OLHAR DISCURSIVO AO CRIANÇA ESPERANÇA: AS IMAGENS DA SOLIDARIEDADE Érica Fernanda Zavadovski Kalinovski RESUMO: Este artigo tem como objetivo identificar o jogo de imagens que ocorre na produção do Criança Esperança, Programa desenvolvido pela Fundação Roberto Marinho em parceria com a Unesco. Para tanto, foi proposta a seguinte pergunta de pesquisa: como ocorrem as formações imaginárias entre telespectadores/doadores e produtores do Criança Esperança? Visando a problematizar as projeções que são feitas, especialmente, da imagem que o Programa veicula, será realizada uma análise com base nos pressupostos teóricos da Análise de Discurso francesa, cujo principal representante, foi Michel Pêcheux. De um lado, constata-se, por meio do exame realizado, que a imagem da posição dos telespectadores/doadores, vista por eles próprios e/ou pelo Criança Esperança, é a de pessoas comprometidas com os problemas que assolam grande parte da vida de crianças e jovens do país, bem como de sujeitos solidários, o que pode ser comprovado com os valores das doações que aumentam a cada ano. Por outro lado, as antecipações imaginárias tanto que o Projeto tem de si mesmo quanto a visão que os telespectadores/doadores têm dele é a de que se trata de uma campanha séria, que contribui para minimizar problemas sociais que deveriam ser dever do Estado. Entretanto, o trabalho preocupou-se em desconstruir determinadas imagens, na busca pela compreensão dos interesses que os idealizadores desse Programa possuem, a partir de seus discursos. PALAVRAS-CHAVE: Análise de Discurso Francesa. Formações imaginárias. Criança Esperança. 1. Introdução O sujeito é considerado, pela Análise de Discurso (AD) de matriz francesa, cindido e interpelado ideologicamente. Em vista disso, não pode ser o sujeito, unicamente, o responsável pelas significações que ocorrem nos processos discursivos. Os lugares ocupados na sociedade e as posições que estão em jogo, por exemplo, são fundamentais para que as representações de falante e de ouvinte ocorram e, portanto, os significados e os efeitos de sentido sejam constituídos. A essas representações dá-se o nome de formações imaginárias e elas estão presentes na construção de todo discurso. As projeções de imagens que são feitas entre quem produz e quem recebe o discurso não são, por sua vez, neutras ou individuais, tampouco conscientes, mas são formadas a partir de relações de força e de dominância que se têm na sociedade, além de serem históricas e acontecerem a partir das formações discursivas em que os sujeitos estão inscritos. As representações sociais que ocorrem a partir do jogo de imagens são, assim, a base para a produção das significações e dos efeitos de sentido. Pensando nisso, neste trabalho, foi adotado como objeto de estudo o Programa Criança Esperança, uma fundação Roberto Marinho em parceria com a Unesco (AIRES, 2015) – Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura –, a fim de identificar o jogo de imagens que ocorre entre os produtores desse Programa e seus telespectadores/doadores. Texto completo de trabalho apresentado na Sessão (Título da Sessão) do Eixo Temático (Estudos de Análise do Discurso) do 4. Encontro da Rede Sul Letras, promovido pelo Programa de Pós-graduação em Ciências da Linguagem no Campus da Grande Florianópolis da Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL) em Palhoça (SC). Estudante de Mestrado do Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade Estadual de Maringá UEM. Pedagoga. [email protected] 369 Para além da mera projeção das imagens que são constituídas, será feita uma análise mais expressiva da relação de dominância que se tem dos produtores em relação a seus telespectadores. Portanto, este artigo, embora tenha como foco análises a partir do conceito de formações imaginárias, ele não se limitará a ele, e serão utilizados outros conceitos na medida em que forem necessários. A fim de que o presente estudo se concretize, ele está pautado na teoria da AD de linha francesa, principalmente, Pêcheux (1997a; 1997b; 1999), Orlandi (1994; 2012; 2013), Giorgenon e Romão (2012), Brito (2012) e outros autores que se debruçam sobre essa perspectiva, contribuindo para a compreensão dos conceitos a serem abordados, bem como para a apreensão dos conteúdos que corroboram para o entendimento de como é produzido o Criança Esperança. 2. Formações imaginárias: apreendendo o conceito Ao se tratar da Análise de Discurso (AD) de matriz francesa, deparamo-nos com diversos conceitos que possibilitam a compreensão de várias questões que envolvem o sujeito, a sociedade, a ideologia, além de outros, sobretudo a partir dos estudos de Michel Pêcheux, representante dessa teoria e método que se desenvolveu na França, a partir da década de 1960 (GIORGENON; ROMÃO, 2012, p. 20). Muitos fatores contribuíram para que a AD emergisse nesse período, dentre eles, a crise política na França, determinando, também, os estudos teóricos. Entretanto, a AD não se desenvolveu independentemente de outras áreas, pois ela “se constitui no espaço de questões criadas pela relação entre três domínios disciplinares que são ao mesmo tempo uma ruptura com o século XIX: A Linguística, o Marxismo e a Psicanálise” (ORLANDI, 2013, p. 19). Dentre os conceitos desenvolvidos pela AD francesa, temos o de formações imaginárias. Nesse sentido, é comum, ao nos dirigirmos a uma pessoa, anteciparmos o que ela vai pensar e de que forma o discurso deve ser elaborado e direcionado a ela ou, ao contrário, o ouvinte imaginar o que/de que modo o falante vai dizer ou pensar a seu respeito. Cada lugar ocupado pelos sujeitos está subordinado às formações discursivas em que eles estão inscritos, o que determina, além disso, como o discurso será produzido. Orlandi (2009) assinala a existência, em meio a essas formações imaginárias, das relações de força1 que são estabelecidas no discurso, sendo que os lugares em que os sujeitos estão possuem uma relação hierárquica e as situações concretas e as representações, ou seja, as posições que estão em jogo no interior do discurso, em teoria, são responsáveis por constituírem as significações. Tratam-se das antecipações, denominadas formações imaginárias, que ocorrem nos processos discursivos. Nesse processo, A e B designam lugares determinados na estrutura de uma formação social, lugares dos quais a sociologia pode descrever o feixe de traços objetivos