A DEFENSORIA PÚBLICA DA UNIÃO E O DIREITO DE - cress-mg

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A DEFENSORIA PÚBLICA DA UNIÃO E O DIREITO DE ACESSO À
JUSTIÇA EM TEMPOS DE DESMONTE DE DIREITOS SOCIAIS
Sulamita da Silva Castro1
Sandra Maria dos Santos Carneiro2
RESUMO: As reflexões contidas nesse artigo objetivam apresentar elementos para o
debate sobre o direito de acesso à justiça constituído como garantia constitucional àqueles
que não podem pagar por ele. Direito este, materializado na Defensoria Pública, órgão
estatal criado para garantir a democratização de tal acesso. Desta forma, objetiva-se,
pontuar os limites e as possibilidades da concretização desse direito em tempos de
desmontes de direitos sociais, no quais a judicialização da questão social se mostra uma
crescente tendência. Assim, expõe ainda elementos a respeito do campo sociojurídico,
especialmente relacionados à Defensoria Pública da União e a inserção do Serviço Social
neste espaço sócio-ocupacional.
Palavras-chave: Direitos Sociais, Acesso à justiça, Defensoria Pública da União, Serviço
Social.
1
Mestranda em Serviço Social na Universidade Federal de Juiz de Fora/MG.
2
Assistente Social da Defensoria Pública da União – Juiz de Fora/MG
2
INTRODUÇÃO
Os direitos sociais como resultado da luta de classes emergem de embates
políticos e são frutos de ações de protagonistas sociais que reivindicam uma resposta do
Estado às demandas e necessidades produzidas socialmente sob o prisma do modo de
produção capitalista, configurando-se como estratégica de enfrentamento à questão
social e a suas expressões. Dessa forma, “os direitos não são uma dádiva, nem uma
concessão. Foram ‘arrancados’ por lutas e operações políticas complexas. [...] não são
uma doação dos poderosos, mas um recurso com o qual os poderosos se adaptam às
novas circunstâncias histórico-sociais” (NOGUEIRA, 2004, p. 2).
Por isso, “a existência de garantias legais não se traduz necessariamente em
garantias efetivas, não bastando somente afirmar legalmente um direito para vê-lo
respeitado e materializado na realidade” (LONARDONI, 2009, p. 5), já que existe uma
grande fratura entre o anúncio do direito a ter direitos e a sua efetiva materialização, e,
deste modo, a garantia dos direitos derivará da correlação de forças e das lutas sociais.
Evidencia se, que a tendência geral tem sido a desconstrução dos direitos sociais,
sob o argumento da crise fiscal do Estado, fundamentada nos parâmetros neoliberais.
Contudo, não se pode desconsiderar que:
a promulgação da Constituição de 1988 representou, pelo menos no plano
jurídico, a promessa de afirmação e extensão dos direitos sociais em nosso
País, em consonância com as transformações sociopolíticas que se
processavam e exigiam respostas públicas à grave crise e às demandas de
enfrentamento dos enormes índices de desigualdade social (FALEIROS,
1999, p. 19-20).
Assim, a Carta de 88, para além dos limites da conjuntura atual, significou um
importante avanço na ampliação dos direitos sociais, ao estabelecer um sistema de
seguridade social como dever do Estado. No entanto, como aponta Vieira, “não há
direito sem a sua realização [pois] a prática de direitos, mecânica e superficialment e,
desprovida de mínima noção de sua existência, gera insensibilidade moral,
conformismo e negação deles próprios” (VIEIRA, 2004, apud GUERRA, 2009, p. 50).
Dessa maneira, torna-se importante o debate sobre o acesso à justiça constituído
como garantia constitucional àqueles que não podem pagar por ele, materializado no
órgão estatal criado para garantir a democratização de tal acesso, a saber, a Defensoria
Publica, frente à “desresponsibilização” do Estado em responder a demandas sociais e à
mercantilização de direitos.
