PSICOLOGIA COMPORTAMENTAL E TURISMO

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Encontro
Revista de Psicologia
Vol. XI, Nº. 16, Ano 2007
PSICOLOGIA COMPORTAMENTAL E
TURISMO: CONSIDERAÇÕES SOBRE A
HOSPITALIDADE1
CONTRIBUTIONS OF THE BEHAVIORAL
PSYCHOLOGY TO TOURISM: CONSIDERATIONS
ABOUT HOSPITALITY
Katia Damiani
Universidade de São Paulo
[email protected]
RESUMO
O presente artigo teve como objetivo apontar algumas direções nas
quais a psicologia comportamental poderá contribuir para o turismo, em especial sobre a questão da hospitalidade. Para introduzir o turismólogo a essa abordagem psicológica, inicialmente, as
premissas básicas da análise behaviorista radical foram apresentadas sob a luz do modelo de seleção por conseqüência. Em especial,
focou-se a questão da hospitalidade em dois níveis de análise: operante e cultural, para explicar a variabilidade das práticas entre
diferentes grupos e introduzir perspectivas de manejo a partir dessas análises. Finalmente, teceram-se algumas considerações finais
sobre a ética na programação de contingências.
Palavras-Chave: Behaviorismo radical, seleção por conseqüências, turismo, hospitalidade.
ABSTRACT
The article aimed to point out some contributions of the behavioral
psychology to a tourism project, focusing on hospitality issue. In
order to introduce the central principles of this psychological domain, the principles of radical behaviorism were discussed taking
into account the selection-by-consequence model. Then, the variable hospitality patterns of behavior observed across different
human groups were discussed according to natural and planned
operant and cultural contingencies. Finally, some ethical considerations about planning contingencies were discussed.
Anhanguera Educacional S.A.
Correspondência/Contato
Alameda Maria Tereza, 2000
Valinhos, São Paulo
CEP. 13.278-181
[email protected]
Coordenação
Instituto de Pesquisas Aplicadas e
Desenvolvimento Educacional - IPADE
Artigo Original
Recebido em: 11/06/2007
Avaliado em: 18/06/2007
Keywords: Radical behaviorism, selection by consequences, tourism,
hospitality.
1
O interesse pelo tema decorreu da participação da autora no debate sobre
Hospitalidade Urbana ocorrido na abertura da 8ª Semana do Turismo da
UNISAL, Americana (SP), em outubro de 2007. A autora agradece a leitura crítica e as sugestões realizadas pela Profa. Maria Amélia Moscom
(UNISAL – Curso de Turismo e Gerente Técnica do Circuito de Ciência e
Tecnologia, CT2, Campinas, SP) e ao Prof. Dr. Luis Antonio Groppo
(UNISAL - Educação Sócio Comunitária).
Publicação: 27 de outubro de 2008
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Psicologia comportamental e turismo: Considerações sobre a hospitalidade
1.
CONTRIBUIÇÕES DA PSICOLOGIA COMPORTAMENTAL AO TURISMO: CONSIDERAÇÕES SOBRE A HOSPITALIDADE
A atividade do turismo encontra-se dentro do ramo de prestação de serviços e como tal
visa impacto nas interações humanas. Especificamente, meu interesse é construir algumas considerações sobre a hospitalidade e como a abordagem behaviorista radical
pode contribuir para a compreensão e desenvolvimento dessa prática. Para a construção dessas considerações, o artigo foi planejado em três partes. A primeira teve como
objetivo apresentar o behaviorismo radical: situá-lo na psicologia e na ciência geral e
apresentar seus conceitos básicos. A segunda teve como objetivo apresentar uma interpretação behaviorista radical da hospitalidade e as possibilidades descritivas, explicativas e instrumentais oferecidas por essa abordagem. Na terceira, foram apresentadas
algumas considerações sobre a ética do controle e planejamento de contingências.
2.