característicos: assim, por exemplo, no interior da esfera da produção econômica, os lugares do “patrão” (diretor, chefe da empresa etc.), do funcionário de repartição, do contramestre, do operário, são marcados por propriedades diferenciais determináveis (PÊCHEUX, 1997b, p. 82). Para esclarecer, o jogo de imagens que acontece a partir das posições ocupadas pelos sujeitos ocorre a partir das relações de força, de sentido e por meio de antecipações (ORLANDI, 2013), pois há posições no discurso que estão acima de outras, as quais não são projetadas imediata ou individualmente, mas são constituídas sócio e historicamente. Nesse caso, as representações não são particulares aos sujeitos, mas são formadas pelas próprias relações “Todo falante e todo ouvinte ocupa um lugar na sociedade, e isso faz parte da significação. Os mecanismos de qualquer formação social têm regras de projeção que estabelecem a relação entre as situações concretas e as representações (posições) dessas situações no interior do discurso: são as formações imaginárias. [...] Tecnicamente, é o que se chama relação de forças no discurso” (ORLANDI, 2012, p. 22). É, portanto, a partir das representações (posições), isto é, das formações imaginárias, que ocorrem as relações de força. 1 370 sociais que já existem historicamente e são regidas pelas relações de poder na hierarquia social. As imagens apresentam grande força no dizer, tendo em vista que “os sentidos não estão nas palavras elas mesmas. Estão aquém e além delas” (ORLANDI, 2013, p. 42). A fim de explicar como ocorre o jogo de imagens na produção dos discursos, Pêcheux (1997b) sistematizou uma tabela que apresenta as seguintes relações: Tabela 01: Representação das formações imaginárias Expressão que designa as formações imaginárias IA (A) A IA (B) IB (B) B IB (A) Questão implícita cuja “resposta” subentende a formação imaginária correspondente Imagem do lugar “Quem sou para lhe de A para o sujeito falar assim?” colocado em A Significação da expressão Imagem do lugar “Quem é ele para que de B para o sujeito eu lhe fale assim?” colocado em A Imagem do lugar “Quem sou eu para de B para o sujeito ele me fale assim?” colocado em B Imagem do lugar “Quem é ele para que de A para o sujeito me fale assim?” colocado em B Fonte: Pêcheux (1997b, p. 83). Dessa forma, entende-se que cada sujeito (ouvinte/falante) apresenta suas posições no discurso em função das formações discursivas em que estão inseridos e, com isso, há, também, a projeção de imagens que são antecipadas por eles nesse processo. Isso porque, segundo o mecanismo da antecipação, todo sujeito tem a capacidade de experimentar, ou melhor, de colocar-se no lugar em que o seu interlocutor “ouve” suas palavras. Ele antecipase assim a seu interlocutor quanto ao sentido que suas palavras produzem. Esse mecanismo regula a argumentação, de tal forma que o sujeito dirá de um modo, ou de outro, segundo o efeito que pensa produzir em seu ouvinte (ORLANDI, 2013, p. 39). Assim, A, que corresponde ao falante, tem a visão da posição que ele próprio ocupa em relação ao ouvinte, ao indagar-se “Quem sou eu para lhe falar assim?” e, também, forma a imagem da posição do seu ouvinte, cuja a questão implícita é “Quem é ele para que eu lhe fale assim?”. Por sua vez, o ouvinte, que, no esquema apresentado por Pêcheux (1997b), figura-se em B, pode, da mesma maneira, antecipar imaginariamente a sua posição, quando pensa “Quem sou eu para que ele me fale assim?” e, ainda, visualizar a posição ocupada pelo falante no processo discursivo, a partir da pergunta “Quem é ele para que me fale assim?”. Há, também, a imagem da posição “do objeto do discurso (do que estou lhe falando, do que ele me fala?)” (ORLANDI, 2013, p. 40). Em vista disso, “o que é dito ou enunciado não tem o mesmo estatuto conforme o lugar que os interlocutores ocupam” (BRITO, 2012, p. 550), porque, a depender de quem enuncia e de 371 quem recebe o discurso, as relações estabelecidas também mudam e, com isso, são produzidos novos/diferentes efeitos de sentido, até mesmo porque o discurso “não se trata necessariamente de uma transmissão de informação entre A e B mas, de modo mais geral, de um ‘efeito de sentidos’ entre os pontos A e B” (PÊCHEUX, 1997b, p. 82), diante disso, possui uma complexidade na constituição dos sujeitos e na produção de sentidos (ORLANDI, 2013). Orlandi (2012, p. 23) acrescenta que, em meio a esse jogo de imagens, constitutivo de todo processo discursivo, as formações ideológicas são as responsáveis por determinar as imagens a serem formadas, pois, sendo as formações discursivas parte delas, a “permissão” do dizer é dada pela posição que se tem nos diferentes domínios da sociedade. Portanto, “as palavras mudam de sentido ao passarem de uma formação discursiva a outra, pois muda sua relação com a formação ideológica”. Nesse processo, as respectivas imagens que falante tem de ouvinte e vice-versa referemse “a posição dos protagonistas do discurso” (PÊCHEUX, 1997b, p. 83). Assim, por haver uma relação hierárquica, “um discurso não apresenta, na sua materialidade textual, uma unidade orgânica em um só nível que poderia colocar em evidência a partir do próprio discurso, mas que toda forma discursiva particular remete necessariamente à série de formas possíveis” (PÊCHEUX, 1997b, p. 104), o que leva a diversas significações que podem ocorrer em um discurso quando está em análise, decorrente do processo de produção dominante. Pensando nisso, será feita uma análise, com base nos pressupostos teóricos da AD, acerca do Programa Criança Esperança, de modo a compreender qual a relação de dominância presente tanto nele quanto nos órgãos e instituições que o promovem. Na busca por compreender a dissimulação da solidariedade que o Projeto veicula pela mídia, especialmente, pela emissora de televisão Rede Globo, far-se-á uma investigação a partir da representação das formações imaginárias que o Programa e os telespectadores/doadores possuem em relação uns aos outros. Antes de mais nada, é importante compreender o que é o Criança Esperança e quais as suas finalidades, expressas por documentos e materiais que tratam a seu respeito. 