CAPÍTULO 99 Anestesia no Paciente Séptico: O papel do Anestesista Jaime Pinto de Araújo Neto* Os cuidados no manuseio do paciente séptico para cirurgia é um dos grandes desafios para o cirurgião, intensivista e o anestesista. Apesar do avanço da medicina, a taxa de mortalidade varia entre 20% e 80%. A maioria das grandes cirurgias está associada a estimulação do sistema imunológico com grande variedade de alterações hemodinâmicas, respiratórias, endócrino-metabólicas. Esta estimulação tem papel importante no desenvolvimento de síndromes de isquemia-reperfusão, íleo pós-operatório, hipercoagulabilidade, resposta inflamatória sistêmica (S.I.R.S) e síndrome de angústia respiratória (S.A.R.A). Podemos, sob o ponto de vista didático, sistematizar as várias etapas e fatores que interferem no processo inflamatório, que podem evoluir, nos casos benignos, para recuperação e nos casos graves, para resposta inflamatória sistêmica e até para falência de múltiplos órgãos. 1. Componentes do processo inflamatório a) Vasodilatação Ocorre, de início, aumento do fluxo sanguíneo com aumento do calor e temperatura. Esta resposta facilita o transporte de leucócitos e óxido nítrico (NO). b) Aumento da permeabilidade vascular Isto causa exudação de proteínas para o interstício. Injúrias mais graves podem causar necrose de células endoteliais com perda de plasma e células sanguíneas. * Co-responsável do CET do Hospital do Andaraí Anestesista da C. S. S José, Hospital Samaritano, Hospital Copa D’or c) Febre As toxinas bacterianas liberadas durante o processo inflamatório (interleucinas, prostaglandinas, fator de necrose tumoral) atuam no sistema regulador da temperatura hipotalâmico aumentando a temperatura corporal. 2. Mediadores inflamatórios Medicina Perioperatória a) Proteases plasmáticas As aminas (bradicininas) causam vasoconstrição. As proteases plasmáticas ativam o sistema do complemento pela reação antígeno / anticorpo mediada por imunoglobulinas Ig.M e Ig.G. b) Proteínas fibrinolíticas e da coagulação Amplificam o processo inflamatório liberando produtos de degradação da fibrina c) Mediadores lipídicos Incluem prostaglandinas, leucotrienos e fatores de ativação plaquetária que ativam e agravam o processo inflamatório. Os leucotrienos são produtos de oxidação do ácido aracdônico podendo causar vasoconstrição e aumento da permeabilidade vascular. d) Peptídeos e aminas I. Histaminas e serotonina Os mastócitos e os basófilos sintetizam e estocam histaminas que por estímulo químico é liberada causando vasodilatação. II. Citocinas Fazem parte de um largo grupo de polipeptídeos com funções variadas que mediam os processos inflamatórios, antiinfamatórios. A interleucina 1B e o fator de necrose tumoral, que após liberação pelos monócitos, ativam os macrófagos. A interleucina 6, produzida pelos linfócitos T, monócitos e fibroblastos aumenta o número de plaquetas circulantes e melhora a síntese protéica pelo fígado. 3. Ativação dos neutrófilos Durante o processo inflamatório, o recrutamento de leucócitos (neutrófilos) que na circulação atuam como mediadores pró-inflamatórios podendo aderir ao endotélio vascular, ocorrendo quimiotaxia, estimulando a fagocitose de material estranho, resultante do processo inflamatório. Existem alguns fatores de risco que estão relacionados a evolução de sepsis: Quadro I Idade > 65 anos Prematuridade Drogas imunossupressoras Doença orgânica pré-existente Falência hepática e renal Diabetes mellitus 890 Transplante de órgãos Manobras de monitorização invasiva Trauma extenso e cirurgia de porte Queimadura e feridas abertas Mau estado nutricional Hipoesplenismo, AIDS Existem fatores prognósticos que são usados para avaliar o possível comprometimento de um ou mais órgãos, visando determinar critérios de sobrevivência. O escore “APACHE II” é baseado em dados clínicos e laboratoriais e quanto maior seu valor, maior o índice de mortalidade. Sob o ponto de vista didático, podemos dividir as diferentes fases da sepsis em: 1) Infecção: quando surge resposta inflamatória na presença de microorganismos que invadem tecidos do hospedeiro. 