BEHAVIORISMO RADICAL E O MODELO DE SELEÇÃO PELAS CONSEQÜÊNCIAS
A psicologia é uma área de estudo caracterizada pela variedade de teorias e de objetos
de estudo. Figueiredo e Santi (1998) categorizaram as teorias psicológicas em três
grandes vertentes: humanistas, psicanalíticas e behavioristas. Muitos não-especialistas
não hesitariam em responder que a mente é o objeto de estudo da psicologia. De fato,
esse é o objeto de estudo da psicanálise. Não obstante a mente ser um construto teórico, isto é, sem correspondência física com qualquer estrutura biológica, o emprego desse instrumento conceitual revelou-se útil para a assistência e intervenção na vida humana, individual e coletiva. A natureza da mente, entretanto, não permite sua avaliação científica pelo fato de não ser refutável (Popper, 1935/2000) e a falta de correspondência entre o conceito e as estruturas biológicas restringiu a abrangência das explicações, pois não foram incorporadas ao referencial psicanalítico importantes variáveis
identificadas nas ciências naturais.
Os behavioristas, por outro lado, aproximaram sua abordagem da psicologia
daquela empregada nas ciências naturais, tais como a física e a biologia. Por ser um
processo intelectual potente e com resultados notáveis, principalmente se considerarmos as transformações na vida humana no último século, o projeto de tornar a psicologia uma ciência natural certamente é justificável, para não dizer necessário e urgente.
Uma das premissas norteadoras da ciência refere-se à natureza dos fenômenos estuda-
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dos, denominada fisicalismo, segundo a qual todo e qualquer evento natural deve ser
localizável no tempo e no espaço (Passos, 2004). Dessa forma, os behavioristas propõem que o objeto de estudo da psicologia é o comportamento, isto é, a parte do organismo envolvida em interações com o meio ambiente (Skinner, 1938/1991).
Num primeiro momento, os behavioristas propuseram que o comportamento
era apenas aquilo que pudesse ser observado consensualmente (Watson, 1913). Essa
premissa restringia a explicação behaviorista aos comportamentos que acontecessem
da pele para fora, ou seja, aqueles sobre os quais poderia haver consenso. Evidentemente, uma abordagem desse tipo é insatisfatória por deixar de fora uma parte significativa da existência humana: o mundo embaixo da pele do qual a única testemunha é o
indivíduo que se auto-observa. O principal entrave para aumentar a abrangência do
objeto de estudo do behaviorismo era o critério de verdade consensual. A verdade
consensual era defendida por uma corrente filosófica que influenciou fortemente, embora brevemente, uma boa parte da ciência, denominada positivismo lógico. Obviamente, o problema da verdade consensual não implicava que as naturezas dos comportamentos públicos e privados fossem diferentes entre si, apenas impunha-se entre
eles uma dificuldade de método, por isso esse behaviorismo foi denominado behaviorismo metodológico (Ribeiro, 2003; Skinner, 1974/1989).
A versão corrente do behaviorismo, defendida por Skinner, é denominada behaviorismo radical e segundo ela, quando um indivíduo sente, pensa ou faz introspecção, ele está apenas observando seu próprio corpo, da mesma forma que ele o faz,
quando observa seu corpo em movimento. A diferença entre os comportamentos públicos e privados é apenas geográfica. Dessa forma, as mesmas leis naturais que descrevem e explicam o comportamento público se prestam para análise do comportamento privado (Skinner, 1953/1989, 1974/1989).
Skinner (1981/1984) propôs uma abordagem do comportamento dos organismos em completa e estreita adequação ao processo de seleção natural, descrito por
Darwin (1859/2004). A seleção natural não foi apenas responsável por selecionar as estruturas biológicas, como também os comportamentos que tornaram os indivíduos
mais aptos à sobrevivência. Uma boa parte desses comportamentos selecionados aparece na forma de reflexos que são respostas eliciadas por estímulos. Um exemplo de reflexo, estreitamente relacionado à sobrevivência dos mamíferos, é a resposta de sugar
em decorrência do contato com o mamilo. As relações reflexas apresentam características mecânicas, pois a apresentação do estímulo elicia a resposta. Ao longo da vida, en-
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tretanto, novos comportamentos podem ser aprendidos, ou condicionados, a partir de
um reflexo inicial, incondicionado. Parte significativa e complexa do repertório comportamental humano, como por exemplo: respostas neurovegetativas, emoções, fobias,
pode ser atribuída ao comportamento reflexo, condicionado ou não. Por outro lado,
uma grande e importante parte do comportamento dos organismos vem descomprometida, ou seja, sem a estreita relação mantida entre o reflexo e o estímulo eliciador.
