Lei Maria da Penha: a natureza da ação penal nos crimes de lesão
corporal leve. Brasília: EMDF, 2010, p. 39.
176
Ibid.
177
NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 6ª ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2006, p. 48.
175
75
processamento penal indesejado por essas pessoas serviria apenas como entrave a
todos esses objetivos178:
Ao expropriar da mulher o direito de decidir sobre a conveniência da
instauração de uma ação penal contra o seu agressor, atentando
contra a sua vontade, nos apartamos dos modernos preceitos de
vitimologia, onde a vítima é levada a dialogar com o sistema, ser
ouvida sobre o que sofreu e o que busca como solução do seu
problema179.
Porto ensina que:
[...] o protagonismo da vítima ganha realce nas pequenas e médias
infrações, nas quais pode o Estado, mais justificadamente, abrir mão
de parte de seu poder decisório e punitivo em favor de quem foi
vitimado diretamente pelo delito; [...] o interesse privado da vítima
prevalece sobre o interesse público do Estado em exercer seu jus
puniendi180.
Nesse sentido, a manifestação da jurisprudência aclara tal entendimento:
Cuida-se de Reclamação com pedido liminar interposta pelo órgão
do Ministério Público contra decisão do Juiz de Direito da Vara da
Infância e Juventude da Comarca de Lages, que designou a
audiência prevista no art. 16 da Lei n. 11.340/06, com a finalidade de
ouvir a vítima em crime de violência doméstica perpetrado por Alex
de Paula Almeida, já denunciado como incurso no art. 129, § 9º do
Código Penal. Sustenta a combativa Promotora de Justiça que a
designação de audiência para dar à vítima possibilidade de
manifestar seu interesse no prosseguimento do feito é portanto
inadequada e tumultuária, porque: a) conforme o art. 41 da referida
lei, aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a
mulher, independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei
9099/95; b) somente seria necessária a observância de audiência
nas hipóteses excepcionais em que a lei expressamente exija
manifestação da vontade do ofendido, tendo em vista a regra geral
da ação penal pública incondicionada definida no art. 100 do Código
Penal; a vítima em nenhum momento demonstrou interesse em
retratar a representação. O pedido foi indeferido pela ausência do
periculum in mora, à vista de espacejamento da data da audiência,
178
JOTA, 2010, p. 50.
MAGALHÃES, Renato Vasconcelos. A representação da vontade da vítima na Lei Maria da
Penha. Uma discussão sobre o empoderamento da mulher. Jus Navigandi, Teresina, ano 13, n.
2212, 22 jul. 2009. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=13191>.
180
PORTO, 2007, p. 42.
179
76
marcada para o final do mês de novembro do corrente ano (fls.
27).181
Contudo, o entendimento jurisprudencial não foi conforme à reclamação:
[...] A reclamação não procede, por quatro razões hermenêuticas.
A primeira, de fundo (mens legis), permite interpretar em si mesmo o
art. 16 da Lei Maria da Penha, como incorporando o pensamento, o
fundo racional e uma vontade própria, a qual, como bem intuiu a
Desembargadora Salete Silva Sommariva, em acórdão trazido pelo
magistrado reclamado, não pretende “transformar a ação penal, que
é condicionada para os casos de lesão leve e culposa, em
incondicionada, porquanto visou apenas coibir a utilização dos
institutos da suspensão da pena e transação penal, por considerálos respostas penais insuficientes à repressão que deve ser imposta
pela ofensa ao bem jurídico tutelado” (HC 2009.026365-4).182
Isso porque a Lei Maria da Penha não define quais ações são cabíveis,
apenas trata dos crimes, suas penas e medidas protetivas.
A segunda, sistêmica, consiste em analisar a estrutura orgânica da
Lei 11.340/06, em que está inserido o dispositivo questionado. A
violência física é uma das formas de violência doméstica (art. 7º, I), e
embora esteja apenada com mais rigor, cai debaixo do procedimento
preliminar do mesmo art. 16, que incorpora no âmbito das ações
penais condicionadas à representação o art. 129, § 9º do Código
Penal.183
Como já foi dito, o procedimento não se rege especificamente pela lei Maria
da Penha, mas por Diplomas hierarquicamente superiores a ela.
A terceira, também sistêmica, não autoriza supor que a
inaplicabilidade da Lei 9.099/95 aos crimes praticados com violência
doméstica e familiar contra a mulher revogou expressamente o artigo
88 da mesma lei. Este foi posto nas disposições gerais, fora do
contexto do procedimento sumaríssimo. Exemplo disso é o art. 89,
também alheio ao procedimento previsto para as infrações de menor
potencial ofensivo.184
181
SANTA CATARINA, Procuradoria de Justiça Criminal, Parecer nº 0010/09/GCOPJC. Relator:
Desembargador Moacyr de Moraes Lima Filho. Procurador de Justiça Gilberto Callado de Oliveira.
182
Ibid.
183
Ibid.
184
SANTA CATARINA, Procuradoria de Justiça Criminal, Parecer nº 0010/09/GCOPJC. Relator:
Desembargador Moacyr de Moraes Lima Filho. Procurador de Justiça Gilberto Callado de Oliveira.
77
Aplica-se aqui, pois, a analogia para interpretar a lei.
A quarta, ainda pela própria sistemática do ordenamento processual
penal, permite afastar a norma genérica prevista no art. 25 do CPP,
em face do consagrado princípio lex specialis derrogat lex generalis.