3) Resposta inflamatória sistêmica e sepsis (SIRS): quadro hipermetabólico caracterizado por taquicardia, febre, taquipnéia e leucocitose 4) Sepse: Quando a SIRS é causada por infecção, mais grave, cursando com mais de duas das condições clínicas citadas acima. Este comprometimento clínico é acompanhado de hipotensão,hipoperfusão, acidose lática e alterações do estado mental. 5) Choque séptico: As alterações de perfusão são mais graves, sem resposta adequada à reposição volêmica, uso de vasoconstritores e inotrópicos. 6) Insuficiência de múltiplos órgãos e sistemas (IMOS): Como o próprio nome indica, é acompanhada da disfunção renal, respiratória, cardíaca, hematológica, gastrointestinal, hepática e do S.N.C. Numerosos estudos têm sido propostos para sistematizar estes quadros graves, através de guias e projetos de campanhas de sobrevivência a sepsis. Este último, publicado no “Critical Care Medicine, 2004” (por R.Dellinger e vários co-autores) apresenta grades de recomendações e evidências. As grades de recomendações são grupadas didaticamente em: 1. Ressuscitação Inicial Durante as primeiras 6 horas do tratamento do quadro de hipoperfusão (acompanhado de hipotensão e acidose lática) é conseguir: Anestesia no Paciente Séptico: O papel do Anestesista 2) Bacteriemia: fase em que as bactérias, vírus ou fungos apresentam crescimento contínuo na corrente sanguínea. a) P.V.C. – 8 a 12 mmHg b) P.A.M. > 65 mmHg c) Débito urinário > 0,5ml/Kg/h d) Saturação sangue venoso misto > 79% Isto pode ser conseguido com reposição volêmica adequada, concentrado de hemácias e inotrópicos como dobutamina. 2. Diagnóstico As hemoculturas e culturas de secreção devem ser colhidas precocemente antes do início da antibioticoterapia. Métodos diagnósticos devem ser usados para determinar o foco da infecção e 891 organismos causadores. 3. Antibioticoterapia Medicamentos de largo espectro devem ser iniciados após reconhecimento do quadro séptico. Drogas antibacterianas e antifúngicas são usadas de acordo com a doença básica, a prevalência na comunidade hospitalar. A antibioticoterapia deve ser revista de 48 à 72h após início da administração baseado nas culturas, passando, se possível, a antibióticos de espectro mais estreito para prevenir resistência ou super infecção. Quadro II - Infecções hospitalares mais freqüentes por ordem decrescente: Medicina Perioperatória 1) Pseudomonas 2) Stafilococus aureus 3) Enterococus 4) Enterobacter 5) E. Coli 6) Cândida albicans 7) Klebsiela 8) Serratia 9) Proteus 4. Controle do foco O paciente com sepsis severa deve ser investigado para detectar de foco infeccioso visando drenagem, desbridamento de tecido necrótico. Através de radiologia, cirurgia e drenagem de abcessos, é possível atuar sobre os focos de sepsis. 5. Reposição volêmica Quatro fatores tornam a reposição de fluidos em um paciente com sepsis grave, um problema: a vasodilatação que seqüestra grande quantidade de volume, a perda capilar com migração de líquido para o interstício (edema), o aumento da resistência pulmonar e a depressão da função miocárdica, dificultando o retorno venoso. O excesso de volume reposto pode ser prejudicial devido à passagem de água para o 3º espaço. Pode comprometer a função pulmonar, reduzindo complascencia, diminuindo a oxigenação, causando hipertensão pulmonar. Os objetivos de reposição volêmica visam aumentar o retorno venoso para ambos os lados do coração. 6. Vasopressores e inotrópicos Apesar da reposição volêmica, são usados sempre que a elevação da pressão sanguínea não for adequada. A noradrenalina e a dopamina são usadas através de cateter de veia profunda como opção para corrigir hipotensão no choque séptico. A vasopressina é outra droga que pode ser utilizada em quadro de choque refratário. A dobutamina é usada nos pacientes com débito cardíaco baixo a despeito da reposição volêmica. O objetivo do uso destas drogas é conseguir oxigenação impedindo a hipóxia celular fluxo dependente. 7. Esteróides É assunto controverso. É recomendado em pacientes hipotensos, apesar de reposição volêmica adequada e uso de vasopressores, sem que a pressão arterial apresente resposta. Alguns autores sugerem uso de A.C.T.H. com boas respostas. Reduz taxa de mortalidade e disfunção orgânica. 