3. O que é o programa Criança Esperança? Desde o seu surgimento, a Rede Globo – emissora de televisão de maior sucesso no Brasil, como abordaremos na seção 4 – busca formas de atrair seu público/telespectador, principalmente, a partir de programas de entretenimento. Conforme Gallego e Galindo (2008), o Criança Esperança, por exemplo, se encaixa nessa categoria, sendo que, além de, aparentemente, realizar a promoção do bem-estar de crianças e jovens de todo o Brasil, solicitando a seus telespectadores contribuição financeira, preocupa-se em agradar e atrair a população brasileira a assistir o canal de televisão. Criado em 1986, o Criança Esperança “é uma ação da Fundação Roberto Matinho em parceria com o Unesco” (AIRES, 2015, p. 52), algumas ONGs, órgãos privados, o setor público e toda a sociedade brasileira e isso possibilitou a criação dos Espaços Criança Esperança (FLORISBAL, 2008). Em vista disso, o programa teve grande contribuição para a inclusão do artigo 227 na Constituição Federal de 1988, garantindo os direitos das crianças brasileiras, quando divulgou a Declaração Universal dos Direitos das Crianças. Esse artigo possibilitou, mais tarde, a criação do Estatuto da Criança e do Adolescente (CAMPANHA..., 2015a, online). No ano de 2015, o Projeto completou 30 anos e, conforme informa seu site, no G1 CRIANÇA..., 2015b, online), portal de notícias do Brasil, mantido pela TV Globo, por meio da última edição realizada, foram beneficiadas mais de 4 milhões de crianças, adolescentes e jovens, contando com o apoio a 30 projetos no decorrer de dois anos em todas as regiões do país e, ainda, para três Espaços Criança Esperança, no Rio de Janeiro, em Belo Horizonte e em Pernambuco, a fim de beneficiar mais de 18 mil crianças. A cada ano, os projetos que se interessam se inscrevem e são selecionados, posteriormente, para que alguns deles recebam o apoio financeiro. 372 Todos os anos, é realizado o Show Criança Esperança, contando com a participação de diversos artistas, dentre eles, cantores, atores, comediantes e outros que fazem parte do elenco da TV Globo. Também conta com a presença de uma plateia, cujo ingresso para assistir ao espetáculo é pago e “durante as apresentações há um estímulo muito grande para que os telespectadores façam doações ao Projeto, pois todo o dinheiro arrecadado é destinado aos projetos apoiados pelo Criança Esperança” (GALLEGO; GALINDO, 2008, p. 4). Em 2009, foi elaborado, pela Unesco um material, intitulado “Criança Esperança: mobilizando pessoas, transformando vidas”, cuja intenção é "divulgar" o Programa Criança Esperança em todos os seus aspectos. Nele, está expresso que uma das importantes funções da UNESCO é a de ser um laboratório de ideias, contribuindo para produzir e partilhar conhecimentos. A UNESCO procura identificar em todo mundo experiências inovadoras, que permitam a melhoria das condições sociais, analisando-as e disseminando-as nos diferentes países em que atua (NOLETO, 2009, p. 336). Outro elemento de destaque é o fato de, conforme apresentado no mesmo documento, o Criança Esperança ter nascido “com o objetivo específico de expor ao debate os principais problemas vividos pelas crianças brasileiras” (FLORISBAL, 2009, p. 7), pois, em meio a falta de atenção a essa população (crianças e jovens) pelo poder público, notou-se a necessidade de se criar iniciativas como essa. Essa Campanha anual mostra ter o intuito de efetivar um trabalho que, na verdade, é dever do Estado, mas, por não acontecer, mobiliza a sociedade, a partir de ações não governamentais, tendo em vista eliminar problemas de crianças e adolescentes com maiores dificuldades socioeconômicas no Brasil. Em decorrência disso, “o Programa é um exemplo singular de mobilização social que conta com a participação da sociedade brasileira para apoiar projetos que fazem a diferença para milhares de crianças e jovens” (ATHIAS, 2009, p. 8). Logo, tem-se a visão de que a população brasileira tem participação especial para que o Projeto aconteça. Visando a analisar as reais finalidades do Programa, será feita uma investigação acerca das imagens que são formadas por meio do Criança Esperança. Assim, verificar-se-á a visão que a Campanha tem de si mesma e dos seus telespectadores/doadores e a imagem que os telespectadores/doadores têm de si e do Programa, procurando investigar alguns aspectos que contradizem a função exclusiva que o Projeto demonstra ter. 4. Jogo de imagens no projeto criança esperança: a dissimulação da solidariedade A partir do que foi apresentado a respeito da produção do discurso pelos sujeitos, os quais são, para a AD, cindidos e interpelados ideologicamente, visamos desenvolver uma análise acerca das imagens produzidas pelos sujeitos envolvidos com o Projeto Criança Esperança. Conforme apresentado na tabela 01, sistematizada por Pêcheux (1997b), as formações imaginárias podem ser distribuídas de quatro diferente maneiras entre ouvinte e falante, de forma que envolve as imagens elaboradas e antecipadas por ambos na produção dos discursos. Em nosso caso, trata-se do Criança Esperança (ou seja, seus idealizadores e produtores) e dos telespectadores e/ou aqueles que doam para a Campanha. A fim de esclarecer a forma como a análise será feita, inicialmente, partiremos das seguintes indagações: 1. Qual a imagem o Criança Esperança tem de si em relação aos seus telespectadores/doadores? 2. Qual a imagem o Criança Esperança tem de seus telespectadores/doadores? 373 3. Qual a imagem os telespectadores/doadores têm de si em relação ao Criança Esperança? 4. Qual a imagem os telespectadores/doadores têm do Criança Esperança? Dessa forma, a análise começará pela imagem que o falante tem de si mesmo, ou seja, a visão que o Criança Esperança (no caso, os produtores desse Projeto) apresenta de si próprio, a fim de responder ao questionamento “Qual a imagem o Criança Esperança tem de si em relação aos seus telespectadores/doadores?”