Observações sobre o amor transferencial ( Novas recomendações

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Observações sobre o amor transferencial ( Novas recomendações
sobre a técnica da Psicanálise III)
Todo principiante em psicanálise provavelmente se sente alarmado,
de início, pelas dificuldades que lhe estão reservadas quando vier a
interpretar as associações do paciente e lidar com a reprodução do
reprimido. Quando chega a ocasião, contudo, logo aprende a encarar
estas dificuldades como insignificantes e, ao invés, fica convencido de
que as únicas dificuldades realmente sérias que tem de enfrentar
residem no manejo da transferência.
Entre as situações que surgem a este respeito, selecionarei uma que é
muito nitidamente definida; e selecioná-la-ei, em parte, porque ocorre
muito amiúde e é tão importante em seus aspectos reais e em parte
devido ao seu interesse teórico. O que tenho em mente é o caso em
que uma paciente demonstra, mediante indicações inequívocas, ou
declara abertamente, que se enamorou, como qualquer outra mulher
mortal poderia fazê-lo, do médico que a está analisando. Esta situação
tem seus aspectos aflitivos e cômicos, bem como os sérios. Ela é
também determinada por tantos e tão complicados fatores, é tão
inevitável e tão difícil de esclarecer, que uma discussão sobre o
assunto, para atender a uma necessidade vital da técnica analítica, já
há muito se fazia necessária. Mas visto que nós, que rimos das
fraquezas de outras pessoas, nem sempre estamos livres delas, até
agora não estivemos precisamente apressados em cumprir esta
tarefa. Deparamos constantemente com a obrigação à discrição
profissional — discrição que não se pode dispensar na vida real, mas
que é inútil em nossa ciência. Na medida em que as publicações
psicanalíticas também fazem parte da vida real, temos aqui uma
contradição insolúvel. Recentemente desprezei esta questão da
discrição a certa altura, e demonstrei como esta mesma situação
transferencial retardou o desenvolvimento da terapia psicanalítica
durante sua primeira década.
Para um leigo instruído (a pessoa civilizada ideal, em relação à
psicanálise), as coisas que se relacionam com o amor são
incomensuráveis; acham-se, por assim dizer, escritas numa página
especial em que nenhum outro texto é tolerado. Se uma paciente
enamorou-se de seu médico, parece a tal leigo que são possíveis
apenas dois desfechos. Um, que acontece de modo
comparativamente raro, é que todas as circunstâncias permitam uma
união legal e permanente entre eles; o outro, mais freqüente, é que
médico e paciente se separem e abandonem o trabalho que
começaram e que deveria levar ao restabelecimento dela, como se
houvesse sido interrompido por algum fenômeno elementar. Há, sem
dúvida, um terceiro desfecho concebível, que até mesmo parece
compatível com a continuação do tratamento. É que eles iniciam um
relacionamento amoroso ilícito e que não se destina a durar para
sempre. Mas esse caminho é impossível por causa da moralidade
convencional e dos padrões profissionais. Não obstante, o nosso leigo
implorará ao analista que lhe assegure, tão inequivocamente quanto
possível, que esta terceira alternativa se acha excluída.
É claro que um psicanalista tem de encarar as coisas de um ponto de
vista diferente.
Tomemos o caso do segundo desfecho da situação que estamos
considerando. Após a paciente ter-se enamorado de seu médico, eles
se separam; o tratamento é abandonado. Mas logo o estado da
paciente obriga-a a fazer uma segunda tentativa de análise, com outro
médico. O que acontece a seguir é que ela sente se ter enamorado
deste segundo médico também; e, se romper com ele e recomeçar
outra vez, o mesmo acontecerá com o terceiro médico, e assim por
diante. Este fenômeno, que ocorre constantemente e que é, como
sabemos, um dos fundamentos da teoria psicanalítica, pode ser
avaliado a partir de dois pontos de vista, o do médico e o da paciente
que dele necessita.