892 8. Proteína C Ativada (XIGRIS) Preconizada em pacientes de alto risco, com falência múltipla de órgãos com níveis de APACHE altos. Esta droga, que tem no seu custo o maior inconveniente, vem sendo usada em terapias intensivas e o anestesista deve estar familiarizado com seu uso. 10. Ventilação mecânica (V.M.) na SARA A tendência atual de V.M. é manter volumes correntes baixos (6ml/kg) visando evitar volutrauma. A hipercarbia, que pode surgir neste método de ventilação, é tolerada, pelo paciente, reduzindo as pressões de “plateau”. O uso de P.E.E.P. é recomendado em valores que não devem ultrapassar 15cm de água. Alguns autores preconizam a ventilação destes pacientes em posição prona, que melhora os valores de PaO2. O anestesista deve procurar usar os parâmetros de ventilação da U.T.I. No pós-operatório, nos pacientes em ventilação mecânica, são empregados métodos de sedação, analgesia e, até mesmo, bloqueio neuro muscular procurando evitar atrofia muscular (utilizando métodos de desmame adequados). 11. Controle de glicemia A manutenção de valores < 150mg/dl é recomendada. Protocolos de nutrição enteral devem ser utilizados. 12. Controle da função renal Utilizando métodos de hemofiltração, hemodiálise intermitente. 13. Controle ácido base 14. Profilaxia da trombose venosa profunda Utiliza-se heparina de baixo peso molecular, associada à mecanismos de compressão intermitente de membros inferiores. 15. Profilaxia de ulceração de estresse Utilizando antagonistas H2. 16. Suporte nutricional Quanto mais precoce a sua introdução, melhores as condições imunológicas e melhor o prognóstico evolutivo. É importante para o anestesiologista ter conhecimento destas rotinas de conduta já que sua atuação no pré, per e pós-operatório é parte fundamental nos conceitos atuais de medicina perioperatória. Como discutimos antes, o anestesista pode atuar em paciente séptico apresentando evidência clínica de infecção, febre ou hipotermia, taquipnéia, diminuição da função ou perfusão de sistemas orgânicos (alteração mental, hipoxemia, K valores de lactato, oliguria). É importante, que em qualquer fase da síndrome séptica, seja estabelecido um plano terapêutico visando: 1. Reversão da desordem inicial, atuando sobre o foco de infecção Anestesia no Paciente Séptico: O papel do Anestesista 9. Concentrado de hemácias A transfusão de sangue deve ser feita quando a hemoglobina cai abaixo de 7g/dl. O uso rotineiro de plasma fresco congelado não é recomendado, sendo usado em coagulopatias com deficiência de fatores de coagulação bem como o uso de concentrado de plaquetas. 893 2. Bloquear ou reverter a injúria alvéolocapilar 3. Minimizar as conseqüências fisiopatológicas: a) Redução do edema intersticial Com hidratação adequada e uso racional de colóides e diuréticos. b) Melhora da troca gasosa K CRF, com recrutamento alveolar – (PEEP) c) Reduzir a resistência vascular pulmonar Com diminuição da pressão artério-pulmonar e capilar pulmonar d) Manter equilíbrio entre oferta e consumo de O2 Com boa perfusão tecidual e difusão de O2 e) Manter débito e índices cardíacos Conduta Anestésica Medicina Perioperatória A anestesia está indicada em cirurgias para remoção ou identificação de focos sépticos bem como complicações de causas primárias de sepsis (fistulas, peritonite, hemorragia digestiva por ulceração de estresse). O anestesista deve estar apto para tratar as várias complicações que ocorreram na evolução da doença primária como: 1. Instabilidade hemodinâmica Resultante de vasodilatação, hipovolemia ou disfunção miocárdica. 2. Falência respiratória Sabemos que a SEPSE é a causa mais comum de síndrome de angústia respiratória (S.A.R.A.). A cirurgia pode ter indicação em qualquer fase da doença desde pulmão inflamado com edema intersticial até pulmão duro com fibrose tardia. A difusão de gases está prejudicada ocorrendo precocemente hipoxemia que evolutivamente se torna refratária a aumentos da fração inspirada de O2, exigindo métodos de ventilação mecânica com recrutamento alveolar (P.E.E.P.). Acho fundamental que os métodos de tratamento clínico e de ventilação usados no C.T.I. sejam mantidos na sala de operação. Sugiro atenção especial para o transporte do paciente para sala de operações, usando respiradores de transporte eficazes e monitorização adequada. 