Capítulo 4 Argumentação, filosofia e retórica Demonstração e argumentação Uma dedução é um argumento que, dadas certas coisas, algo além dessas coisas necessariamente se segue delas. É uma demonstração quando as premissas das quais a dedução parte são verdadeiras e primitivas, ou são tais que o nosso conhecimento delas teve inicialmente origem em premissas que são primitivas e verdadeiras; e é uma dedução dialéctica se raciocina a partir de opiniões respeitáveis. Aristóteles, Tópicos, 100ª Considerando o tipo de argumentos cuja validade é dedutiva, Aristóteles distingue a «demonstração» da «dedução dialética». Mas, o que existe de comum e de diferente entre uma demonstração e uma dedução dialética? Comparemos os seguintes argumentos: 1) 100 é um número inteiro divisível por 2. Todo o número inteiro divisível por 2 é um número par. Logo, 100 é um número par. 2) O dever de não mentir é um dever moral. Todos os deveres morais são absolutos. Logo, o dever de não mentir é um dever absoluto. a) Os argumentos 1 e 2 têm a mesma forma lógica, que pode ser representada deste modo: Algum A é B. Todo o B é C. Logo, algum A é C. (NB: As letras A, B, C simbolizam termos gerais que designam uma dada classe ou coleção de coisas, como «100» ou «o dever de não mentir», «número inteiro divisível por 2» ou «dever moral», etc.) b) Os argumentos 1 e 2 são, ambos, dedutivamente válidos. Portanto, é impossível que sendo as suas premissas verdadeiras a conclusão possa ser falsa. c) E, sendo 1 e 2 argumentos dedutivamente válidos, se tiverem premissas verdadeiras, ambos serão argumentos sólidos. d) Mas, será que 1 e 2 são ambos argumentos sólidos? Eis uma diferença entre estes argumentos: As premissas de 1 são verdades bem estabelecidas e indisputáveis. Qualquer criança sabe distinguir os números pares dos números ímpares, pelo menos desde o 1º Ciclo, e não terá qualquer dificuldade em aceitar a conclusão, e até compreende que não pode deixar de a aceitar obrigatoriamente. Mas, quanto às premissas de 2, pelo menos a segunda não é uma verdade bem estabelecida e indisputável, nem para as crianças nem mesmo para adultos bem informados. Quando muito, é apenas plausível ou verosímil. O que é que se conclui desta diferença? Conclui-se que o argumento 1 é um argumento sólido. Não é racional aceitar as premissas e não aceitar a conclusão. Se usarmos a terminologia de Aristóteles, denominar-se-á o argumento 1 de «demonstração», porque é um argumento dedutivo válido, com premissas que são verdades evidentes ou bem estabelecidas, o que implica que é obrigatória a aceitação da sua conclusão, pois esta segue-se logicamente de verdades indisputáveis. Mas, quanto ao argumento 2, que também é dedutivamente válido, concluise que a sua solidez é disputável, porque a verdade da segunda premissa não está bem estabelecida. A proposição de que os deveres morais são absolutos é objeto de uma profunda controvérsia entre utilitaristas e deontologistas, por exemplo, e mesmo entre estes últimos, que em geral são favoráveis a essa ideia, não há uma forma comum de entender o estatuto dos deveres morais. Por isso, um agente cognitivo, seja criança ou adulto, não está constrangido a aceitar a conclusão do argumento 2 e até é racional contestá-la. Para isso, basta apresentar as melhores razões contra as premissas. E, se usarmos a terminologia de Aristóteles também neste caso, denominarse-á o argumento 2 de «dedução dialética», porque é um argumento dedutivo válido com uma premissa cuja verdade é apenas provável ou verosímil. O universo da argumentação compreende o estudo da lógica formal e da lógica informal. A lógica formal estuda os aspetos lógicos da argumentação que se podem explicar exclusivamente pela forma lógica. A lógica informal estuda os aspetos da argumentação que não dependem exclusivamente da forma lógica. Por isso, a lógica informal também estuda certos aspetos dos argumentos dedutivos válidos, como a relação de plausibilidade das premissas relativamente à conclusão e como a importância e consequências do estado cognitivo dos agentes envolvidos na argumentação para a própria argumentação. José António Pereira ESAS, Dezembro de 2011