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SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 11(4) 1997
A REEMERGÊNCIA DAS SOLIDARIEDADES
MICROTERRITORIAIS NA FORMATAÇÃO
DA POLÍTICA SOCIAL CONTEMPORÂNEA
MARIA DO CARMO BRANT DE CARVALHO
Professora do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social na PUC-SP
A
s redes de solidariedade microterritoriais, durante
os anos gloriosos de boom econômico – pleno
emprego e oferta de políticas sociais universalistas – pareciam ser descartáveis no modelo de welfare
state gestado nos países centrais. A família, por exemplo,
foi inclusive estigmatizada pela revolução cultural e feminista ocorrida naquele tempo/espaço.
A proteção e a reprodução social transformaram-se em
missão “quase total” de um Estado social de direito dos
cidadãos. Parecia que o indivíduo “promovido” a cidadão podia trilhar sua vida apenas dependente do Estado e
do trabalho, e não mais das chamadas sociabilidades sociofamiliares. Isto, no embalo de uma urbanização e de
uma transnacionalização aceleradas com promessas de sociabilidades planetárias.
Na realidade, pesquisas recentes constataram que estas microrredes de solidariedade – e sociabilidades por
elas engendradas – mantiveram-se como condições privilegiadas de proteção e pertencimento a um campo
relacional importante na reenergização da vida cotidiana
dos indivíduos.
Mas, por que o retorno e a revalorização das microssolidariedades no desenho da política social contemporânea? Por que as redes que elas constituem estão sendo incluídas como parceiras no próprio fazer social do
Estado?
Sem dúvida, o fator principal deste retorno se deve às
crescentes demandas de proteção social postas não apenas
pelos “pobres” ou “desempregados”, mas por uma maioria
de cidadãos, que se percebem ameaçados pelos riscos de, a
qualquer momento, perderem a segurança advinda de seus
tutores tradicionais: o mercado e o Estado.
Hoje, as demandas de proteção social ganham novas
peculiaridades. É que os processos contemporâneos de
globalização da economia, da informação, da política, da
cultura, assim como os avanços tecnológicos e a transformação produtiva, vêm produzindo uma sociedade complexa e multifacetada. Uma sociedade global que, de um
lado, mantém seus cidadãos fortemente interconectados
e, por outro lado, extremamente vulnerabilizados em seus
vínculos relacionais de inclusão e pertencimento. Já não
são apenas as mercadorias que podem ser descartadas, mas
também segmentos da população que se tornam “sobrantes”.
A pobreza, que até há pouco tempo se apresentava como
um fenômeno homogêneo, hoje aparece como um fenômeno heterogêneo, multidimensional, que atinge não só
as clássicas camadas da população aprisionadas num círculo cumulativo de insuficiência/ausência de rendimentos, subnutrição, habitações degradadas, analfabetismo,
mas também, progressivamente, outros segmentos da
população – especialmente nos países centrais –, tais como
jovens que, imersos num “eterno presente”, ficaram sem
passado e sem perspectivas de futuro (Hobsbawn, 1996);
migrantes, idosos e habitantes de grandes centros urbanos lançados no isolamento social. Estes são alguns dos
exemplos dos “novos pobres” que se apresentam nutridos e com melhor escolaridade.
A pobreza assume na contemporaneidade um significado excludente. É nesta condição que a desigualdade
social é também re-significada, sinalizando novos processos de discriminação e apartação social, como denomina
Buarque (1993).1
O desemprego massivo – resultante de inovações tecnológicas, poupadoras de mão-de-obra – é um dos
motores visíveis desta nova pobreza. Mas, a este desemprego se articulam a precarização das relações de trabalho e o enfraquecimento da sociedade salarial. Conjugam-
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A REEMERGÊNCIA
se aí, igualmente, desindustrialização, perda de competitividade e uma dependência mais dramática dos países periféricos.
