O filósofo e a sociedade - Colégio Passionista Santa Maria

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FILOSOFIA
Maria Lúcia
de Arruda Aranha
DVD do aluno
BIBLIOTECA DO ESTUDANTE • Leitura complementar
PARTE 2
UNIDADE 4 Filosofia grega antiga
Capítulo 14 A filosofia no período clássico
BIBLIOTECA DO ESTUDANTE
14.1
Leitura complementar
O filósofo e a sociedade
O texto selecionado é do filósofo francês Maurice Merleau-Ponty. Trata-se de um trecho de sua
aula inaugural, ocasião em que ocupou uma cadeira no famoso Collège de France (Colégio da França).
Analisando a política na Grécia antiga e o processo que condenou Sócrates à morte, Merleau-Ponty
realiza um dos mais belos comentários sobre a relação entre o filósofo e a sociedade.
Elogio da filosofia
“
A vida e a morte de Sócrates são a história das difíceis relações que o filósofo – quando não está protegido por imunidades literárias – mantém com os deuses da cidade, isto
é, com os outros homens e com o absoluto cristalizado, cuja imagem eles lhe estendem.
Se o filósofo fosse um revoltado, chocaria menos. Pois, afinal, todos sabem que o mundo
vai mesmo muito mal; gosta-se de ver isso escrito, em honra da humanidade, para logo
disso se esquecer quando se retorna aos afazeres. A revolta, portanto, não desagrada.
Com Sócrates, porém, trata-se de outra coisa. Ensina que a religião é verdadeira e foi
visto oferecendo sacrifícios aos deuses. Ensina que é preciso obedecer à cidade e é o
primeiro a obedecer-lhe até o fim. O que se censura nele não é tanto o que ele faz, mas
a maneira, o motivo.
Há, na Apologia, uma palavra que explica tudo, quando Sócrates diz aos juízes: ‘Creio,
atenienses, mais do que crê qualquer dos meus acusadores’. Palavra de oráculo: crê
mais do que eles, mas também crê diferentemente deles e noutro sentido. A religião que
ele diz verdadeira é aquela em que os deuses não estão em luta, em que os presságios
permanecem ambíguos, em que o divino se revela (como o seu daímon) por um aviso
silencioso, lembrando aos homens sua ignorância. A religião, portanto, é verdadeira,
mas de uma verdade que ela própria não sabe, verdadeira como Sócrates a pensa e não
como ela se pensa.
Do mesmo modo, quando ele justifica a cidade o faz por razões que são suas e não por
razões de Estado. Não foge. Comparece diante do tribunal. Mas há pouco respeito nas
explicações que oferece para isso: em sua idade, o furor de viver não é decente; além disso,
‘não me suportariam melhor noutro lugar’; enfim, ‘sempre vivi aqui’ [...]. Ao comparecer
diante do tribunal, não o faz por respeito, mas para melhor recusá-lo. Se fugisse, seria
um inimigo de Atenas e tornaria a sentença verdadeira. Ficando, ele é quem ganha, quer
o inocentem quer o condenem, pois, num caso, terá feito os juízes aceitarem sua filosofia
e, no outro, a terá provado aceitando a sentença [...]. A filosofia está em sua relação viva
com Atenas, em sua presença ausente, em sua obediência sem respeito.
Sócrates tem um jeito de obedecer que é um jeito de resistir [...]. Tudo quanto ele faz se
organiza em torno desse princípio secreto que irrita os que não conseguem apreendê-lo.
Sempre culpado por excesso ou por falta, sempre mais simples e mais breve do que os
outros, sempre mais dócil e menos acomodante, causa-lhes mal-estar. Ele lhes inflige a
ofensa imperdoável de fazê-los duvidar de si mesmos [...]. O que esperam dele é justamente o que não lhes pode dar: o assentimento às coisas, sem considerandos. Comparece ao
tribunal para explicar aos juízes e à Assembleia o que é a cidade [...]. Inverte os papéis e
lhes diz: não estou me defendendo, é a vós que estou defendendo.
”
MERLEAU-PONTY, Maurice. Elogio da filosofia.
Lisboa: Guimarães Editores, 1986. p. 46-48.
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