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EXAME DA LEGALIDADE DO AUMENTO DAS TARIFAS DE ENERGIA
ELÉTRICA NO BRASIL AUTORIZADO EM FACE DO RACIONAMENTO
COMPULSÓRIO VIGENTE EM 2001/2002.
Paulo A. Meyer M. Nascimento
SUMÁRIO:
INTRODUÇÃO. 1. O CONTRATO DE CONCESSÃO
PARA A DISTRIBUIÇÃO DE ENERGIA ELÉTRICA.
2. ATRIBUIÇÕES E COMPETÊNCIAS DA AGÊNCIA
NACIONAL DE ENERGIA ELÉTRICA (ANEEL). 3. A
AUTORIZAÇÃO DO AUMENTO DAS TARIFAS
FACE AO ADVENTO DO RACIONAMENTO
OBRIGATÓRIO. CONCLUSÃO.
INTRODUÇÃO
A crise energética agravada em junho de 2001, quando os níveis de água nos
reservatórios das hidroelétricas brasileiras alcançaram um patamar tão baixo que
exigiu do Governo Federal a adoção de um rígido regime de racionamento de energia
elétrica, gerou uma queda no faturamento das distribuidoras do setor. Em razão disso,
essas empresas pleitearam uma compensação financeira, que adveio na forma de
empréstimo concedido pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social
(BNDES), empréstimo este a ser pago pelo consumidor, por meio de aumento
extraordinário das tarifas.
Em verdade, o racionamento apenas fez transparecer para a sociedade
brasileira um problema que já vinha se agravando há tempos. A escassez de água
vem se configurando há décadas um dos grandes gargalos das políticas públicas não
só no Brasil, mas em todo o mundo. Suas implicações para o sistema de fornecimento
de energia pátrio vinham sendo maciçamente discutidas no meio acadêmico, nos
veículos de comunicação e no próprio Congresso Nacional. Pode-se dizer que, diante
da inércia do Poder Público em buscar alternativas energéticas, o anúncio de um
racionamento compulsório não foi um fato surpreendente.
Todavia, muito embora a crise energética já se delineasse há muito tempo,
alega-se que evitar seu agravamento até o ponto de culminar com a necessidade de
racionamento estava fora do alcance das distribuidoras de energia. Caberia ao Poder
Público implementar ações que revertessem a baixa dos níveis de abastecimento de
água ou que possibilitassem o desenvolvimento de fontes alternativas de energia.
Nesta ótica, ainda que previsível, o racionamento não poderia ter sido evitado pelas
concessionárias. Aqueles que defendem este posicionamento argumentam que a
eventual negligência do Poder Público nesta questão não pode ser estendida ao setor
privado. Diante de tais circunstâncias, a Administração Pública nada mais teria feito do

Bacharelando em Direito, pela Universidade Católica do Salvador, e em Economia, pela Universidade
Federal da Bahia e pela Middlesex University, de Londres. E-mail: [email protected]
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que se investir de suas prerrogativas para restabelecer as condições econômicofinanceiras originais dos contratos de concessão de serviço público firmados.
Contudo, cabe questionar se tal cenário de crise ensejaria de fato um aumento
extraordinário de tarifas de energia elétrica a fim de restituir as perdas porventura
havidas pelas distribuidoras durante o período em que esteve o racionamento em
vigor. A obrigação imposta aos consumidores de economizar energia se constituiria
realmente em um evento extraordinário cujos reflexos nos contratos de concessão de
distribuição seriam de tal magnitude a ponto de gerar um desequilíbrio econômicofinanceiro que enseje alteração contratual?
Esta questão não é pacífica. Há quem sustente, por exemplo, que os contratos
de concessão assinados prevêem investimentos na geração de energia elétrica por
parte das empresas contratadas. Se assim for, a responsabilidade pela ocorrência do
racionamento deve ser atribuída também às distribuidoras, as quais, portanto, não
teriam direito à restituição das perdas porventura havidas no período.
Para examinar a legalidade do aumento tarifário extraordinário decorrente do
referido racionamento, este trabalho percorrerá três etapas. Na primeira serão
abordados os aspectos concernentes aos contratos de concessão de serviço público
em geral e de concessão de distribuição de energia elétrica em particular, inclusive no
que diz respeito ao regime tarifário. Em seguida o foco será sobre as atribuições e as
competências da agência reguladora do setor elétrico. Por fim, a última etapa
discorrerá acerca da aplicabilidade das teorias do fato do príncipe, da imprevisão e do
fato da administração ao aumento tarifário estudado, avaliando se de fato houve um
desequilíbrio econômico-financeiro que justificasse esse aumento.
1. O CONTRATO DE CONCESSÃO PARA A DISTRIBUIÇÃO DE ENERGIA
ELÉTRICA
A concessão é um instituto que há muito é empregado como uma forma de
descentralização de serviços públicos. Entretanto, com o crescimento mundial da
influência dos ideais neoliberais na formatação do Estado, criou-se uma nova
aplicação desse instituto: a privatização. No Brasil, tal prática vem se intensificando
gradativamente, sobretudo desde a década de 1990. Não obstante este modelo venha
sofrendo um período de questionamentos mais contundentes acerca de sua real
eficácia, sua utilização segue em voga nas mais diversas sociedades mundo afora,
não sendo diferente na nossa. O intuito da utilização da concessão como forma de
privatização é substituir a empresa estatal pela empresa privada no papel de
concessionária, acreditando-se que, assim, desonera-se o Estado da prestação direta
de serviços públicos viáveis de serem executados pela iniciativa privada, deixando-o
mais apto a se dedicar a atividades tão ou mais essenciais nas quais o setor privado
não veria lucratividade, além de tornar mais ágil e qualitativamente superior o serviço
prestado ao usuário.
Evidentemente, tal assertiva decorre de premissas e valores de determinada
corrente ideológica. Não cabe aqui, ao menos por ora, discutir sua eloqüência. Atemo-
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nos a discorrer sobre os ditames legais e as considerações doutrinárias pertinentes à
concessão de serviços públicos no Direito pátrio.
1.1.
ASPECTOS GERAIS DOS CONTRATOS DE CONCESSÃO DE SERVIÇOS
PÚBLICOS
A concessão de serviços públicos é definida por Celso Antônio Bandeira de
Mello como “o instituto através do qual o Estado atribui o exercício de um serviço
público a alguém que aceita prestá-lo em nome próprio, por sua conta e risco, nas
condições fixadas e alteráveis unilateralmente pelo Poder Público, mas sob a garantia
contratual do equilíbrio econômico-financeiro, remunerando-se pela própria exploração
do serviço, em geral e basicamente mediante tarifas cobradas diretamente dos
usuários do serviço” (BANDEIRA DE MELLO, 2001, p. 622). Maria Sylvia Zanella di
Pietro, por sua vez, alude a tal instituto como “o contrato administrativo pelo qual a
Administração Pública delega a outrem a execução de um serviço público, para que o
execute em seu próprio nome, por sua conta e risco, mediante tarifa paga pelo usuário
ou outra forma de remuneração decorrente da exploração do serviço” (DI PIETRO,
1999, p. 72). Já José dos Santos Carvalho Filho o conceitua como “o contrato
administrativo pelo qual a Administração Pública transfere a pessoa jurídica ou a
consórcio de empresas a execução de certa atividade de interesse coletivo,
remunerada através do sistema de tarifas pagas pelos usuários” (CARVALHO FILHO,
2001, p. 287).
Tendemos a sedimentar nossa posição de acordo com os dois últimos
doutrinadores citados, para quem a concessão de serviço público é um contrato
administrativo. Celso Antônio Bandeira de Mello, não obstante inclua este instituto
como modalidade de contrato administrativo, o faz contra sua vontade, pois entende
que tanto a concessão como as demais variedades de “relações tão díspares” nas
quais a Administração Pública faz uso de suas prerrogativas especiais não deveriam
ser chamados de contratos, devido às suas características próprias que as distanciam
sobremaneira da natureza dos contratos regidos pelo Direito Privado (BANDEIRA DE
MELLO, 2001). Em verdade, várias são as teorias que visam a definir a natureza
jurídica da concessão de serviço público (ver o QUADRO I abaixo). Conforme ressalta
José Cretella Jr., aquela mais aceita pela melhor doutrina é a que considera a
concessão como contrato de direito público (CRETELLA JR., 2001).
QUADRO I
- Teorias Acerca Da Natureza Jurídica Da Concessão Teorias Unilaterais
Ato unilateral
Dois atos unilaterais
Natureza Jurídica da
De direito privado
Concessão:
Teorias Bilaterais
De direito público
De direito misto
Teoria Mista: ato administrativo e contrato privado
FONTE: CRETELLA JR., 2001.
Em nossa opinião, trata-se a concessão de serviço público de um contrato
administrativo que rege, a partir de outorga da Administração Pública, a
execução de um serviço público por parte de um agente econômico, público ou
privado, o qual assume para si os riscos inerentes à atividade, cuja remuneração
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se dá principalmente por intermédio de tarifas cobradas dos usuários do
serviço.
