SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 11(4) 1997 A REEMERGÊNCIA DAS SOLIDARIEDADES MICROTERRITORIAIS NA FORMATAÇÃO DA POLÍTICA SOCIAL CONTEMPORÂNEA MARIA DO CARMO BRANT DE CARVALHO Professora do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social na PUC-SP A s redes de solidariedade microterritoriais, durante os anos gloriosos de boom econômico – pleno emprego e oferta de políticas sociais universalistas – pareciam ser descartáveis no modelo de welfare state gestado nos países centrais. A família, por exemplo, foi inclusive estigmatizada pela revolução cultural e feminista ocorrida naquele tempo/espaço. A proteção e a reprodução social transformaram-se em missão “quase total” de um Estado social de direito dos cidadãos. Parecia que o indivíduo “promovido” a cidadão podia trilhar sua vida apenas dependente do Estado e do trabalho, e não mais das chamadas sociabilidades sociofamiliares. Isto, no embalo de uma urbanização e de uma transnacionalização aceleradas com promessas de sociabilidades planetárias. Na realidade, pesquisas recentes constataram que estas microrredes de solidariedade – e sociabilidades por elas engendradas – mantiveram-se como condições privilegiadas de proteção e pertencimento a um campo relacional importante na reenergização da vida cotidiana dos indivíduos. Mas, por que o retorno e a revalorização das microssolidariedades no desenho da política social contemporânea? Por que as redes que elas constituem estão sendo incluídas como parceiras no próprio fazer social do Estado? Sem dúvida, o fator principal deste retorno se deve às crescentes demandas de proteção social postas não apenas pelos “pobres” ou “desempregados”, mas por uma maioria de cidadãos, que se percebem ameaçados pelos riscos de, a qualquer momento, perderem a segurança advinda de seus tutores tradicionais: o mercado e o Estado. Hoje, as demandas de proteção social ganham novas peculiaridades. É que os processos contemporâneos de globalização da economia, da informação, da política, da cultura, assim como os avanços tecnológicos e a transformação produtiva, vêm produzindo uma sociedade complexa e multifacetada. Uma sociedade global que, de um lado, mantém seus cidadãos fortemente interconectados e, por outro lado, extremamente vulnerabilizados em seus vínculos relacionais de inclusão e pertencimento. Já não são apenas as mercadorias que podem ser descartadas, mas também segmentos da população que se tornam “sobrantes”. A pobreza, que até há pouco tempo se apresentava como um fenômeno homogêneo, hoje aparece como um fenômeno heterogêneo, multidimensional, que atinge não só as clássicas camadas da população aprisionadas num círculo cumulativo de insuficiência/ausência de rendimentos, subnutrição, habitações degradadas, analfabetismo, mas também, progressivamente, outros segmentos da população – especialmente nos países centrais –, tais como jovens que, imersos num “eterno presente”, ficaram sem passado e sem perspectivas de futuro (Hobsbawn, 1996); migrantes, idosos e habitantes de grandes centros urbanos lançados no isolamento social. Estes são alguns dos exemplos dos “novos pobres” que se apresentam nutridos e com melhor escolaridade. A pobreza assume na contemporaneidade um significado excludente. É nesta condição que a desigualdade social é também re-significada, sinalizando novos processos de discriminação e apartação social, como denomina Buarque (1993).1 O desemprego massivo – resultante de inovações tecnológicas, poupadoras de mão-de-obra – é um dos motores visíveis desta nova pobreza. Mas, a este desemprego se articulam a precarização das relações de trabalho e o enfraquecimento da sociedade salarial. Conjugam- 16 A REEMERGÊNCIA se aí, igualmente, desindustrialização, perda de competitividade e uma dependência mais dramática dos países periféricos. No entanto, há outro motor menos visível: o exacerbamento do individualismo, a atomização social, o esfacelamento de organizações vicinais e os novos arranjos familiares, nos quais os indivíduos já não encontram redes de relações