Convite à Filosofia

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Convite à Filosofia
De Marilena Chaui
Ed. Ática, São Paulo, 2000.
Unidade 7
As ciências
Capítulo 4
As ciências humanas
A CONTRIBUIÇÃO DO MARXISMO
O marxismo permitiu compreender que os fatos humanos são instituições sociais e
históricas produzidas não pelo espírito e pela vontade livre dos indivíduos, mas pelas
condições objetivas nas quais a ação e o pensamento humanos devem realizar-se. Levou
a compreender que os fatos humanos mais originários ou primários são as relações dos
homens com a Natureza na luta pela sobrevivência e que tais relações são as de
trabalho, dando origem às primeiras instituições sociais: família (divisão sexual do
trabalho), pastoreio e agricultura (divisão social do trabalho), troca e comércio
(distribuição social dos produtos do trabalho).
Assim, as primeiras instituições sociais são econômicas. Para mantê-las, o grupo social
cria idéias e sentimentos, valores e símbolos aceitos por todos e que justificam ou
legitimam as instituições assim criadas. Também para conservá-las, o grupo social cria
instituições de poder que sustentem (pela força, pelas armas ou pelas leis) as relações
sociais e as idéias-valores-símbolos produzidos.
Dessa maneira, o marxismo permitiu às ciências humanas compreender as articulações
necessárias entre o plano psicológico e o social da existência humana; entre o plano
econômico e o das instituições sociais e políticas; entre todas elas e o conjunto de idéias
e de práticas que uma sociedade produz.
Graças ao marxismo, as ciências humanas puderam compreender que as mudanças
históricas não resultam de ações súbitas e espetaculares de alguns indivíduos ou grupos
de indivíduos, mas de lentos processos sociais, econômicos e políticos, baseados na
forma assumida pela propriedade dos meios de produção e pelas relações de trabalho. A
materialidade da existência econômica comanda as outras esferas da vida social e da
espiritualidade e os processos históricos abrangem todas elas.
Enfim, o marxismo trouxe como grande contribuição à sociologia, à ciência política e à
história a interpretação dos fenômenos humanos como expressão e resultado de
contradições sociais, de lutas e conflitos sóciopolíticos determinados pelas relações
econômicas baseadas na exploração do trabalho da maioria pela minoria de uma
sociedade.
Arte e Filosofia
Do ponto de vista da Filosofia, podemos falar em dois grandes momentos de
teorização da arte. No primeiro, inaugurado por Platão e Aristóteles, a Filosofia
trata as artes sob a forma da poética; no segundo, a partir do século XVIII, sob a
forma da estética.
Arte poética é o nome de uma obra aristotélica sobre as artes da fala e da escrita,
do canto e da dança: a poesia e o teatro (tragédia e comédia). A palavra poética é
a tradução para poiesis, portanto, para fabricação. A arte poética estuda as obras
de arte como fabricação de seres e gestos artificiais, isto é, produzidos pelos seres
humanos.
Estética é a tradução da palavra grega aesthesis, que significa conhecimento
sensorial, experiência, sensibilidade. Foi empregada para referir-se às artes, pela
primeira vez, pelo alemão Baumgarten, por volta de 1750. Em seu uso inicial,
referia-se ao estudo das obras de arte enquanto criações da sensibilidade, tendo
como finalidade o belo. Pouco a pouco, substituiu a noção de arte poética e passou
a designar toda investigação filosófica que tenha por objeto as artes ou uma arte.
Do lado do artista e da obra, busca-se a realização da beleza; do lado do
espectador e receptor, busca-se a reação sob a forma do juízo de gosto, do bomgosto.
A noção de estética, quando formulada e desenvolvida nos séculos XVIII e XIX,
pressupunha:
1. que a arte é produto da sensibilidade, da imaginação e da inspiração do artista e
que sua finalidade é a contemplação;
2. que a contemplação, do lado do artista, é a busca do belo (e não do útil, nem do
agradável ou prazeroso) e, do lado do público, é a avaliação ou o julgamento do
valor de beleza atingido pela obra;
3. que o belo é diferente do verdadeiro.
