DA CASA GRANDE À ACADEMIA NÃO! RACISMO (DES) VELADO: UMA LEITURA A PARTIR DA ANÁLISE DO DISCURSO Marlon Leal Rodrigues* Nara Maria Fiel de Quevedo Sgarbi (UNIGRAN)** Alexandra Aparecida de Araújo Figueiredo (UNIOESTE)*** RESUMO: O presente texto tem por finalidade realizar uma leitura sobre os discursos racistas como determinantes de lugares sociais. Apesar da existência de uma falsa democracia racial, enunciados com esse enfoque ainda são motivos de pesquisas. Os lugares sociais estão pré determinados, discursivamente por meio de discursos racistas e/ou conformistas. Há no imaginário social a ilusão de poder de manutenção do status quo. Nesse sentido, a resistência a essa aparente ordem social vem demonstrar que esse poder centralizado em somente uma das partes envolvidas nesse embate, não se sustenta, pois as partes que sempre estiveram às margens, se tornaram evidentes a partir dos estudos relacionados aos discursos e seus efeitos de sentidos produzidos. Como sujeito do referido estudo, utilizamos um enunciado produzido por um agente político, ocupante de um cargo de representação significativa na sociedade. Como sustentação metodológica para essa leitura nos pautamos nas orientações da Análise do Discurso de linha Francesa e da Análise Crítica do Discurso. Os autores de referência utilizados como pano de fundo foram BAKHTIN (2002), FOUCAULT (2003), PÊCHEUX (1990) FAIRCLOUGH, (2001) e BOURDIEU (1983). PALAVRAS CHAVE: Discurso, racismo, lugares sociais. INTRODUÇÃO CONTRIBUIÇÕES DOS ESTUDOS DO DISCURSO NA EVIDÊNCIA DAS MARGENS. Na década de 70, ainda sob o império da linguística estruturalista, estudos voltados a outros aspectos da língua ganhavam cada vez mais espaço. As questões referentes aos usuários da língua e aos discursos produzidos pela mesma originaram-se de brechas deixadas pela linguística a qual oportunizou o desenvolvimento de estudos como o da Análise do Discurso e o da Análise Crítica do Discurso. Como expoentes dessas novas abordagens, temos Pêcheux (1990), Foucault (2003), Teun van Dijk (2008), além de Norman Fairclough (2001). Os referidos autores, respectivamente, postulam que a linguagem não pode ser entendida somente como uma unidade significativa, passiva de codificação, mas sim como efeitos de sentidos produzidos entre os sujeitos, linguagem como sinônimo de interdito, inscrita no interior de uma formação discursiva, concepção interacionista, prática social vinculada à noção de poder e ideologia. INTERLETRAS, ISSN Nº 1807-1597. V. 4, Edição número 22, de Outubro/2015 a Março,/ 2016 - p 1 Os estudiosos dessa área acreditam que a desconstrução ideológica de discursos que estão inseridos nas práticas sociais pode superar as relações de dominação que os mesmos instauram, ou seja, as mudanças nas práticas discursivas implicam mudanças nas práticas sociais. Isso remete aos embates por algo que ainda não está resolvido, ou seja, uma instabilidade discursiva. Suponho que em toda sociedade a produção de discurso é sempre ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que têm por função conjugar seus poderes a perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade (FOUCAULT, 2009, p.8-9). Assim é pelo e no discurso que determinados conceitos são cristalizados, do mesmo modo, é no discurso que os mesmos podem ser desconstruídos, considerando a perspectiva constituinte do discurso, pois é no ato da fala, a partir de ideologias históricas, que reforçamos determinados conceitos. Nessa direção, a reflexão abaixo vem a corroborar: Os lugares determinados na estrutura de uma formação social, lugares dos quais a sociologia pode descrever o feixe de traços objetivos característicos: assim, por exemplo, no interior da esfera da produção econômica, os lugares do “patrão” (diretor, chefe de empresa etc.), do funcionário de repartição, do contramestre, do operário, são marcados por propriedades diferenciais determináveis (PÊCHEUX, 1990, p.82). Nessa vertente, o intuito desse trabalho é promover uma reflexão em relação aos discursos constituintes que determinam os lugares sociais do negro, na tentativa de uma manutenção do status quo, ou seja, as posições sociais já estão determinadas, principalmente por discursos conformistas que visam cristalizar uma verdade e certa ordem social. Nesse sentido, buscamos as orientações da Análise do Discurso de linha francesa (AD )e mais especificamente da Análise Crítica do Discurso, (doravante ACD) visto que a última tem como um de seus