3
1. APARATO CRÍTICO
1.1 O ACESSO À JUSTIÇA E A DEFENSORIA PÚBLICA
Na América Latina, após o Consenso de Washington de 1989 ─ local onde
ocorreu o encontro que avaliou e definiu reformas econômicas necessárias aos países
latinos- americanos ─, “o neoliberalismo penetrou trazendo a redução do Estado, as
‘ondas privatistas’, e a abertura dos mercados. [...] a ideia da importância e da
inevitabilidade da globalização neoliberal” (FORTI, 2009, p. 11). Especificamente no
caso brasileiro,
propagou-se na mídia falada e escrita e nos meios políticos e intelectuais uma
avassaladora campanha em torno de reformas. A era Fernando Henrique
Cardoso (FHC) foi marcada por esse mote, que já vinha de Collor, cujas
características de outsider (ou o que vem de fora) não lhe outorgaram
legitimidade política para conduzir esse processo. Tratou-se como se pôde
observar, de “reformas” orientadas para o mercado, num contexto em que os
problemas no âmbito do Estado brasileiro eram apontados como causas
centrais da profunda crise econômica e social vivida pelo país desde o início
dos anos 1980. Reformando-se o Estado com ênfase especial nas
privatizações e na previdência social, e, acima de tudo, desprezando as
conquistas de 1988 no terreno da seguridade social e outros ― a carta
constitucional era vista como perdulária e atrasada ― estaria aberto o
caminho para [o projeto neoliberal] o novo “projeto de modernidade”
(BEHRING, BOSCHETTI, 2011, p. 148).
Deste modo, apesar da reforma democrática anunciada na Constituição de 1988,
a partir da qual o Brasil passa a “ter em perspectiva a construção de um padrão público
universal de proteção social, o neoliberalismo coloca um quadro de grande
complexidade aridez e hostilidade para a implementação dos direitos sociais” (ibidem,
p. 156). Frente a tal processo, Guerra realça:
Neste cenário, complexo e paradoxal, onde vive a massa da população
brasileira, o avanço de uma perspectiva de solidariedade abstrata entre
capitalistas e trabalhadores se sobrepõe a noção de direitos sociais e, ao
mesmo tempo, se observa o avanço do discurso do direito a ter direitos, assim
como um conjunto de instituições formais que visam à efetivação dos
mesmos. Nele, se expressa a fratura entre o Brasil real e o legal. O paradoxo
se expressa no fato de que a igualdade formal do campo jurídico corresponde
à e se mantém da desigualdade real do campo socioeconômico. Mas este
paradoxo entre o real e o formal nada mais é do que a ponta do iceberg: a
questão de fundo reside na contradição central da sociedade burguesa: a
apropriação privada da riqueza socialmente produzida, o que coloca uma
incompatibilidade entre capitalismo e igualdade. (GUERRA, 2009, p. 32).
A construção tardia e dependente da sociedade brasileira industrializada, fruto
do capitalismo periférico, proporcionou “a constituição de uma cultura sociopolítica
dominante antidemocrática nas suas formas mais variadas, da pura e simples autocracia
a regimes de participação restrita” (NETTO, 1996, p. 18). Os direitos conquistados não
4
ocorreram sem uma contrapartida de legitimação e consolidação da hegemonia
capitalista. Desse modo, a elite político-econômica brasileira viu-se obrigada a “fazer a
revolução de cima para evitar que ela partisse de baixo, isto é, permitir ao país a ilusão
de algumas pequenas coisas, que o contentavam” (IANNI, 1985, apud MONTAÑO,
2008, p. 33).
Assim, o que se põe no Brasil “não é apenas o reconhecimento legal-positivo
dos direitos, mas a luta para efetivá-los, ou seja, a passagem do formal para o real, em
outras palavras do âmbito jurídico-formal para sua realização” (GUERRA, 2009, p. 45).
Essa distância entre a definição dos direitos em lei e sua implementação real, como
também a forte instabilidade institucional e política permanente, com dificuldades de
configurar pactos mais duradouros e inscrever direitos inalienáveis, atrelada ao
neoliberalismo leva à efetiva perda de direitos sociais. Assim sendo, nas palavras de
Chauí:
de fato, a política neoliberal é conservadora, contrária aos direitos sociais e
civis, aos movimentos sociais e a divisão de poderes. Se cai como uma luva
em um país como o nosso é porque a sociedade brasileira nem sequer chegou
aos princípios de igualdade formal e das liberdades e muito menos aos ideais
socialistas da economia da igualdade econômica e social e da liberdade
política e de pensamento. Sociedade sem cidadania, profundamente
autoritária, onde as relações sociais são marcadas como selo da hierarquia
entre superiores e inferiores, mandantes e mandados, onde prevalecem
relações de favor e de clientela, onde inexiste a prática política da
representação e da participação. (CHAUÍ In: GUERRA, 2009, p. 49).
O discurso do direito, portanto, insere-se nas formas de regulação social, por
meio do controle utilizado pelas instituições e práticas profissionais em tempos de
ajuste neoliberal.