No entanto, há outro motor menos visível: o exacerbamento do individualismo, a atomização social, o
esfacelamento de organizações vicinais e os novos arranjos familiares, nos quais os indivíduos já não encontram
redes de relações e trocas regidas pela reciprocidade que
conformam o mundo da vida.2 Ou seja, vínculos relacionais de apoio e pertencimento. É importante frisar que
estes processos não atingem de forma homogênea todos
os cidadãos.
Segundo Telles (1994:98), “se é verdade que a crise
econômica dos últimos anos aumentou a pobreza e miséria, também é certo que os rumos já tangíveis de reorganização econômica redefinem a questão social pelos riscos de uma dualização da sociedade, dividida entre
enclaves de modernidade e uma maioria sem lugar. A
reestruturação industrial, as mudanças no padrão tecnológico e transformações na composição do mercado vêm
produzindo um novo tipo de exclusão social, em que à
integração precária no mercado se sobrepõe o bloqueio
de perspectivas de futuro e a perda de um sentido de pertinência à vida social. É isso que caracteriza a chamada
nova pobreza, que escapa às soluções conhecidas e formuladas nos termos de políticas distributivas e compensatórias, pois esta tem por suposto exatamente o que parece estar deixando de ser plausível, ou seja, a
possibilidade de uma integração constante e regular no
mercado de trabalho”.
Este artigo pretende discutir, sem ter a pretensão de
esgotar o debate sobre a conexão hoje presente entre o
Estado, o mercado e as redes de solidariedade microterritoriais, refletidas na formatação da política social
contemporânea. Inicialmente, apresenta-se uma breve contextualização do “estado das artes” no que se refere ao
comportamento da política social.
DAS
SOLIDARIEDADES MICROTERRITORIAIS NA ...
extensivos a todos os cidadãos. E finalmente, um pacto
interclasses viabilizador do pleno emprego, assentado em
macropolíticas econômicas e sociais mediadas pelo Estado.
Nos anos 80 e, mais acentuadamente, nos anos 90, assistimos a uma tendência ao desmonte do propósito essencial da política social vigente nos “anos gloriosos”:
sua oferta universalista e redistributivista.
É impossível compreender as alterações no comportamento da política social sem refletir sobre algumas características/processos contemporâneos que desestabilizam antigos consensos e impõem novos desafios.
Fragilização do Modelo Institucional
A crescente interdependência causada pela globalização dos negócios fragiliza o conhecido modelo institucional do Estado-Nação. Globalização e revolução tecnológica consolidam uma nova fase do capitalismo que
alguns autores denominam de capitalismo desorganizado
e outros consideram como a retomada selvagem dos movimentos do capital que, “des-amarrado” da regulação
estatal vigente no período precedente, rompe todas as fronteiras nacionais.
“O movimento globalizador tem duas faces: de um lado, liberdade significa liberação; de outro significa desproteção. Para liberar é preciso desproteger, é preciso derrubar barreiras tarifárias e extra-tarifárias que protegem
os países dos efeitos perniciosos e tantas vezes letais da
concorrência internacional; é preciso privatizar o que fora
assumido como responsabilidade estatal; é preciso desregulamentar o que estava sob o amparo de normas estabelecidas; é preciso flexibilizar as relações capital-trabalho
abolindo as seguranças dos direitos conquistados ”
(Martins, 1996:18).
Mas a marca mais dramática desta nova fase capitalista é a supremacia da especulação financeira: “(...) os mercados financeiros passaram a ser a polícia, o juiz e o júri
da economia mundial” (Financial Times, apud Martins
1996:24).
O Estado-Nação acaba se comportando como um
“pronto-socorro” do mercado/economia e “pronto-socorro” do social. Já não se espera que exerça um papel/poder intervencionista em ambos os campos. É neste contexto que muitos autores apontam para uma perigosa
clivagem, em que a concepção social universalista seria
deixada à margem.
