Rosane da Conceição Pereira Pós-doutora (Unicamp), docente e pesquisadora da Escola Técnica Adolpho Bloch (Faetec) e Universo O vídeo Pedagogia do cotidiano escolar (Schulz, 2013), disponível aqui, é um exemplo de que é preciso partir das situações de sala de aula, didáticas (contextos), para os conteúdos (aulas). Todas as imagens a seguir são extraídas dele e ilustram esse estudo. É possível dizer que o processo educativo determina a primazia do saber (competências) em detrimento do saber fazer, ser aluno (habilidades trazidas, não adquiridas na escola). A metodologia da professora, cuja fala parece sem sentido, uma vez que soa como ruído para os alunos (e para nós), consiste em perguntar esperando respostas certas para exercícios difíceis de Ciências e Matemática, por exemplo. Além disso, ela censura um ato de criatividade, como a importância de uma caixa aparentemente vazia (mas que suscita muitas ideias) e repleta de possibilidades. E confere conceitos nem sempre positivos, que parecem rotular e podem complexar um aluno. Toda avaliação da professora sem nome – com a qual nos identificamos pelo menos uma vez, nem que seja pelo desconhecimento de outras metodologias de ensino e aprendizagem – apresenta-se como a Inquisição (perguntas sem contextualização). Não é por menos que ela parte dos seus conteúdos para a situação da sala de aula e não o contrário, como foi afirmado. Nesse sentido, a interação professor-aluno é unilateral, pois a professora age como sujeito de suposto saber, detentora absoluta do conhecimento e fechada aos efeitos de sentido (discursos) possíveis (Pechêux, 1983) na situação do cotidiano escolar. Por um lado, no vídeo, os alunos são impedidos pela professora de exercer a criatividade, a qual os identificaria como seres (de habilidade) que sabem fazer diferentemente o que lhes ensinam (saberes de competência). Por outro lado, as cenas do vídeo salientam pelo verbal (diálogos) e pelo não verbal (imagens) que o espaço-tempo dentro da escola (Pereira, 2011) se passa como se fosse linear, contínuo, monótono e de poderio hierárquico (Foucault, 2001), como o enfileiramento das cadeiras dos alunos visíveis (que um dia fomos) frente à da professora invisível (que não deveríamos ser). A escola do vídeo se apresenta como mais um espaço de aprisionamento dos corpos dos alunos (e mesmo da professora) a docilizar (domesticar), que, no entanto, resistem, tentando exercer a capacidade humana da linguagem, singular e criativa, de diferenças, mais do que a mera comunicação própria dos demais animais, em termos instintivos, de repetição ou reprodução mecânica de signos. Não haveria, portanto, interação professor-aluno possível nesse ambiente de ensino e aprendizagem exposto no vídeo, lembrando escolas tradicionais, da Pedagogia tida como antiga ou de epistemologia tradicional (Moretto, 2010), fechada, dura. Ao ar livre, fora da escola, alguns alunos refletem sobre os conceitos que lhes trazem dentro da escola, duvidando, mas sendo ainda oprimidos por eles (na cena com aluno lendo o boletim apresentando conceitos “C”) e nos fazem pensar também sobre o problema pedagógico. Para além do aprisionamento das ideias com a vigilância e controle próprios do sistema de ensino, o aluno também se sente e se comporta como réu em um tribunal, no qual a professora seria a juíza e os demais alunos os membros do júri (acusação e defesa). Isso ocorre sem que uma mediação possível pudesse ser feita pela simples troca de ideias (“C” de criatividade, aquém de um julgamento preconcebido em um “C” de conceito regular) na interação professor-aluno. A questão pedagógica não é referente a um conteúdo específico, como a nova e a velha Matemática, Psicologia ou Ciências, mas sim ao estudo do processo de ensinoaprendizagem como um todo, e que deveria ser considerado uma questão de