O art. 16 da Lei 11.340/06, além de restringir a competência para
receber a renúncia à representação – somente “perante o juiz” –,
constitui exceção ao momento próprio da retratação, permitindo que
ela possa ser efetivada depôs do oferecimento da denúncia, tal como
prevê também o art. 79 da Lei 9.099/95. [...]185
Em crimes de delitos contra a dignidade sexual, a exposição da vítima pode
trazer conseqüências de grande dano, além da própria agressão sofrida, onde, cabe
a mulher, decidir buscar ou não seus direitos. As agressões praticadas contra
mulheres em ambiente doméstico ou familiar, também reportam à vítima o direito de
renunciar à representação. A Lei Maria da Penha (Lei n. 11.340/2006), quanto à
representação da ofendida, e seu direito à renúncia merecem atenção e
pormenorização com análise minuciosa da interpretação das leis e seus
mecanismos, cujas críticas se concentram nas contradições existentes na redação
de alguns dispositivos, face às disposições de diplomas legais.186
185
Ibid.
NUCCI, Guilherme de Souza. Leis penais e processuais penais comentadas. 4. ed. rev. atual.
e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.
186
78
CONCLUSÃO
Na Constituição Federal de 1988, há grande preocupação com o princípio da
igualdade, apresentando uma ampla gama de direitos de natureza social. Mas a
proclamação na ordem constitucional da igualdade entre homens e mulheres não
bastou para solucionar os casos de violência de gênero, os que afetam a qualidade
de vida das mulheres, geram insegurança, medo, sofrimentos físicos, mentais,
sexuais, além de outras formas de privação da fruição plena dos direitos
fundamentais. Por isso, o legislador, através da Lei 11.340/2006 (Lei Maria da
Penha), criou uma tutela específica ao gênero feminino, posto que as mulheres são
as maiores vítimas da violência doméstica.
A despeito de que os homens que agridem as mulheres com quem mantêm
relações afetivas íntimas devam ser punidos, pretendeu-se demonstrar que, em
certos casos, a intervenção do Direito Penal é também uma forma de resolução de
conflitos que pode causar danos às vítimas. Sendo mais gravosa que benéfica, há
que se considerar o desejo da vítima de solucionar o problema da melhor maneira
para ela.
A Lei Maria da Penha traz uma tutela específica ao gênero feminino, mas há
autores que defendem a inconstitucionalidade da Lei 11.340/2006, considerando que
ela promove a discriminação sexual, rompendo com o princípio da igualdade, pois
não há justificativa legal para a aplicação de penas diferenciadas a dois crimes
idênticos com sujeitos passivos distintos.
Por isso, foi importante a apresentação feita aqui das características da ação
penal. Em certos casos para os quais se aplica a Lei Maria da Penha, a vítima deve
ter o direito de decidir se deseja ou não mover a ação contra o agressor. Pela
análise empreendida, concluiu-se que, aos crimes descritos nos artigos 213 a 219
do Código Penal, aplica-se a ação penal condicionada, pois em se tratando de
delitos contra a dignidade sexual, entende-se que a exposição da vítima pode lhe
ser mais danosa que a própria agressão sofrida. Razão pela qual a mulher deve
decidir se buscará ou não uma forma de punir o agressor.
79
Além dos crimes contra a dignidade sexual, viu-se que também as
agressões praticadas contra mulheres em seu ambiente doméstico ou familiar, e que
resultem em lesão corporal leve, são passíveis de ação penal condicionada, posto
que a esses delitos aplica-se tal regra de modo geral e, negar à vítima o direito de
renunciar à representação pelo fato de ser mulher é um desrespeito à igualdade
apregoada pela Constituição Federal.
Além disso, no seu artigo 41, a Lei Maria da Penha proíbe expressamente a
aplicação da Lei n. 9.099/95 aos crimes praticados contra a mulher com violência
doméstica e familiar, enquanto o artigo 16 determina que a renúncia à representação
só pode se dar em juízo.
Concluiu-se, em primeiro lugar, que por ‘renúncia’ o legislador quis dizer
‘retratação’, já que a renúncia só pode ocorrer em casos de contravenções penais,
pois aos crimes praticados com violência doméstica, aplica-se o disposto pelo artigo
41. Como a Lei não tipifica as condutas a que se aplica, o condicionamento ou não
da ação penal permanece vinculado ao que dispôs a Lei n. 9.099/95, e os crimes de
lesão corporal leve continuam a exigir representação, conforme disposição expressa
do artigo 12 da Lei 11.340/2006.
Aos comportamentos que configuram contravenções penais, como vias de
fato, perturbação do trabalho ou sossego alheio, importunação ofensiva ao pudor e
perturbação da tranqüilidade, continua aplicável a Lei 9.099/95 (e suas medidas
despenalizadoras), posto que o art. 41, da Lei 11.340/2006, refere-se apenas a
‘crimes’. Contudo, são válidas as proibições trazidas no art. 17 da Lei 11.340/2006
(‘é vedada a aplicação, nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher,
de penas de cesta básica ou outras de prestação pecuniária, bem como a
substituição de pena que implique o pagamento isolado de multa’).
Essa Lei trouxe inúmeras inovações (aumento das penas, impossibilidade de
serem invocados os Juizados Especiais Criminais, nova possibilidade de decretação
da prisão preventiva, etc), mas o legislador, na tentativa de proteger a mulher,
acabou por discriminá-la mais uma vez, ao adotar medidas que tornam as vítimas de
violência doméstica incapazes de decidir se querem buscar ou não uma punição
para seus agressores. Entretanto, tentou-se mostrar aqui que uma interpretação
aprofundada da Lei não permite que, em função do sexo, seja negado o direito à
80
renúncia (ou retratação) à representação quando for cabível ação penal
condicionada.
81
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