. Ao resgatar as condições de produção históricas do Criança Esperança, notamos que os 30 anos de sua existência legitima o seu dizer, propicia sua realização a cada ano, como afirmado pelo representante da Unesco no Brasil, em 2009, “semeando e recolhendo frutos de justiça e dignidade” (DEFOURNY, 2009, p. 6), a partir da “ética” e da “seriedade” que possui em sua realização (para maiores informações sobre o histórico da Campanha, consulte o item 3. O que é o Programa Criança Esperança? apresentado, anteriormente, neste trabalho). A partir disso, observa-se que a visão que se tem de si mesmo é de um Programa sério que contribui para a vida de milhares de crianças e jovens de todo o Brasil. Assim, tem a noção de dever cumprido com as crianças e adolescentes que necessitam no país, já que o diretor geral da Rede Globo, no ano de 2009, admitiu que “muito foi feito pelas crianças brasileiras nas últimas décadas” (FLORISBAL, 2009, p. 7). Nas campanhas apresentadas pelo programa, afirma-se que todo o dinheiro recebido por meio de doações da população brasileira é destinado a espaços e projetos a ele vinculados. Assim, também por ser transmitido em canal aberto, o Criança Esperança produz a imagem de “transparente” e impulsionador da mobilização social (CONFIRA…, 2015, online), o que conduz a visão de que todos esses anos de sua realização “oferece[m] um exemplo de perseverança e transparência na sua ação de responsabilidade social” (DEFOURNY, 2009, p. 6). Para legitimar isso, a Rede Globo lançou uma animação, em 2015, no mesmo site do Criança Esperança, explicando, com “detalhes”, os caminhos das doações, até chegar, diretamente, à Unesco (ENTENDA..., 2015, online). Sempre buscando essa transparência, a seguir, apresenta-se uma imagem, conforme apontado no item prestação de contas na página na internet, do Criança Esperança que mostra os projetos ajudados por ano e, quantitativamente, os valores a eles destinados: Figura 01: Total de projetos anuais por região e valores destinados a cada projeto Fonte: Confira… (2015, online). Nota-se que, de todas as regiões, as que mais possuíram projetos que receberam apoio foram as Regiões Nordeste e Sudeste, a primeira com 40% dos projetos beneficiados, a segunda com 25%. Na região Sul, 14% dos projetos receberam auxílio, sendo que, nas outras duas, Norte e Centro Oeste, 11% dos projetos, cada uma, foram favorecidos. Isso mostra, ademais, que o Criança 374 Esperança se preocupa em ajudar crianças e jovens das áreas do Brasil que mais carecem, especialmente, o Nordeste, em que a linha da pobreza supera todas as outras, conforme mostra o gráfico: Gráfico 012: Taxa de pobreza no Brasil por região Fonte: Erradicar... (2013, online). Assim, o Programa é considerado, por Athias (2009, p. 9), como um importante meio que colabora para o desenvolvimento de “políticas públicas e contribui para fortalecer comunidades localizadas em áreas marcadas pela pobreza, pela reduzida presença do Estado e, em muitos casos, pela violência urbana” e é na mobilização social, principalmente, que a Rede Globo atua. A partir dessas afirmações, as projeções das imagens que são feitas pelo Criança Esperança a respeito dele mesmo, é a de um mobilizador social, consequentemente, uma iniciativa voltada ao desenvolvimento de ações sociais, assim, de um Programa que consegue minimizar alguns dos problemas sociais que vigoram no Brasil e, inclusive, fomentar o desenvolvimento de novos programas sociais para a criação de mais ações (UNESCO, 2009). E, ainda, é considerado por seus idealizadores como algo bom à população, pois, traz alegria e entretenimento às pessoas que o assistem, mesmo para aqueles que não fazem doações. Com o desígnio, também, de mostrar como a população é importante para o desenvolvimento da Campanha, o Criança Esperança apresenta, em seu documento, “que ao longo dos anos vem contando com forte participação da sociedade” (DEFOURNY, 2009, p. 6). Com efeito, em relação à questão “Qual a imagem o Criança Esperança tem de seus telespectadores/doadores?”, nota-se que é atribuída a eles a imagem de pessoas solidárias, que se preocupam com projetos voltados à educação, à cultura, às ciências e ao meio ambiente, às ciências humanas e sociais e à comunicação e informação das crianças de seu país, uma vez que essas correspondem as áreas que a Unesco promove para o Criança Esperança. Em virtude disso, “os números registrados ao longo dos últimos anos mostram o fortalecimento do projeto e sua aceitação por parte da população” (FLORISBAL, 2009, p. 7). Na última edição, por exemplo, foi registrado o maior valor de doações comparado aos anos anteriores, pois foram arrecadados mais de R$ 22 milhões, como anunciado no Jornal Nacional, na página do G1 (CAMPANHA..., 2015b, online). Por ser considerada uma campanha de mobilização social, a população telespectadora, especialmente aquela que doa, é vista como a parcela da sociedade que a apoia, que é parceira e que acha necessário ajudar as crianças e adolescentes em decorrência do descaso do poder público com essa população. Além disso, os organizadores do Criança Esperança veem que questões de cunho social, que visam, “exclusivamente”, ajudar aqueles que mais necessitam, e, também, com as chamadas que envolvem os telespectadores, como “Esperança: quem recebe, ganha. E quem doa também” (CRIANÇA..., 2015b, online), têm um peso importante para que parte da sociedade faça doações. Pesquisa feita pelo “IBGE, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD). OBS: Foi utilizado o deflator INPC, tendo por base a linha de extrema pobreza de R$ 70,00 e a de pobreza de R$ 140,00 em junho de 2011” (ERRADICAR..., 2013, online). 2 375 Para ratificar isso, mostra que, ajudando os projetos que o Criança Esperança investe, quem doa sentir-se-á bem, ainda mais porque o Programa considera que sem os telespectadores/doadores não seria possível manter viva a iniciativa, já que o Programa tem, cada vez mais, inserido no seu dizer que, responsabilizando, de certa forma, a população para cumprir com os objetivos propostos e buscar assegurar parte dos direitos das crianças e jovens do Brasil. Além disso, Aires (2015, p. 57) afirma que para atender demandas diversas não supridas pelo Estado, os cidadãos sempre se associaram. Na atualidade, são as “organizações não governamentais” as mais atuantes formas de associação de indivíduos. Há que se considerar sobretudo o ambiente propício no qual se fortalece a base ideológica desse processo: grande volume de impostos e poucos benefícios; serviços públicos de má qualidade; e o “contato” de algumas classes somente com as funções repressoras do Estado. Pensando nisso, ao buscar “Qual a imagem os telespectadores/doadores têm de si em relação ao Criança Esperança?”, observa-se que grande parte da população que doa se vê na “obrigação” de ajudar entidades filantrópicas, não governamentais, para cobrir as lacunas deixadas pelos órgão públicos, ao contribuir financeiramente com essa Campanha, nem que seja com o valor mínimo. Os números obtidos pelas doações, que aumentam a cada ano, comprovam