objetivos a alteração social a partir da mudança discursiva. Logo, partimos do pressuposto de que da mesma forma que hoje temos discursos que ditam as identidades, a normalidade, o que é ciência, o lugar do negro, do índio, entre outros, acreditamos que a formulação de discursos contrários também é possível. Assim, para ACD o discurso possui o poder de ação sobre as pessoas e também postula as representações do mundo, logo, constrói significados. Os discursos não apenas refletem ou representam entidades e relações sociais, eles as constroem ou as “constituem”; diferentes discursos constituem entidades-chaves (...) de diferentes modos e posicionam as pessoas de diversas maneiras como sujeitos sociais (....) e são esses efeitos sociais do discurso que são focalizados na análise do discurso.(FAIRCLOUGH, 2001, p. 22). INTERLETRAS, ISSN Nº 1807-1597. V. 4, Edição número 22, de Outubro/2015 a Março,/ 2016 - p 2 Entendemos a AD e ACD como propícias a essa discussão considerando que as mesmas propõem uma abordagem transdisciplinar, assim bebem em outras fontes teóricas, rompendo fronteiras metodológicas. Desse modo, tanto a ACD como a AD dialogam com estudiosos como Foucault (2003) e Bakhtin (2002), entre outros já citados anteriormente, uma vez que partilham da concepção constitutiva do discurso, ou seja, o discurso constitui a sociedade em diversas dimensões como: os sujeitos e as formas sociais do eu e o outro, as relações sociais e as estruturas conceituais. Outro fator que identifica as semelhanças entre os autores citados acima é a questão da interdependência das práticas discursivas, logo, os textos sempre são recorrentes a outros textos, os ditos e não ditos nunca são inéditos, são desenvolvidos sempre a partir de um já dito, logo os discursos racistas de hoje possuem origem em uma história constituída a partir da segregação. 1 A LINGUAGEM COMO PRINCÍPIO DA AD E ACD. A partir da visão constitutiva do discurso, entendemos que toda atividade humana se realiza na e pela linguagem, logo o eu se constitui a partir do outro e somente com os outros. Contrariando as orientações proposta pela linguística estruturalista, em que a língua era considerada somente como sistema, logo, o outro não era considerado. Esse endereçamento vem corroborar com a ideia de que não pode haver enunciado sem interlocutores. Na realidade, toda palavra comporta duas faces. Ela é determinada tanto pelo fato de que procede de alguém, como pelo fato de que se dirige para alguém. Ela constitui justamente o produto de interação do locutor e do ouvinte. Toda palavra serve de expressão a um em relação ao outro. Através da palavra, defino-me em relação ao outro, isto é, em última análise, em relação à coletividade. A palavra é uma espécie de ponte lançada entre mim e os outros. [...]. A palavra é o território comum do leitor e do interlocutor (BAKHTIN/VOLÓSHINOV, 2004, p. 113). É preciso destacar que, conforme o pensamento bakhtiniano, esse constituir-se pelo outro, não significa ser assujeitado, mas sim um intenso embate responsivo, no intuito de o eu ser uma entre tantas outras vozes constituintes da polifonia existente na sociedade. As pessoas não conseguem ser elas mesmas a menos que se liguem a uma outra. (BRAIT, 2008, p. 123). Trazendo essas considerações para a área discursiva referente às minorias, torna-se evidente que discursos de democracia racial, igualdade, justiça social, dentre outros, só existem justamente por pertencerem a esses campos discursivos que não estão sobre territórios tranquilos, daí a necessidade de embates, conforme as orientações a seguir: A classe dominante tende a conferir ao signo ideológico um caráter intangível e acima das diferenças de classe, a fim de abafar ou ocultara luta dos índices sociais de valor que aí se trava, a fim de tornar o signo INTERLETRAS, ISSN Nº 1807-1597. V. 4, Edição número 22, de Outubro/2015 a Março,/ 2016 - p 3 monovalente [...] Nas condições habituais da vida social, esta contradição oculta em todo signo ideológico não se mostra à descoberta. (BAKHTIN, 2002, p. 47). Ter voz diante de uma sociedade dominante não é tarefa fácil, pois os discursos dominantes possuem a incumbência de manter a ordem, ou seja, cada um em seu lugar, lugar já determinado pelo dominante. Assim, muitas vezes a voz a esses dominados fica impossibilitada, uma vez que foi abafada antes mesmo de ser pronunciada, pois na consciência de dominado não há mesmo o que ser dito, visto as inúmeras