Ao longo da vida, as interações entre o organismo e o ambiente resultam na seleção de
repertórios comportamentais singulares em função das experiências individuais. Esse
tipo de comportamento denomina-se comportamento operante e é caracterizado por
ser sensível às suas conseqüências. Por sensível quer-se significar modificável por suas
conseqüências. Assim, por exemplo, se um nenê é abraçado, tocado e amamentado logo depois de sorrir, não causará espanto a transformação do recém-nascido chorão em
um nenê risonho. As conseqüências do comportamento de sorrir mudaram o repertório do bebê. As conseqüências podem agir tanto para aumentar quanto para diminuir a
freqüência de uma resposta. Assim, por exemplo, se, ao visitarmos uma pessoa, formos
mal-recebidos, não causará surpresa que a nossa freqüência de visitas a ela diminuirá
ou cairá para zero.
As conseqüências com propriedades reforçadoras, isto é, capazes de alterar
nosso comportamento, têm seu valor reforçador determinado por uma de duas formas:
filogeneticamente ou através de condicionamento. O termo filogeneticamente refere-se
ao fato de que os organismos que tiveram maiores chances de sobrevivência, ao longo
da evolução, foram aqueles sensíveis a essas conseqüências: comida, água e sexo. No
decorrer da vida, entretanto, associações temporais entre essas conseqüências primárias e outras, sem qualquer efeito reforçador, podem fazer que as últimas adquiram
propriedades reforçadoras, nesse caso, condicionadas ou secundárias. Um exemplo
claro e inequívoco é o dinheiro. Logo no início do desenvolvimento humano, as notas
ou moedas pouco ou nenhum efeito têm sobre o comportamento humano. Tentar, por
exemplo, alterar o comportamento de uma criança muito jovem, oferecendo-lhe dinheiro, certamente é uma empreitada fadada ao fracasso. Entretanto, quando a criança
fica exposta às associações entre dinheiro e os reforçadores primários, por exemplo: o
dinheiro e o doce da cantina e/ou o refrigerante no clube e/ou pastel na feira e assim
por diante, o dinheiro adquire propriedades reforçadoras e passa a modificar o comportamento se for contingente a ele. Na sociedade atual, as relações entre o dinheiro e
os reforçadores primários, bem como, suas relações com outros reforçadores secundários, transformam-no num reforçador secundário generalizado. Salienta-se, entretanto,
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que, de forma nenhuma, defende-se aqui o uso indiscriminado do dinheiro como reforçador nas interações humanas. Ele foi tomado como exemplo didático para evidenciar a aquisição de propriedades reforçadoras secundárias por um estímulo neutro. Na
vida humana, inúmeros outros reforçadores secundários podem estar disponíveis, tais
como: afeto, atenção, cumplicidade.
O comportamento operante explica também a existência e o desenvolvimento
de repertórios muito complexos, tal como, o comportamento verbal. Quando a musculatura vocal, por ação da seleção natural, ficou sob controle operante, ou seja, sob controle das conseqüências, abriram-se as portas para o desenvolvimento da linguagem e
da cultura o que, sem dúvida, é uma experiência caracteristicamente humana e singular na filogênese da vida na Terra. Da mesma forma que o comportamento reflexo e o
comportamento operante, a cultura também está submetida ao processo de seleção pela conseqüência: as práticas culturais são passadas ao longo das gerações por ação dos
comportamentos individuais das pessoas que compõem aquele grupo cultural e a
principal conseqüência é a sobrevivência do grupo.