Os arranjos em blocos econômicos e políticos (União
Econômica Européia, Nafta, Grupo dos 7, Mercosul) e
a força das organizações supranacionais (como OMC
e FMI) acabam por direcionar as regras do jogo econômico, político e jurídico. Esses arranjos globais são,
TENDÊNCIAS NO COMPORTAMENTO DA
POLÍTICA SOCIAL CONTEMPORÂNEA
Pensar as tendências da política social envolve contextualizá-la nas relações entre Estado, sociedade e capitalismo global. Estas relações engendram demandas e limites que pressionam por novos arranjos e modos de
gestão da política social.
Até os anos 70, acostumamo-nos a olhar os países desenvolvidos como parâmetros para a conquista de um
capitalismo “domesticado” pelos ideais de uma socialdemocracia, com um Estado social forte e capaz de garantir políticas sociais relativamente eficazes na produção de maior eqüidade e usufruto de direitos sociais
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no entanto, preponderantemente orientados e institucionalizados pelos interesses tipicamente capitalistas
ou empresariais. Deste padrão de governabilidade não
emergem, pois os interesses sociais ou os tipicamente
relacionados ao trabalho, que sequer se fazem presentes. Ao contrário, assiste-se a maior desigualdade entre países centrais e países periféricos. Dentre estes últimos, aqueles valorados como mercados emergentes e
os considerados descartáveis.
A alavancagem e a consolidação de processos flexibilizadores e liberalizantes facilitam o predomínio da regulação mercantil sobre a estatal e a formação de vínculos
mais diretos entre o global e o local. Desta forma, fica
fragilizado o Estado nacional, e com ele os mecanismos
de unificação e coordenação.
A rede mundializada de organizações da sociedade civil
assume papel fundamental na constituição de solidariedades intermédias, mantendo o fluxo global/local e local/
global.
Finalmente, os governos nacionais perdem força na
formulação e implementação de políticas sociais universalistas, embalados nos discursos da democratização,
descentralização, desregulamentação, fortalecimento da
sociedade civil, etc. Mas este mesmo discurso, na sua dialética, escamoteia a debilidade política do Estado-Nação
no contexto contemporâneo.
Mudanças Ininterruptas
Como afirma Nogueira, “o ciclo histórico em que nos
encontramos está inteiramente tomado pela mudança acelerada, ininterrupta e cumulativa. Nele, entrecruzam-se
inovações tecnológicas e modificações sócio-culturais que
repercutem sobre todos os planos e setores da vida social”
(Nogueira, 1995:107).
Na realidade, os avanços tecnológicos e científicos e,
em especial a chamada revolução informacional, alteram
radicalmente o comportamento societário e os processos
de regulação social, antes capazes de gerar consensos e
coesões mais duradouras.
Em lugar da socialização disciplinar e dos padrões
coercitivos, a fluidez negociadora. Em lugar do respeito
e do culto a idéias e instituições, a banalização das idéias, instituições e sujeitos coletivos. Em lugar da conjugação dialética de direitos e deveres, a dissociação
entre ambos. Em lugar da distinção entre o privado e o
público, a invasão mútua e a ambigüidade entre ambos. Em lugar da primazia do trabalho como integrador
social por excelência, a sua secundarização. Assistimos
a tendência à substituição do pleno emprego pela plena atividade.
A sociedade contemporânea é mais complexa, marcada pela “fragmentação, corporativismo, particularismo, individualismo, crise da política e do Estado. Por mais paradoxal que possa parecer, é sinônimo de ‘desorganização’.
Tudo se passa como se não mais houvesse centros de imputação capazes de ordenar os processos sociais, organizações capazes de comandar e vincular pessoas, instituições capazes de construir sínteses superiores a partir de
interesses fracionados” (Nogueira, 1994:109).
Neste tempo histórico, vivemos a primazia dos
microinteresses, das microidentidades, e não mais dos
macrointeresses coletivos. Nestas condições, torna-se
complexa e árdua a tarefa de propor e consensuar projetos coletivos emancipatórios. Parece haver aí a adesão,
ou o conformismo, a um novo pacto social, mais pobre e,
ao mesmo tempo, mais consumista.