vezes que ouviu (e ouve) que sua condição é e sempre será a mesma. Às minorias, negado o direito de ser ouvida, só lhe restam o silêncio, entretanto, isso não significa ser passivo e aceitar o que está posto, uma vez que o silenciamento também é uma forma de responsividade e em muitas vezes tem mais a dizer que as próprias palavras. A partir dessa interação responsiva que é, antes, também um processo polifônico, que recupera vozes anteriores e posteriores das interações verbais, e não somente uma realização entre as vozes do locutor e seu ouvinte: “cedo ou tarde, o que foi ouvido e compreendido de modo ativo encontrará um eco no discurso ou no comportamento subsequente do ouvinte” (BAKHTIN, 1997, p. 290-291). Isso implica afirmar que esses discursos, que insistem em manter certa ordem social, são reflexos da ilusão de uma sociedade homogênea e hegemônica. É nessa perspectiva das várias vozes em interação que se articulam, que a ACD centra suas análises, pois é nesse momento que podemos perceber a influência da linguagem como espaço de luta hegemônica, viabilizando as lutas pelo poder e as contradições sociais. Essas questões também são desenvolvidas nas abordagens de Foucault (2003, p. 10) em que destaca a visão constitutiva do discurso. Para o autor a linguagem é uma prática que constitui tanto os objetos sociais quanto os sujeitos. Analisar discursos é antes de tudo posicioná-los sócio historicamente, identificar as formações discursivas interligadas, perceber as regras que permitem suas ocorrências em determinados contextos. . Toda tarefa crítica, pondo em questão as instâncias de controle, deve analisar ao mesmo tempo as regularidades discursivas através das quais elas se formam; e toda descrição genealógica deve levar em conta os limites que interferem nas formações reais. (FOUCAULT, 2003, p. 66). Nessa direção, considerando as relações dos discursos e não discursivas fica evidente a busca de certa ordem social a partir do que pode ou não ser dito diante de determinada posição e situação. É nesse contexto de vigiar que são impostas as regras dos discursos, INTERLETRAS, ISSN Nº 1807-1597. V. 4, Edição número 22, de Outubro/2015 a Março,/ 2016 - p 4 pois o poder é exercido a partir de práticas discursivas institucionalizadas e quem tem acesso a esses discursos, de certa forma também exerce o poder e dita as regras a serem seguidas. É nesse sentido, na obra Vigiar e Punir (1997), que Foucault contribui para os estudos da linguagem, ao estabelecer o vínculo entre discurso e poder uma vez que as técnicas utilizadas para a vigilância podem insinuar possíveis mudanças sociais, sem uso da forca, apenas com práticas discursivas disciplinadoras. É por esse viés que estão centrados os discursos direcionados às minorias, um discurso que possui o poder de cercear o indivíduo, sem utilizar a força (aparentemente), ou seja, não há a presença das grades ou algemas, porém está amarrado às relações de poder. Dessa forma, vale ressaltar que não há discurso neutro, visto que os mesmos sempre estão atrelados a alguma instituição ou campo de saber, e assim são entendidos como enunciados verdadeiros e são sempre decorrentes de outros enunciados, como indica a contribuição abaixo: [não há] enunciado livre, neutro e independente; mas sempre um enunciado fazendo parte de uma série ou de um conjunto, desempenhando um papel no meio dos outros, neles se apoiando e deles se distinguindo: ele se integra sempre em um jogo enunciativo, onde tem sua participação, por ligeira e ínfima que seja. [...] Não há enunciado que não suponha outros; não há nenhum que não tenha, em torno de si, um campo de coexistências (FOUCAULT, 1986, p.114). Desse modo, os ditos pejorativos, preconceituosos e racistas, referentes à população negra marginalizada que temos hoje, são resquícios de uma sociedade colonizada e dominadora, é inegável, então, que são decorrentes, também, de uma falsa visão de ordem social. As práticas sociais não são estanques, estão em constantes transformações, da mesma forma são as estruturas sociais, como da ciência, religião, política, pedagógica, dentre outras que ditam o certo e o errado na sociedade. Logo, tudo que destoa do determinado pelas referidas instâncias é considerado anormal, incompetente, feio, errado, entre outros adjetivos negativos. Partindo do pressuposto de que não há dizeres novos, podemos inferir que uma mudança na linguagem utilizada para definir a população negra implicaria em uma mudança