e trocas regidas pela reciprocidade que conformam o mundo da vida.2 Ou seja, vínculos relacionais de apoio e pertencimento. É importante frisar que estes processos não atingem de forma homogênea todos os cidadãos. Segundo Telles (1994:98), “se é verdade que a crise econômica dos últimos anos aumentou a pobreza e miséria, também é certo que os rumos já tangíveis de reorganização econômica redefinem a questão social pelos riscos de uma dualização da sociedade, dividida entre enclaves de modernidade e uma maioria sem lugar. A reestruturação industrial, as mudanças no padrão tecnológico e transformações na composição do mercado vêm produzindo um novo tipo de exclusão social, em que à integração precária no mercado se sobrepõe o bloqueio de perspectivas de futuro e a perda de um sentido de pertinência à vida social. É isso que caracteriza a chamada nova pobreza, que escapa às soluções conhecidas e formuladas nos termos de políticas distributivas e compensatórias, pois esta tem por suposto exatamente o que parece estar deixando de ser plausível, ou seja, a possibilidade de uma integração constante e regular no mercado de trabalho”. Este artigo pretende discutir, sem ter a pretensão de esgotar o debate sobre a conexão hoje presente entre o Estado, o mercado e as redes de solidariedade microterritoriais, refletidas na formatação da política social contemporânea. Inicialmente, apresenta-se uma breve contextualização do “estado das artes” no que se refere ao comportamento da política social. DAS SOLIDARIEDADES MICROTERRITORIAIS NA ... extensivos a todos os cidadãos. E finalmente, um pacto interclasses viabilizador do pleno emprego, assentado em macropolíticas econômicas e sociais mediadas pelo Estado. Nos anos 80 e, mais acentuadamente, nos anos 90, assistimos a uma tendência ao desmonte do propósito essencial da política social vigente nos “anos gloriosos”: sua oferta universalista e redistributivista. É impossível compreender as alterações no comportamento da política social sem refletir sobre algumas características/processos contemporâneos que desestabilizam antigos consensos e impõem novos desafios. Fragilização do Modelo Institucional A crescente interdependência causada pela globalização dos negócios fragiliza o conhecido modelo institucional do Estado-Nação. Globalização e revolução tecnológica consolidam uma nova fase do capitalismo que alguns autores denominam de capitalismo desorganizado e outros consideram como a retomada selvagem dos movimentos do capital que, “des-amarrado” da regulação estatal vigente no período precedente, rompe todas as fronteiras nacionais. “O movimento globalizador tem duas faces: de um lado, liberdade significa liberação; de outro significa desproteção. Para liberar é preciso desproteger, é preciso derrubar barreiras tarifárias e extra-tarifárias que protegem os países dos efeitos perniciosos e tantas vezes letais da concorrência internacional; é preciso privatizar o que fora assumido como responsabilidade estatal; é preciso desregulamentar o que estava sob o amparo de normas estabelecidas; é preciso flexibilizar as relações capital-trabalho abolindo as seguranças dos direitos conquistados ” (Martins, 1996:18). Mas a marca mais dramática desta nova fase capitalista é a supremacia da especulação financeira: “(...) os mercados financeiros passaram a ser a polícia, o juiz e o júri da economia mundial” (Financial Times, apud Martins 1996:24). O Estado-Nação acaba se comportando como um “pronto-socorro” do mercado/economia e “pronto-socorro” do social. Já não se espera que exerça um papel/poder intervencionista em ambos os campos. É neste contexto que muitos autores apontam para uma perigosa clivagem, em que a concepção social universalista seria deixada à margem. Os arranjos em blocos econômicos e políticos (União Econômica Européia, Nafta, Grupo dos 7, Mercosul) e a força das organizações supranacionais (como OMC e FMI) acabam por direcionar as regras do jogo econômico, político e jurídico. Esses arranjos globais são, TENDÊNCIAS NO COMPORTAMENTO DA POLÍTICA SOCIAL