Deslocamento do Estado-Nação
A tendência à interconexão mais direta entre o global
e o local deslocam o Estado-Nação para uma zona de
mediação, mais do que de decisão autônoma.
Se, para o capital, os centros de poder se concentram em organizações supranacionais, como Grupo dos
7, OMC, FMI, no plano social, convergem para organizações da ONU e congêneres, como Unicef, OMS,
Unesco, Banco Mundial, entre outras. Na outra ponta
(o local), as municipalidades e organizações da sociedade civil ampliam seu poder no direcionamento da
política social.
No campo social, as relações entre global governance
e local governance ganham o oxigênio do chamado terceiro setor (nem Estado/nem mercado), representado pela
enorme expansão das organizações da sociedade civil3 e
de fundações empresariais sem fins lucrativos, que se
movem em redes mundializadas em estreita intimidade
com organizações supranacionais, especialmente as organizações das Nações Unidas.
É ilustrativo relembrar as conferências protagonizadas
pela ONU na presente década, 4 com a expressiva participação das chamadas organizações não-governamentais.
Destaca-se a última conferência realizada em 1996 em Istambul, a Habitat II, que reuniu pela primeira vez representações de governos municipais, além das ONGs.
Assim, correndo em artérias também globais, as organizações da sociedade civil pressionam instituições políticas mundiais objetivando conter os movimentos selvagens do capital e assegurar conquistas sociais. É neste veio
que emergem as marchas dos trabalhadores na Europa, os
movimentos/atores de defesa ecológica, os movimentos/
atores de defesa das minorias, entre outros, que, no entanto, expressam características multifacetadas, particularistas, segmentadas próprias da sociedade contemporânea.
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A REEMERGÊNCIA
Assiste-se, assim, a uma nova inversão: a primazia dos
direitos das minorias e não mais das maiorais.
Esta ênfase tem conseqüências claras sobre a política
social. A mais importante se revela na priorização de políticas focalistas, mais que em políticas universalistas.
DAS
SOLIDARIEDADES MICROTERRITORIAIS NA ...
problemas e necessidades específicas; elegem clientelas
locais, ou minorias regionais, nacionais e supranacionais.
Algumas são braços doutrinários de Igrejas; outras do
empresariado; outras de movimentos sociais; e outras,
ainda, braços solidários da própria comunidade. Mas todas elas constituem, em comum, braços de um Estado
inadimplente com os empobrecidos e excluídos. Formam
redes de organizações não-governamentais, algumas com
vínculos apenas locais, e outras com vínculos transnacionais” (Carvalho, 1994:91).
O discurso dos direitos, articulado ao da revalorização
das solidariedades, gesta contraditoriamente “políticas
sociais sem direitos”,5 permitindo indicar tanto uma possível re-filantropização da intervenção social, quanto um
deslocamento do protagonismo do Estado para a sociedade civil, especialmente quando se refere ao segmento da
população constituído por cidadãos pobres e excluídos.
Revalorização das Redes de Solidariedade
Ao invés de considerar a política social como competência exclusiva do Estado, é possível articular iniciativas privadas do Estado e da sociedade civil.
Nesse sentido, está na ordem do dia o chamado
welfare mix, que promove uma combinação de recursos e de meios mobilizáveis junto ao Estado, mercado,
iniciativas privadas sem fins lucrativos e, ainda, aqueles derivados das microssolidariedades originárias na
família, nas igrejas, no local (Martin, 1995 e Evers,
1993), de modo que as políticas sociais se apresentam
hoje como responsabilidades partilhadas.
Para Abrahamson (1995) “os diferentes welfare states
europeus estão convergindo para o modelo corporativo,
o que implica fortalecimento das tendências de dualização
do welfare state. Dualização, neste caso, significa um sistema de bem-estar bifurcado, onde o mercado cuida dos
trabalhadores mais bem posicionados, através de vários
arranjos corporativistas, e deixa os grupos menos privilegiados sob a responsabilidade das instituições locais
(municipalidades ou solidariedade privada) (...) o primeiro
mais generoso, regido pelos princípios do mercado e voltado a proteger os trabalhadores mais educados e habilitados, e outro, local predominantemente público, voltado
para atender precariamente os marginalizados”.