Tal discurso autonomizado das medidas que buscam alcançar a efetivação
dos direitos e abstraídos de relações sociais e históricas, porta tendências
conservadoras de reprodução da ordem social, porque tanto despolitiza a
chamada “questão social”, naturalizando-a, quanto, secundariza as diferentes
possibilidades de acesso aos bens e serviço dadas pela condição social das
classes, acoberta as desigualdades (e a injustiça) e as condições históricas nas
quais os direitos sociais resultaram da conquista da classe trabalhadora.
(GUERRA, 2009, p. 36).
Portanto, verifica-se que diante dessa conjuntura de desconstrução dos direitos
sociais há um árduo combate na sociedade de classes para se efetivar os direitos
duramente conquistados por meio da luta da classe trabalhadora, sendo a judicialização3
dos mesmos uma crescente tendência hodierna, trazendo ao debate o acesso à justiça
como forma de garantia de efetivação dos direitos garantidos no plano jurídico-formal.
3
“De modo geral, o fenômeno da judicialização pode ser considerado como a atuação por parte do Poder
Judiciário, por meio de ações que interferem no curso das políticas públicas, o que, em tese, seriam atribuições
próprias dos poderes Legislativo e Executivo” (SILVA, 2012, p. 556). Fenômeno este que não será
aprofundado neste trabalho, mas que merece um olhar crítico no quadro em que se inscreve
5
As mudanças do padrão de acumulação capitalista, portanto, sob a hegemonia
do capitalismo contemporâneo, trouxeram consigo uma série de alterações de ordem
socioeconômicas e político-culturais, que, por meio do neoliberalismo, reduziu a
resposta do Estado aos compromissos firmados com a classe trabalhadora. Dentre eles,
aqueles presentes na Constituição de 1988, que representou:
um marco jurídico no processo de democratização do Estado brasileiro,
endossando a concepção contemporânea de direitos humanos, e enfatizando
desde seu preâmbulo, que o Estado Brasileiro é um “Estado Democrático,
destinado a assegurar os direitos sociais e individuais”. Delineava, portanto,
desde seus preceitos iniciais, um Estado [...] necessariamente
intervencionista, com objetivos expressos de realizar a promoção da justiça
social (MARQUES, 2009, p. 85).
Especificamente,
encontram-se,
no
Capítulo
II
da
supramencionada
Constituição, consagrados no artigo 6º, os direitos sociais, a saber: a educação, a
saúde, o trabalho, o lazer, a segurança, a previdêcia social, a proteção à maternidade e à
infância, a assistência aos desamparados conforme a lei. Assim, dentro do
contexto atual de desmonte de direitos sociais, a efetivação do acesso à justiça
torna -se imprescindível para que os mesmos venham a ser garantidos, em especial para
a população que se encontra em situação de vulnerabilidade econômica.
No âmbito dos direitos humanos, o acesso à justiça social apresenta-se
enquanto direito ao usufruto de bens e serviços que possibilitam viver com
dignidade, isto é, a possibilidade de todos viverem plenamente como sujeitos
de direitos: direito à educação, à seguridade social, à alimentação, à
segurança, à cultura, ao lazer, à moradia adequada, dentre outros. Justiça
social, nessa perspectiva, vincula-se então aos direitos assegurados na
Constituição Brasileira, ainda que a legislação social não venha sendo
universalizada e aplicada integralmente. (FÁVERO, 2012, p.131)
Cabe ressaltar que o acesso à justiça não é somente o ingresso de ações
em juízos e tribunais com a possibilidade de proposição de demandas judiciais, mas,
também, a possibilidade dos cidadãos terem direito à informação acerca de seus
direitos e as formas de acesso para assim exercerem sua cidadania, ou seja, sere m
reconhecidos como sujeitos de direitos. Capelleti e Garth (1988) afirmam que a
expressão ‘acesso à Justiça’ é “reconhecidamente de difícil definição, mas serve para
determinar duas finalidades básicas do sistema jurídico – o sistema pelo qual as pessoas
podem reivindicar seus direitos e/ou resolver seus litígios sob os auspícios do Estado”
(CAPELLETI, GARTH, 1988, p. 8).
Em suma, a questão traz, em sua essência, a reflexão sobre a necessidade de
ampliação de mecanismos que facilitem o acesso à ordem jurídica, de modo que os
indivíduos possam realmente acioná-lo e usufruir das garantias legais. Só assim o
acesso à justiça tomará contornos reais e efetividade prática.
6
São nesses termos que o artigo 5°, inciso LXXIV, da Constituição da República
Federativa do Brasil de 1988, aponta que “o Estado prestará assistência jurídica integral
e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos”.