3. Íleo e Sistema gastrointestinal Devemos encarar o paciente séptico SEMPRE com quadro de estômago cheio, com risco de broncaspiração, no momento da entubação traqueal. O dano por isquemia hepática pode causar transtornos na metabolização de drogas. As lesões isquêmicas e a translocação bacteriana podem causar isquemia de mucosa com formação de úlceras de estresse. 894 4. Coagulopatias Alterações dos fatores de coagulação, tromboetopenia, redução da absorção de vitamina K, alterações na cascata de coagulação são as causas mais comuns de hemorragia. Anestesia Regional Recentemente tem sido discutido que os anestésicos locais, além do bloqueio da condução nervosa, apresentam função protetora imunológica, com efeito antiinflamatório, reduzindo o acúmulo de leucócitos no pulmão. Pacientes com asma, queimaduras, isquemia miocárdica, colite ulcerativa tem sido beneficiados pela ação dos anestésicos locais. A lidocaína inibe a secreção de histamina por agir nas células e mediadores da inflamação. A anestesia peridural melhora a recuperação dos pacientes atenuando as complicações cardíacas, a função pulmonar e a hipercoagulabilidade. Anestesia Inalatória Diminui a função dos neutrófilos. Anestésicos halogenados suprimem as citocinas inflamatórias, reduzindo a aderência pós-isquêmica dos polimorfonucleares. Em relação a outros cuidados que podemos tomar no paciente séptico: 1. Reposição volêmica Depende da função cardíaca, pulmonar e tônus vascular que podem evoluir para vasodilatação com seqüestro de volume para o 3º espaço, perda capilar, aumento da resistência pulmonar e depressão miocárdica. A reposição de concentrado de hemácias visa restaurar a volemia e aumentar transporte de O2. 2. Suporte ventilatório O paciente séptico apresenta normalmente um quadro de hipermetabolismo, aumento do trabalho respiratório sendo a hipoxemia, o transtorno de difusão mais constante apesar do aumento da fração inspirada de O 2. Exigindo assistência respiratória pós-operatória, a profilaxia da fibrose intersticial pode ser tentada com corticóide, hidroxiprolina e alfa-1 antiprotease. O uso de diuréticos é discutido atuando em casos de redução da função renal, podendo reduzir o volume circulante. O uso de surfactante tem sido preconizado sobretudo em neonatos com membrana hialina. Outras drogas têm sido usadas com resultado discutido como antioxidantes, prostaglandinas e antiinflamatórios não hormonais. Anestesia no Paciente Séptico: O papel do Anestesista 5. Disfunção renal A necrose tubular aguda é a causa mais comum da falência renal na sepse. Com relação à indução da anestesia, devemos ter cuidado na seleção de drogas evitando as que causam instabilidade cardiovascular. São preferíveis drogas como etomidato e quetamina. Recomendo cuidado com o propofol pela hipotensão que causa. Os opióides (fentanil, remifentanil) são indicados pela estabilidade hemodinâmica. O relaxamento muscular é obtido de acordo com a função hepato-renal sendo o vecurônio e o rocurônio de nossa preferência. Os benzodiazepínicos podem ser usados na fase de indução (midazolam é o de nossa preferência) embora possam causar hipotensão arterial. A indução da anestesia, na fase de entubação traqueal, pode ser feita com paciente acordado e anestesia tópica ou técnica de seqüência rápida devido à possibilidade de estômago cheio e broncaspiração. 895 O uso de óxido nítrico é indicado nos casos de hipertensão pulmonar em cirurgia cardíaca, por via inalatória. Para concluir, a precocidade do atendimento, o controle hemodinâmico e ventilatório, a ação sobre o foco da doença e antibioticoterapia adequada são os cuidados que devemos ter visando melhorar o prognóstico desta síndrome. Medicina Perioperatória Referências Bibliográficas 896 1 . Sherwood E – Current concepts of the inflamatory response. ASA Refresher, 2002; 30:169-185 2 . Deutschman C – The pathophysiologic features of sepsis – new understanding and new therapy. ASA Refresher, 1995; 23:43-53 3 . 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