De qualquer forma, o welfare mix é um retorno, com
matizes da contemporaneidade, ao fortalecimento das
redes de solidariedade emanadas da própria sociedade
civil.
Na América Latina, em geral, e no Brasil, em particular, o welfare state nunca se consumou inteiramente. Na realidade, nestes países sempre se conjugou um
frágil Estado-providência com uma forte sociedade-providência.
“A sociedade-providência nestes países é ao mesmo
tempo fluida e organizada. Uma sociedade-providência,
nascida no interior das próprias camadas populares como
resistência e possibilidade de sobreviver na carência e na
pobreza. Outra sociedade-providência, nascida no interior das classes média e alta, assumindo tons os mais diversos: apadrinhamento, tutela, filantropia, defesa dos
direitos, mobilizadora da organização popular para obtenção de serviços do Estado... Enfim, essa rede de solidariedade assume propostas conservadoras/tutelares ou
progressistas/emancipatórias. São fragmentadas, pinçando
Descarte das tradicionais respostas
institucionalizadoras
No desenho das políticas sociais contemporâneas, é
claro, igualmente, um outro enfoque: o Estado de bemestar social dos anos “gloriosos” tomou a si a responsabilidade de ofertar uma gama complexa de serviços de proteção social, que acabaram por se engessar em processos
burocráticos e institucionais que resultaram ineficazes e
onerosos.
Na realidade, até recentemente, a diretriz era oferecer
respostas institucionalizadoras às necessidades sociais.
Assim, para crianças abandonadas, priorizaram-se os internatos; para idosos, casas geriátricas ou asilos; para a
saúde, a internação hospitalar; para a educação, a escola
de tempo integral.
Este modelo tem sofrido fortes críticas. Algumas apontam para uma excessiva ingerência do Estado na esfera
privada, esvaziando-a de compromissos e de sentido social. Outras nos conduzem à idéia liberal de que mercado
e solidariedade organizada da sociedade civil, por meio
de suas organizações sem fins lucrativos, são mais competentes para garantir eficácia no trato da questão social.
Outras ainda enfatizam o alto custo e a baixa efetividade
do modelo institucionalizador.6
A crítica faz reemergir o discurso pelo retorno às solidariedades comunitárias, vicinais, familiares. É também uma
ênfase no chamado Terceiro Setor (nem Estado, nem mercado). É a vez das ONGs e da filantropia revisitada, reconhecidas como solidariedades intermédias, de extrema importância na prestação de serviços sociais públicos não
estatais, e igualmente na defesa de direitos dos cidadãos.
Nesta medida, se prioriza projetos abertos e flexíveis
de atenção a diversas demandas, capazes de envolver as
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solidariedades comunitárias, as pequenas ONGs prestadoras de serviços sociais, a família e o próprio beneficiário.
Como destaca Draibe (1994),“estão em curso processos sociais que tendem a alterar as relações entre o Estado
e o mercado; o público e o privado; os sistemas de produção, de um lado, e os de consumo de outro, dos equipamentos sociais. As assim chamadas ‘formas alternativas’
– os mutirões de autoconstrução, as diversas experiências
de ajuda mútua, práticas comunitárias e de vizinhança (na
guarda de crianças, no setor de alimentação, na coleta e
processamento do lixo) – são, no Brasil, exemplos que se
multiplicam em todo o mundo, de participação dos próprios beneficiários e de envolvimento de associações voluntárias e de redes de ONGs – Organizações Não-Governamentais – no encaminhamento das políticas sociais”.
mento do capital relacional, trocas culturais e inserção
participativa em projetos sociopolíticos emancipatórios.