nas ações relacionadas a esse público, ou seja, a mudança nos discursos pejorativos e preconceituosos está condicionada a uma mudança nas práticas sociais. Uma evidência de que as mudanças linguísticas, ou seja, discursivas influenciam nas práticas sociais, é a ressignificação lexical que alguns setores das atividades sociais sofreram. A instituição escolar pode ser exemplo desse fato visto que são propagados, pelo menos deveriam ser, com mais frequência discursos referentes às diferenças, diversidade, etnias, multiculturalismo e, por conseguinte, isso implica em uma redefinição de novos discursos. Esses novos discursos impedem, ou pelo menos tentam impedir, a manutenção de discursos antigos, assim dificultando o retorno de discursos INTERLETRAS, ISSN Nº 1807-1597. V. 4, Edição número 22, de Outubro/2015 a Março,/ 2016 - p 5 do passado, logo exigem novas posturas sociais diante de tais questões, como as leis que preconizam a punição para as injustiças sociais e raciais. Diante das novas necessidades estabelecidas pelos novos discursos, novos campos de saber são exigidos a esse novo contexto, esse acontecimento Fairclough (1995) denomina de “Tecnologias do Discurso”. De acordo com o autor, essas tecnologias possuem um maior controle da vida das pessoas, são técnicas “transcontextuais, consideradas como recursos ou conjunto de instrumentos que podem ser usados para perseguir uma variedade ampla de estratégias em muitos e diversos contextos”. (FAIRCLOUGH, 1995, p. 264). Logo, ainda sob as orientações do autor, essas tecnologias discursivas instituem um pacto entre o conhecimento sobre a linguagem/ o discurso e o poder. Assim, as instituições são produtoras e reprodutoras de tecnologias do discurso e os seus sujeitos reprodutores dos discursos institucionalizados que são socialmente aceitos como verdades. A partir do exposto e considerando que as mudanças sociais estão atreladas às mudanças discursivas, entendemos que a mudança nos discursos institucionalizados poderia ser uma oportunidade de mudança social. Ainda sob uma perspectiva dialógica, buscamos as orientações de Bourdieu (1989) com intuito de refletir a respeito da dominação de uma das partes em relação às outras, presentes em determinado campo social, a partir das relações de força, uma vez que no campo social os agentes sociais estão divididos entre dominantes e dominados. Nessa direção, os dominantes, possuidores de maior capital simbólico, visam à conservação desse campo, ou seja, pela aparente ordem que os mesmos impõem. Por outro lado, os dominados, consequentemente com menor capital simbólico, estão em constantes embates na tentativa de uma transformação desse espaço social. Assim, há uma luta simbólica entres esses agentes, na busca pelo poder, num determinado campo. Logo, segundo Burdieu (1989, p.14), essa luta visa, “poder de construir o dado pela enunciação, de fazer ver e de fazer crer, de confirmar ou de transformar a visão do mundo, e, desse modo, a ação sobre o mundo, portanto, o mundo” [...] essa relação dominante e dominado ocorre por meio da violência simbólica, a qual possui o poder de impor significações como legítimas, num processo dissimulador reformula as forças bases, impondo suas próprias forças. Desse modo, quanto maior for o poder simbólico de um dominante e menor o do dominado, maior será as chances de o dominador ampliar suas forças e isso se concretiza por meio e pelo discurso. É nesse sentido que se faz necessário a veiculação de enunciados que venham a combater os discursos dominantes, principalmente quando o discurso dominador vem de um líder, pois o mesmo possui mais probabilidade de ser ampliado e aceito como verdade visto que esse líder possui maior competência discursiva, e isso o permite intensificar a força simbólica em seu ato discursivo. Vale ressaltar aqui que para Bordieu (1983) as tomadas de decisões dos agentes sociais não são livres ou determinadas pelas estruturas sociais, como religiosa, política, cultural INTERLETRAS, ISSN Nº 1807-1597. V. 4, Edição número 22, de Outubro/2015 a Março,/ 2016 - p 6 ou econômica, para o autor os agentes possuem uma relativa autonomia nas escolhas de suas ações. Logo, suas escolhas estão condicionadas às estruturas, tanto objetivas como subjetivas. Assim, as práticas comuns que estão sendo representadas por um grupo social, ou seja, o que o indivíduo possui como habitus, também são determinantes em suas escolhas. Para designar habitus, o autor sugere