A concessão de serviços públicos tem previsão constitucional. A Carta Magna
dispõe sobre esse instituto em seus artigos 21, incisos XI e XII (indica os serviços que
a União pode prestar diretamente ou por meio de autorização, concessão ou
permissão), 25, § 2° (diz respeito a gás canalizado), 175 e 223 (pertinente aos
serviços de radiodifusão sonora de sons e imagens). Desses dispositivos
constitucionais, o artigo 175 é aquele de relevância indelével ao objeto do presente
trabalho, estando seu texto reproduzido a seguir:
Art. 175. Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob
regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a
prestação de serviços públicos.
PARÁGRAFO ÚNICO. A lei disporá sobre:
I. o regime das empresas concessionárias e permissionárias de serviços
públicos, o caráter especial de seu contrato e de sua prorrogação, bem
como as condições de caducidade, fiscalização e rescisão da concessão ou
permissão;
II. os direitos dos usuários;
III. política tarifária;
IV. a obrigação de manter o serviço adequado.
É importante precisar o alcance do conteúdo do artigo em questão. Conforme
ressalta Maria Sylvia Zanella di Pietro, não é qualquer serviço público que pode ser
objeto de concessão, ainda que o texto em epígrafe dê essa impressão. A concessão
só é possível para aqueles serviços públicos prestados a terceiros (usuários) e que
admita sua exploração comercial por parte do concessionário. Na ausência de
qualquer desses elementos, não há como se falar em concessão do serviço público.
(DI PIETRO, 1999).
Infraconstitucionalmente, o instituto da concessão de serviços públicos está
disciplinado pelas Leis n° 8.987/1995 e 9.074/1995, alteradas pela Lei n° 9.648/1998.
Subsidiariamente, nos casos omissos nas leis específicas, aplica-se a Lei n°
8.666/1993 (Lei de Licitações).
A Lei n° 8.987/1995, conhecida como Lei de Concessões, dispõe, dentre outras
coisas, sobre o que seja serviço adequado dos concessionários, os direitos e
obrigações dos usuários, a licitação, os encargos do poder concedente, os encargos
da concessionária e a extinção da concessão. Reserva ela o seu capítulo VI às
disposições gerais dos contratos de concessão, em especial a enumeração de suas
cláusulas essenciais (artigo 23), a responsabilidade pela execução do serviço
concedido (artigo 25), as condições gerais para a outorga de subconcessão (artigo
26), conseqüências da transferência de concessão ou do controle societário da
concessionária (artigo 27) e a possibilidade de oferecimento em garantia dos direitos
emergentes da concessão, nos casos de contratos de financiamento (artigo 28). Já a
Lei n° 9.074/1995 estabelece normas para outorga e prorrogações das concessões e
permissões de serviços públicos e dá outras providências. As disposições desse
diploma legal acerca dos serviços elétricos estão agrupadas essencialmente no seu
capítulo II, que traz normas preliminares sobre as concessões, permissões e
autorizações (artigos 4° a 10), o produtor independente de energia elétrica (artigos 11
a 14), as opções de compra de energia elétrica por parte dos consumidores (artigos 15
e 16), as instalações de transmissão e dos consórcios de geração (artigos 17 e 18) e a
prorrogação das concessões atuais (artigos 19 a 25). Acrescente-se a esses
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dispositivos os §§ 1° a 4° do artigo 28 do mesmo diploma, acrescentados pela Lei n°
9.648/1998, que prevêem a possibilidade de alteração do regime de exploração de
serviços de energia elétrica.
No que diz respeito especificamente à concessão de energia elétrica, são de
grande importância também a Lei n° 9.247/1996 e o Decreto n° 2.335/1997, que
discorrem sobre a constituição da Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL),
autarquia sob regime especial responsável pela regulação do setor, cujas atribuições e
competências serão tratadas na seção 2 desta obra.
O contrato de concessão de serviço público engloba sempre duas idéias
antitéticas, cujo equilíbrio, como observa Maria Sylvia Zanella di Pietro, citando os
autores franceses George Vedel e Pierre Devolvé, “constitui toda a teoria do contrato
de concessão” (DI PIETRO, 1999, p. 73). Tais antíteses são o interesse geral que a
prestação do serviço público deve atender, estando para tanto sob a autoridade da
Administração Pública, e o máximo de proveito possível que a empresa capitalista
concessionária busca obter. Em última instância, portanto, há em todo contrato de
concessão de serviço público a dualidade entre os benefícios privados e os benefícios
sociais que dele decorrem, devendo a Administração Pública procurar canalizar a
atuação privada à maximização dos benefícios sociais, sem prejuízo aos benefícios
privados, para fazer com que o contrato gere o que os economistas chamam de
externalidades positivas1.
Das duas idéias antitéticas presentes no contrato de concessão de serviço
público derivam características próprias cuja observância conjunta visa a produzir uma
síntese equilibrada. Tais aspectos, e de quais idéias decorrem, são enumeradas no
QUADRO II abaixo:
QUADRO II
- Características Resultantes Das Idéias Antitéticas Presentes No Contrato De
Concessão De Serviço Público Características Resultantes do Fato de a
Concessão Ter por Objeto a Execução de
um Serviço Público
a) a
existência
de
cláusulas
regulamentares no contrato;
b) a
outorga
de
prerrogativas
públicas ao concessionário;
c) a sujeição do concessionário aos
princípios inerentes à prestação
de serviços públicos: continuidade,
mutabilidade,
igualdade
dos
usuários;
d) reconhecimento de poderes à
Administração concedente, como
encampação, intervenção, uso
compulsório de recursos humanos
e
materiais
da
empresa
concessionária, poder de direção e
1
Características Resultantes do Fato de
Ser a Concessionária uma Empresa
Capitalista que Visa ao Lucro
a) a
natureza
contratual
da
concessão de serviço público;
b) o direito do concessionário à
manutenção
do
equilíbrio
econômico-financeiro.
Externalidades positivas é o termo utilizado em Economia para se referir aos impactos positivos gerados
em um determinado setor ou mesmo no todo da sociedade quando os benefícios sociais propiciados por
uma atividade econômica superam em muito os benefícios privados.
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de controle sobre a execução do
serviço, poder de aplicar sanções e
decretar caducidade;
e) a
reversão
de
bens
da
concessionária para o poder
concedente,
ao
término
da
concessão;
f) a natureza pública dos bens da
concessionária
afetados
à
prestação do serviço;
g) responsabilidade civil regida por
normas publicísticas;
h) efeitos trilaterais da concessão do
serviço público: sobre o poder
concedente, o concessionário e os
usuários.
FONTE: DI PIETRO, 1999.
A manutenção do equilíbrio econômico-financeiro do contrato é o direito do
concessionário correspondente ao poder de alteração unilateral conferido à
Administração, sendo, além do próprio objeto material da concessão, o único aspecto
contratual da concessão imutável unilateralmente. Afinal, “para o concessionário, a
prestação do serviço é um meio através do qual obtém o fim que almeja: o lucro.
Reversamente, para o Estado, o lucro que propicia ao concessionário é o meio por
cuja via busca sua finalidade, que é a boa prestação do serviço (...) Daí que, embora o
Estado possa modificar unilateralmente as condições do serviço, deverá preservar o
equilíbrio econômico quando as alterações que introduzir agravem a situação do
concessionário” (BANDEIRA DE MELLO, 2001, p. 633).
1.2.
ASPECTOS ESPECÍFICOS DO CONTRATO DE CONCESSÃO PARA
DISTRIBUIÇÃO DE ENERGIA ELÉTRICA
Atualmente são 58 contratos de concessão para distribuição firmados entre a
União, figurando como poder concedente por intermédio da ANEEL, e empresas
privadas vencedoras de licitação para figurarem como concessionárias do serviço. O
primeiro foi assinado em 1997 e o mais recente, em 2002.
Em todos esses contratos, as cláusulas essenciais estabelecidas pelo artigo 23
da Lei de Concessões encontram-se presentes, quais sejam disposições referentes:
ao objeto, à área e ao prazo da concessão; ao modo, forma e condições de prestação
do serviço; aos critérios, indicadores, fórmulas e parâmetros definidores da qualidade
do serviço; ao preço do serviço e aos critérios e procedimentos para o reajuste e
revisão das tarifas; aos direitos, garantias e obrigações do poder concedente e da
concessionária, inclusive os relativos às previsíveis necessidades de futura alteração e
expansão do serviço e conseqüente modernização, aperfeiçoamento e ampliação dos
equipamentos e instalações; aos direitos e deveres dos usuários para obtenção e
utilização do serviço; à forma de fiscalização das instalações, dos equipamentos, dos
métodos e práticas de execução do serviço, bem como a indicação dos órgãos
competentes para exerce-la; às penalidades contratuais e administrativas a que se
sujeita a concessionária e sua forma de aplicação; aos casos de extinção da
concessão; aos bens reversíveis; aos critérios para o cálculo e a forma de pagamento
das indenizações devidas à concessionária, quando for o caso; às condições para
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prorrogação do contrato; à obrigatoriedade, forma e periodicidade da prestação de
contas da concessionária ao poder concedente; à exigência de publicação de
demonstrações financeiras periódicas da concessionária; e ao foro e ao modo
amigável de solução das divergências contratuais.