Segundo Mattos,
A partir de então, a assistência passa de judiciária – por não mais abranger
exclusivamente os atos processuais – para assistência jurídica assegurada por
um Estado Democrático de Direito fundando, entre outros no princípio da
igualdade e do amplo acesso à justiça. [...] Ao mencionar os termos “integral
e gratuita” o constituinte ampliou significativamente a abrangência do
amparo aos hipossuficientes, no sentido de agregar ao benefício outras
condições além de simplesmente o ingresso no judiciário. Ou seja: apresenta
também a possibilidade de o cidadão carente ter ao seu dispor a assessoria
extrajudicial. Essa percepção é reforçada pelo termo “integral”, que propicia
ao cidadão que faça jus a assistência, a utilização de todos os meios jurídicos
possíveis, antes, durante e depois do processo, inclusive administrativa ou
extrajudicialmente quando for o caso. (MATTOS, 2011, p. 94).
A assistência jurídica judicial, portanto, engloba o ajuizamento de ações, a
apresentação de recursos aos Tribunais e a defesa em processos cíveis ou criminais
perante o Poder Judiciário. Já a assistência jurídica extrajudicial compreende: a
orientação e o aconselhamento jurídico; a mediação, a conciliação e a arbitragem nos
casos de administração de conflitos; a representação do assistido 4 junto à
Administração Pública; e a conscientização da cidadania e do ordenamento jurídico.
Dessa forma, tem-se a Defensoria como a Instituição Pública responsável por
garantir o efetivo acesso à justiça de forma ampla e gratuita para aqueles que
comprovarem carência de recursos. A atuação da Defensoria Pública, por sua vez, não
se restringe às varas judiciais.
De acordo com a Lei Orgânica Nacional da Defensoria Pública (Lei
Complementar nº. 80 de 1994, alterada pela Lei Complementar nº. 132, de
2009), cabe também à Defensoria Pública prestar orientação jurídica;
promover, prioritariamente, a solução extrajudicial dos litígios, visando à
composição entre as pessoas em conflito de interesses por meio de mediação,
conciliação, arbitragem e demais técnicas de composição e administração de
conflitos; promover a difusão e a conscientização dos direitos humanos, da
cidadania e do ordenamento jurídico; prestar atendimento interdisciplinar por
meio de órgãos ou de servidores de suas carreiras de apoio para o exercício
de suas atribuições; representar aos sistemas internacionais de proteção dos
direitos humanos, postulando perante seus órgãos; e, ainda, promover a mais
ampla defesa dos direitos fundamentais dos necessitados, abrangendo seus
direitos individuais, coletivos, sociais, econômicos, culturais e ambientais,
sendo admissíveis todas as espécies de ações capazes de propiciar sua
adequada e efetiva tutela. Esse amplo espectro de formas de atuação
extrajudicial justifica, inclusive, o planejamento de um quadro de pessoal que
preveja mais do que um defensor público por órgão jurisdicional. (Mapa da
Defensoria Pública, 2013, p.40).
Tal garantia ampliou-se com a criação da Lei 8.906, a qual afirma que constitui
infração disciplinar do advogado “recusar-se a prestar, sem justo motivo, assistência
jurídica, quando nomeado em virtude de impossibilidade da Defensoria Pública” (Lei
4
Termo utilizado para todo cidadão que estiver utilizando a assistência jurídica prestada pela Defensoria
Pública da União. Corresponde ao termo “usuário” utilizado na maioria dos espaços sócio-ocupacionais
do Serviço Social
7
8.906, de 04/7/1994, no Art. 34, XII). Portanto, na inviabilidade da prestação da
assistência pelo órgão oficial, cabe ao Estado a nomeação de um advogado para a
segurança do indivíduo que recorreu à Defensoria e não teve a sua necessidade atendida.
Assim sendo, o acesso à justiça, segundo Chuairi (2001, p. 127) apresenta duas
finalidades básicas: “a primeira é que os sujeitos podem reivindicar seus direitos e
buscar a solução de seus problemas sob o patrocínio e a proteção do Estado, e a segunda
corresponde a garantir o acesso à justiça igualmente a todos”.
Não obstante os avanços conquistados com a garantia constitucional do acesso à
justiça, muitos obstáculos podem ser observados para que este acesso seja feito de
forma efetiva. Dentre os óbices, podem-se destacar: a morosidade de que está revestido
o Poder Judiciário; a desigualdade entre as partes; a estrutura precária; a carência de
profissionais qualificados nas instituições públicas; a deficiência na contratação de
profissionais de outras áreas de conhecimento; a falta de informação; e a
conscientização sobre os direitos por parte da população.