que o mesmo pode ser entendido como: Sistema de disposições duráveis, estruturas estruturadas predispostas a funcionar como estruturas estruturantes, isto é, como princípio gerador e estruturador das práticas e das representações que podem ser objetivamente „regulamentada‟ e „reguladas‟ sem ser o produto de obediência a regras, objetivamente adaptadas a seu fim sem supor a intenção consciente dos fins e o domínio expresso das operações necessárias para atingi-los e coletivamente orquestradas, sem ser o produto da ação organizadora de um regente (BOURDIEU, 1983, p.60-61). Por conseguinte, se as práticas e representações que o indivíduo agrega em sua trajetória são premissas para suas ações, logo, trazendo essas concepções para os discursos referentes às minorias e nesse caso específico, para a questão do negro, podemos inferir que, em algum momento de sua caminhada e principalmente, considerando a posição que o mesmo estiver ocupando, essa bagagem discursa irá transparecer. Desse modo, as intenções e ações dos agentes sociais, são antes de tudo uma relação dialógica entre o habitus e situação em que o mesmo se encontra, portanto o acontecimento dessas ações são condicionados a uma certa regularidade social, ou seja, um dizer só é dito porque é permitido, há uma platéia que lhe permite. 2 ANÁLISE DISCURSIVA As análises a seguir possuem como ponto de partida um enunciado que de acordo com as teorias acima já mencionadas, é considerado um enunciado racista e preconceituoso, (Dar um Doutorado pra você, seria a mesma coisa de dar um Doutorado a uma cozinheira, ela seria sempre uma cozinheira dentro da escola). Nesse sentido buscamos confrontar o referido enunciado com o gênero discursivo charge visto que a charge possui como um de seus princípios a crítica voltada às questões sociais. Nessa direção, considerando a perspectiva dialógica do gênero discursivo charge, podemos evidenciar que as charges escolhidas remetem à situação de racismo em que ainda vive a população negra. Logo, a enunciação enquanto ato concreto da língua, situado em determinado espaço, tempo e proferido por determinado sujeito carrega em si outros discursos, outras enunciações, o que Bakhtin chama de “discurso de outrem”. Desse modo, o discurso da charge estabelece relações dialógicas com outros discursos racistas, construído ao longo da história. Nesse sentido, Bakhtin, sugere que a dialogia é algo inerente à vida: A vida é dialógica por natureza. Viver significa participar de um diálogo: interrogar, ouvir, responder, concordar, etc. Nesse diálogo o homem participa INTERLETRAS, ISSN Nº 1807-1597. V. 4, Edição número 22, de Outubro/2015 a Março,/ 2016 - p 7 inteiro e com toda a vida: com os olhos, os lábios, as mãos, a alma, o espírito, todo o corpo, os atos. (BAKHTIN, 2003, p.348). Ao enunciarmos (re) produzimos outros enunciados, ou seja, estabelecemos relações, diálogos com outros textos. O texto necessita do contexto histórico de produção, autor, para que faça sentido, assim a linguagem como prática social sempre estará ligada a um contexto, por um sujeito socialmente constituído em determinado espaço, levando em conta situação interacional e os interlocutores. Com o objetivo de situarmos o leitor, traremos breve descrição da origem do enunciado em questão tomado como parte do corpus. O mesmo foi proferido por um agente social político de destaque, o qual possui posição de líder dentro da sociedade. Em um determinado contexto inserido em uma secretaria de Educação, uma servidora da Educação do município, há 11 anos (dentro de sala de aula), negra, acadêmica de um curso de Pós- Graduação de nível Doutorado, assegurada de seus direitos, pelo Estatuto do Servidor Público do Município, foi questionar à Secretária de Educação pelo indeferimento da solicitação de licença para Estudo. Nesse momento, o agente social que detém uma liderança na tentativa de explicar os motivos de seu posicionamento negativo diante do caso, verbalizou: “Fiquei feliz em saber que você conseguiu chegar onde chegou, gostaria de encontrar um meio legal de te ajudar. Mas diante do cargo que você ocupa dentro do Município, não é conveniente a secretaria te dar uma licença visto que você não tem como retribuir esse conhecimento `a secretaria de Educação, em outras palavras à Prefeitura. Você está entendendo Fulana? Dar um Doutorado pra você seria a mesma coisa que dar um Doutorado a uma cozinheira, ela seria sempre uma cozinheira dentro da