1.2.1. A POSIÇÃO DO PODER PÚBLICO NO CONTRATO
Como em todo contrato administrativo, na concessão para distribuição de
energia elétrica estão sempre presentes prerrogativas públicas para o poder
concedente e restrições para o concessionário.
São prerrogativas do poder concedente os poderes de alteração unilateral das
cláusulas regulamentares, de encampação, de intervenção, de direção e controle
sobre a execução do serviço, de aplicar sanções e decretar a caducidade e de utilizar
os recursos humanos e os materiais da empresa concessionária sempre que lhe
aprouver. Todas essas prerrogativas estão previstas na Lei de Concessões e estão
presentes como cláusulas nos contratos já celebrados. A presença expressa de tais
prerrogativas se faz necessária para garantir a supremacia do poder concedente,
pressuposto indispensável para que prevaleça o interesse público. Nas palavras de
José dos Santos Carvalho Filho, “como corolário da preponderância do Estado nos
contratos administrativos, incidem na concessão as cláusulas de privilégio, ou
exorbitantes, que são certas prerrogativas expressamente atribuídas ao Estado nos
contratos administrativos” (CARVALHO FILHO, 2001, p. 293).
À Administração cabe ainda fiscalizar a exploração do serviço público de
distribuição de energia elétrica. Este papel é desempenhado por intermédio da
ANEEL.
1.2.2. DIREITOS E DEVERES DAS DISTRIBUIDORAS
Conforme avançado anteriormente, a concessão acarreta restrições ao
concessionário, ao passo que atribui prerrogativas ao poder concedente. Essa
desigualdade entre as partes é compensada pelo direito do contratado ao equilíbrio
econômico-financeiro.
Todavia, algumas prerrogativas especiais são também atribuídas ao concessionário.
Isto ocorre porque, como gestor de um serviço público, o concessionário necessita
eventualmente fazer uso de poderes e privilégios jurídicos típicos do direito público, a
fim de efetivamente obter condições de executar o serviço. São conferidas as
seguintes prerrogativas às distribuidoras de energia elétrica, enumeradas nos
contratos já firmados:

Utilizar, por prazo indeterminado, os terrenos de domínio público,
estabelecendo sobre eles estradas, vias ou caminhos de acesso e as
servidões que se tornarem necessárias à exploração do serviço, com
sujeição aos regulamentos administrativos;

Promover desapropriação e instituição de servidões administrativas
sobre bens declarados de utilidade pública, necessários à execução de
serviços ou de obras vinculadas ao serviço, arcando com o pagamento das
indenizações correspondentes; e

Construir estradas e implantar sistemas de telecomunicações, sem
prejuízo de terceiros, para uso exclusivo na exploração do serviço,
respeitada a legislação pertinente.
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Como já ressaltado, o maior direito das distribuidoras é a garantia de equilíbrio
econômico-financeiro do contrato. A Administração Pública pode alterar
unilateralmente, observadas as condições e limites fixados legalmente, qualquer
cláusula relativa à prestação do serviço em si, mas jamais poderá afetar com isso a
equação econômico-financeira estabelecida no momento de execução do contrato.
Ressalta Lucas Rocha Furtado que “a Administração somente poderá promover a
alteração unilateral das cláusulas de serviço (...); se alguma alteração unilateral, ou
mesmo bilateral, afetar o equilíbrio econômico-financeiro do contrato, será obrigatória
a adoção de medidas que visem à preservação desse equilíbrio” (FURTADO, 2001, p.
270-271).
A questão acerca da manutenção do equilíbrio econômico-financeiro do
contrato de concessão é de crucial importância para o objeto de análise do presente
trabalho. Em razão disso, sua discussão será retomada e bastante aprofundada na
seção 3, quando discorreremos precisamente acerca do cabimento do aumento das
tarifas de energia elétrica para compensar as perdas das distribuidoras do setor em
função do racionamento compulsório decretado em maio de 2001.
Quanto às obrigações das distribuidoras, evidentemente sempre passíveis de
serem alteradas unilateralmente pelo poder concedente, mediante normas
regulamentares específicas, vêem elencadas ao longo do contrato de concessão,
estando concentradas na cláusula destinada às condições de prestação do serviço, na
cláusula que dispõe sobre a expansão e ampliação dos sistemas elétricos e,
principalmente, na cláusula que discorre acerca das obrigações e encargos da
concessionária. O conteúdo dessas cláusulas visa a, de um modo geral, garantir a
prestação adequada do serviço.
A obrigação das distribuidoras de energia elétrica que mais tem suscitado
polêmica quanto à eventual parcela de responsabilidade dessas concessionárias pelo
racionamento obrigatório de 2001 é aquela disposta no artigo 7º da Resolução ANEEL
n° 278, de 19/07/2000. Este dispositivo é reproduzido a seguir:
Art. 7º. No âmbito do sistema interligado nacional, uma empresa
concessionária ou permissionária de distribuição somente poderá adquirir
energia elétrica de empresas a ela vinculadas ou destinar energia por ela
mesma produzida para atendimento de seus consumidores cativos até o
limite de 30% (trinta por cento) da energia comercializada com esses
consumidores.
Os opositores à reposição das perdas das distribuidoras em face desse
racionamento alegam que, além de ser este um fato perfeitamente previsível e
alertado, não foi combatido pelas concessionárias de distribuição. Ainda que elas
sozinhas não pudessem impedir a ocorrência da situação que obrigou a instituição do
racionamento, poderiam ter feito o que estava a seu alcance, isto é, gerar energia
própria. Segundo SAUER ET ALLI, a maior parte das distribuidoras de energia elétrica
encontra-se muito aquém do limite estabelecido pela ANEEL para a geração própria
dessas concessionárias. Enquanto tal limite é de 30% da energia vendida aos
consumidores cativos, as concessionárias de energia elétrica geram, em média,
menos de 10% da energia que comercializam (SAUER ET ALLI, 2001). Esta
problemática também será retomada na seção 3.
1.2.3. DIREITOS E DEVERES DO CONSUMIDOR
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Todo contrato de concessão é celebrado entre o poder concedente e o
concessionário. Entretanto, seus efeitos não se restringem a essas duas partes,
afetando também terceiros estranhos à celebração da avença, que são os usuários ou
utentes do serviço público prestado. Por isso se diz que a concessão gera efeitos
trilaterais. No caso da distribuição de energia elétrica, os usuários do serviço são os
consumidores de eletricidade. A Resolução n° 456/2000 da ANEEL define consumidor
como “pessoa física ou jurídica, ou comunhão de fato ou de direito, legalmente
representada, que solicitar à concessionária o fornecimento de energia elétrica e
assumir a responsabilidade pelo pagamento das faturas e demais obrigações fixadas
em normas e regulamentos pela ANEEL, assim vinculando-se aos contratos de
fornecimento, de uso e de conexão ou de adesão, conforme cada caso”.
Os direitos e deveres dos consumidores de energia elétrica comuns aos dos
usuários de serviços públicos objeto de concessão em geral estão enumerados no
artigo 7° da Lei de Concessões, cujos incisos têm sua redação reproduzida a seguir:
I. receber serviço adequado;
II. receber do poder concedente e da concessionária informações para a
defesa de interesses individuais ou coletivos;
III. obter e utilizar o serviço, com liberdade de escolha entre vários
prestadores de serviços, quando for o caso, observadas as normas do
poder concedente;
IV. levar ao conhecimento do poder público e da concessionária as
irregularidades de que tenham conhecimento, referentes ao serviço
prestado;
V. comunicar às autoridades competentes os atos ilícitos praticados pela
concessionária na prestação do serviço;
VI.
contribuir para a permanência das boas condições dos bens
públicos através dos quais lhes são prestados os serviços.
Além desses, acrescente-se o direito à modicidade das tarifas, previsto nos
artigos 6°, § 1°, e 11. Específicos dos consumidores de energia elétrica são os direitos
e deveres enumerados no QUADRO III abaixo.
1.2.4. A SISTEMÁTICA TARIFÁRIA DOS CONTRATOS DE CONCESSÃO PARA A
DISTRIBUIÇÃO DE ENERGIA ELÉTRICA
A regulação tarifária atualmente adotada para o setor elétrico brasileiro é
baseada no modelo inglês de privatização, o qual utiliza a metodologia do preço teto
incentivado (price cap). Por este sistema, fixa-se inicialmente as tarifas consideradas
adequadas para a remuneração e amortização dos investimentos e para suprir os
custos operacionais. Posteriormente, as tarifas determinadas vão sofrendo duas
modalidades de correções: os reajustes e as revisões (SAUER ET ALLI, 2001). O
preço-teto estipulado funciona como um limite máximo para as concessionárias;
podem elas, no entanto, cobrar tarifas inferiores ao limite determinado.