CONTEMPORÂNEA Pensar as tendências da política social envolve contextualizá-la nas relações entre Estado, sociedade e capitalismo global. Estas relações engendram demandas e limites que pressionam por novos arranjos e modos de gestão da política social. Até os anos 70, acostumamo-nos a olhar os países desenvolvidos como parâmetros para a conquista de um capitalismo “domesticado” pelos ideais de uma socialdemocracia, com um Estado social forte e capaz de garantir políticas sociais relativamente eficazes na produção de maior eqüidade e usufruto de direitos sociais 17 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 11(4) 1997 no entanto, preponderantemente orientados e institucionalizados pelos interesses tipicamente capitalistas ou empresariais. Deste padrão de governabilidade não emergem, pois os interesses sociais ou os tipicamente relacionados ao trabalho, que sequer se fazem presentes. Ao contrário, assiste-se a maior desigualdade entre países centrais e países periféricos. Dentre estes últimos, aqueles valorados como mercados emergentes e os considerados descartáveis. A alavancagem e a consolidação de processos flexibilizadores e liberalizantes facilitam o predomínio da regulação mercantil sobre a estatal e a formação de vínculos mais diretos entre o global e o local. Desta forma, fica fragilizado o Estado nacional, e com ele os mecanismos de unificação e coordenação. A rede mundializada de organizações da sociedade civil assume papel fundamental na constituição de solidariedades intermédias, mantendo o fluxo global/local e local/ global. Finalmente, os governos nacionais perdem força na formulação e implementação de políticas sociais universalistas, embalados nos discursos da democratização, descentralização, desregulamentação, fortalecimento da sociedade civil, etc. Mas este mesmo discurso, na sua dialética, escamoteia a debilidade política do Estado-Nação no contexto contemporâneo. Mudanças Ininterruptas Como afirma Nogueira, “o ciclo histórico em que nos encontramos está inteiramente tomado pela mudança acelerada, ininterrupta e cumulativa. Nele, entrecruzam-se inovações tecnológicas e modificações sócio-culturais que repercutem sobre todos os planos e setores da vida social” (Nogueira, 1995:107). Na realidade, os avanços tecnológicos e científicos e, em especial a chamada revolução informacional, alteram radicalmente o comportamento societário e os processos de regulação social, antes capazes de gerar consensos e coesões mais duradouras. Em lugar da socialização disciplinar e dos padrões coercitivos, a fluidez negociadora. Em lugar do respeito e do culto a idéias e instituições, a banalização das idéias, instituições e sujeitos coletivos. Em lugar da conjugação dialética de direitos e deveres, a dissociação entre ambos. Em lugar da distinção entre o privado e o público, a invasão mútua e a ambigüidade entre ambos. Em lugar da primazia do trabalho como integrador social por excelência, a sua secundarização. Assistimos a tendência à substituição do pleno emprego pela plena atividade. A sociedade contemporânea é mais complexa, marcada pela “fragmentação, corporativismo, particularismo, individualismo, crise da política e do Estado. Por mais paradoxal que possa parecer, é sinônimo de ‘desorganização’. Tudo se passa como se não mais houvesse centros de imputação capazes de ordenar os processos sociais, organizações capazes de comandar e vincular pessoas, instituições capazes de construir sínteses superiores a partir de interesses fracionados” (Nogueira, 1994:109). Neste tempo histórico, vivemos a primazia dos microinteresses, das microidentidades, e não mais dos macrointeresses coletivos. Nestas condições, torna-se complexa e árdua a tarefa de propor e consensuar projetos coletivos emancipatórios. Parece haver aí a adesão, ou o conformismo, a um novo pacto social, mais pobre e, ao mesmo tempo, mais consumista. Deslocamento do Estado-Nação A tendência à interconexão mais direta entre o global e o local deslocam o Estado-Nação para uma zona de mediação, mais do que de decisão