Para o médico, o fenômeno significa um esclarecimento valioso e uma
advertência útil contra qualquer tendência a uma contratransferência
que pode estar presente em sua própria mente. Ele deve reconhecer
que o enamoramento da paciente é induzido pela situação analítica e
não deve ser atribuído aos encantos de sua própria pessoa; de
maneira que não tem nenhum motivo para orgulhar-se de tal
‘conquista’, como seria chamada fora da análise. E é sempre bom
lembrar-se disto. Para a paciente, contudo, há duas alternativas:
abandonar o tratamento psicanalítico ou aceitar enamorar-se de seu
médico como um destino inelutável.
Não tenho dúvida de que os parentes e amigos da paciente se
decidirão enfaticamente pela primeira destas duas alternativas, assim
como o analista optará pela segunda. Mas acho que temos aqui um
caso em que a decisão não pode ser deixada ao terno — ou antes,
egoísta e ciumento — cuidado dos parentes. Somente o bem-estar da
paciente deveria ser a pedra de toque; o amor dos parentes não pode
insistir que é indispensável para a consecução de certos fins.
Qualquer parente que adote a atitude de Tolstoi em relação ao
problema pode permanecer na posse imperturbada de sua esposa ou
filha; mas terá de tentar suportar o fato de que ela, de sua parte,
mantém a neurose e a interferência com sua capacidade de amar que
aquela acarreta. A situação, afinal, é semelhante à de um tratamento
ginecológico. Além disso, o pai ou marido ciumento está grandemente
equivocado se pensa que a paciente escapará de enamorar-se do
médico se ele entregá-la a algum outro tipo de tratamento, que não a
análise, para combater-lhe a neurose. Pelo contrário, a única diferença
será que um amor deste tipo, fadado a permanecer oculto e não
analisado, nunca poderá prestar ao restabelecimento da paciente a
contribuição que a análise dele teria extraído.
Chegou ao meu conhecimento que alguns médicos que praticam a
análise preparam freqüentemente suas pacientes para o surgimento
da transferência erótica ou até mesmo as instam a ‘ir em frente a
enamorar-se do médico, de modo a que o tratamento possa progredir’.
Dificilmente posso imaginar procedimento mais insensato. Assim
procedendo, o analista priva o fenômeno do elemento de
espontaneidade que é tão convincente e cria para si próprio, no futuro,
obstáculos difíceis de superar.
À primeira vista, certamente não parece que o fato de a paciente se
enamorar na transferência possa resultar em qualquer vantagem para
o tratamento. Por mais dócil que tenha sido até então, ela
repentinamente perde toda a compreensão do tratamento e todo o
interesse nele, e não falará ou ouvirá a respeito de nada que não seja
o seu amor, que exige que seja retribuído. Abandona seus sintomas
ou não lhes presta atenção; na verdade, declara que está boa. Há
uma completa mudança de cena; é como se uma peça de fingimento
houvesse sido interrompida pela súbita irrupção da realidade — como
quando, por exemplo, um grito de incêndio se erguer durante uma
representação teatral. Nenhum médico que experimente isto pela
primeira vez achará fácil manter o controle sobre o tratamento
analítico e livrar-se da ilusão de que o tratamento realmente chegou
ao fim.
Uma pequena reflexão capacita-nos a encontrar orientação. Primeiro e
antes de tudo, mantém-se na mente a suspeita de que tudo que
interfere com a continuação do tratamento pode constituir expressão
da resistência. Não pode haver dúvida de que a irrupção de uma
apaixonada exigência de amor é, em grande parte, trabalho da
resistência. Há muito notaram-se na paciente sinais de uma
transferência afetuosa, e pôde-se ter certeza de que a docilidade dela,
sua aceitação das explicações analíticas, sua notável compreensão e
o alto grau de inteligência que apresentava deveriam ser atribuídos a
esta atitude em relação ao médico. Agora, tudo isto passou. Ela ficou
inteiramente sem compreensão interna (insight) e parece estar
absorvida em seu amor. Ademais, esta modificação ocorre muito
regularmente na ocasião precisa em que se está tentando levá-la a
admitir ou recordar algum fragmento particularmente aflitivo e
pesadamente reprimido da história da sua vida. Ela esteve
enamorada, portanto, por longo tempo; mas agora a resistência está
começando a utilizar seu amor a fim de estorvar a continuação do
tratamento, desviar todo o seu interesse do trabalho e colocar o
analista em posição canhestra.