Sauer et alli definem as duas modalidades de correção tarifária da seguinte
maneira:
“Os reajustes utilizam um índice de inflação, para preservação do valor
real das tarifas. Os contratos de concessão estabelecem a periodicidade
anual para o reajuste das tarifas, mas garantem que, eventualmente, ele
poderá ocorrer períodos inferiores a 12 meses.
A revisão tarifária acontece ao fim de um período definido em contrato
(tipicamente entre 4 e 7 anos) e procede à aplicação, pela agência
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reguladora, do fator X, a ser subtraído ou acrescido da fórmula de correção,
equivalente aos ganhos de produtividade da empresa no período.” (SAUER
ET ALLI, 2001, p. 22).
Na lógica desta sistemática, as empresas concessionárias se veriam
estimuladas a obter ganhos de produtividade, no período entre as revisões, pois assim
teriam um aumento de sua lucratividade. Ao mesmo tempo, os consumidores seriam
beneficiados por uma posterior redução das tarifas reais, em virtude da atuação do
fator X como redutor durante as revisões.
O cálculo dos reajustes envolve um índice de correção dos preços do varejo e
o fator X. Os contratos de concessão mais recentes estabelecem ainda duas parcelas,
A e B, que constituem a receita das concessionárias para os fins de reajustes
tarifários. A parcela A engloba os custos tidos como não-administráveis ou nãogerenciáveis, quais sejam: cota da Reserva Global de Reversão – RGR; cotas da
Conta de Consumo de Combustíveis – CCC; encargos da compensação financeira
pela exploração de recursos hídricos; valores relativos à fiscalização dos serviços
concedidos; compra de energia; e encargos de acesso aos sistemas de transmissão e
distribuição de energia elétrica para revenda. A parcela B corresponde aos custos
administráveis ou gerenciáveis, que são o valor remanescente da receita da
concessionária, excluído o ICMS, após a dedução da parcela A.
A discussão em torno da sistemática vigente de regulação tarifária será
retomada na última subseção da seção 2, quando será abordado o papel da ANEEL
neste contexto.
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QUADRO III
-Direitos E Deveres Específicos Dos Consumidores De Energia ElétricaDIREITOS
- Fornecimento de energia elétrica a todos os consumidores com qualidade e continuidade asseguradas;
- Executar, por sua opção, as obras necessárias ao seu fornecimento, com a devida participação financeira do
concessionário;
- Rever o contrato de fornecimento (consumidores em alta tensão), após implantar medidas de conservação de
energia;
- Ter os equipamentos de medição vistoriados periodicamente pelo concessionário, segundo critérios
estabelecidos na legislação metrológica. O consumidor poderá exigir a qualquer tempo uma aferição dos
medidores;
- No caso de inexistência de medidores, o faturamento deverá ser feito com base nos valores mínimos
faturáveis;
- No caso de defeito no medidor, o período máximo de retroação para cobrança dos valores não medidos é de
1 (um) mês.
- Ser informado, quando da efetivação do pedido de fornecimento, as opções de faturamento que podem ser
exercidas pela unidade consumidora;
- As faturas devem conter, informações sobre a qualidade do fornecimento, além de ser possível incluir a
cobrança de outros serviços, desde que previamente autorizado pelo consumidor;
- Solicitar a entrega da fatura em outro local que não a unidade consumidora, devendo arcar com eventuais
custos adicionais;
- Disponibilização de 6 (seis) datas de vencimento da fatura, para a escolha do consumidor;
- Quando houver pagamento em duplicidade da fatura, o concessionário deverá fazer a devolução até o
próximo vencimento;
- A multa por atraso está limitada a 2% do valor total da fatura;
- No caso de suspensão de fornecimento indevida, o concessionário deverá providenciar a religação, sem
qualquer ônus, no prazo máximo de 4 (quatro) horas após o pedido;
- Deverá ser informado permanentemente sobre os cuidados especiais para a utilização da energia elétrica,
bem como ser cientificado de seus direitos e deveres;
- Esta assegurado o ressarcimento por danos ocasionados em virtude do fornecimento de energia elétrica.
- Ser avisado com 15 dias de antecedência, no caso de suspensão do fornecimento por falta de pagamento;
- Os consumidores que façam uso de equipamentos vitais à preservação da vida humana, que dependem de
eletricidade, deverão serem avisados sobre interrupções programadas, com antecedência mínima de 5 dias
úteis.
DEVERES
- Observar as normas técnicas dos órgãos oficiais, do concessionário, da ABNT; com especial atenção aos
aspectos de segurança;
- Instalar em local adequado e de fácil acesso, os dispositivos necessários para a colocação do medidor e
equipamentos de proteção;
- Manter sob sua guarda, na condição depositário fiel e gratuito, os equipamentos de medição do
concessionário;
- As instalações elétrica internas da unidade consumidora que estiverem em desacordo com as normas
deverão ser reformadas ou substituídas;
- Declarar toda a carga elétrica que será utilizada na unidade consumidora;
- Celebrar contrato de fornecimento ou de adesão com o concessionário;
- Informar ao concessionário a atividade que será desenvolvida na unidade consumidora;
- Fazer os pagamentos correspondentes aos serviços prestados pelo fornecimento da energia;
FONTE: ANEEL – Resolução n° 456/2000.
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2. ATRIBUIÇÕES E COMPETÊNCIAS DA AGÊNCIA NACIONAL DE ENERGIA
ELÉTRICA (ANEEL)
A Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL) foi criada pela Lei nº 9.427,
de 26/12/1996, tendo seu regulamento sido expedido pelo Decreto nº 2.335, de
06/10/1997. Sua criação inaugurou uma nova tendência de se inserir no Direto pátrio a
terminologia agência para determinadas categorias de autarquias sob regime
especial2. Essa terminologia advém do Direito Norte-americano, no qual todas as
autoridades públicas, excetuando-se os três poderes do Estado, constituem agências
(DI PIETRO, 2002).
As agências norte-americanas exercem funções quase-legislativas, conquanto
editam normas, e quase-judiciais, pois solucionam determinados conflitos de interesse,
ditando, para tanto, qual o direito aplicável. Atualmente este modelo vem sendo
limitado em seu país de origem, não obstante siga proliferando-se pelo mundo.
Face às características do Direito Brasileiro, as funções quase-legislativas e
quase-judiciais que desempenham as agências norte-americanas têm um alcance
bastante reduzido quando transplantadas para as agências que estão sendo criadas
pela reforma administrativa brasileira. Na verdade, o regime especial das agências que
estão surgindo na Administração Pública Indireta brasileira tem como particularidade
marcante apenas a nomeação dos seus dirigentes pelo Presidente da República, sob
aprovação do Senado Federal, que, quando efetivada, garante aos nomeados
mandato a prazo certo. Conforme ressalta Celso Antônio Bandeira de Mello, “os
demais traços que são apontados nas leis disciplinadoras de algumas das agências
reguladoras para caracterizar o regime especial nada lhes agregam de peculiar em
relação a quaisquer outras autarquias” (BANDEIRA DE MELLO, 2001, p. 132).
Mesmo assim, tal particularidade não é exclusiva dessas agências. Como
sustenta Maria Sylvia Zanella di Pietro, “(...) já existem, no direito brasileiro, muitas
entidades, especialmente autárquicas, com maior dose de independência em relação
ao Poder Executivo, tal como ocorre com as Universidades Públicas, a Ordem dos
Advogados do Brasil e outras entidades em que os dirigentes dispõem de mandato
fixo, não podendo ser livremente exonerados pelo Poder Executivo” (DI PIETRO,
2002, p. 400).
A apregoada função regulatória de certas agências tampouco é uma
característica exclusiva delas, dentro da nossa Administração Pública Indireta. Função
desta natureza é também exercida pelo Banco Central do Brasil, pelo Conselho
Monetário Nacional e pelo CADE, dentre outras entidades.
Na opinião de Maria Sylvia Zanella di Pietro, a maior novidade dentre as
agências criadas pela reforma administrativa está provavelmente “na instituição das
agências reguladoras que vêm assumindo o papel que o poder público desempenha
nas concessões e permissões de serviços públicos” (DI PIETRO, 2002, p. 400).
Após a ANEEL foram criadas a Agência Nacional de Telecomunicações – ANATEL (Lei nº
9.472/1997, regulamentada pelo Decreto nº 2.338/1997), a Agência Nacional do Petróleo – ANP (Lei nº
9.478/1997, regulamentada pelo Decreto nº 2.455/1998), a Agência Nacional de Vigilância Sanitária –
ANVISA (Lei nº 9.782/1999, regulamentada pelo Decreto nº 3.029/1999 e posteriormente modificada
pela Medida Provisória nº 2.134-25/2000), a Agência Nacional de Saúde – ANS (Lei nº 9.961/2000,
regulamentada pelo Decreto nº 3.327/2000), e a Agência Nacional das Águas – ANA (Lei nº 9.984/2000,
regulamentada pelo Decreto nº 3.692/2000).