De fato, o verdadeiro é o que é conhecido pelo intelecto por meio de
demonstrações e provas, que permitem deduzir um particular de um universal
(dedução) ou inferir um universal de vários particulares (indução) por meio de
conceitos e leis. O belo, ao contrário, tem a peculiaridade de possuir um valor
universal, embora a obra de arte seja essencialmente particular.
Em outras palavras, a obra de arte, em sua particularidade e singularidade única,
oferece algo universal – a beleza – sem necessidade de demonstrações, provas,
inferências e conceitos. Quando leio um poema, escuto uma sonata ou observo um
quadro, posso dizer que são belos ou que ali está a beleza, embora esteja diante de
algo único e incomparável. O juízo de gosto teria, assim, a peculiaridade de emitir
um julgamento universal, referindo-se, porém, a algo singular e particular.
Filosofia
De Marilena Chaui
Ed. Ática, São Paulo, 2000.
Unidade 8 - O mundo da prática
Capítulo 23 - A filosofia moral
Ética ou filosofia moral
Toda cultura e cada sociedade institui uma moral, isto é, valores concernentes ao
bem e ao mal, ao permitido e ao proibido, e à conduta correta, válidos para todos
os seus membros. Culturas e sociedades fortemente hierarquizadas e com
diferenças muito profundas de castas ou de classes podem até mesmo possuir
várias morais, cada uma delas referida aos valores de uma casta ou de uma classe
social.
No entanto, a simples existência da moral não significa a presença explícita de uma
ética, entendida como filosofia moral, isto é, uma reflexão que discuta,
problematize e interprete o significado dos valores morais. Podemos dizer, a partir
dos textos de Platão e de Aristóteles, que, no Ocidente, a ética ou filosofia moral
inicia-se com Sócrates.
Percorrendo praças e ruas de Atenas – contam Platão e Aristóteles -, Sócrates
perguntava aos atenienses, fossem jovens ou velhos, o que eram os valores nos
quais acreditavam e que respeitavam ao agir.
Que perguntas Sócrates lhes fazia? Indagava: O que é a coragem? O que é a
justiça? O que é a piedade? O que é a amizade? A elas, os atenienses respondiam
dizendo serem virtudes. Sócrates voltava a indagar: O que é a virtude? Retrucavam
os atenienses: É agir em conformidade com o bem. E Sócrates questionava: Que é
o bem?
As perguntas socráticas terminavam sempre por revelar que os atenienses
respondiam sem pensar no que diziam. Repetiam o que lhes fora ensinado desde a
infância. Como cada um havia interpretado à sua maneira o que aprendera, era
comum, no diálogo com o filósofo, uma pergunta receber respostas diferentes e
contraditórias. Após um certo tempo de conversa com Sócrates, um ateniense viase diante de duas alternativas: ou zangar-se e ir embora irritado, ou reconhecer
que não sabia o que imaginava saber, dispondo-se a começar, na companhia
socrática, a busca filosófica da virtude e do bem.
Por que os atenienses sentiam-se embaraçados (e mesmo irritados) com as
perguntas socráticas? Por dois motivos principais: em primeiro lugar, por
perceberem que confundiam valores morais com os fatos constatáveis em sua vida
cotidiana (diziam, por exemplo, “Coragem é o que fez fulano na guerra contra os
persas”); em segundo lugar, porque, inversamente, tomavam os fatos da vida
cotidiana como se fossem valores morais evidentes (diziam, por exemplo, “É certo
fazer tal ação, porque meus antepassados a fizeram e meus parentes a fazem”).
Em resumo, confundiam fatos e valores, pois ignoravam as causas ou razões por
que valorizavam certas coisas, certas pessoas ou certas ações e desprezavam
outras, embaraçando-se ou irritando-se quando Sócrates lhes mostrava que
estavam confusos. Tais confusões, porém, não eram (e não são) inexplicáveis.