autônoma. Se, para o capital, os centros de poder se concentram em organizações supranacionais, como Grupo dos 7, OMC, FMI, no plano social, convergem para organizações da ONU e congêneres, como Unicef, OMS, Unesco, Banco Mundial, entre outras. Na outra ponta (o local), as municipalidades e organizações da sociedade civil ampliam seu poder no direcionamento da política social. No campo social, as relações entre global governance e local governance ganham o oxigênio do chamado terceiro setor (nem Estado/nem mercado), representado pela enorme expansão das organizações da sociedade civil3 e de fundações empresariais sem fins lucrativos, que se movem em redes mundializadas em estreita intimidade com organizações supranacionais, especialmente as organizações das Nações Unidas. É ilustrativo relembrar as conferências protagonizadas pela ONU na presente década, 4 com a expressiva participação das chamadas organizações não-governamentais. Destaca-se a última conferência realizada em 1996 em Istambul, a Habitat II, que reuniu pela primeira vez representações de governos municipais, além das ONGs. Assim, correndo em artérias também globais, as organizações da sociedade civil pressionam instituições políticas mundiais objetivando conter os movimentos selvagens do capital e assegurar conquistas sociais. É neste veio que emergem as marchas dos trabalhadores na Europa, os movimentos/atores de defesa ecológica, os movimentos/ atores de defesa das minorias, entre outros, que, no entanto, expressam características multifacetadas, particularistas, segmentadas próprias da sociedade contemporânea. 18 A REEMERGÊNCIA Assiste-se, assim, a uma nova inversão: a primazia dos direitos das minorias e não mais das maiorais. Esta ênfase tem conseqüências claras sobre a política social. A mais importante se revela na priorização de políticas focalistas, mais que em políticas universalistas. DAS SOLIDARIEDADES MICROTERRITORIAIS NA ... problemas e necessidades específicas; elegem clientelas locais, ou minorias regionais, nacionais e supranacionais. Algumas são braços doutrinários de Igrejas; outras do empresariado; outras de movimentos sociais; e outras, ainda, braços solidários da própria comunidade. Mas todas elas constituem, em comum, braços de um Estado inadimplente com os empobrecidos e excluídos. Formam redes de organizações não-governamentais, algumas com vínculos apenas locais, e outras com vínculos transnacionais” (Carvalho, 1994:91). O discurso dos direitos, articulado ao da revalorização das solidariedades, gesta contraditoriamente “políticas sociais sem direitos”,5 permitindo indicar tanto uma possível re-filantropização da intervenção social, quanto um deslocamento do protagonismo do Estado para a sociedade civil, especialmente quando se refere ao segmento da população constituído por cidadãos pobres e excluídos. Revalorização das Redes de Solidariedade Ao invés de considerar a política social como competência exclusiva do Estado, é possível articular iniciativas privadas do Estado e da sociedade civil. Nesse sentido, está na ordem do dia o chamado welfare mix, que promove uma combinação de recursos e de meios mobilizáveis junto ao Estado, mercado, iniciativas privadas sem fins lucrativos e, ainda, aqueles derivados das microssolidariedades originárias na família, nas igrejas, no local (Martin, 1995 e Evers, 1993), de modo que as políticas sociais se apresentam hoje como responsabilidades partilhadas. Para Abrahamson (1995) “os diferentes welfare states europeus estão convergindo para o modelo corporativo, o que implica fortalecimento das tendências de dualização do welfare state. Dualização, neste caso, significa um sistema de bem-estar bifurcado, onde o mercado cuida dos trabalhadores mais bem posicionados, através de vários arranjos corporativistas, e deixa os grupos menos privilegiados sob a responsabilidade das instituições locais (municipalidades ou solidariedade privada) (...) o primeiro mais generoso, regido pelos princípios do mercado e voltado a proteger os trabalhadores mais educados e habilitados, e