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Tratemos, então, de examinar os moldes gerais das agências reguladoras, dentre as
quais se inclui a ANEEL.
2.1.
AS AGÊNCIAS REGULADORAS
José dos Santos Carvalho Filho define as agências reguladoras como
autarquias a quem foi atribuída “a função principal de controlar, em toda a sua
extensão, a prestação dos serviços públicos e o exercício de atividades econômicas,
bem como a própria atuação das pessoas privadas que passaram a executa-los,
inclusive impondo sua adequação aos fins colimados pelo governo e às estratégias
econômicas e administrativas que inspiraram o processo de desestatização”
(CARVALHO FILHO, 2001, p. 368). Mais sintéticos nesta definição são Celso Antônio
Bandeira de Mello, para quem as agências reguladoras “são autarquias sob regime
especial, ultimamente criadas com a finalidade de disciplinar e controlar certas
atividades” (BANDEIRA DE MELLO, 2001, p. 132), E Maria Sylvia Zanella di Pietro,
que as situa como “qualquer órgão da Administração Pública Direta ou entidade da
Administração Pública Indireta com função de regular a matéria específica que lhe
está afeta” (DI PIETRO, 2002, p. 402).
Quando entidade da Administração Pública Indireta, a agência encontra-se
adstrita ao princípio da especialidade, isto é, exerce e é especializada na matéria
específica que a lei lhe atribuiu. Embora já existam há muito tempo entidades com
função reguladora no direito brasileiro, somente a partir da recente reforma
administrativa é que se começou a utilizar o vocábulo agência (DI PIETRO, 2002).
Já o termo reguladora é aplicado para certas agências a fim de lhes fazer
referência à sua função de regular e fiscalizar os assuntos atinentes a suas
respectivas esferas de atuação (BANDEIRA DE MELLO, 2001). Nas palavras de
Calixto Salomão Filho, a regulação, em sentido amplo, “engloba toda forma de
organização da atividade econômica através do Estado, seja a intervenção através da
concessão de serviço público ou o exercício de poder de polícia” (apud DI PIETRO,
2002, p. 403).
O exercício do poder de polícia, que agências como a ANVISA e a ANS
exercem, é uma atividade que também é da alçada de entidades desde antes
existentes, a exemplo do Banco Central, do CADE, da Secretaria da Receita Federal e
do Conselho Monetário Nacional.
A regulação e controle das atividades que constituem objeto de concessão,
permissão ou autorização de serviço público, função maior da ANEEL e da ANATEL,
ao lado da concessão para exploração de bem público, que é a função da ANP, é que
parece ser a principal novidade no direito brasileiro com a introdução das agências
reguladoras.
Uma vez que as agências reguladoras vêem substituindo a Administração
Pública Direta no tocante à execução dos poderes especiais atinentes ao poder
concedente, cabe agora a elas fixar e alterar unilateralmente cláusulas regulamentares
dos contratos de concessão, que são aquelas que visam a garantir que o serviço seja
prestado pela forma mais adequada ao interesse público, bem como se valer de outros
poderes especiais, como os de encampação, intervenção, uso compulsório de
recursos humanos e materiais da empresa concessionária, poder de direção e controle
sobre a execução do serviço, poder sancionatório, poder de decretar a caducidade e
de fazer a reversão de bens da concessionária ao término da concessão.
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Por outro lado, as cláusulas contratuais, que são aquelas que visam a garantir
o direito da concessionária ao equilíbrio econômico-financeiro, continuam não
podendo sofrer modificações unilaterais.
No que diz respeito às atribuições das agências reguladoras na concessão,
permissão ou autorização de serviço público, resumem-se elas às funções que o
poder concedente exerce em tais tipos de contrato, assim enumeradas por Maria
Sylvia Zanella di Pietro (DI PIETRO, 2002, p. 406):
 Regulamentar os serviços que constituem objeto da delegação;
 Realizar o procedimento licitatório para a escolha do concessionário,
permissionário ou autorizatário;
 Celebrar o contrato de concessão ou permissão ou praticar ato
unilateral de outorga da autorização;
 Definir o valor da tarifa e da sua revisão ou reajuste (grifo nosso);
 Controlar a execução dos serviços;
 Aplicar sanções;
 Encampar;
 Decretar a caducidade;
 Fazer a reversão dos bens ao término da concessão;
 Exercer o papel de ouvidor das denúncias e reclamações dos usuários.
2.2.
A ANEEL
Conforme já foi dito, a Agência Nacional de Energia Elétrica foi criada pela Lei
n° 9.427, de 26/12/1996, tendo seu regulamento sendo expedido pelo Decreto n°
2.335, de 06/10/1997. Havendo suas atribuições sido delegadas diretamente por meio
de sua lei instituidora, pois não tem previsão constitucional3, a função normativa da
ANEEL se limita à edição de normas que objetivem regular a sua própria atividade ou
esclarecer conceitos jurídicos presentes em lei, sem inovar na ordem jurídica.
A Lei da ANEEL define, no caput do seu artigo 2°, a finalidade da agência
como sendo “regular fiscalizar a produção, transmissão, distribuição e
comercialização de energia elétrica, em conformidade com as políticas e diretrizes do
governo federal”. As atribuições da ANEEL são as mesmas comuns a todas as
agências reguladoras, tal como enumerado no último parágrafo da seção anterior
deste capítulo, decorrendo do disposto nos artigos 29 e 30 da Lei n° 8.987/1995 (Lei
de Concessões).
Quanto à competência específica da ANEEL, sua previsão está no artigo 3° da
lei instituidora da agência. São as seguintes as incumbências especialmente
conferidas à ANEEL, elencadas no artigo 3° da Lei n° 9.427/1996:
I.
Implementar as políticas e diretrizes do governo federal para a
exploração da energia elétrica e o aproveitamento dos potenciais
hidráulicos, expedindo os atos regulamentares necessários ao cumprimento
das normas estabelecidas pela Lei n° 9.074, de 7/07/1995;
II.
Promover as licitações destinadas à contratação de concessionárias
de serviço público para produção, transmissão e distribuição de energia
elétrica e para a outorga de concessão para o aproveitamento de potenciais
hidráulicos;
3
Dispõem de previsão constitucional apenas duas agências: a ANATEL e a ANP.
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III.
Definir o aproveitamento ótimo de que tratam os §§ 2° e 3° do artigo
5° da Lei n° 9.074/1995;
IV.
Celebrar e gerir os contratos de concessão ou permissão de serviços
públicos de energia elétrica, de concessão de uso de bem público, expedir
as autorizações, bem como fiscalizar, diretamente ou mediante convênios
com órgãos estaduais, as concessões e a prestação dos serviços de
energia elétrica;
V.
Dirimir, no âmbito administrativo, as divergências entre
concessionárias, permissionárias, autorizadas, produtores independentes e
autoprodutores, bem como entre esses agentes e seus consumidores;
VI.
Fixar os critérios para cálculo do preço e transporte de que trata o §
6° do artigo 15 da Lei n° 9.074/1995, e arbitrar seus valores nos casos de
negociação frustrada entre os agentes envolvidos;
VII. Articular com o órgão regulador do setor de combustíveis fósseis e
gás natural os critérios para fixação dos preços de transporte desses
combustíveis, quando destinados à geração de energia elétrica, e para
arbitramento de seus valores, nos casos de negociação frustrada entre os
agentes envolvidos.
Muitos dos incisos acima citados são, na verdade, repetição de outros
constantes dos artigos 29 e 30 da Lei de Concessões.
2.2.1. A DETERMINAÇÃO DAS TARIFAS PELA ANEEL
Na seção 1 foi dito que a atual sistemática tarifária dos contratos de concessão
de distribuição de energia elétrica estabelece a determinação de uma tarifa inicial
voltada a remunerar as concessionárias e amortizar seus investimentos. A partir de
então, correções tarifárias de dois tipos, reajustes e revisões, acontecem
periodicamente, com o intuito de manter o equilíbrio econômico-financeiro do contrato
através de uma fórmula que, em tese, incentivaria as distribuidoras a aumentar sua
produtividade, ao mesmo tempo em que permitiria, a médio e longo prazo, uma
evolução das tarifas reais benéfica ao consumidor (ver seção 1.2.4.).
A ANEEL, sendo o órgão regulador do setor, é o responsável pela
implementação dessa sistemática. Tanto as tarifas iniciais de energia elétrica quanto
as suas correições devem ser homologadas por esta agência. No período dos
reajustes anuais, cada concessionária encaminha à ANEEL um documento no qual
solicita, com as devidas justificativas técnicas e com base na fórmula presente no
contrato de concessão, o percentual de reajuste que acredita ser cabível. A agência
então analisa esse documento e refaz as contas, definindo o percentual de reajuste
que irá incidir de fato.