Nossos sentimentos, nossas condutas, nossas ações e nossos comportamentos são
modelados pelas condições em que vivemos (família, classe e grupo social, escola,
religião, trabalho, circunstâncias políticas, etc.). Somos formados pelos costumes
de nossa sociedade, que nos educa para respeitarmos e reproduzirmos os valores
propostos por ela como bons e, portanto, como obrigações e deveres. Dessa
maneira, valores e maneiras parecem existir por si e em si mesmos, parecem ser
naturais e intemporais, fatos ou dados com os quais nos relacionamos desde o
nosso nascimento: somos recompensados quando os seguimos, punidos quando os
transgredimos.
Sócrates embaraçava os atenienses porque os forçava a indagar qual a origem e a
essência das virtudes (valores e obrigações) que julgavam praticar ao seguir os
costumes de Atenas. Como e por que sabiam que uma conduta era boa ou má,
virtuosa ou viciosa? Por que, por exemplo, a coragem era considerada virtude e a
covardia, vício? Por que valorizavam positivamente a justiça e desvalorizavam a
injustiça, combatendo-a? Numa palavra: o que eram e o que valiam realmente os
costumes que lhes haviam sido ensinados?
Os costumes, porque são anteriores ao nosso nascimento e formam o tecido da
sociedade em que vivemos, são considerados inquestionáveis e quase sagrados (as
religiões tendem a mostrá-los como tendo sido ordenados pelos deuses, na origem
dos tempos). Ora, a palavra costume se diz, em grego, ethos – donde, ética – e,
em latim, mores – donde, moral. Em outras palavras, ética e moral referem-se ao
conjunto de costumes tradicionais de uma sociedade e que, como tais, são
considerados valores e obrigações para a conduta de seus membros. Sócrates
indagava o que eram, de onde vinham, o que valiam tais costumes.
No entanto, a língua grega possui uma outra palavra que, infelizmente, precisa ser
escrita, em português, com as mesmas letras que a palavra que significa costume: ethos.
Em grego, existem duas vogais para pronunciar e grafar nossa vogal e: uma vogal breve,
chamada epsilon, e uma vogal longa, chamada eta. Ethos, escrita com a vogal longa
(ethos com eta), significa costume; porém, escrita com a vogal breve (ethos com
epsilon), significa caráter, índole natural, temperamento, conjunto das disposições
físicas e psíquicas de uma pessoa. Nesse segundo sentido, ethos se refere às
características pessoais de cada um que determinam quais virtudes e quais vícios cada
um é capaz de praticar. Refere-se, portanto, ao senso moral e à consciência ética
individuais.
Unidade 8 - O mundo da prática
Capítulo 26 - As filosofias políticas – 1ª parte
A vida boa
Quando lemos os filósofos gregos e romanos, observamos que tratam a política
como um valor e não como um simples fato, considerando a existência política
como finalidade superior da vida humana, como a vida boa, entendida como
racional, feliz e justa, própria dos homens livres. Embora considerem a forma mais
alta de vida a do sábio contemplativo, isto é, do filósofo, afirmam que, para os nãofilósofos, a vida superior só existe na Cidade justa e, por isso mesmo, o filósofo
deve oferecer os conceitos verdadeiros que auxiliem na formulação da melhor
política para a Cidade.
Política e Filosofia nasceram na mesma época. Por serem contemporâneas, diz-se
que “a Filosofia é filha da polis” e muitos dos primeiros filósofos (os chamados présocráticos) foram chefes políticos e legisladores de suas cidades. Por sua origem, a
Filosofia não cessou de refletir sobre o fenômeno político, elaborando teorias para
explicar sua origem, sua finalidade e suas formas. A esses filósofos devemos a
distinção entre poder despótico e poder político.