Constata-se, pois, que assegurar a isenção do pagamento de custos dos processos
e de honorários advocatícios não é suficiente, se o direito que é conhecido e aplicado
não é efetivado. Além de tais elementos, deve-se apontar que muitos desses direitos são
desconhecidos pelos cidadãos ―nem mesmo aplicados ―, apesar de o direito à justiça
englobar o direito à informação e a conscientização dos assistidos sobre a existência dos
mesmos, bem como a possibilidade de defesa de forma integral e gratuita.
1.2. O SERVIÇO SOCIAL E A DEFENSORIA PÚBLICA
Como esmiuçado anteriormente, em paralelo às conquistas dos direitos sociais,
constatou-se a reestruturação dos mecanismos de acumulação do capital, que resultaram
em densas transformações societárias e, consequentemente, em novas manifestações da
questão social5, que, por sua vez, passaram a exigir novas formas de intervenção do
profissional de Serviço Social. Nesse sentido, Iamamoto (2004, p. 269) afirma que a
questão social expressa desigualdades econômicas, políticas e culturais das classes
sociais, mediatizadas por disparidades nas relações de gênero, características étnico raciais e formações regionais, colocando em causa amplos segmentos da sociedade civil
no acesso aos bens da civilização. Dispondo de uma dimensão estrutural, “ela atinge
visceralmente a vida dos sujeitos numa luta aberta e surda pela cidadania” (IANNI,
1992, p. 87), no embate pelo respeito aos direitos civis, políticos e sociais.
5
No conjunto das expressões das desigualdades que aprecem com a sociedade capitalista e que têm uma
raiz em comum, enfatiza-se que a produção social é cada vez mais coletiva, e o trabalho torna-se mais
amplamente social, enquanto a apropriação do seu produto mantém-se privada, monopolizada por uma parte
da sociedade (IAMAMOTO, 2001, p. 27).
8
Assim, somente a garantia dos mais amplos direitos na Constituição do país não
é o suficiente, se, na realidade, o cidadão comum não pode exigi-los por meio da
proposição de demandas jurídicas e da possibilidade de acessarem informações sobre os
direitos vigentes, reconhecendo-se na condição de sujeitos de direitos e deveres. Nesse
sentido, “de um modo ético e crítico, o assistente social deve buscar viabilizar respostas
que incluam o usuário dos serviços sociais judiciários na esfera dos direitos e no pleno
exercício de sua cidadania” (KOSMANN, 2006, p. 75). Assim, impõe-se o desafio de
tornar os direitos sociais efetivos, em face de um sistema judicial que encontra
dificuldades em assegurá-los, ainda que garantidos na legislação, como também frente à
tentativa
de
desmantelamento
desse
conjunto
de
direitos
que
ainda
não
foramplenamente realizados ― tal desafio coloca-se, também, para o profissional de
Serviço Social, exigindo respostas.
Tem-se como pressuposto, conforme pontua Iamamoto (2001, p.48), que o Serviço
Social, na totalidade das relações de produção e reproduções da vida social, possui um papel
particular de intervenção no âmbito da questão social. Não se trata de se imbuir missão
salvacionista diante da profunda crise social, resgatando seu histórico e originário contexto
religioso ou se reduzindo a uma visão assistencialista, por meio da legitimação ou da
compensação das desigualdades econômicas, atendendo à demanda do capital. O que está
sendo colocado como desafio para os profissionais do Serviço Social se vincula à tensão
decorrente das mudanças conjunturais contemporâneas, porque, ao se inserir “num
Projeto ético-político engajado, num projeto nacional e popular, ele sofrerá avanços e
recuos diante dos movimentos sociais e do Estado” (idem). Em consonância com Forti,
Os compromissos assumidos pelo Serviço Social brasileiro não endossam,
tampouco “absolutizam”, a lógica instituída pelo capital. Essa profissão que
inicialmente caracterizou-se pela prática moralizante e pelo privilégio, por
longo período de tempo, do controle e do “papel educativo” favorável ao
mundo capitalista, tem atualmente ─ salvaguardada a heterogeneidade
profissional ─ o seu histórico conservadorismo e/ou neoconservadorismo
defrontado com um projeto profissional, tido como hegemônico, engendrado
em bases progressistas (internas e externas ao Serviço Social). Esses
compromissos representam um projeto profissional, denominado Projeto
Ético-Político do Serviço Social que [...] tenciona contribuir para legitimar
valores que apontem para a necessidade de desenvolvimento da generalidade
humana, em vez de privilegiarem o corporativismo, os interesses apenas
particulares de grupos sociais ou indivíduos. Não fortalece, desse modo, a
propalada ideia de dissociação entre o particular-individual e o socialgenérico, ou seja, não contribui para fomentar “particularismo” que,
predominando sobre a perspectiva de interesses genérico-coletivos, criem
obstáculos ao desenvolvimento dos próprios indivíduos e da sociedade.