esse fato. Até agosto de 2015, o programa já havia arrecadado mais de R$ 22 milhões de reais e, ainda que as doações via telefone tenham acabado, elas permanecem durante todo o ano pelas casas lotéricas e pela internet, como informa o site. Nos anos anteriores, como em 2014, o valor foi de cerca de R$ 18 milhões (CONFIRA..., 2015, online), em 2013, R$ 17,7 milhões (CONFIRA..., 2014, online). Vê-se, com isso, que a cada ano os valores das doações aumentam progressivamente, demonstrando que a população brasileira está, por um lado, engajada com a campanha, porque há o sentimento de bondade e de amor ao próximo, o que retoma, em muitos casos, preceitos da Bíblia Sagrada (1998), como em Povérbios 28:27 “O que dá ao pobre não padecerá penúria, mas quem fecha os olhos ficará cheio de maldições”, e tantas outras passagens, fazendo-os associar isso ao fato de que quem contribui com a ação tem mais chance de ter, portanto, o seu lugar reservado no céu e que seus pecados sejam perdoados. Ainda que nem todos pensem dessa forma ao doarem, para a AD, conforme já afirmado, somos sujeitos cindidos e interpelados pela ideologia (nesse caso, trata-se da ideologia religiosa), que também determina o pensar/agir das pessoas, ao verem a “necessidade” de doar para “agradar” a Deus. Por outro lado, os empresários têm interesses ao abaterem o valor da doação no imposto de renda. Por fim, a questão norteadora para identificar “Qual a imagem os telespectadores/doadores têm do Criança Esperança?” converge com o que já foi exposto anteriormente. Por um lado, principalmente para quem doa, o Programa é uma iniciativa que ampara crianças e jovens que vivem em situações de pobreza (reveja o gráfico 01, que mostra o índice de pobreza por região do Brasil, e a figura 01, que comprova qual dessas regiões tem maior apoio da ação, ou seja, a Nordeste, onde se concentra a área mais carente do país), constituindose como importante meio para ajudar nas causas sociais, apesar de isso ser dever do Estado, até mesmo porque, como demonstrando, as doações sobem em relação as edições anteriores. Novamente, a “transparência” que o Projeto demonstra ter por parte dos telespectadores/doadores, por veicular “todos os detalhes” na programação da Rede Globo e no seu site, a partir da exibição de como é feito e para onde são destinadas as contribuições, mostra não ter qualquer lucro com a campanha, inclusive por, declaradamente, toda a doação ser depositada diretamente na conta da Unesco e por não ter dedução fiscal (ARTISTAS…, 2015, online). Em decorrência disso, os telespectadores, em geral, os que doam, têm confiança na iniciativa, veem o Programa como uma iniciativa séria, sem interesses para benefício próprio. 376 Por outro lado, há telespectadores que, ainda que assistam ao Dia da Esperança ou mesmo as vinhetas transmitidas nos comerciais da Rede Globo e embora possam ter uma imagem positiva do Programa, acabam por não fazer doações, haja vista os interesses que uma empresa capitalista desse porte tem. Isso é marcado em algumas campanhas que são feitas nas próprias redes sociais, blogs, sites etc., solicitando que, ao invés de doar para projetos como os promovidos por uma emissora de televisão que investe bilhões de reais para sua manutenção e dominação, ajude-se diretamente Apaes de suas cidades ou outros programas sociais locais e/ou regionais, tal como ilustrado na imagem que segue: Figura 02: Campanha contra o Criança Esperança Fonte: Jloeffler (2013, online). Com a intenção de sistematizar as imagens analisadas, segue a tabela 2 na página seguinte: A respeito de todas essas imagens que, aparentemente, são projetadas no/pelo Criança Esperança, vale resgatar implícitos que o constituem e as formações ideológicas que vigoram na promoção dessa campanha e de seus promotores. Conforme encomenda de pesquisa pela Secretaria de Comunicação da Presidência da República (Secom), que foi realizada pela empresa Meta Pesquisa de Opinião, em 2010, a Rede Globo é a emissora de televisão de maior audiência do Brasil, como afirmamos anteriormente, pois, a entrevista com moradores de 12 mil domicílios em 539 cidades mostrou que 69,8%, prefere assistir a Tv Globo ao invés de outros canais, seguida da Record, com 13% e da SBT, com 4,7% (REDE... 2010, online). O fato de essa emissora possuir o maior número de audiência do país – ainda que o percentual tenha mudado, naquele momento representava 69,8% –, legitima-a a dizer que a população precisa contribuir com a Campanha, uma vez que é “superior” as demais emissoras. Por essa relação de força dominante, pode desenvolver trabalhos de diversas naturezas de forma mais consistente, buscando transmitir uma boa imagem para os seus telespectadores, no sentido de manter o recorde em audiência, tal como por ser o canal que promove e transmite o Criança Esperança. Contudo, as projeções que são criadas nem sempre correspondem ao que realmente é. Assim, sabe-se que o dizer de quem está na camada superior da estrutura, valerá, ou significará mais do que o de quem está em uma inferior. A esse respeito, Orlandi (2013, p. 39-40) exemplifica que, no caso de uma escola, se o professor fala a partir do lugar de professor, suas palavras significam de modo diferente do que se falasse do lugar de aluno. [...] nossa sociedade é constituída por relações hierarquizadas, são relações de força, sustentadas no poder desses diferentes lugares, que se fazem valer na “comunicação”. A fala do professor vale (significa) mais do que a do aluno. 