Neste embalo, outra opção ganha espaço: a substituição
do pleno emprego pela plena atividade. Esta opção pode
resvalar, igualmente, para distorções do significado de
plena atividade, ou seja, uma iniciativa espontânea (não
obrigatória) motivada pela reciprocidade e solidariedade, atributos essenciais do sujeito social (Gorz, 1996).
Ganha reforço a idéia de que, na falta de trabalho, há
que se fortalecer as sociabilidades sociofamiliares, capazes de compensar e repor vínculos relacionais em processos de inclusão social. O risco, neste caso, é o fechamento do indivíduo na esfera privada, dado que as
sociabilidades sociofamiliares podem processar inclusão,
mas não asseguram necessariamente inclusão social.
No Brasil e na América Latina em geral, as sociabilidades sociofamiliares e as redes de solidariedade primárias nunca foram descartadas, já que elas foram, e ainda
são, para as camadas populares, a condição de resistência
e sobrevivência. A família alargada – um grupo de conterrâneos, por exemplo – possibilita a maximização de rendimentos, apoios, afetos e relações que facilitem a obtenção de emprego, moradia, saúde, etc.
É basicamente por estes motivos que a política social
contemporânea retoma a família, a comunidade e pequenas ONGs como unidades protetoras por excelência. A
melhor proteção não se traduz apenas em renda, mas deve
também reforçar vínculos relacionais e de pertencimento
dos cidadãos, necessários à garantia de padrões mínimos
de inclusão social.
Portanto, não são apenas os déficits públicos, a democratização da coisa pública e a participação dos cidadãos
que justificam alterações na política social. Há uma necessidade quase vital de reintroduzir as solidariedades
microterritoriais para o centro mesmo da política social
contemporânea.
Os Estados-Nação manifestam uma clara fragilização
política, e não apenas financeira, para ditar e assegurar
políticas sociais. De um lado, os processos de globalização,
dialeticamente, reforçam processos de localização, ao atribuir maior força política às municipalidades, e remetem
os governos da nação para uma zona de mediação, mais
do que de decisão e intervenção. De outro, a vocalização
geral em torno da democratização, da flexibilização, da
descentralização e do fortalecimento da sociedade civil
reforça antes o poder local que o central.
Consensualizam-se, assim, as bases para o que se pode
denominar hoje de welfare state locais: governo e sociedade local criam mecanismos (fóruns, conselhos, etc.) para dar
forma a esse processo de parceria no desenho e na efetivação
de uma política social. Este novo desenho permite incluir a
iniciativa privada e, com maior riqueza, as micro-solidarie-
ENSAIANDO UMA CONCLUSÃO
Na base do novo fazer social, há outros argumentos
bem mais contundentes, pois se apóiam no risco social
contemporâneo da ausência de trabalho para todos, “no
sentido em que uma economia que dispensa cada vez mais
o trabalho, pode cada vez menos fazer dele o princípio
organizador e ordenador que está na base de todas as sociedades” (Barel apud Martin 1995:59). Trata-se de um
paradoxo, “pois haveria que reconhecer que o trabalho já
não assegura o seu papel de Grande Integrador, continuando, embora, a ser o vetor principal da integração e do acesso à cidadania” (Martin 1995:59).
Na mesma linha, Castel (1991:139) assinala duas formas contemporâneas de fragilização dos indivíduos, calçada em dois eixos: o da integração/não-integração por
meio do trabalho e o de inserção/não-inserção numa sociabilidade sócio-familiar. A ausência de integração no mundo do trabalho ou a não inserção em redes de sociabilidade, segundo o autor, fazem os indivíduos resvalarem para
zonas de vulnerabilidade. A ausência combinada de trabalho e vínculos relacionais lançam-nos num processo de
desfiliação.