Os reajustes são, em regra, anuais, podendo, contudo, ocorrer em prazos
inferiores mediante permissão legal. Na hipótese disto acontecer, uma nova
periodicidade é estipulada. Já as revisões são periódicas, podendo, todavia, haver
alguma revisão extraordinária quando algum acontecimento altere significativamente o
equilíbrio econômico-financeiro do contrato. Neste sentido propugna a própria ANEEL,
em seu endereço eletrônico, conforme pode ser constatado da leitura do trecho
transcrito a seguir:
“Os reajustes pretendem oferecer à concessionária a perspectiva de que,
no período entre revisões, o equilíbrio econômico-financeiro de sua
concessão não sofrerá a corrosão do processo inflacionário, sendo-lhe
permitida a apropriação de parte dos ganhos de eficiência econômica que
vier a alcançar no período. As revisões são feitas ordinariamente a cada
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cinco anos (revisões periódicas) e têm por objetivo restabelecer o equilíbrio
econômico-financeiro da concessão. As revisões extraordinárias podem ser
solicitadas nos períodos de reajuste, sempre que algum evento provoque
significativo desequilíbrio econômico-financeiro da concessão.”
(Extraído
de
www.aneel.gov.br
em
05/06/2002).
A primeira revisão tarifária periódica, segundo Sauer et alli, foi a da ESCELSA,
em 1998. Naquela oportunidade foi testada pela primeira vez a sistemática da
regulação pelo teto incentivado, a qual, conforme já visto, visa a “viabilizar o
incremento da produtividade das empresas, induzindo a eficiência na gestão dos
recursos humanos, tecnologia e contratos, permitindo, após um prazo suficiente de
apropriação exclusiva pela empresa – o incentivo – que os ganhos sejam repartidos
com os consumidores” (SAUER ET ALLI, 2001, p. 24). O caso da ESCELSA mostrou
que o incremento de produtividade foi muito pequeno diante do conjunto de correções
tarifárias normais e extraordinárias concedidas no mesmo período. Além disso, a
ANEEL, mesmo assessorada por consultores internacionais, não conseguiu avaliar
precisamente a produtividade da empresa (SAUER ET ALLI, 2001). As
concessionárias, em geral multinacionais poderosas, acabam tendo um poder de
pressão bastante alto sobre a agência reguladora, que por sua vez depende das
informações prestadas pelas concessionárias para definir as tarifas. Os consumidores,
sem a mesma organização das concessionárias e conseqüentemente sem a mesma
força, não conseguem defender a contento seus interesses nesse embate.
A sistemática tarifária adotada para o setor elétrico brasileiro, portanto,
encontra obstáculos de difícil superação para atingir sua finalidade inteiramente. A
dificuldade de medir com alguma precisão os ganhos de produtividade das empresas
é agravada pela presença de “assimetria de informações entre empresa e regulador,
acentuada pela parca participação e controle por parte da sociedade e, pelos riscos de
captura do regulador pela empresa” (SAUER ET ALLI, 2001, p. 24).
2.2.2. O PROGRAMA EMERGENCIAL DE REDUÇÃO DO CONSUMO DE
ENERGIA ELÉTRICA E A ANEEL
O Programa Emergencial de Redução do Consumo de Energia Elétrica, que
instituiu o racionamento compulsório do consumo de eletricidade, anunciado em maio
de 2001 e implantado no segundo semestre do mesmo ano, vigorando até março de
2002, não foi decorrência de ato da ANEEL. A implantação do racionamento foi de
responsabilidade do próprio Poder Executivo, que o fez por intermédio de Medida
Provisória, através da qual criou também a Câmara de Gestão da Crise Energética
(GCE), cuja atribuição primária é “implementar medidas de natureza emergencial para
compatibilizar a demanda e a oferta de energia elétrica, de forma a evitar interrupções
intempestivas ou imprevistas de eletricidade” (MARTINI, ob. cit., p. 1).
O aumento de tarifas que decorreu desse programa, cuja autorização coube à
ANEEL, foi justificado como uma revisão extraordinária face à ocorrência de evento
capaz de alterar substancialmente o equilíbrio econômico-financeiro dos contratos de
concessão de distribuição de energia elétrica. A sustentabilidade jurídica desse
argumento será analisada no próximo capítulo.
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3. A AUTORIZAÇÃO DO AUMENTO DAS TARIFAS FACE AO ADVENTO DO
RACIONAMENTO OBRIGATÓRIO
Desde que foi instituído, o racionamento obrigatório suscitou questionamentos
em todo o País acerca de sua legalidade. O Supremo Tribunal Federal (STF), no
entanto, julgando uma ação declaratória de constitucionalidade interposta pelo
Governo Federal, declarou que o racionamento de eletricidade estabelecido pelo
referido Programa não fere a ordem constitucional pátria.
Na visão de Arnoldo Wald, essa decisão da Suprema Corte foi acertada, face à
crise energética estabelecida, possibilitando a conclusão de importantes acordos entre
o Governo e as geradoras e distribuidoras de eletricidade, o que teria representado, a
seu ver, um importante passo para a sedimentação do direito das concessões do
serviço público. Para Wald, o Poder Público e as concessionárias encontraram
soluções que permitiram a recomposição patrimonial às empresas, sem prejuízo aos
direitos adquiridos.
Deste posicionamento não se mostra de acordo Paulo Martini, juiz de Direito no
Mato Grosso, para quem o racionamento de energia imposto seria completamente
ilegal, pois a distribuição de energia elétrica é considerado por Lei serviço essencial e,
por isso, sua prestação deve ser contínua. Além disso, “tratando-se de serviços
prestados sob o regime de remuneração tarifária ou tributária, inocorrendo mora ou
inadimplemento, não há como lhe negar, principalmente a título coercitivo e punitivo, o
seu desfrute” (MARTINI, ob. cit., p. 4). Para Martini, não pode o Governo alegar a
ocorrência de fato imprevisível como justificativa para a adoção das medidas
concernentes ao racionamento, posto que “é público e notório que o Governo foi várias
vezes alertado pelos órgãos competentes, no sentido de que, ao final da década de
90, se não fossem feitos investimentos na área energética, o País sofreria déficit de
energia. Inclusive o próprio Presidente, quando ainda candidato, manifestou-se neste
sentido” (MARTINI, ob. cit., p. 10). Arnoldo Wald, por outro lado, ressalta que a
responsabilidade pela crise que culminou no racionamento não pode ser atribuída às
empresas concessionárias.
Se, de fato, as empresas concessionárias não podem ser responsabilizadas
pelas circunstâncias que ensejaram o advento do racionamento de energia elétrica,
far-se-ia jus a alteração de seus contratos no caso de estes haverem sido atingidos
em seu equilíbrio econômico-financeiro. Segundo Maria Sylvia Zanella di Pietro, a
manutenção do equilíbrio econômico-financeiro dos contratos administrativos é de
fundamental importância à observância dos princípios da eqüidade, da razoabilidade,
da continuidade do contrato administrativo e da indisponibilidade do interesse público.
Para Di Pietro, “na realidade, tem-se que conciliar duas idéias: de um lado, a de que,
para o concessionário, a concessão constitui um empreendimento que visa ao lucro,
mas que envolve riscos; de outro, a de que, para a Administração, o objeto do contrato
é um serviço público e, portanto, uma atividade que atende a necessidades da
coletividade e, por isso mesmo, não pode parar” (DI PIETRO, 1999, p. 93). Assim, a
ocorrência de áleas ordinárias seria um risco ao qual o concessionário estaria sujeito
sem o direito de recomposição do equilíbrio econômico financeiro, mas o advento de
áleas extraordinárias, por serem estas imprevisíveis e não imputáveis ao
concessionário, enseja a revisão das cláusulas financeiras para a recomposição do
equilíbrio que desapareceu.
Os eventos extraordinários, que correspondem a um risco imprevisível,
inevitável e não imputável ao contratado, podem ser de natureza econômica (quando
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dão margem à teoria da imprevisão) ou administrativa (quando decorrem de alteração
unilateral do contrato, da teoria do fato do príncipe ou da teoria do fato da
administração). No caso do aumento das tarifas de energia elétrica em razão do
racionamento obrigatório, o motivo do desequilíbrio econômico-financeiro
evidentemente não foi alteração unilateral do contrato. Como salienta Sauer et alli, “a
falta de energia não pode ser interpretada como alteração unilateral, pois mesmo
admitindo que o Governo falhou em sua política adotada para o setor, trouxe como
resultado alterações ao contrato, ou perdas de faturamento, que não devem ser
entendidas como unilaterais, ou seja, receberam contribuição de todas as partes:
Poder Concedente, operador, administrador do mercado atacadista, geradoras e
distribuidoras” (SAUER ET ALLI, 2001, p. 49). Resta analisar se tal motivo teria
fundamento na teoria do fato do príncipe, na teoria do fato da administração ou na
teoria da imprevisão, o que será feito a seguir.
3.1.
FUNDAMENTO NA TEORIA DO FATO DO PRÍNCIPE?