377 Tabela 02: Síntese do jogo de imagens produzido no/pelo Criança Esperança IA (A) Qual a imagem o Criança Esperança tem de si em relação aos seus telespectadores/ doadores? Programa sério e transparente. Comprometido com ações sociais. Visa a melhoria de vida de crianças e jovens do Brasil. Impulsionador da mobilização social. Leva entretenimento ao público. IA (B) Qual a imagem o Criança Esperança tem de seus telespectadores/ doadores? Pessoas comprometidas com ações sociais. Público-alvo para serem conquistados e ajudarem na busca pelos direitos das crianças e adolescentes do país. Solidárias. Parceiras do Projeto. A “base” para que o Programa aconteça. IB (B) Qual a imagem os telespectadores/ doadores têm de si em relação ao Criança Esperança? Grande parte sente-se quase “obrigada” a fazer doações, pela falta de intervenção do Estado. Pessoas comovidas com o descaso do poder público em relação à população de crianças e jovens. Solidárias. Os números mostram que a cada ano, os valores das doações aumentam, logo, cada vez mais parte da população está engajada com a Campanha, acreditando, por isso, que o Criança Esperança é algo consistente e que dá certo. Os que creem nos preceitos religiosos também ajudam buscando o bem e o auxílio ao próximo. IB (A) Qual a imagem os telespectadores/ doadores têm do Criança Esperança? Público 1: Programa sério e transparente. Ajuda crianças e adolescentes do Brasil, em alguns espaços, integralmente. Realiza uma ação que deveria ser dever do Estado. Público 2: Campanha solidária, mas a Rede que a promove tem benefícios próprios a partir dela. Considera que, ajudando projetos isolados, locais/regionais, contribui mais para ajudar crianças e jovens que necessitam do que doando para o Criança Esperança, por meio dos interesses da Rede Globo. Fonte: A autora. Estando o Projeto em uma posição superior na hierarquia social, já que veicula no maior canal de televisão do Brasil, a partir das afirmações de Orlandi (2013) a respeito das relações de força que existem decorrente da organização de uma sociedade hierárquica, é fato que o dizer dele (Criança Esperança) significa mais do que o dos telespectadores que o assistem e daqueles que contribuem com a ação. Além do mais, é quase inevitável que não haja um processo de “sedução” voltado à população para aderir à campanha. Isso é feito de diversas maneiras, como, dentre outros, com a atração dos artistas, sejam eles cantores, atores ou comediantes, no “Dia da Esperança”, que, em 2015, aconteceu no dia 15 de agosto. No entanto, há algumas críticas à Rede Globo, que podem ser verificadas no conteúdo presente na página da internet IG Gente, produzido por Sant'ana (2015), em relação aos diversos quadros realizados no decorrer do ano que levam a premiações (com altos valores financeiros), normalmente, a pessoas famosas ou que possuem padrão de vida financeiro favorável. Isso ocorre, por exemplo, no Big Brother Brasil (BBB), no Medida Certa, quadro do Fantástico, em especial, quando foi realizado com o jogador de futebol Ronaldinho, com o comediante Fábio Porchat, com os cantores Preta Gil, Gaby Amarantos e César Menotti, além de muitos outros artistas e sujeitos com alto padrão de vida que são favorecidos com programas de entretenimento dessas naturezas. Ou seja, há considerável investimento nesses programas de entretenimento, cujo propósito é, senão outro, aumentar a audiência, superar todos os demais canais de televisão e manter, portanto, o seu status e a sua posição superior na hierarquia social. 378 Por ser transmitido por essa emissora, o Criança Esperança também passa a ser alvo de críticas, uma vez que a população questiona-se, cada vez mais, para onde é destinado todo o dinheiro arrecadado pelo Criança Esperança. Por esse motivo, a Campanha procurou medidas para buscar responder para onde é destinado o dinheiro doado e, igualmente, pelo “Dia da Esperança” não ser mais considerado um “show” como nas edições anteriores, pois, a partir deste ano, as músicas selecionadas foram inspiradas no “espírito de mobilização” (SANT’ANA, 2015), com o fim de autenticar ainda mais o seu dizer e toda a sua constituição. Ainda assim, podemos nos questionar: 1- por que, ao invés de investir em programas como esses, a Tv Globo e seus afiliados não repassam o dinheiro para os projetos e para os espaços que o Criança Esperança atende? 2- Há outras finalidades por parte da emissora que estejam além de promover ações voltadas para benefício de crianças e adolescentes do país? 3- Qual o sentido de promover tantas campanhas de bem-estar social, se há dinheiro para pagar outros quadros, programas e competições para quem, em tese, não necessita? Refletindo sobre essas indagações, analisamos que: 1- a Rede Globo “precisa” desenvolver programas e ações que permitam a audiência e o Criança Esperança seria um deles. 2- Os interesses em realizar esse tipo de campanha gira em torno da imagem que a emissora forma quando mostra ter preocupação com uma causa social, como as formações imaginárias que destacamos anteriormente, pois, produzindo o sentido de transparente e preocupada com o desenvolvimento satisfatório de crianças e adolescentes necessitados, ganha ainda mais telespectadores. Logo, 3- reafirmando o primeiro questionamento, toda rede de televisão busca conquistar o maior número de audiência possível, para, no caso da Tv Globo, manter o seu status no topo e, para isso, investe em algo que, apesar de beneficiar um considerável número de crianças e jovens do Brasil, também favorece a si própria. Portanto, mais do que beneficiar a população que o programa atente, tem-se em vista que “projetos como estes se integrem significativamente à produção jornalística e de entretenimento, tendo resultados econômicos e políticos significativos” (AIRES, 2015, p. 53). É fato que qualquer emissora de televisão precisa de algo que lhe dê lucro ou, ao menos, um retorno dos altos investimentos que são feitos para mantê-la, isso revela a formação ideológica que a domina: a capitalista. Desse modo, programas como o Criança Esperança são carros forte para uma audiência alta, já que envolvem questões sociais, que tocam grande parte da população. O objetivo do canal televisivo é entreter o público e atrair audiência o Criança Esperança é um desses impulsionadores para garantir seu sucesso. Vê-se que a Rede Globo, de forma dissimulada, manipula seus telespectadores ao realizar Campanhas como essa, uma vez que, em concordância com Aires (2015, p. 54) “seríamos ingênuos se acreditássemos que as atividades filantrópicas das empresas de comunicação brasileiras não buscam os fins lucrativos”. Dessa forma, ao mostrar-se transparente e auxiliadora dos necessitados, ela silencia a imagem de manipuladora, deixando transparecer somente a parte “boa”, bondosa e caridosa, apagando o seu real interesse: obter lucro. Decorrente disso, pode-se buscar na memória discursiva3 que, mesmo que a Unesco, por meio de seus documentos, pelas divulgações no portal de notícias G1 e pela própria Rede Globo, esclareça, de certa forma, como e onde estão sendo investidas as doações feitas ao Projeto, programas de reality show, como o BBB, e de dieta com famosos, como o Medida Certa, ainda perduram na emissora, com a mesma finalidade de obtenção de audiência e lucro para benefício da Tv em questão. Com efeito, ainda que seja “esclarecido” o repasse de verbas para as entidades que o Criança Esperança contribui, resgata-se, por meio dos pré-construídos, dos já-ditos, dos Para Pêcheux (1999, p. 52), memória discursiva “seria aquilo que, face a um texto que surge como acontecimento a ler, vem restabelecer os “implícitos” (quer dizer, mais tecnicamente, os pré-construídos, elementos citados e relatados, discursos-transversos, etc.) de que sua leitura necessita: a condição do legível em relação ao próprio legível”, isto é, a memória discursiva corresponde a sentidos e construções anteriores que podem ser resgatados para a construção dos efeitos de sentido nos discursos. 