No bojo destas afirmações, há opções políticas amplamente debatidas, que contêm riscos e contradições. A
primeira se centra na busca de ampliação de empregos
tout court, imaginando recriar o pleno emprego e reconduzir o trabalho ao papel de grande agregador. No cenário atual, esta opção poderia levar ao maior enfraquecimento da sociedade salarial e estimular os empregos
precários. Outra opção é a redução da jornada de trabalho com vistas a assegurar emprego para todos. Embora
como proposta, esta última angarie maior simpatia, não é
seguro imaginar que promova emprego para todos, nem
tampouco que o tempo livre resultante possibilite uma cidadania plena, com a ativação das possibilidades de au-
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A REEMERGÊNCIA
DAS
SOLIDARIEDADES MICROTERRITORIAIS NA ...
lher (1995). Todas foram protagonizadas por organizações supranacionais
como PNUD, Banco Mundial, Unesco e Unicef.
dades territoriais e sociabilidades sociofamiliares na produção de políticas de proteção e inclusão social.
Contudo, este modelo de bem-estar social local não
deixa de ser contraditório, na medida em que introduz
novas desigualdades, tornando mais complexas e distantes as possibilidades de se garantir um projeto coletivo
extensivo a toda a nação. Perde-se em unidade e ganhase em diversidade e heterogeneidade, já que cada município tem autonomia reforçada para desenvolver seu projeto social sem que o Estado-nação consiga assegurar a
unidade desejada. Em contrapartida, as sociedades locais
ampliam as possibilidades de participação e de exercício
do controle social sobre o fazer público.
Finalmente, a sociedade hoje enfatiza os direitos das
minorias, possibilitando o predomínio de políticas focalistas, que não se adequam aos moldes tradicionais. Estas
clamam por articulação e ação transetorial das diversas
políticas públicas para públicos-alvos específicos,
objetivando uma atenção integral.
A busca da eqüidade social, neste caso, volta-se para
segmentos (criança, mulher, negro, idoso) e não mais para
o conjunto dos cidadãos. É nesta medida que os direitos
sociais de todos os cidadãos, expressos em políticas
universalistas, são secundarizados.
A proteção social, enquanto missão partilhada entre
Estado, iniciativa privada e sociedade, o welfare state
local, a revalorização das micro-solidariedades e a ênfase nas minorias parecem ser os elementos-chave para a
formatação da política social contemporânea.
5. Expressão de Vieira (1996), em referência à política social brasileira pós-Constituição de 1988, mas que se aplica, de maneira geral, a outros países.
6. De acordo com estudos feitos em Nova York, a assistência a um idoso em seu
domicílio custa 180 dólares mensais; em um albergue para idosos, 800 dólares e
em um hospital geriátrico, 5 mil dólares. Ou seja, com o que custa atender a um
só idoso em hospitais, atende-se, igualmente ou melhor, a 27 em seus domicílios
(Morelli, apud Magalhães, 1989:81). No Brasil, a ação dos agentes comunitários de saúde, que realizam assistência materno-juvenil junto às famílias na própria comunidade, tem demonstrado ser uma intervenção menos onerosa e mais
eficaz no combate à subnutrição e mortalidade infantil.
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NOTAS
1. Sobre este processo de apartação, Buarque tem uma afirmação bastante incisiva: a transnacionalização da economia e da política produziu “uma nação formada com os ricos do mundo inteiro, não importa a distância em que estejam
fisicamente; e separados dos pobres do mundo inteiro, não importa a aproximação em que estejam fisicamente” (Buarque 1993:23).
2. Expressão utilizada por Habermas (1988).
3. Também chamadas de organizações não-governamentais/ONGs.
4. Entre outras, Conferência Mundial sobre Educação para Todos (Tailândia,
1990); Conferência Mundial sobre o Meio Ambiente/ECO 92 (Rio de Janeiro); Ano Internacional da Família e Conferência Mundial sobre População e
Desenvolvimento (Cairo, 1994); Conferência de Cúpula sobre Desenvolvimento Social (Copenhague, 1995); e IV Conferência Mundial sobre a Mu-
VIEIRA, E. “As políticas sociais e os direitos sociais no Brasil: avanços e retrocessos”. Revista Serviço Social e Sociedade. São Paulo, Cortez, n.53, março, ano XVII, 1996.
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