(FORTI, 2009, p.24-25).
Nessa conjuntura, “a lógica destrutiva do capital tem se objetivado, como
processo acelerado de desumanização ― de barbárie ― que atinge a totalidade das
relações sociais” (BARROCO, TERRA, 2012, p. 64). Conforme se ampliam as
violações dos direitos humanos e se intensifica a barbárie, tal demanda rebate nas
9
profissões que atuam com populações afetadas por esses processos. O Assistente Social
na qualidade de “trabalhador assalariado e profissional voltado ao atendimento das
expressões mais extremas da questão social vincula-se duplamente a esse processo de
barbarizarão da vida” (ibidem, p. 65). Porém, não se pode perder de vista que os
processos de trabalho do
assistente social têm como objeto as expressões da questão social e que essas
expressões expõem violações de direitos, geralmente provocadas por
situações estruturais e conjunturais, exige de nós a análise crítica sobre as
dimensões que constituem esse processo de trabalho. Isto significa pesquisar
a respeito do objeto sobre o qual a ação acontece, os meios de trabalho que
são os instrumentos, os recursos materiais e em especial os recursos
intelectuais, o conhecimento da realidade social, seus movimentos,
correlações de forças e possibilidades, com vistas a uma clareza sobre a
finalidade do trabalho. (FÁVERO, 2012, p. 132).
Sendo assim, a inserção desse profissional no campo sociojurídico6 vem
aumentando, já que os canais de acesso à justiça têm sido ampliados, até por exigência
constitucional, por meio da assistência judiciária, dos juizados especiais e da justiça
comunitária. Nesses espaços sócio-ocupacionais, relativamente novos para o Serviço
Social, a presença do Assistente Social pode se revelar fundamental, uma vez que, de
acordo com Fávero:
Ela possibilita a interpretação da demanda do ponto de vista social,
oportunizando, assim, a leitura e análise da realidade e o planejamento e
encaminhamento de ações na Perspectiva da Concretização de Direitos com
base na situação, de fato, vivida pelos sujeitos individuais ou coletivos e em
seus direitos de acessarem a justiça. Por trabalhar em consonância com a
garantia de direitos, o assistente social está habilitado a lidar com uma
diversidade de situações, expressas por pessoas que vivem em condições,
muitas vezes, de apartação social, que passam por experiências permeadas
por violência social e interpessoal, com vínculos sociais e familiares
rompidos ou esgarçados. Exemplo disso é o sofrimento social provocado por
essas rupturas e pela humilhação da ausência de acesso a direitos. Nesse
contexto, a possibilidade de ser ouvido, de ser atendido por um profissional
que vai procurar efetivar reflexões e informações sobre direitos e que pode
criar um espaço facilitador de diálogo, de compreensão e de reflexão crítica a
respeito dos problemas e dilemas que vivenciam, pontual ou cronicamente,
pode ser uma maneira mais ágil e viável na direção do acesso à justiça.
(idem)
No
campo sociojurídico a atuação do Assistente Social está intrínseca e
extrinsecamente vinculada à questão da viabilização e da garantia dos direitos, ou seja,
do direito de acesso à justiça. Chuairi frisa:
6
O termo “campo sócio-jurídico” é utilizado para definir o conjunto de áreas de atuação em que as
atuações do Serviço Social se articulam a ações de natureza jurídica, como o sistema Judiciário, os
sistemas Penitenciário e Prisional, o sistema de Segurança, o Ministério Público, [as Defensorias
Públicas], os sistemas de Proteção e Acolhimento e as organizações que executam medidas
socioeducativas, conforme previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente, dentre outros. O termo
sócio-jurídico passou a ser mais conhecido no meio profissional dos Assistentes Sociais, especialmente a
partir de sua escolha como tema da Revista Serviço Social e Sociedade nº 67 [Cortez, Editora], bem como
de uma das sessões temáticas do Congresso Brasileiro de Assistentes Sociais/2004 (X CBAS) e, ainda, do
Encontro Nacional Sócio-jurídico, que ocorreu em Curitiba, em 2004, em que foi discutido o sistema de
defesa de direitos nas áreas do Judiciário e do Penitenciário. Nesse encontro, os participantes aprovaram,
dentro da agenda política, que o conjunto CFESS/CRESS consolidasse a terminologia “campo de prática
sócio-jurídica” (FÁVERO, 2005, p. 2).