Se se examinar a situação mais de perto, reconhece-se a influência de
motivos que complicam ainda mais as coisas — dos quais, alguns
acham-se vinculados ao enamoramento e outros são expressões
específicas da resistência. Do primeiro tipo são os esforços da
paciente em certificar-se de sua irresistibilidade, em destruir a
autoridade do médico rebaixando-o ao nível de amante e em
conquistar todas as outras vantagens prometidas, que são incidentais
à satisfação do amor. Com referência à resistência, podemos
suspeitar que, ocasionalmente, ela faz uso de uma declaração de
amor da paciente como meio de colocar à prova a severidade do
analista, de maneira que, se ele mostra sinais de complacência, pode
esperar se chamado à ordem por isso. Acima de tudo, porém, fica-se
com a impressão de que a resistência está agindo como um agent
provocateur; ela intensifica o estado amoroso da paciente e exagera
sua disposição à rendição sexual, a fim de justificar ainda mais
enfaticamente o funcionamento da repressão, ao apontar os perigos
de tal licenciosidade. Todos estes motivos acessórios, que em casos
mais simples podem não se achar presente, foram, como sabemos,
encarados por Adler como parte essencial de todo o processo.
Mas como deve o analista comportar-se, a fim de não fracassar nessa
situação, se estiver persuadido de que o tratamento deve ser levado
avante, apesar desta transferência erótica, e que deve enfrentá-la com
calma?
Ser-me-ia fácil enfatizar os padrões universalmente aceitos de
moralidade e insistir que o analista nunca deve, em quaisquer
circunstâncias aceitar ou retribuir os ternos sentimentos que lhe são
oferecidos; que, ao invés disso, deve ponderar que chegou sua vez de
apresentar à mulher que o ama as exigências da moralidade social e a
necessidade de renúncia, conseguir fazê-las abandonar seus desejos
e, havendo dominado o lado animal do seu eu (self), prosseguir com o
trabalho da análise.
Não atenderei, contudo, a estas expectativas — nem a primeira nem a
segunda delas. A primeira, porque não estou escrevendo para
pacientes, mas sim para médicos que têm sérias dificuldades com que
lutar, e também porque, neste caso, posso remontar a prescrição
moral à sua fonte, ou seja, a conveniência. Encontro-me, nesta
ocasião, na feliz posição de poder substituir o impedimento moral por
considerações de técnica analítica, sem qualquer alteração no
resultado.
Ainda mais decididamente, contudo, recuso-me a atender à segunda
das expectativas que mencionei. Instigar a paciente a suprimir,
renunciar ou sublimar seus instintos, no momento em que ela admitiu
sua transferência erótica, seria, não uma maneira analítica de lidar
com eles, mas uma maneira insensata. Seria exatamente como se,
após invocar um espírito dos infernos, mediante astutos
encantamentos, devêssemos mandá-lo de volta para baixo, sem lhe
haver feito uma única pergunta. Ter-se-ia trazido o reprimido à
consciência, apenas para reprimi-lo mais uma vez, um susto. Não
devemos iludir-nos sobre o êxito de qualquer procedimento desse tipo.
Como sabemos, as paixões pouco são afetadas por discursos
sublimes. A paciente sentirá apenas humilhação e não deixará de
vingar-se por ela.
Tampouco posso eu advogar um caminho intermediário, que a certas
pessoas se recomendaria como especialmente engenhoso. Consistiria
em declarar que se retribuem os amorosos sentimentos da paciente,
mas, ao mesmo tempo, em evitar qualquer complementação física
desta afeição, até que se possa orientar o relacionamento para canais
mais calmos e elevá-lo a um nível mais alto. Minha objeção a este
expediente é que o tratamento analítico se baseia na sinceridade, e
neste fato reside grande parte de seu efeito educativo e de seu valor
ético. É perigoso desviar-se deste fundamento. Todo aquele que se
tenha embebido na técnica analítica não mais será capaz de fazer uso
das mentiras e fingimentos que um médico normalmente acha
inevitáveis; e se, com a melhor das intenções, tentar fazê-lo, é muito
provável que se traia. Visto exigirmos estrita sinceridade de nossos
pacientes, colocamos em perigo toda a nossa autoridade, se nos
deixarmos ser por eles apanhados num desvio da verdade. Além
disso, a experiência de se deixar levar um pouco por sentimentos
ternos em relação à paciente não é inteiramente sem perigo. Nosso
controle sobre nós mesmos não é tão completo que não possamos
subitamente, um dia, ir mais além do que havíamos pretendido. Em
minha opinião, portanto, não devemos abandonar a neutralidade para
com a paciente, que adquirimos por manter controlada a
contratransferência.