escola”. Voltemo-nos ao gênero discursivo charge: INTERLETRAS, ISSN Nº 1807-1597. V. 4, Edição número 22, de Outubro/2015 a Março,/ 2016 - p 8 Disponível em: http://professorinha-sandrynnha.blogspot.com.br/2012/07/algumas-charges.html Acesso: 08/06/2014. “Não dô nem 500 anos pra vocês conquistarem o poder neste país!!!” Os discursos conformistas podem ser considerados os mais poderosos no sentido de manutenção do social. Assim, o discurso acima carrega o mesmo significado de dizer que “Fiquei feliz em saber que você conseguiu chegar onde chegou, gostaria de encontrar um meio legal de te ajudar”, ou seja, o enunciado pretende transmitir a imagem de uma pessoa boa que até possui intenção de ajudar, assim, não tem porquê se revoltar com uma pessoa com essas qualidades, ela até quer ajudar e ficou feliz por você ter conseguido chegar até aqui, porém, ao mesmo tempo ignora, subestima o conhecimento de seu interlocutor ao dizer que gostaria de ajudar, mas não encontra um meio legal. Discursos nesse sentido buscam antes de tudo uma proximidade com seu INTERLETRAS, ISSN Nº 1807-1597. V. 4, Edição número 22, de Outubro/2015 a Março,/ 2016 - p 9 dominado, na tentativa de agradá-lo, uma vez que a força bruta não é mais possível, assim é mais fácil de convencê-lo, como os colonizadores fizeram a mais ou menos quinhentos anos com os indígenas, lhes presenteado com espelhos. Mas não se atentaram para os possíveis sentidos que os reflexos desses espelhos poderiam ganhar, pois ao mesmo tempo em que podem refletir a imagem construída pelo dominador, também é possível o reflexo de um dominado que adquiriu voz e pode se tornar sujeito e não mais indivíduo. Nessa direção, nos apoiamos em Pêcheux, quando o mesmo postula que ; Todo indivíduo humano, isto é, social, só pode ser agente de uma prática se se revestir de forma de sujeito. A „forma-sujeito‟, de fato, é a forma de existência histórica de qualquer indivíduo, agente das práticas sociais (L. Althusser, apud PÊCHEUX, 2009, p.150). Assim, é a partir da posição de sujeito que o indivíduo pode deixar de ser apenas em reflexo representado pelo dominador. Portanto, o que ficou evidente nos enunciados acima é que, mesmo a negra estando inserida em um contexto considerado como elite da sociedade, sendo aluna de um curso em nível de doutorado, visto que isso não é comum, pois não são todos que têm a mesma oportunidade, ela é antes de tudo negra, a cor de sua pele determina o seu lugar. Essa é a tradução mais eficaz do discurso acima. Por conseguinte, de acordo com a visão dominante, cercear o outro não é problema algum, isso não pode ser visto como racismo. Ainda mais uma charge: INTERLETRAS, ISSN Nº 1807-1597. V. 4, Edição número 22, de Outubro/2015 a Março,/ 2016 - p 10 Disponível em: http://professorinha-sandrynnha.blogspot.com.br/2012/07/algumas-charges.html Acesso: 08/06/2014. “Tá certo que no Brasil os brancos têm os melhores cargos, as melhores casas, os melhores carros, enfim, vivem melhor que os negros. Mas....onde é que ta o racismo nisso?”. A imagem e o discurso representam com efetividade essa visão de que não há nada de errado, não há racismo, tudo está na perfeita ordem social. O negro sempre com os menores salários, os piores empregos, as piores moradias, todos os restos que para os “brancos” (se é podemos dizer que em nossa sociedade temos brancos), não servem, assim são relegados aos negros. Logo, o discurso em questão; Dar um Doutorado pra você, seria a mesma coisa que dar um Doutorado a uma cozinheira, ela seria sempre uma cozinheira dentro da escola), a partir da visão do dominante está correto, pois considerando o endereçamento do discurso, diante da imagem de uma mulher negra, não caberia outro dizer visto que lugar de toda mulher negra sempre foi a cozinha. Para o dominador é inconcebível uma negra doutora. Nessa direção, o contexto sugere haver uma desarmonia na situação, o negro já conseguiu sair da senzala e já chegou à Casa Grande, agora quer chegar ao lugar destinado aos filhos dos Senhores, isso é ofensa, pois até outro dia era vendido junto aos mesmos lotes de animais da fazenda, como mercadorias, não era nem humano, como agora quer ser doutor? Os negros nem almas possuíam, eram vistos como bicho, INTERLETRAS, ISSN Nº 1807-1597. V. 4, Edição número 22, de Outubro/2015 a Março,/ 2016 - p 11 animais irracionais, serviam somente ao trabalho pesado, ou aos prazeres de seus senhores e quando não obedeciam eram açoitados no tronco, e agora serão