3 379 interdiscursos, ou seja, a partir de todas as construções anteriores, que a Tv Globo investe bilhões de reais para realizar todos os tipos de programas, novelas, shows, minisséries etc., que, caso a emissora e os idealizadores do Criança Esperança não tivessem interesses financeiros sobre o Programa, poderiam ser, pelo menos, parte deles, investidos nessas instituições que a Campanha atende. Assim, para identificar essas finalidades e analisar, de maneira mais exaustiva, o discurso de bondade e de solidariedade que a emissora procura passar por meio de suas diversas ações, além dos implícitos subjacentes ao canal, é necessário resgatar todos esses investimentos que já foram e são feitos e como tudo isso lhe coloca num suposto “pedestal”, uma vez que “não há discurso que não se relacione com outros. [...] Todo discurso é visto como um estado de um processo discursivo mais amplo, contínuo. [...] Um dizer tem relação com outros dizeres realizados, imaginados, possíveis” (ORLANDI, 2013, p. 39). As imagens constituídas, seja da posição do Programa em relação a si mesmo, ou a visão que os telespectadores/doadores tem da posição dele, como foi apresentado, nem sempre condizem com as posições reais que estão em jogo no processo discursivo. Pêcheux (1997a, p. 148), salienta que “a reprodução, bem como a transformação, das relações de produção é um processo objetivo cujo mistério é preciso desvendar, e não um simples estado de fato que bastaria ser constatado”. Muitas vezes, o que parece ser claro/real não é tanto assim, pois, ao mesmo tempo em que a língua comunica, ela também omite e é nesse entrecruzamento que a ideologia está impregnada. Todo o discurso que é apregoado no Criança Esperança, como o chamado para realizar doações, com “a máxima ‘para doar, sete reais, ligue: 0500 2015 007... e alimente a esperança de quem faz!’” (AIRES, 2015, p. 52), a participação de pessoas famosas, comprometidas com a causa, ou mesmo o fato de quem recebe as ligações para as doações no mesão do Criança Esperança serem artistas (ATLETA…, 2015, online), conduz a “atração” e a “simpatia” dos telespectadores com a ação, que, por sua vez, é produzida pela língua em uma relação de dominância entre quem promove e quem assiste/contribui, sem que, muitas vezes, a população se dê conta disso. Isto é, essas são estratégias e mecanismos que a Rede Globo realiza para lucrar com a audiência, por isso tem-se uma manipulação nessa ação social, no sentido de que há interesses “simulação/implícitos” em sua realização. Em consequência, “o fato de que as classes não sejam ‘indiferentes’ à língua se traduz pelo fato de que todo processo discursivo se inscreve numa relação ideológica de classes” (PÊCHEUX, 1997a, p. 92). Sendo assim, o Programa em questão, mantido, especialmente, pela Tv Globo, tem como ideologia dominante o sistema capitalista e está inscrito na formação discursiva midiática, portanto, hierarquicamente, conforme já apontamos, ocupa uma classe superior em relação à população telespectadora/doadora. Ao resgatar alguns discursos que já foram utilizados para identificar o jogo de imagens que ocorre no/pelo Criança Esperança, verificamos alguns desses interesses que seus idealizadores têm ao promoverem campanhas como essa. Assim, o dizer “Esperança: quem recebe ganha. E quem doa também” apresenta uma força tamanha para quem assiste, visto que isso é altamente apelativo, pois “instaura” no público a “vontade” e a “necessidade” de doar, não só como solidariedade, mas como prazer, retomando os valores do que é ser cidadão e o dever de a sociedade, da mesma maneira, se comprometer com o auxílio às crianças, aos adolescentes e aos jovens do país, posto que isso está sustentado em documentos oficiais, como expresso no artigo 227 da Constituição Federal de 1988: É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão (Redação dada Pela Emenda Constitucional nº 65, de 2010) (BRASIL, 1988, art. 227, grifo nosso). 380 Outro discurso bastante apelativo é: “O Criança Esperança é uma campanha da Globo com a Unesco em parceria com milhões de brasileiros”, tendo em vista que além da necessidade de os telespectadores contribuírem, também traz o apelo; coloca os brasileiros como parte do projeto, promovendo a imagem deles como se também fossem idealizadores; são mais que telespectadores, são parceiros. Conforme Ferreira (2010, p. 564), o termo parceiro define-se por: “aquele que está de parceria; sócio. Par, companheiro. Pessoa com quem se joga”. Logo, o desígnio da Tv Globo e de seus colaboradores ao promover o Criança Esperança todos os anos em sua rede é filiar a população como “sócia”, responsabilizando-a, igualmente, pela Campanha. Como salienta Aires (2015), isso nos leva a crer que toda essa forma de lidar com o Programa e as imagens que são veiculadas a seu respeito tendem a fortalecer a mídia, já que, ao promover um “bem” para a população infantil e juvenil de nosso país, a imagem do canal de televisão mais famoso do Brasil, se eleva, pois não nos parece gratuito que empresas de comunicação fortaleçam dia a dia o que vem denominando como seus “braços sociais”, em formatos de Fundações, Institutos e Ongs. E que projetos como estes se integrem significativamente à produção jornalística e de entretenimento, tendo resultados econômicos e políticos significativos (AIRES, 2015, p. 52-53). Em vista disso, há interesses que fazem com que a Rede Globo realize esse Projeto Social há 30 anos. Portanto, trata-se de um Programa que visa mobilizar algo que toca, que comove, de certa forma, a população, mascarando os interesses que possui e os benefícios que recebe ao desenvolvê-lo propagando a imagem de Tv que se