Já deixei claro que a técnica analítica exige do médico que ele negue
à paciente que anseia por amor a satisfação que ela exige. O
tratamento deve ser levado a cabo na abstinência. Com isto não quero
significar apenas a abstinência física, nem a privação de tudo o que a
paciente deseja, pois talvez nenhuma pessoa enferma pudesse tolerar
isto. Em vez disso, fixarei como princípio fundamental que se deve
permitir que a necessidade e anseio da paciente nela persistam, a fim
de poderem servir de forças que a incitem a trabalhar e efetuar
mudanças, e que devemos cuidar de apaziguar estas forças por meio
de substitutos. O que poderíamos oferecer nunca seria mais que um
substituto, pois a condição da paciente é tal que, até que suas
repressões sejam removidas, ela é incapaz de alcançar satisfação
real.
Admitamos que este princípio fundamental de o tratamento ser levado
a cabo na abstinência estenda-se muito além do caso isolado que
estamos aqui considerando, e que ele necessite ser completamente
debatido, a fim de podermos definir os limites de sua possível
aplicação. Todavia, abordaremos agora este assunto, mas manternos-emos tão próximos quanto possível da situação de que partimos.
O que aconteceria se o médico se comportasse diferentemente e,
supondo que ambas as partes fossem livres, se aproveitasse dessa
liberdade para retribuir o amor da paciente e acalmar sua necessidade
de afeição?
Se ele houvesse sido guiado pelo cálculo de que esta concordância de
sua parte lhe garantiria o domínio sobre a paciente e assim capacitálo-ia a influenciá-la a realizar as tarefas exigidas pelo tratamento e,
dessa maneira, liberar-se permanentemente de sua neurose, então a
experiência inevitavelmente mostrar-lhe-ia que seu cálculo estava
errado. A paciente alcançaria o objetivo dela, mas ele nunca
alcançaria o seu. O que aconteceria ao médico e à paciente seria
apenas o que aconteceu, segundo a divertida anedota, ao pastor e ao
corretor de seguros. O corretor de seguros, livre pensador, estava à
morte e seus parentes insistiram em trazer um homem de deus para
convertê-lo antes de morrer. A entrevista durou tanto tempo que
aqueles que esperavam do lado de fora começaram a ter esperanças.
Por fim, a porta do quarto do doente se abriu. O livre pensador não
havia sido convertido, mas o pastor foi embora com um seguro.
Se os avanços da paciente fossem retribuídos, isso constituiria grande
triunfo para ela, mas uma derrota completa para o tratamento. Ela teria
alcançado sucesso naquilo por que todos os pacientes lutam na
análise — teria tido êxito em atuar (acting out), em repetir na vida real
o que deveria apenas ter lembrado, reproduzido como material
psíquico e mantido dentro da esfera dos eventos psíquicos. No curso
ulterior do relacionamento amoroso, ela expressaria todas as inibições
e reações patológicas de sua vida erótica, sem que houvesse qualquer
possibilidade de corrigi-las; e o episódio penoso terminaria em
remorso e num grande fortalecimento de sua propensão à repressão.
O relacionamento amoroso, em verdade, destrói a suscetibilidade da
paciente à influência do tratamento analítico. Uma combinação dos
dois seria impossível.