Da perspectiva behaviorista radical, portanto, o comportamento humano é resultado de ação conjunta de contingências filogenéticas, contingências ontogenéticas
(condicionamento operante e reflexo) e contingências culturais. O behaviorismo radical
progrediu em diferentes subáreas dentro da Psicologia e também tem se revelado um
corpo de conhecimento útil para outras áreas de conhecimento e profissões.
3.
BEHAVIORISMO RADICAL E A HOSPITALIDADE
Embora a palavra hospitalidade seja um substantivo, a definição dessa palavra, no Dicionário Aurélio, refere-se a um comportamento, ao ato de hospedar (Ferreira, 1986). O
ato de hospedar é resultado de comportamentos individuais, mas reflete, também, a
prática cultural de um grupo.
O comportamento de hospedar, tanto no nível operante quanto no cultural, é
mantido e modificado por suas conseqüências e se as práticas atuais do mundo globalizado o sugerem como um ato natural da espécie humana, devidamente certificado,
certamente uma olhada na história e nos relatos antropológicos nos abastecerá com exemplos de práticas culturais diversas do padrão atual. Nem precisamos ir muito longe no tempo. Smith (1989) relata que com o aparecimento dos vôos charter, repletos de
norte-americanos, a cultura desse povo passou a se impor sobre as demais, a ponto de
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alguns países fecharem suas fronteiras ao turismo. Segundo a autora, o Nepal foi invadido, na década de 70, por hippies a procura de experiências transcendentais, através
da meditação e drogas. Se o Nepal recebeu os turistas com hospitalidade, seu vizinho,
o Butão, para se proteger, rapidamente restringiu suas fronteiras liberando poucos vistos anualmente e chegando a fechar definitivamente as fronteiras em 1988. Esse fechamento teria decorrido da necessidade de proteger as práticas culturais nativas, profundamente calcadas nos valores monásticos do budismo, e cuja sobrevivência estava
ameaçada pelos presentes, dinheiro e interações sociais com os ocidentais.
Bueno (1998), no livro Náufragos, traficantes e degredados: As primeiras expedições
ao Brasil, faz um relato interessante e divertido sobre as primeiras expedições ao Brasil.
O autor relata que a expedição espanhola de Pizón, que chegou à costa brasileira no
ano 1500, mas antes da expedição de Cabral, teve uma experiência infeliz. Nos diários
de bordo consta a chegada da expedição numa praia próxima ao Rio Curu, possivelmente em Fortaleza, no estado do Ceará. Nas palavras do autor:
Na praia, às margens do rio, havia cerca de 40 nativos. Os espanhóis desembaraçaram em quatro escaleres e tentaram estabelecer contato com eles. Mas guizos,
colares de contas e espelhos não foram capazes de atraí-los e os nativos mantiveram a distância. De repente, um deles lançou à areia um objeto dourado: era uma
“vara’, diz um dos cronistas da expedição, ou uma “barra de dois palmos”, de
acordo com outro”. Quando um dos marujos adiantou-se e se agachou para apanhá-la, os nativos se jogaram sobre ele. Armado de espada e escudo, o marinheiro lutou para se defender, mas foi morto por um golpe de tacape pelas costas.
Um conflito eclodiu então entre cerca de 20 espanhóis e os 40 nativos. (p. 16)
Melhor sorte tiveram os portugueses da expedição de Cabral. Na famosa carta
de Pero Vaz de Caminha ao Rei, ele descreveu os nativos como dóceis e receptivos. Bueno (1998) argumenta que o contraste entre as duas recepções decorre dos portugueses
terem cruzado com índios tupinambás, enquanto que os espanhóis encontraram os temidos potiguares. Triste destino teve também Juan de Solis ao explorar o Rio da Prata
em 1515, pois segundo o autor, os índios atacaram sua expedição de emboscada e comeram as vítimas, inclusive o próprio capitão.
Mesmo nas culturas em que práticas de hospitalidade se instalaram, nem
sempre elas são ordinárias. Ruesch (1950/1974), no romance No país das sombras longas,
baseado em dados antropológicos, relata que, além de hospedar o visitante, os esquimós oferecem suas esposas ao estrangeiro para intercurso sexual. A recusa é considerada ofensiva e passível de morte; se, por outro lado, do encontro sexual resultar o nascimento de uma criança, esta é festejada e criada como parte da família.