10
Em sua trajetória profissional, o assistente social sempre esteve inserido na
prestação de serviços assistenciais, voltando sua ação de forma prioritária às
necessidades sociais e garantia de direitos das classes subalternas. E é na
efetivação de direitos, no acesso à justiça e na restituição da cidadania dos
sujeitos das classes subalternas que a assistência jurídica pode ser
compreendida como espaço de permanentes desafios para a ação profissional
do Serviço Social. (CHUAIRI, 2001, p. 138).
Portanto, inserido nesse espaço sócio-ocupacional, o assistente social lida com
questões que envolvem a vida de sujeitos, tendo, como desafio fundamental, a garantia
de direitos, em contraposição à violação dos mesmos. Assim,
No relacionamento com os usuários, as violações aos DH e aos princípios da
ética profissional são objeto do trabalho profissional; logo, o profissional
deve dar prosseguimento ao atendimento ou encaminhar para tal,
contribuindo para o enfretamento profissional dessas questões. Entendidas
como parte constitutiva das demandas postas ao Serviço Social em uma
conjuntura de barbarização da vida, essas manifestações não podem ser
simplesmente negadas; seu enfrentamento profissional requer um
conhecimento teórico, uma preparação técnica e um investimento político
junto aos usuários, no sentido de difusão de uma cultura de valorização dos
direitos humanos e de resgate da cidadania. (BARROCO, TERRA, 2012, p.
88).
Especificamente, a inserção do Serviço Social no âmbito da Defensoria Pública
da União7 é recente, e o profissional intervém nas múltiplas formas da questão social
que se apresentam à instituição, por meio dos cidadãos que procuram o órgão em busca
de orientações e da viabilização do acesso aos direitos, serviços, programas e políticas
públicas. Conforme destaca Fávero:
O Serviço Social, ao longo de sua trajetória na organização judiciária, ficou
reconhecido pela necessidade de intervenção não só no contexto da Justiça
infanto-juvenil e família, mas em diversas outras áreas [...]. Hoje o Serviço
Social atua em várias frentes e suas atribuições não se resumem apenas a
situações relacionadas a medidas judiciais. Atuando em conformidade com os
princípios norteadores da profissão, tem contribuído para a implementação de
projetos e programas na área da saúde mental e vocacional, reavaliação
funcional, capacitação, treinamentos, etc., funções estas que envolvem o
conhecimento das vivências socioeconômicas e culturais dos sujeitos e de
como reagem às diferentes manifestações da questão social na sua vida
cotidiana. (FÁVERO, 2005, p. 51).
O Serviço Social na DPU tem, como um dos principais objetivos, primar pela
resolução de demandas verificadas no momento do atendimento por meio da via
administrativa, para agilizar a resposta ao mesmo, evitando a abertura de processos
judiciais. A intervenção do Assistente Social tem por base o projeto ético-político,
sendo sua práxis constituída por capacidades e competências que determinam seu
processo de trabalho. Logo, as dimensões teórico-metodológica, ético-política e técnicooperativa estão aí presentes, de modo indissociável.
7
Optou-se por particularizar a Defensoria Pública da União, devido à inserção da Assistente Social
Sandra Carneiro e ao fato da mestranda Sulamita Castro ter sido estagiária no núcleo da
instituição em Juiz de Fora no período da graduação (abril 2012 – setembro 2013).
11
Em síntese, a atuação da Assistente Social engloba: a) Perícia Social (estudo
sobre a situação socioeconômica, socioespacial e socioambiental dos usuários, por meio
de Visita Domiciliar e/ou de Visita Institucional e Entrevistas); b) Assessoria Social
(fornecimento de informações e encaminhamentos aos que procuram a Defensoria,
efetivando a mediação entre Estado, instituição e população); c) composição da equipe
da Defensoria em visitas às instituições e/ou às comunidades; d) participação na
implementação e na execução de projetos.