doutores? Foi nesse contexto de inferioridade e submissão, a partir das relações de poder que foi constituída discursivamente a imagem do negro, sempre devendo obediência ao seu senhor. Quanto a esse poder como constituição Foucault indica que: Tendo como efeito a constituição de uma identidade. Pois minha hipótese é de que o indivíduo não é o dado sobre o qual se exerce e se abate o poder. O indivíduo, com suas características, sua identidade, fixado a si mesmo, é o produto de uma relação de poder que se exerce sobre corpos, multiplicidades, movimentos, desejos, forças (Foucault, 1979: 161-162). O resultado dessa relação de poder, ou seja, esse produto que teve início na formação da identidade do negro na sociedade ainda persiste na atualidade, pois na casa grande, da atualidade, o negro dorme no quartinho dos fundos, muitas vezes junto aos materiais de limpeza, come o que é deixado sobre a mesa, ou o que sua senhora determinar, é assediado pelos seus senhores, e se reclamar a culpa é sempre do negro. As práticas, tanto físicas como discursivas, não tiveram muitas mudanças desde que foi instituída a extinção da escravidão. Porém, apesar de todo cerceamento, discriminação, violência, assédios, dentre outros males causados aos negros, o negro quis ir à escola, pois entendia essa “ida” como uma oportunidade de mudança, o conhecimento como liberdade, uma forma de resistência ao poder dominante, a partir do PODER do conhecimento. Agora o negro pode entender que há racismo, que sua situação de inferioridade dentro do contexto social é devido a esse racismo, muitas vezes velado, é devido à cor de sua pele, e não por incompetência sua. Agora o negro pode ser doutor, e ser protagonista de momentos como o representado na imagem a seguir: INTERLETRAS, ISSN Nº 1807-1597. V. 4, Edição número 22, de Outubro/2015 a Março,/ 2016 - p 12 Disponível em: http://professorinha-sandrynnha.blogspot.com.br/2012/07/algumas-charges.html Acesso: 08/06/2014. “Veio fazer o quê aqui no supermercado? Comprar bananas? rerere” “Não! Eu sou o delegado que está cuidando do caso de racismo”. Aqui está uma demonstração de que o poder, representado somente como exclusão e de posse apenas do dominador, não se sustenta, ele se constitui nas interações sociais, o poder é produto da resistência. Assim, a crítica central da charge, de que o negro também possui competência de ocupar uma posição de evidência na sociedade, vem justamente corroborar com a ideia de um poder descentralizado, como sugere Foucault: Portanto, não existe, com respeito ao poder, um lugar da grande recusa -alma da revolta, foco de todas as rebeliões, lei pura do revolucionário. Mas sim resistências, no plural, que são casos únicos: possíveis, necessárias, INTERLETRAS, ISSN Nº 1807-1597. V. 4, Edição número 22, de Outubro/2015 a Março,/ 2016 - p 13 improváveis, espontâneas, selvagens, solitárias, planejadas, arrastadas, violentas, irreconciliáveis, prontas ao compromisso, interessadas ou fadadas ao sacrifício; por definição, não podem existir a não ser no campo estratégico das relações de poder. (...)As resistências não se reduzem a uns poucos princípios heterogêneos; mas não é por isso que sejam ilusão, ou promessa necessariamente desrespeitada.(...) Grandes rupturas radicais, divisões binárias e maciças, às vezes. É mais comum, entretanto, serem pontos de resistência móveis e transitórios, que introduzem na sociedade clivagens que se deslocam, rompem unidades e suscitam reagrupamentos, percorrem os próprios indivíduos recortando-os e os remodelando, traçando neles, em seus corpos e almas, regiões irredutíveis. (FOUCAULT, 1998, p. 106-107). Resistir aos discursos de manutenção é promover rupturas, transgredir o que está posto como ordem social, nesse caso específico é SER Doutor em uma sociedade onde lugar do negro, ao sair da senzala, o máximo permitido a ele era somente a cozinha da Casa Grande de seus senhores. E após muitos anos à beira do fogão de lenha da Casa Grande, poderia até ser considerado como “quase da família”, mas sempre na cozinha. E como manutenção de seu lugar na casa, os discursos conformistas cumpriam (cumprem) sua função, fulana cozinha como ninguém; tem mãos de ouro; se fulana me deixar não sei o será de mim; quando chego ao portão, já sei que foi você quem limpou minha casa, o banheiro que você limpa dá até pra dormir dentro dele de tão limpo. Assim, após as chibatadas físicas não serem mais permitidas, hoje temos os discursos