É, portanto, tão desastroso para a análise que o anseio da paciente
por amor seja satisfeito, quanto que seja suprimido. O caminho que o
analista deve seguir não é nenhum destes; é um caminho para o qual
não existe modelo na vida real. Ele tem de tomar cuidado para não se
afastar do amor transferencial, repeli-lo ou torná-lo desagradável para
a paciente; mas deve, de modo igualmente resoluto, recusar-lhe
qualquer retribuição. Deve manter um firme domínio do amor
transferencial, mas tratá-lo como algo irreal, como uma situação que
se deve atravessar no tratamento e remontar às suas origens
inconscientes e que pode ajudar a trazer tudo que se acha muito
profundamente oculto na vida erótica da paciente para sua
consciência e, portanto, para debaixo de seu controle. Quanto mais
claramente o analista permite que se perceba que ele está à prova de
qualquer tentação, mais prontamente poderá extrair da situação seu
conteúdo analítico. A paciente, cuja repressão sexual naturalmente
ainda não foi removida, mas simplesmente empurrada para segundo
plano, sentir-se-á então segura o bastante para permitir que todas as
suas precondições para amar, todas as fantasias que surgem de seus
desejos sexuais, todas as características pormenorizadas de seu
estado amoroso venham à luz. A partir destas, ela própria abrirá o
caminho para as raízes infantis de seu amor.
Existe, é verdade, determinada classe de mulheres com quem esta
tentativa de preservar a transferência erótica para fins do trabalho
analítico, sem satisfazê-la, não logrará êxito. Trata-se de mulheres de
paixões poderosas, que não toleram substitutos. São filhas da
natureza que se recusam a aceitar o psíquico em lugar do material e
que, nas palavras do poeta, são acessíveis apenas à ‘lógica da sopa,
com bolinhos por argumentos’. [‘Suppenlongik mit Knödelgründen’, de
‘Die Wanderraten’ de Heine. (Transcrito erradamente por Freud:
‘Knödelargumenten’.)] Com tais pessoas tem-se de escolher entre
retribuir seu amor ou então acarretar para si toda a inimizade de uma
mulher desprezada. Em nenhum dos casos se podem salvaguardar os
interesses do tratamento. Tem-se de bater em retirada, sem sucesso,
e tudo o que se pode fazer é revolver na própria mente o problema de
como é que uma capacidade de neurose se liga a tão obstinada
necessidade de amor.
Muitos analistas indubitavelmente estarão de acordo sobre o método
pelo qual outras mulheres, menos violentas em seu amor, podem ser
gradativamente levadas a adotar a atitude analítica. O que fazemos,
acima de tudo, é acentuar para a paciente o elemento inequívoco de
resistência nesse ‘amor’. O amor genuíno, dizemos, torná-la-ia dócil e
intensificaria sua presteza em solucionar os problemas de seu caso,
simplesmente porque o homem de quem está enamorada espera isso
dela. Em tal caso, ela alegremente escolheria a estrada da conclusão
do tratamento, a fim de adquirir valor aos olhos do médico e prepararse para a vida real, onde este sentimento de amor poderia encontrar
lugar adequado. Em vez disso, apontamos nós, ela está mostrando
um espírito teimoso e rebelde, abandonou todo o interesse no
tratamento e claramente não sente respeito pelas convicções bem
fundadas do médico. Está assim expressando uma resistência, sob o
disfarce de estar enamorada dele; e, além disso, não se compunge
por colocá-lo numa situação difícil. Pois, se ele recusa seu amor, como
o dever e a compreensão compelem-no a fazer, ela pode representar
o papel de mulher desprezada e então afastar-se de seus esforços
terapêuticos por vingança e ressentimento, exatamente como agora
está fazendo por amor ostensivo.
Como segundo argumento contra a genuinidade desse amor,
apresentamos o fato de que ele não exibe uma só característica nova
que se origine da situação atual, mas compõe-se inteiramente de
repetições e cópias de reações anteriores, inclusive infantis.
Prometemos provar isso mediante uma análise pormenorizada do
comportamento da paciente no amor.
Se se acrescenta a dose necessária de paciência a estes argumentos,
é geralmente possível superar a difícil situação e continuar o trabalho
com um amor que foi moderado ou transformado; o trabalho visa
então a desvendar a escolha objetal infantil da paciente e as fantasias
tecidas ao redor dela.
Todavia, gostaria agora de examinar estes argumentos com olhos
críticos e levantar a questão de saber se, apresentando-os à paciente,
estamos realmente dizendo a verdade, ou se não nos estamos
valendo, em nosso desespero, de ocultamentos e deturpações. Em
outras palavras: podemos verdadeiramente dizer que o estado de
enamoramento que se manifesta no tratamento analítico não é real?