Na Roma antiga, as práticas hospitaleiras, não se restringiam a hospedar, fazia
parte da recepção dar comida e oferecer parceiros sexuais, dependendo da importância
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do hóspede, como sugere Suetonio na obra A vida dos doze Césares, publicada entre o
século II e III.
Marco Pólo, il Milione, relata no livro As viagens, publicado no século XIII,
que ao chegar ao Reino do Gran-Khan, império Mongol, foi recebido pelo próprio
Gran-Khan que:
(...) quando soube da chegada dos dois estrangeiros ao seu reino, convidou-os ao
palácio, recebeu-os carinhosamente com todas as honras e mandou realizar
grandes festas em sua homenagem. (p.17)
Certamente compreender as diferentes práticas culturais de hospitalidade envolverá observar e descrever os comportamentos envolvidos na recepção de estrangeiros, mas também é necessário identificar as conseqüências importantes para a sobrevivência do grupo cultural decorrentes daquela prática. Como exercício de imaginação,
podemos conjecturar sobre algumas conseqüências importantes para a prática de hospedar: receber informação geográfica; receber informação sobre os vizinhos, muitas
vezes hostis; adquirir novas tecnologias; adquirir novos pools genéticos, tais como a
aquisição de novas plantas ou animais, ou, como no caso dos esquimós, que vivem em
grupos pequenos, com alto grau de parentesco, maior variabilidade genética; oportunidades de escambo; oportunidades comerciais, oportunidades econômicas. Da mesma
forma, podemos aventar algumas possibilidades para receber hostilmente um estrangeiro: guerras em curso; escassez de recursos naturais; proteção de práticas culturais
nativas; proteção da população contra escravidão e/ou algum tipo de exploração, entre
outras.
A análise funcional do comportamento, isto é, aquela com enfoque nas conseqüências, permite lançar um olhar diferenciado sobre a hospitalidade. No nível de análise cultural, amplia-se o conhecimento das conseqüências importantes para a sobrevivência do grupo e pode-se fazer uma avaliação privilegiada acerca do impacto de manejos. Pode-se também, antever riscos de sobrevivência das práticas culturais ou mesmo do grupo e instalar repertórios importantes para lidar com esses problemas ou eliminá-los.
A análise cultural é uma prática recente entre os behavioristas, pois a área carecia do desenvolvimento de uma unidade de análise capaz de revelar as relações de
seleção por conseqüência envolvidas na sobrevivência do grupo. Glenn (1988,1991) apresentou análises conceituais e aplicadas às contingências culturais com base numa
nova unidade de análise, a metacontingência, que pode ser definida como:
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(...) uma unidade que descreve as relações funcionais entre classes de operantes,
cada classe associada a uma contingência tríplice diferente, e uma conseqüência
comum a longo prazo, comum a todos os operantes na metacontingência (...).
(Todorov & Moreira, 2004, p.19)
A necessidade desse novo conceito decorre de algumas características do objeto de estudo: 1) embora uma prática cultural seja resultado dos comportamentos dos
indivíduos, o objeto de análise é o conjunto desses comportamentos; 2) os comportamentos que compõem uma prática cultural são semelhantes entre si, entretanto essa
similaridade deve ser resultado de transmissões culturais; 3) essa transmissão cultural
envolve a repetição de comportamentos inter-relacionados, isto é, o comportamento de
um organismo serve, simultaneamente, de ambiente e conseqüência para o comportamento do outro; 4) as conseqüências culturalmente significativas são diferentes daquelas que mantêm os comportamentos operantes, elas são cumulativas e seus efeitos são
salientes a longo prazo.
Até o momento, os trabalhos nessa área são majoritariamente descritivos, mas
a análise conceitual tem propiciado análises interessantes de diferentes práticas sociais
vigentes e tem gerado hipóteses preditivas verificáveis (Lamal, 1991; Todorov, 1987).