criatividade para o discurso pedagógico (Orlandi, 2001), os efeitos de sentido possíveis na escola. Essa deveria ser, contudo, a interação professor-aluno desejável na escola, a imitar e motivar, partindo dos efeitos de sentido (situações simples, contexto da turma) ou discursos possíveis, para as respostas menos simples esperadas pela professora (conteúdos a ministrar) e não seu posicionamento político-pedagógico oposto. Tal atitude tende a provocar ansiedade e frustração nos alunos, que, mesmo tendo iniciativa em tentar responder o conteúdo, não são propriamente corrigidos, mas julgados pela professora e passam a responder então “chutando” (mobilizando qualquer resposta), com ironia e descaso. Muitas vezes, no ambiente escolar, o fim (finalidade) da educação pedagógica confundese com o fim (final e/ou falta) da educação familiar, como na última cena do vídeo, em que uma aluna exasperada com um problema confuso de Matemática afirma que sua “educação já chegou ao fim”. O sentido de educação desliza, assim, do processo de ensino-aprendizagem para o âmbito da suposição de outros sentidos possíveis (partir para a violência ou “ignorância”, usar o calão ou censurar, não responder ou silenciar etc.). Eis que toca a sirene do “fim” da aula: o cotidiano escolar precisa ser uma questão de criatividade para o discurso pedagógico, aberto aos valores partilhados no processo de interação professor-aluno. Em outras palavras, a professora poderia (nós professores poderíamos) aproveitar as situações de sala de aula, tal como a caixa aberta trazida pela aluna, para motivar ideias novas em seus conteúdos fechados, como a profundidade em Matemática e a composição do material da caixa em Química, por exemplo Assistindo ao vídeo é possível concluir que a escola não deveria ser um espelho fixo de conteúdos direcionados a um sociedade idealizada, fria, previsível e distante, mas antes uma janela aberta às mudanças que a sociedade in loco vive em sala de aula, reapresentando-se e renovando-se criativamente nas figuras de professor e aluno. É um posicionamento constantemente em trânsito no processo educativo, de forma mais democrática e muitas vezes paradoxal ou sem continuidade aparente no seu tempo e espaço a construir, como um muro de tijolos. Não devemos nos posicionar sobre nosso próprio fazer aprendizado-ensino e não simplesmente nos apoiar, encostar, escorar de modo inflexível? Trata-se do difícil desafio da motivação com criatividade, que pode ser uma base essencial da educação para professores e alunos cada vez mais comprometidos e refletindo a teoria e a prática pedagógica, no cotidiano escolar. Referências FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: história da violência nas prisões. Petrópolis: Vozes, 2001. PENHA, Adriana. Materiais da disciplina “Planejamento escolar e interdisciplinaridade”. Ministrada no curso de Formação Docente da Univesidade Salgado de Oliveira, campus São Gonçalo, para a turma Fordoc 1301, em 29 de novembro de 2013. MORETTO, Vasco Pedro. Prova: um momento privilegiado de estudo, não um acerto de contas. Rio de Janeiro: Lamparina, 2010. ORLANDI, Eni Puccinelli. A linguagem e seu funcionamento: as formas do discurso. Campinas: Pontes, 2001. PECHÊUX, Michel. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Campinas: Editora da Unicamp, 1983. PEREIRA, Rosane da Conceição; SOUZA, Tânia Conceição Clemente de. Discurso e ensino: reflexões sobre o verbal e o não verbal. Rio de Janeiro: Garamond/Faperj, 2011. SCHULZ, Charles M. Pedagogia: cotidiano escolar. Vídeo, s. d., 5’27”. Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=P5LRa8P6-Qk. Acesso em: 29 de novembro de 2013. Publicado em 28 de abril de 2015 http://educacaopublica.cederj.edu.br/revista/artigos/cotidiano-escolar-uma-questao-decriatividade-para-o-discurso-pedagogico- acesso em 12/04/2016