A teoria do fato do príncipe, nas palavras de Celso Antônio Bandeira de Mello,
se aplica “nos casos em que o Poder Público, no uso de prerrogativas alheias à sua
qualidade de contratante, adota medidas que desbalanceiam o equilíbrio contratual
originalmente estipulado” (BANDEIRA DE MELLO, 2001, p. 578). No mesmo sentido
Leon Frejda Szklarowsky conceitua o fato do príncipe, que seria “ato geral do Poder
Público, que reflexamente produz o desequilíbrio econômico do contrato ou obsta sua
execução” (SZKLAROWSKY, ob. cit., p. 4), bem como Di Pietro, para quem o fato do
príncipe abrangeria “medidas de ordem geral, não relacionadas diretamente com o
contrato, mas que nele repercutem, provocando desequilíbrio econômico-financeiro
em detrimento do contratado” (DI PIETRO, 1999, p. 95). Já segundo Hely Lopes
Meirelles, “o que caracteriza o fato do príncipe é a generalidade e a coercitividade da
medida prejudicial ao contrato, além de sua surpresa e imprevisibilidade, com agravo
efetivo ao contratado” (MEIRELLES, ob. cit., p. 224). Dessa forma, se o referido
aumento nas tarifas do setor elétrico for conseqüência de um desequilíbrio contratual
originado de um evento que se adeqüe à teoria do fato do príncipe, então o
racionamento compulsório foi uma medida de ordem geral do Poder Público, coercitiva
e imprevisível, alheia ao contrato de concessão firmado com as distribuidoras de
energia elétrica, que causou uma situação contratual desfavorável e injusta às
concessionárias.
Ora, as circunstâncias que ensejaram a instituição do racionamento
compulsório eram bastante previsíveis. Segundo Sauer et alli, “é de conhecimento
geral dos técnicos do setor que o sistema elétrico historicamente trabalhou
considerando a possibilidade de déficit em até 5%. (...) pelo menos desde 1999 o
risco que estava sendo incorrido era muito maior do que os 5% admissíveis”
(SAUER ET ALLI, 2001, p. 38/39). Além disso, não se tratou de uma medida
totalmente alheia ao contrato de concessão firmado com as concessionárias, pois a
necessidade de racionamento de energia elétrica foi conseqüência também da inércia
das distribuidoras, que, mesmo cientes do risco de uma sub-oferta, não se
movimentaram no sentido de expandir a geração. Conforme visto no Capítulo 1,
colaborar para o aumento da geração de energia estava ao alcance das distribuidoras,
uma vez que o artigo 7° da Resolução ANEEL n° 278, de 19/07/2000, prevê uma
margem de geração própria dessas empresas equivalente a até 30% da energia por
elas comercializada, o que não vem acontecendo (ver seção 1.2.2.).
Assim sendo, ainda que tendo sido uma medida geral de caráter coercitivo do
Poder Público, o racionamento decretado em 2001, a nosso ver, não se constitui em
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um fato do príncipe, haja visto que era mais do que previsível a necessidade de
implantá-lo.
3.2.
FUNDAMENTO NA TEORIA DA IMPREVISÃO?
A teoria da imprevisão apregoa a revisão contratual sempre que haja “a
ocorrência de acontecimentos novos, imprevisíveis pelas partes e a elas nãoimputáveis, refletindo sobre a economia ou na execução do contrato, (...), para ajustálo às circunstâncias supervenientes” (GAGLIANO, ob. cit., p. 4). Orlando Gomes
ressalta que o fundamento da revisão contratual regida pela teoria da imprevisão
reside, para alguns autores, no desaparecimento da vontade contratual em razão da
alteração do estado de fato, enquanto que, para outros, está na falta parcial de causa
do contrato, em seu aspecto funcional, existindo ainda corrente que encontra esse
fundamento na teoria do abuso do direito, além de outras que o vêem na eqüidade, na
boa-fé, e em outras idéias gerais.
De qualquer forma, para que uma situação se configure como uma aplicação
da teoria da imprevisão, é necessária presença de quatro requisitos básicos,
enumerados por Arnaldo Medeiros da Fonseca: a) o diferimento ou a sucessividade na
execução do contrato; b) alteração nas condições circunstanciais objetivas em relação
ao momento da celebração do contrato; c) excessiva onerosidade para uma das
partes, sem compensação por outras vantagens auferidas anteriormente; d)
imprevisibilidade da circunstância superveniente. Nélson Zunino Neto, advogado em
Santa Catarina, e Pablo Stolze Gagliano, juiz de direito na Bahia, utilizam,
respectivamente, os termos previsibilidade razoável e previsibilidade natural inserta na
álea de todo contrato para se referir às circunstâncias que ensejam a manutenção da
pacta sunt servanda; quando a onerosidade excessiva decorre de fato cuja ocorrência
tenha transposto tais limites de previsibilidade, se faz jus a aplicação da teoria da
imprevisão. Portanto, se o racionamento decretado em 2001 foi um evento
imprevisível ou imprevisto, alheio ao comportamento das partes signatárias dos
contratos de concessão de distribuição de energia elétrica, causando às
concessionárias prejuízo ao seu direito ao equilíbrio econômico-financeiro, então a
autorização do aumento das tarifas é legitimada pela teoria da imprevisão.
Analisando os quatro requisitos básicos à aplicação da teoria da imprevisão,
constata-se que falta ao nosso caso a presença do último, o da imprevisibilidade da
circunstância superveniente, além de ser duvidosa a presença do terceiro desses
requisitos, o da excessiva onerosidade para uma das partes, sem compensação por
outras vantagens auferidas anteriormente.
É questionável a onerosidade excessiva que as distribuidoras alegam ter
sofrido em função do racionamento como justificativa para a autorização de um
aumento extraordinário das tarifas do setor elétrico. De acordo com Sauer et alli (ver
seção 3.4.), essas empresas reduziram bastante seus custos operacionais desde a
assinatura de seus contratos de concessão, demitindo pessoal. Ao mesmo tempo,
teriam lucrado muito com os reajustes anuais anteriores, sempre superiores aos
índices de inflação (SAUER ET ALLI, 2001).
Conforme visto na seção anterior, a imprevisibilidade é descartada pelo fato
público e notório, especialmente entre os técnicos do setor, de que o sistema elétrico
vinha já há anos funcionando com um déficit de abastecimento muito superior aos 5%
tradicionalmente adotados como margem de segurança.
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Ainda que se trate a concessão de distribuição de energia elétrica de um
contrato de execução sucessiva e mesmo que as condições conjunturais observadas
no momento de sua celebração tenham sido modificadas face ao racionamento, falta o
requisito fundamental da imprevisibilidade para que o aumento em questão das tarifas
seja justificado pela teoria da imprevisão, além de ser questionável o argumento de
que as concessionárias sofreram uma onerosidade excessiva sem compensação por
outras vantagens auferidas anteriormente.
3.3.
FUNDAMENTO NA TEORIA DO FATO DA ADMINISTRAÇÃO?
Fato da Administração é todo ato praticado por autoridade pública que
repercute sobre o contrato, podendo provocar um desequilíbrio econômico-financeiro
que confere ao contratado o direito à sua recomposição. De acordo com Di Pietro, o
fato da Administração difere do fato do príncipe porque, ao contrário deste, não guarda
relação direta alguma com o contrato. Hely Lopes Meirelles equipara o fato da
Administração à força maior, mas, na visão de Di Pietro, os dois não se confundem,
visto que, embora em ambos haja a ocorrência de um fato atual (posterior à
celebração do contrato), imprevisível e inevitável, “na força maior esse fato é
estranho à vontade das partes e, no fato da Administração, é imputável a esta” (DI
PIETRO, 1999, p. 96). Assim, se o racionamento foi um ato de autoridade pública sem
relação direta alguma com a distribuição de energia elétrica objeto do contrato de
concessão, repercutindo nele apenas reflexamente, então o aumento das tarifas
autorizado em dezembro de 2001 se apresenta como uma compensação a um
prejuízo causado por um fato da administração.
Entretanto, do nosso ponto de vista, não se pode falar em imprevisibilidade
nem em inevitabilidade das circunstâncias que obrigaram o Poder Público a instituir o
racionamento obrigatório naquele ano. Por conseguinte, a teoria do fato da
administração não é instrumento consistente para justificar o aumento das tarifas de
energia elétrica autorizado em razão dos eventuais prejuízos causados às
concessionárias distribuidoras pelo referido racionamento.
A inconsistência do argumento da imprevisibilidade já foi fartamente exposta
nas seções anteriores. O argumento da inevitabilidade, por sua vez, é derrubado com
a constatação, a partir da leitura do artigo 7° da Resolução ANEEL n° 278, de
19/07/2000 (ver seção 1.2.2.), de que as distribuidoras, a quem o aumento das tarifas
favorece de imediato, poderiam ter contribuído para o aumento da oferta de energia
elétrica por intermédio de investimentos em geração própria. Vale ressaltar, ainda, que
“mesmo a viabilização das obras de expansão da oferta, a serem feitas por empresas
Geradoras, cabe às Distribuidoras, na medida em que devem atender ao crescimento
de seus mercados, contratando (adquirindo) energia junto às geradoras, através de
contratos de longo prazo. Nenhum empreendedor irá, naturalmente, construir novas
obras se não obtiver a garantia de colocação/venda da energia a ser produzida, posto
que os investimentos iniciais são muito elevados” (SAUER ET ALLI, 2001, p. 41).