filia a programas sociais para ajudar o próximo. Mas, ao se constituir enquanto um Programa sério e transparente, comprometido com ações sociais, impulsionador da melhoria de vida de crianças e jovens do Brasil, que leva, além disso, entretenimento ao público, o Criança Esperança, conforme apresentado anteriormente, e na tabela 02, que sintetiza a imagem que falante tem de sua posição e a visão que telespectador tem da posição ocupada pelo falante (isto é, a imagem que o Criança Esperança tem dele próprio e a visão que os telespectadores/doadores possuem do Programa), silencia, deixa em segundo plano e, ainda, mascara a formação discursiva da qual, de fato, se filia e que está diretamente vinculada à emissora que o transmite: a midiática, pois há “o caráter material do sentido – mascarado por sua evidência transparente para o sujeito (PÊCHEUX, 1997a, p. 160). Isso quer dizer que a ideologia dominante condiciona as formações discursivas, no caso da Campanha de que estamos tratando, a midiática, ideologia essa que é propagada pela Rede Globo, de modo que nesse processo há submissão “à lei de desigualdade-contradição-subordinação que [...] caracteriza o complexo das formações ideológicas” (PÊCHEUX, 1997a, p. 162). Nesse sentido, procura-se mostrar as imagens que, muitas vezes, estão implícitas na Campanha, que estão mascaradas pelo Projeto “transparente” e “ético”, até mesmo porque, a formação ideológica que domina a formação discursiva midiática, ou seja, o sistema capitalista autoriza-a a dizer, simuladamente, de forma “transparente” e “ética” e possibilita Programas como esse serem vistos de modo incontestável, muitas vezes. Para uma melhor compreensão sobre o assunto, é necessária uma análise mais exaustiva da Campanha, tal como procurou-se fazer neste trabalho. O que há, então, é uma constante relação de forças, advinda da dominação de uma dada formação social e difundida pelas formações imaginárias que estão em jogo nos processos discursivos. Em decorrência disso, buscou-se verificar as imagens das posições produzidas pelos sujeitos participantes do Criança Esperança, sejam seus idealizadores – Rede Globo em parceria com a Unesco –, sejam seus telespectadores/doadores, com o intuito de perceber, a partir desse jogo imaginário, a manipulação que a emissora que promove a Campanha realiza, para além de contribuir com a vida de crianças e adolescentes do Brasil. 381 5. Considerações finais Este trabalho preocupou-se, primeiramente, em identificar o jogo imaginário que ocorre na produção do Criança Esperança, um programa da Rede Globo em parceria com a Unesco. Assim, a partir do esquema proposto por Pêcheux acerca de como ocorrem as representações imaginárias nos processos discursivos, foram identificadas cada imagem projetada no/pelo programa: 1- visão da posição do Criança Esperança (seus produtores) em relação a si próprio; 2imagem da posição dos telespectadores/doadores pela Campanha; 3- projeção da posição dos telespectadores/doadores em relação a si mesmos; e, 4- representação da posição do Criança Esperança pelos telespectadores/doadores. Assim, constatou-se que: 1- o Criança Esperança é, para ele próprio, um programa sério e transparente, comprometido com ações sociais, que visa a melhoria de vida de crianças e jovens do Brasil, além disso, é impulsionador da mobilização social e leva entretenimento ao público. 2Os telespectadores são, para a Campanha, pessoas comprometidas com ações sociais, público-alvo para serem conquistados e ajudarem na busca pelos direitos das crianças e adolescentes do país, sujeitos solidários, parceiros do Projeto e a “base” para que o Programa aconteça. 3- Os telespectadores/doadores, vistos por eles próprios, são pessoas comovidas com o descaso do poder público em relação à população de crianças e jovens, são solidárias e parte deles que creem nos preceitos religiosos, também ajudam buscando o bem e a “salvação divina”. 4- O Criança Esperança pode ser representado de formas distintas, por dois públicos: o primeiro, o imagina como programa sério e transparente, que ajuda crianças e adolescentes do Brasil, em alguns espaços, integralmente, e realiza uma ação que deveria ser dever do Estado; o segundo, embora o considere como campanha solidária, reconhece que a Rede que a promove tem benefícios próprios a partir dela, por isso, faz outros movimentos, solicitando ajuda a projetos isolados, locais/regionais, considerando que isso contribui mais para ajudar crianças e jovens que necessitam do que doando para o Criança Esperança, por meio dos interesses da Rede Globo. A partir do exposto, consideramos que nem sempre as imagens projetadas das posições que os sujeitos do discurso ocupam correspondem, de fato, ao real, pois esse jogo envolve mais do que os sujeitos em si, mas, pelo menos, as formações discursivas em que estão inscritos, as formações ideológicas que os dominam, as condições de produção do dizer, os lugares ocupados na hierarquia social e as posições no discurso. Desse modo, como forma de desconstruir as imagens dissimuladas que são comumente propagadas pela mídia, nesse caso, pela Rede Globo, a partir do Criança Esperança, em seguida, buscou-se demonstrar que, ao desenvolver projetos como esse, o canal de televisão que o promove, tem interesses, visa aumentar a audiência e manter o seu status de maior emissora televisiva do Brasil. Para isso, pretende formar projeções de solidariedade, imparcialidade e nenhum tipo de interesse, mostrando que tem a finalidade de contribuir apenas para a vida e para o futuro de crianças e adolescentes do país, assegurando seus direitos. Porém, ao resgatarmos os implícitos desse Programa, a partir da memória discursiva e das formações ideológicas, principalmente, foi possível verificar o mascaramento dessas imagens e os favorecimentos que os idealizadores do Criança Esperança têm, isto é, lucrar com a Campanha e possibilitar maior número de telespectadores a seu favor. Referências AIRES, J. S. F. A mídia e seus “braços sociais”: jornalismo, participação e cidadania no programa Correio Verdade. Revista Latino-americana de Jornalismo. v.2, n.1, Jan./Jun., 2015, p. 51-77. ATHIAS, G. Um retrato do Brasil. In: UNESCO. Criança Esperança: mobilizando pessoas, transformando vidas. Brasília UNESCO, TV Globo, 2009. 340 p. 382 BÍLBIA, Português. Bíblia Sagrada. 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