Acho que dissemos à paciente a verdade, mas não toda a verdade,
sem atentar para as conseqüências. Dos nossos dois argumentos, o
primeiro é o mais forte. O papel desempenhado pela resistência no
amor transferencial é inquestionável e muito considerável. Entretanto,
a resistência, afinal de contas, não cria esse amor; encontra-o pronto,
à mão, faz uso dele e agrava suas manifestações. Tampouco a
genuinidade do fenômeno deixa de ser provada pela resistência. O
segundo argumento é muito mais débil. É verdade que o amor
consiste em novas adições de antigas características e que ele repete
reações infantis. Mas este é o caráter essencial de todo estado
amoroso. Não existe estado deste tipo que não reproduza protótipos
infantis. É precisamente desta determinação infantil que ele recebe
seu caráter compulsivo, beirando, como o faz, o patológico. O amor
transferencial possui talvez um grau menor de liberdade do que o
amor que aparece na vida comum e é chamado de normal; ele exibe
sua dependência do padrão infantil mais claramente e é menos
adaptável e capaz de modificação; mas isso é tudo, e não o que é
essencial.
Por que outros sinais pode a genuinidade de um amor ser
reconhecida? Por sua eficácia, sua utilidade em alcançar o objetivo do
amor? A esse respeito, o amor transferencial não parece ficar devendo
nada a ninguém; tem-se a impressão de que se poderia obter dele
qualquer coisa.
Resumamos, portanto. Não temos o direito de contestar que o estado
amoroso que faz seu aparecimento no decurso do tratamento analítico
tenha o caráter de um amor ‘genuíno’. Se parece tão desprovido de
normalidade, isto é suficientemente explicado pelo fato de que estar
enamorado na vida comum, fora da análise, é também mais
semelhante aos fenômenos mentais anormais que aos normais. Não
obstante, o amor transferencial caracteriza-se por certos aspectos que
lhe asseguram posição especial. Em primeiro lugar, é provocado pela
situação analítica; em segundo, é grandemente intensificado pela
resistência, que domina a situação; e, em terceiro, falta-lhe em alto
grau consideração pela realidade, é menos sensato, menos
interessado nas conseqüências e mais ego em sua avaliação da
pessoa amada do que estamos preparados para admitir no caso do
amor normal. Não devemos esquecer, contudo, que esses
afastamentos da norma constituem precisamente aquilo que é
essencial a respeito de estar enamorado.
Quanto à linha de ação do analista, é a primeira destas três
características do amor transferencial que constitui o fator decisivo.
Ele evocou este amor, ao instituir o tratamento analítico a fim de curar
a neurose. Para ele, trata-se de conseqüência inevitável de uma
situação médica, tal como a exposição do corpo de um paciente ou a
comunicação de um segredo vital. É-lhe, portanto, evidente que não
deve tirar qualquer vantagem pessoal disso. A disposição da paciente
não faz diferença; simplesmente lança toda a responsabilidade sobre
o próprio analista. Na verdade, como ele deve saber, a paciente não
se preparara para nenhum outro mecanismo de cura. Após todas as
dificuldades haverem sido triunfantemente superadas, ela muitas
vezes confessará ter tido uma fantasia antecipatória na ocasião em
que começou o tratamento, no sentido de que, se se comportasse
bem, seria recompensada no final pela afeição do médico.