outro, local predominantemente público, voltado para atender precariamente os marginalizados”. De qualquer forma, o welfare mix é um retorno, com matizes da contemporaneidade, ao fortalecimento das redes de solidariedade emanadas da própria sociedade civil. Na América Latina, em geral, e no Brasil, em particular, o welfare state nunca se consumou inteiramente. Na realidade, nestes países sempre se conjugou um frágil Estado-providência com uma forte sociedade-providência. “A sociedade-providência nestes países é ao mesmo tempo fluida e organizada. Uma sociedade-providência, nascida no interior das próprias camadas populares como resistência e possibilidade de sobreviver na carência e na pobreza. Outra sociedade-providência, nascida no interior das classes média e alta, assumindo tons os mais diversos: apadrinhamento, tutela, filantropia, defesa dos direitos, mobilizadora da organização popular para obtenção de serviços do Estado... Enfim, essa rede de solidariedade assume propostas conservadoras/tutelares ou progressistas/emancipatórias. São fragmentadas, pinçando Descarte das tradicionais respostas institucionalizadoras No desenho das políticas sociais contemporâneas, é claro, igualmente, um outro enfoque: o Estado de bemestar social dos anos “gloriosos” tomou a si a responsabilidade de ofertar uma gama complexa de serviços de proteção social, que acabaram por se engessar em processos burocráticos e institucionais que resultaram ineficazes e onerosos. Na realidade, até recentemente, a diretriz era oferecer respostas institucionalizadoras às necessidades sociais. Assim, para crianças abandonadas, priorizaram-se os internatos; para idosos, casas geriátricas ou asilos; para a saúde, a internação hospitalar; para a educação, a escola de tempo integral. Este modelo tem sofrido fortes críticas. Algumas apontam para uma excessiva ingerência do Estado na esfera privada, esvaziando-a de compromissos e de sentido social. Outras nos conduzem à idéia liberal de que mercado e solidariedade organizada da sociedade civil, por meio de suas organizações sem fins lucrativos, são mais competentes para garantir eficácia no trato da questão social. Outras ainda enfatizam o alto custo e a baixa efetividade do modelo institucionalizador.6 A crítica faz reemergir o discurso pelo retorno às solidariedades comunitárias, vicinais, familiares. É também uma ênfase no chamado Terceiro Setor (nem Estado, nem mercado). É a vez das ONGs e da filantropia revisitada, reconhecidas como solidariedades intermédias, de extrema importância na prestação de serviços sociais públicos não estatais, e igualmente na defesa de direitos dos cidadãos. Nesta medida, se prioriza projetos abertos e flexíveis de atenção a diversas demandas, capazes de envolver as 19 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 11(4) 1997 solidariedades comunitárias, as pequenas ONGs prestadoras de serviços sociais, a família e o próprio beneficiário. Como destaca Draibe (1994),“estão em curso processos sociais que tendem a alterar as relações entre o Estado e o mercado; o público e o privado; os sistemas de produção, de um lado, e os de consumo de outro, dos equipamentos sociais. As assim chamadas ‘formas alternativas’ – os mutirões de autoconstrução, as diversas experiências de ajuda mútua, práticas comunitárias e de vizinhança (na guarda de crianças, no setor de alimentação, na coleta e processamento do lixo) – são, no Brasil, exemplos que se multiplicam em todo o mundo, de participação dos próprios beneficiários e de envolvimento de associações voluntárias e de redes de ONGs – Organizações Não-Governamentais – no encaminhamento das políticas sociais”. mento do capital relacional, trocas culturais e inserção participativa em projetos sociopolíticos emancipatórios. Neste embalo, outra opção ganha espaço: a substituição do pleno emprego pela plena atividade. Esta opção pode resvalar, igualmente, para distorções do significado de plena atividade, ou seja, uma iniciativa espontânea (não obrigatória) motivada pela reciprocidade e solidariedade, atributos