Intervém, ainda, nas demandas espontâneas, com entrevistas individuais ou
grupais, porque, na maioria das vezes, além da demanda jurídica, os usuários
apresentam questionamentos e necessidades quanto à inclusão em programa de
transferência de renda (Bolsa Família), em programas habitacionais ou em serviços de
saúde ― Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), Programa de Saúde da Família
(PSF), Unidade de Atenção Primaria a Saúde (UAPS) e outros ―, bem como quanto à
isenção de transporte público e à dependência química (tratamento e internação), entre
outros itens.
Também atua junto a: idosos e pessoas com deficiência, que comparecem à DPU
desacompanhados e/ou apresentando desorientação ou indícios de vulnerabilidade
social; pessoas em situação de rua ou procedentes de outros estados que se encontram
temporariamente sem abrigo; e pessoas que relatam sofrer ou que tenham conhecimento
de criança, adolescente, pessoa com deficiência, mulher ou idoso que sofram maustratos ou violência. Após a entrevista, as demandas expostas que não possam ser
respondidas pelo Judiciário ou que ultrapassem o limite da instituição são encaminhadas
à rede assistencial ― e, sempre que possível, o acompanhamento é feito pelo
profissional.
Faz-se conveniente expor a declaração de Aguinsky:
cabe ao profissional de Serviço Social procurar desvelar o cenário em que
está inserido e o conjunto de projetos societários que está em jogo,
desenvolvendo uma postura e uma práxis que supere o resultado do acumulo
de demandas, da adoção de um “tarefismo” burocrático, moralizante e que
não enfrenta as condições que originam os processos judiciais. Processos
esses que, em grande medida, expressam particularidades da questão social,
necessitando, conforme Barroco (2001, p. 69), “compreender o ethos
profissional como um modo de ser construído a partir das necessidades
sociais e das demandas postas historicamente à profissão e nas respostas
ético-morais dadas por ela nas várias dimensões que compõem a ética
profissional.” (AGUINSKY, 2006, p. 24).
Assim sendo, pode-se considerar que durante a sua intervenção junto ao
Poder Judiciário, o assistente não pode perder de vista que está inserido em “um espaço
de lutas de interesses distintos, submetidos a critérios de legitimação que dizem de uma
disputa das formas de se dizer tanto o Direito quanto a sociedade” (idem).
12
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em suma, apreendemos que, no atual contexto de reestruturação do capitalismo,
balizada no ideário neoliberal, há, em realidade, a promoção da atrofia do Estado, a
responsabilização da sociedade civil e a legitimação de um “terceiro seto r” funcional
aos seus interesses, assim como o domínio da lógica privatizante, que resulta, por certo,
em uma desconstrução das conquista históricas da luta de classe em termos de direitos.
É nessa contextura que entendemos a importância da Defensoria Pública, dentro dos
limites e desafios atrelados à ordem societária vigente, ao Poder Judiciário e à própria
Instituição, na condição de agente de efetivação do acesso à justiça.
Além disso, não se deve perder de vista que:
Na sociedade burguesa, de modo aparentemente contraditório, a lei e o
Estado só defendem o direito humano à propriedade, conforme destaca
CHAUÍ, 1989, “de sorte que os direitos de alguns, significa coerção,
opressão, a repressão e a violência contra outros, no caso, sobre a maioria”.
Assim, evidencia-se que o solo histórico que possibilitou a construção de
documentos e lutas em prol de direitos e o mesmo que produz e reproduz a
sua inviabilização para todos, inscrevendo nesta sociedade simultaneamente a
negação de direitos e a possibilidade da práxis humana social (política e
cultural) na direção da objetivação de referências éticas emancipatórias.
(VINAGRE, 2009, p.116).
Também em consonância com Barroco, faz-se conveniente asseverar:
Em face da barbárie que se revela com o avanço das consequências
destrutivas do capitalismo para a vida ― em todas as suas dimensões ― e
tendo em vista os limites objetivos da universalização dos Direitos Humanos
na ordem capitalista, sua luta é necessária, mas, também limitada. Por isso, a
nossa luta é atual e urgente, mas implica a consciência política de que seus
limites podem ser superados para além dessa sociedade, na direção de uma
emancipação humana e da construção de uma sociedade na qual não seja
preciso lutar por direitos. (BARROCO, 2009, p. 61).
Concluindo, a luta pela efetivação do acesso à justiça é, tão somente, a gênese de
uma longa jornada, se o nosso maior objetivo for, de fato, ir além do discurso do
“direito a ter direitos”. Até porque, rememorando Arcary (2006, apud VINAGRE, 2009,
p.119), “os direitos só têm sentido se forem universais se não forem acessíveis a todos,
são vantagens”.
13
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