Para o médico, motivos éticos unem-se aos técnicos para impedi-lo de
dar à paciente seu amor. O objetivo que tem de manter em vista é que
a essa mulher, cuja capacidade de amor acha-se prejudicada por
fixações infantis, deve adquirir pleno controle de uma função que lhe é
de tão inestimável importância; que ela não deve, porém, dissipá-lo no
tratamento, mas mantê-la pronta para o momento em que, após o
tratamento, as exigências da vida real se fazem sentir. Ele não deve
encenar a situação de uma corrida de cães em que o prêmio deveria
ser uma guirlanda de salsichas, mas que algum humorista estragou ao
atirar uma salsicha na pista. O resultado foi, naturalmente, que os
cães se atiraram sobre ela e esqueceram tudo sobre a corrida e sobre
a guirlanda que os atraía à vitória muito distante. Não quero dizer que
é sempre fácil ao médico se manter dentro dos limites prescritos pela
ética e pela técnica. Aqueles que ainda são jovens e não estão ligados
por fortes laços podem, em particular, achá-lo tarefa árdua. O amor
sexual é indubitavelmente uma das principais coisas da vida, e a união
da satisfação mental e física no gozo do amor constitui um de seus
pontos culminantes. À parte alguns excêntricos fanáticos, todos sabem
disso e conduzem sua vida dessa maneira; só a ciência é refinada
demais para admiti-lo. Por outro lado, quando uma mulher solicita
amor, rejeitá-la e recusá-la constitui papel penoso para um homem
desempenhar; e, apesar da neurose e da resistência, existe um
fascínio incomparável numa mulher de elevados princípios que
confessa sua paixão. Não são os desejos cruamente sensuais da
paciente que constituem a tentação. É mais provável que estes
repugnem, e encará-los como fenômeno natural exigirá toda a
tolerância do médico. São, talvez, os desejos de mulher mais sutis e
inibidos em seu propósito que trazem consigo o perigo de fazer um
homem esquecer sua técnica e sua missão médica no interesse de
uma bela experiência.
E no entanto é inteiramente impossível para o analista ceder. Por mais
alto que possa prezar o amor, tem de prezar ainda mais a
oportunidade de ajudar sua paciente a passar por um estádio decisivo
de sua vida. Ela tem de aprender com ele a superar o princípio do
prazer, e abandonar uma satisfação que se acha à mão, mas que
socialmente não é aceitável, em favor de outra mais distante, talvez
inteiramente incerta, mas que é psicológica e socialmente
irrepreensível. Para conseguir esta superação, ela tem de ser
conduzida através do período primevo de seu desenvolvimento mental
e, nesse caminho, tem de adquirir a parte adicional de liberdade
mental que distingue a atividade mental consciente — no sentido
sistemático — da inconsciente.
O psicoterapeuta analítico tem, assim, uma batalha tríplice a travar —
em sua própria mente, contra as forças que procuram arrastá-lo para
abaixo do nível analítico; fora da análise, contra opositores que
discutem a importância que ele dá às forças instintuais sexuais e
impedem-nos de fazer uso delas em sua técnica científica; e, dentro
da análise, contra as pacientes, que a princípio comportam-se como
opositores, mas, posteriormente, revelam a supervalorização da vida
sexual que as domina e tentam torná-lo cativo de sua paixão
socialmente indomada.
O público, leigo, sobre cuja atitude em relação à psicanálise falei no
início, indubitavelmente apossar-se-á deste debate do amor
transferencial como mais outra oportunidade de dirigir a atenção do
mundo para o sério perigo desse método terapêutico. O psicanalista
sabe que está trabalhando com forças altamente explosivas e que
precisa avançar com tanto cautela e escrúpulo quanto um químico.
Mas quando foram os químicos proibidos, devido ao perigo, de
manejar substâncias explosivas, que são indispensáveis, por causa de
seus efeitos? É digno de nota que a psicanálise tenha de conquistar
para a própria, de novo, todas as liberdades que há muito tempo foram
concebidas a outras atividades médicas. Certamente não sou
favorável a abandonar os métodos inócuos de tratamento. Para muitos
casos, eles são suficientes e, quando tudo está dito, a sociedade
humana não tem mais uso para o furor senandi do que para qualquer
outro fanatismo. Mas acreditar que as neuroses podem ser vencidas
pela administração de remediozinhos inócuos é subestimar
grosseiramente esses distúrbios, tanto quanto à sua origem quanto à
sua importância prática. Não; na clínica médica sempre haverá lugar
para o ‘ferrum‘ e para o ‘ignis‘, lado a lado com as ‘medicinas‘; e, da
mesma maneira, nunca seremos capazes de passar sem uma
psicanálise estritamente regular e forte, que não tenha medo de
manejar os mais perigosos impulsos mentais e de obter domínio sobre
eles, em benefício do paciente.
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