Vê-se, portanto, que além de não ter expandido sua geração própria de energia
elétrica, as distribuidoras tampouco criaram as condições contratuais necessárias à
expansão da oferta das geradoras, mesmo sabendo que o sistema já estava há muito
funcionando muito acima de sua capacidade. Neste sentido, falhou também o Poder
Público, na figura da agência reguladora do setor, que, apesar dos sucessivos avisos
técnicos quanto aos riscos de um desabastecimento, não tratou de exigir das
concessionárias, tanto de geração quanto de distribuição, as medidas cabíveis para se
evitar o problema que já era previsto.
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3.4.
HOUVE DESEQUILÍBRIO ECONÔMICO-FINANCEIRO DOS CONTRATOS?
Conforme visto, o aumento das tarifas autorizado em razão do racionamento
vigente a partir de junho de 2001 não se justifica nem pela teoria do fato do príncipe,
nem pela teoria da imprevisão, nem pela teoria do fato da administração. Tampouco
tratou-se de uma necessidade por motivos de força maior.
Resta saber se houve um significativo desequilíbrio econômico-financeiro da
concessão que justifique a solicitação à ANEEL, por parte das concessionárias, de
uma revisão extraordinária das tarifas, o que é previsto pelos contratos. Tal previsão
não atrela as eventuais revisões extraordinárias à inexistência de culpabilidade por
parte das concessionárias pela ocorrência das circunstâncias que ensejaram o
prejuízo. Apenas exigem o acontecimento de um evento que afete o direito dessas
empresas ao equilíbrio econômico-financeiro, como em todo contrato administrativo.
Em tese, portanto, mesmo tendo permanecido inertes quando poderiam ter evitado a
falta de energia elétrica que levou ao racionamento, as concessionárias teriam direito
à revisão extraordinária das tarifas se comprovado que houve prejuízo ao equilíbrio
econômico-financeiro do contrato de concessão.
Este entendimento é reforçado pela redação do dispositivo contratual, presente
em todos os contratos já celebrados, que prevê as revisões extraordinárias das tarifas.
No contrato celebrado com a Manaus Energia S.A., por exemplo, este dispositivo está
presente na subcláusula décima da cláusula sétima do contrato de concessão,
transcrita abaixo:
“A ANEEL poderá, a qualquer tempo, proceder à revisão das tarifas,
visando a manter o equilíbrio econômico-financeiro deste Contrato, sem
prejuízo dos reajustes e revisões a que se referem as Subcláusulas
anteriores desta Cláusula, caso haja alterações significativas nos custos da
CONCESSIONÁRIA, incluindo as modificações de tarifas de compra de
energia elétrica e encargos de uso das instalações de transmissão e
distribuição de energia elétrica que possam ser aprovadas pela ANEEL
durante o período, por solicitação desta, devidamente comprovada”.
(Subcláusula Décima da Cláusula Sétima do Contrato de Concessão n°
20/2001 – ANEEL).
Mesmo que tal dispositivo não estivesse presente nos contratos de concessão
de distribuição de energia elétrica a manutenção do equilíbrio econômico-financeiro
seria garantida às concessionárias. Afinal, tal equilíbrio “constitui-se em direito do
concessionário e esta idéia está tão arraigada na doutrina e na jurisprudência, que tal
direito seria reconhecido ainda que não previsto em lei ou contrato. Isto porque a
teoria do equilíbrio econômico baseia-se em princípios maiores, que independem de
previsão no direito positivo” (DI PIETRO, 1999, p. 93). Os princípios que asseguram a
proteção do concessionário contra eventuais alterações desfavoráveis no equilíbrio
econômico-financeiro de seu contrato firmado com a Administração Pública são o
princípio da eqüidade, que obsta o locupletamento ilícito de uma parte em detrimento
da outra, o princípio da razoabilidade, que exige proporção entre o custo e o
benefício, o princípio da continuidade do contrato administrativo, para o qual é
imprescindível a manutenção do equilíbrio econômico-financeiro, e o princípio da
indisponibilidade do interesse público, tendo em vista que uma eventual quebra da
continuidade do contrato em razão de desequilíbrio econômico-financeiro vai de
encontro ao interesse público (DI PIETRO, 1999).
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Entrementes, as evidências apontam que no período anterior ao racionamento
as concessionárias aumentaram bastante sua lucratividade em virtude de dois fatores
principais:
 Redução de seus custos operacionais: de acordo com Sauer et alli,
“os custos das concessionárias, mormente as de Distribuição de
eletricidade (...), foram substancialmente reduzidos no período, bastando
referir a redução média de 50% do quadro de pessoal. Os demais
dispêndios operacionais comportaram-se, na maior parte, de maneira
proporcional aos custos de pessoal” (SAUER ET ALLI, 2001, p. 44);
 Aumento de suas receitas acima da inflação: é o que pode ser
verificado a partir da simulação feita no QUADRO IV abaixo, com base em
informações tornadas disponíveis pela ANEEL.
QUADRO IV
- Setor Elétrico Brasileiro: Simulação do Aumento
das Receitas das Concessionárias Acima da Inflação Classe de
Consumo
Tarifa Média (R$/MWh) 1
1995
Residencial
Industrial
Comercial
Rural/Outros
TOTAL
FONTE: (1) ANEEL,
2001.
2001
Consumo
Variação
Ano 2000
(%)
(GWh) 2
76,26
176,53 131,5%
83.493
43,59
80,28
84,2%
131.182
85,44
152,27
78,2%
47.437
55,19
94,97
72,1%
43.491
59,58
120,57 102,4%
305.603
ano 2001 até setembro; (2) ELETROBRÁS.
Tarifa de
Aumento
1995
das
Corrigida
Receitas
pelo IPC-FIPE (R$ Bi/ano)
112,28
5,365
64,18
2,112
125,79
1,258
81,26
0,596
87,72
9,329
Apud SAUER ET ALLI,
Os números da última coluna do QUADRO IV mostram que os dados
publicados pela ANEEL referentes à evolução das tarifas do setor elétrico entre 1995 e
2001 permitem uma estimativa aumento considerável das receitas das
concessionárias no período. Assim sendo, nosso ponto de vista é o de que nem
sequer houve o tão argüido desequilíbrio econômico-financeiro dos contratos de
concessão de distribuição de energia elétrica. Por conseguinte, não há porque se
falar em revisão tarifária extraordinária em decorrência do racionamento compulsório
vivido pelos brasileiros em 2001 e 2002.
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CONCLUSÃO
O racionamento compulsório de energia elétrica decretado em junho de 2001 e
vigente até março de 2002 trouxe transtornos a todos os setores da economia
brasileira. Embora a crise do sistema energético do País advenha de muito antes,
tendo sido agravada pelo menos desde 1999, quando o déficit de produção de energia
elétrica suplantou a margem de segurança de 5%, nada foi feito para evitá-la pelos
principais agentes econômicos atuantes no setor: Poder Concedente, operador,
administrador do mercado atacadista, geradoras e distribuidoras.
Quando a bomba-relógio da escassez de energia elétrica explodiu na
necessidade imperiosa e inadiável de se instituir um racionamento obrigatório de
proporções nacionais, as concessionárias responsáveis pela distribuição desse bem
essencial se prontificaram a solicitar à ANEEL uma revisão extraordinária das tarifas
cobradas aos consumidores de seus serviços.
Todavia, ficou demonstrado neste trabalho que não há fundamento jurídico
algum que seja consistente o suficiente para justificar um aumento tarifário em
decorrência do advento do Programa Emergencial de Redução do Consumo de
Energia Elétrica, nome oficial do mencionado racionamento imposto à coletividade.
Isto porque tal racionamento não se configurou nem como imprevisível, nem como
inevitável, haja visto que o risco de sua ocorrência tem sido alardeado desde muito
antes e que as providências para a expansão da geração de energia elétrica cabia
tanto ao Poder Público quanto às concessionárias geradoras e distribuidoras. Além
disso, há fortes indícios de que a alegada quebra do equilíbrio econômico-financeiro
do contrato não aconteceu, pois os reajustes das tarifas perpetrados entre 1995 e
2001 estiveram acima da inflação do mesmo período, fato que, aliado à redução dos
custos operacionais das concessionárias, permitiu um ganho dessas empresas antes
da instituição do Programa Emergencial de Redução do Consumo de Energia Elétrica
que decerto compensa a eventual onerosidade sofrida ao longo de sua duração de
dez meses.
Lamentavelmente, o poderio econômico por vezes consegue propiciar
interpretações jurídicas absurdas para defender seus interesses. Enquanto isso, o
consumidor de energia elétrica, certamente a parte mais prejudicada com o
racionamento e o conseqüente aumento das tarifas, é quem arca com mais este ônus
decorrente da inércia do Poder Público e da pressão de grandes grupos econômicos.
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