essenciais do sujeito social (Gorz, 1996). Ganha reforço a idéia de que, na falta de trabalho, há que se fortalecer as sociabilidades sociofamiliares, capazes de compensar e repor vínculos relacionais em processos de inclusão social. O risco, neste caso, é o fechamento do indivíduo na esfera privada, dado que as sociabilidades sociofamiliares podem processar inclusão, mas não asseguram necessariamente inclusão social. No Brasil e na América Latina em geral, as sociabilidades sociofamiliares e as redes de solidariedade primárias nunca foram descartadas, já que elas foram, e ainda são, para as camadas populares, a condição de resistência e sobrevivência. A família alargada – um grupo de conterrâneos, por exemplo – possibilita a maximização de rendimentos, apoios, afetos e relações que facilitem a obtenção de emprego, moradia, saúde, etc. É basicamente por estes motivos que a política social contemporânea retoma a família, a comunidade e pequenas ONGs como unidades protetoras por excelência. A melhor proteção não se traduz apenas em renda, mas deve também reforçar vínculos relacionais e de pertencimento dos cidadãos, necessários à garantia de padrões mínimos de inclusão social. Portanto, não são apenas os déficits públicos, a democratização da coisa pública e a participação dos cidadãos que justificam alterações na política social. Há uma necessidade quase vital de reintroduzir as solidariedades microterritoriais para o centro mesmo da política social contemporânea. Os Estados-Nação manifestam uma clara fragilização política, e não apenas financeira, para ditar e assegurar políticas sociais. De um lado, os processos de globalização, dialeticamente, reforçam processos de localização, ao atribuir maior força política às municipalidades, e remetem os governos da nação para uma zona de mediação, mais do que de decisão e intervenção. De outro, a vocalização geral em torno da democratização, da flexibilização, da descentralização e do fortalecimento da sociedade civil reforça antes o poder local que o central. Consensualizam-se, assim, as bases para o que se pode denominar hoje de welfare state locais: governo e sociedade local criam mecanismos (fóruns, conselhos, etc.) para dar forma a esse processo de parceria no desenho e na efetivação de uma política social. Este novo desenho permite incluir a iniciativa privada e, com maior riqueza, as micro-solidarie- ENSAIANDO UMA CONCLUSÃO Na base do novo fazer social, há outros argumentos bem mais contundentes, pois se apóiam no risco social contemporâneo da ausência de trabalho para todos, “no sentido em que uma economia que dispensa cada vez mais o trabalho, pode cada vez menos fazer dele o princípio organizador e ordenador que está na base de todas as sociedades” (Barel apud Martin 1995:59). Trata-se de um paradoxo, “pois haveria que reconhecer que o trabalho já não assegura o seu papel de Grande Integrador, continuando, embora, a ser o vetor principal da integração e do acesso à cidadania” (Martin 1995:59). Na mesma linha, Castel (1991:139) assinala duas formas contemporâneas de fragilização dos indivíduos, calçada em dois eixos: o da integração/não-integração por meio do trabalho e o de inserção/não-inserção numa sociabilidade sócio-familiar. A ausência de integração no mundo do trabalho ou a não inserção em redes de sociabilidade, segundo o autor, fazem os indivíduos resvalarem para zonas de vulnerabilidade. A ausência combinada de trabalho e vínculos relacionais lançam-nos num processo de desfiliação. No bojo destas afirmações, há opções políticas amplamente debatidas, que contêm riscos e contradições. A primeira se centra na busca de ampliação de empregos tout court, imaginando recriar o pleno emprego e reconduzir o trabalho ao papel de grande agregador. No cenário atual, esta opção poderia levar ao maior enfraquecimento da sociedade salarial e estimular os empregos precários. Outra opção é a redução da jornada de trabalho com vistas a assegurar emprego para todos. Embora como proposta, esta última angarie maior simpatia, não é seguro imaginar