Um dos aspectos interessantes apontado por Glenn (1988) é que a cultura não evolui,
as mudanças observadas nas práticas culturais, ao longo dos anos ou mesmo após algum manejo programado, são decorrentes de mudanças nas contingências operantes.
No nível operante, a observação e descrição das respostas e a relação com as
conseqüências reforçadoras se prestariam para análise e compreensão dos comportamentos individuais relativos à hospitalidade. Se o objetivo for o manejo de uma situação para desenvolvimento de um projeto de turismo, certamente técnicas de treinamento dos agentes operacionais envolverão modificações de comportamento ou instalação de novos repertórios comportamentais. Se os planejadores dispuserem reforçadores efetivos de forma planejada e eficiente, isto é, se as contingências estiverem devidamente programadas, não apenas nas salas de treinamento, mas também nos postos
de trabalho, a probabilidade de sucesso seria aumentada. Existe boa e ampla literatura
acerca de programação de contingências empregada em outros contextos que não o turismo, entretanto os princípios de análise, planejamento e intervenção estão ali descritos e podem ser generalizados para novas situações (Keller, 1968/1999; Matos, 2001;
Skinner, 1959; 1968, entre outras).
Cabe algum comentário sobre o sentimento de sentir-se acolhido, do lado do
hóspede, e ser hospitaleiro, do lado do hospedeiro. O sentimento que acompanha várias situações que passamos é, em geral, subproduto das contingências mantidas na si-
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tuação e da história de reforçamento individual de cada um. Uma acurada observação
do comportamento do hóspede, do ponto de vista funcional, enfocando as conseqüências e avaliando as modificações ocorridas, será muito mais informativa acerca de como ele se sente do que perguntar isso diretamente. Considere que, assim como o comportamento não-verbal é operante, assim também o é o comportamento verbal e que,
nem sempre, as contingências responsáveis por manter um são as mesmas disponíveis
para manter o outro. É por isso que podemos mentir, dissimular, inventar ou fantasiar.
O controle que o referente tem sobre comportamento verbal é bem menos estrito do
que aquele desejável para considerar uma resposta fidedigna. Por isso, a utilização de
questionários, método aparentemente bastante comum na área, é uma estratégia que
produzirá dados bem menos informativos acerca do comportamento das pessoas do
que aqueles obtidos através da observação e mensuração direta do comportamento.
4.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Uma característica dos textos behavioristas, em especial os do seu fundador B.F. Skinner, é a defesa de que a ciência não é apenas uma atividade contemplativa, ela também
é útil, isto é, ela pode e deve contribuir para melhorar a vida dos seres humanos, como
de fato o tem feito. Skinner (1953/1989) discute a diferença entre o conhecimento científico per se e seu uso, que pode ser ruim ou bom, entretanto, aponta “Uma ciência do
comportamento não contém em si mesma quaisquer meios de controlar o uso para o
qual suas contribuições serão dirigidas” (p. 409).
Entretanto, a ciência pode propor um parâmetro para sua boa aplicação “Se
uma ciência do comportamento puder descobrir aquelas condições de vida que resultam no fortalecimento dos homens, poderá fornecer um conjunto de “valores morais”
que, por serem independentes da história e da cultura de qualquer grupo, poderá ser
geralmente aceito” (p. 416).
E até nesse ponto o modelo de seleção por conseqüências aparecerá, Skinner
(1953/1989) argumenta que os “bons” valores morais são aqueles que aumentam as
chances de sobrevivência do grupo.
A questão ética é extensamente discutida em inúmeros artigos e livros (por
exemplo, Skinner, 1948/1978; 1974/1989; 1961/2001) e é crítica para os profissionais
que almejam manejos de práticas culturais.
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Katia Damiani
Doutora em Psicologia Experimental pela Universidade de São Paulo e colaboradora do projeto temático Relações Emergentes entres estímulos e função simbólica: implicações para o
comportamento, o conhecimento e o ensino,
parceria Fapesp/CNPq, sob coordenação do
Prof. Dr. Julio César de Rose (Universidade Federal de São Carlos – UFSCar).
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