Origem da vida política
Entre as explicações sobre a origem da vida política, três foram as principais e as
mais duradouras:
1. As inspiradas no mito das Idades do Homem ou da Idade de Ouro. Esse mito
recebeu inúmeras versões, mas, em suas linhas gerais, narra sempre o mesmo: no
princípio, durante a Idade de Ouro, os seres humanos viviam na companhia dos
deuses, nasciam diretamente da terra e já adultos, eram imortais e felizes, sua vida
transcorria em paz e harmonia, sem necessidade de leis e governo.
Em cada versão, a perda da Idade de Ouro é narrada de modo diverso, porém, em
todas, a narrativa relata uma queda dos humanos, que são afastados dos deuses,
tornam-se mortais, vivem isoladamente pelas florestas, sem vestuário, moradia,
alimentação segura, sempre ameaçados pelas feras e intempéries. Pouco a pouco,
descobrem o fogo: passam a cozer os alimentos e a trabalhar os metais, constroem
cabanas, tecem o vestuário, fabricam armas para a caça e proteção contra animais
ferozes, formam famílias.
A última idade é a Idade do Ferro, em geral descrita como a era dos homens
organizados em grupos, fazendo guerra entre si. Para cessar o estado de guerra, os
deuses fazem nascer um homem eminente, que redigirá as primeiras leis e criará o
governo. Nasce a política com a figura do legislador, enviado pelos deuses.
Com variantes, esse mito será usado na Grécia por Platão e, em Roma, por Cícero,
para simbolizar a origem da política através das leis e da figura do legislador. Leis e
legislador garantem a origem racional da vida política, a obra da razão sendo a
ordem, a harmonia e a concórdia entre os humanos sob a forma da Cidade. A
razão funda a política.
2. As inspiradas pela obra do poeta grego Hesíodo, O trabalho e os dias. Agora, a
origem da vida política vincula-se à doação do fogo aos homens, feita pelo
semideus Prometeu. Graças ao fogo, os humanos podem trabalhar os metais, cozer
os alimentos, fabricar utensílios e sobretudo descobrir-se diferentes dos animais.
Essa descoberta leva a perceber que viverão melhor se viverem em comunidade,
dividindo os trabalhos e as tarefas. Organizados em comunidades, colocam-se sob
a proteção dos deuses de quem receberam as leis e as orientações para o governo.
Pouco a pouco, porém, descobrem que sua vida possui problemas e exige soluções
que somente eles podem enfrentar e encontrar. Mantendo a piedade pelos deuses,
entretanto, criam leis e instituições propriamente humanas, dando origem à
comunidade política propriamente dita. É a teoria política defendida pelos sofistas.
Nessa concepção, o desenvolvimento das técnicas e dos costumes leva a
convenções entre os humanos para a vida em comunidade sob leis. A convenção
funda a política.
O positivismo de Comte
Auguste Comte (1798 – 1857), foi um dos principais teóricos do positivismo. O
positivismo, de acordo com Comte, não é uma corrente filosófica entre outras, mas que
a acompanha, promove e estrutura o último estágio que a humanidade teria atingido,
fundado e condicionado pela ciência. Para comte, o termo positivo significa o real, por
oposição ao quimérico, o útil em oposição ao ocioso, a certeza em oposição à indecisão,
o precioso em oposição ao vago. O termo significa, ainda, o contrário de negativo e
indica a tendência de substituir sempre o absoluto pelo relativo. Finalmente, traduz a
proposta de organização moral e intelectual da sociedade.
O existencialismo de Sarte
O existencialismo é das doutrinas mais características de nosso século. Todo o seu
empenho está em pensar o indivíduo concreto, a partir da sua existência cotidiana,
desprovida de qualquer relevo especial. O único filósofo que aceita a palavra
existencialismo para designar a sua própria doutrina é Jean-Paul Sartre (1905 – 1980).
Sua frase é: e existência precede a essência. Isso significa que não existe uma
natureza humana, uma definição do que seja o homem anterior ao ato de existir: não
há uma essência precedente, que determina aquilo que cada indivíduo vai ser ou deve
ser.
Adaptado de: REZENDE, Antônio. Curso de Filosofia. Rio de Janeiro: Zahar, 2000.
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