que promova emprego para todos, nem tampouco que o tempo livre resultante possibilite uma cidadania plena, com a ativação das possibilidades de au- 20 A REEMERGÊNCIA DAS SOLIDARIEDADES MICROTERRITORIAIS NA ... lher (1995). Todas foram protagonizadas por organizações supranacionais como PNUD, Banco Mundial, Unesco e Unicef. dades territoriais e sociabilidades sociofamiliares na produção de políticas de proteção e inclusão social. Contudo, este modelo de bem-estar social local não deixa de ser contraditório, na medida em que introduz novas desigualdades, tornando mais complexas e distantes as possibilidades de se garantir um projeto coletivo extensivo a toda a nação. Perde-se em unidade e ganhase em diversidade e heterogeneidade, já que cada município tem autonomia reforçada para desenvolver seu projeto social sem que o Estado-nação consiga assegurar a unidade desejada. Em contrapartida, as sociedades locais ampliam as possibilidades de participação e de exercício do controle social sobre o fazer público. Finalmente, a sociedade hoje enfatiza os direitos das minorias, possibilitando o predomínio de políticas focalistas, que não se adequam aos moldes tradicionais. Estas clamam por articulação e ação transetorial das diversas políticas públicas para públicos-alvos específicos, objetivando uma atenção integral. A busca da eqüidade social, neste caso, volta-se para segmentos (criança, mulher, negro, idoso) e não mais para o conjunto dos cidadãos. É nesta medida que os direitos sociais de todos os cidadãos, expressos em políticas universalistas, são secundarizados. A proteção social, enquanto missão partilhada entre Estado, iniciativa privada e sociedade, o welfare state local, a revalorização das micro-solidariedades e a ênfase nas minorias parecem ser os elementos-chave para a formatação da política social contemporânea. 5. Expressão de Vieira (1996), em referência à política social brasileira pós-Constituição de 1988, mas que se aplica, de maneira geral, a outros países. 6. De acordo com estudos feitos em Nova York, a assistência a um idoso em seu domicílio custa 180 dólares mensais; em um albergue para idosos, 800 dólares e em um hospital geriátrico, 5 mil dólares. Ou seja, com o que custa atender a um só idoso em hospitais, atende-se, igualmente ou melhor, a 27 em seus domicílios (Morelli, apud Magalhães, 1989:81). No Brasil, a ação dos agentes comunitários de saúde, que realizam assistência materno-juvenil junto às famílias na própria comunidade, tem demonstrado ser uma intervenção menos onerosa e mais eficaz no combate à subnutrição e mortalidade infantil. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ABRAHAMSON, P. Welfare pluralism: para um novo consenso na política social européia? Brasília, Neppos/Ceam/UNB, 1995. BUARQUE, C. A revolução nas prioridades. Brasília, Instituto de Estudos Sócio-Econômicos (Inesc), 1993. CARVALHO, M. do C. “A priorização da família na agenda da política social”. Família brasileira a base de tudo. Unicef, Cortez, 1994. __________ “Assistência Social: uma política convocada e moldada para constituir-se em governo paralelo da pobreza”. Serviço Social e Sociedade. São Paulo, Cortez, n.46, ano XV, dez.-1994, p.91. CASTEL, R. “De I´indigence à l´exclusion, la desaffiliation. Precarité du travail et vulnéralilité relatinnelle”. In: DONZELOT J. Face à l´exclusion. Le modéle français. 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Expressão utilizada por Habermas (1988). 3. Também chamadas de organizações não-governamentais/ONGs. 4. Entre outras, Conferência Mundial sobre Educação para Todos (Tailândia, 1990); Conferência Mundial sobre o Meio Ambiente/ECO 92 (Rio de Janeiro); Ano Internacional da Família e Conferência Mundial sobre População e Desenvolvimento (Cairo, 1994); Conferência de Cúpula sobre Desenvolvimento Social (Copenhague, 1995); e IV Conferência Mundial sobre a Mu- VIEIRA, E. “As políticas sociais e os direitos sociais no Brasil: avanços e retrocessos”. Revista Serviço Social e Sociedade. São Paulo, Cortez, n.53, março, ano XVII, 1996. 21