racistas que cumprem o mesmo papel, foi (é) instituído o lugar do negro, e assim é essa a imagem que permeia o imaginário social. Portanto o discurso “Dar um Doutorado pra você, seria a mesma coisa que dar um Doutorado a uma cozinheira, ela seria sempre uma cozinheira dentro da escola”, são ecos de uma sociedade construída por uma história de dominação que embora defenda a “democracia racial” e a não existência do racismo, as ações de alguns líderes /agentes sociais respondem por si. A não representação em lugares de destaques na sociedade é gritante, ou seja, não é comum o negro ocupar cargos de evidência no meio social, assim, sempre é visto como só mais um negro às margens da sociedade. Essa é a representação que há no cotidiano, logo ao se deparar com um negro que se tornou doutor ou QUER se tornar é motivo de estranheza, como se algo estivesse errado, alguma coisa destoou do que foi orquestrado. Ele pode até carregar o piano, porém jamais poderá tocá-lo, na hora do show seu lugar será sempre nos bastidores, na cozinha, nunca na plateia. Desta forma, as mulheres e as mulheres negras principalmente, têm que se fazer ouvidas e ousarem informar aos ilusórios “dominantes” que tanto a Cozinha como os demais cômodos da Casa Grande, ficaram pequenos demais, que as chibatadas dos discursos racistas e conformistas não cortam mais suas peles negras e, principalmente, esses discursos não mais são não obedecidos porque essas mulheres, em tempo, se tornaram dominantes também nesse assunto, ou seja, em relação ao discurso. Essas mulheres precisam demonstrar que dominam o poder da palavra e por isso ao desobedecerem não são mais postas no “tronco”, pois a partir do conhecimento, muitas vezes lhes negado, correram em busca do mesmo e adquiriram o PODER da escrita, o poder de dizer, de desvelar e INTERLETRAS, ISSN Nº 1807-1597. V. 4, Edição número 22, de Outubro/2015 a Março,/ 2016 - p 14 contrariaram toda a previsão dos dominadores, ou seja, o caminho da Casa Grande à Academia foi trilhado e está aberto às novas “cozinheiras”. CONSIDERAÇÕES FINAIS A língua em sua praticidade não é neutra, desse modo, veicula sentido e valores, daí a sua complexidade para os estudiosos que tentam pesquisá-la fora de seu contexto de uso. Assim analisar os discursos e seus efeitos de sentidos é antes de tudo analisar as práticas sociais onde se fundam os sentidos produzidos pelos discursos. Tentar negar essa relação dialética entre discurso e práticas sociais pode incorrer em não dar conta das especificidades inerentes à língua como interação, interação essa constituída a partir de uma luta de forças simbólicas que visam a um poder simbólico dentro de determinado campo social. É preciso ressaltar que o poder não está centrado apenas em uma das partes inseridas nesse campo, assim ele é produto dessa relação, ou seja, se constitui nas tramas das relações de poder. Desse modo, discursos como o utilizado nesse trabalho só é possível porque ainda estamos sob territórios discursivos não tranquilos, há uma luta constante. Logo, a ortodoxia, considerada como o dominante visa a manutenção das estruturas desse campo, assim a conservação de uma certa ordem social. Da mesma forma a heterodoxia, entendida como o dominado, tem como cerne nesse contexto, a transformação do que está posto como único e aceito como correto. Assim tudo o que não está dentro dos parâmetros do dominante é marginalizado e deve continuar às margens, não há espaços comuns para dominado e dominante. Portanto para o negro querer ser doutor nessa sociedade, ou mais determinadamente para a mulher negra querer atingir o título de doutora nessa sociedade em que para ela já está determinado qual é sua posição, é uma transgressão à normalidade, ao correto. Entretanto, partindo do pressuposto de que a possibilidade de mudanças social está pautada na mudança discursiva, entendemos que justamente por não estarmos em territórios amigáveis é que a discussão direcionada a esse campo deve ser contínua. O outro não deve ser visto como ameaça, e sim como uma contribuição uma vez que respeitar o singular nas multiplicidades contextuais é uma forma de fortalecimento do eu. REFERÊNCIAS BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1997 -2003. INTERLETRAS, ISSN Nº 1807-1597. V. 4, Edição número 22, de Outubro/2015 a Março,/ 2016 - p 15 _____, M. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 2002. _____, M.; VOLÓSHINOV, V. N. Marxismo e filosofia da linguagem: fundamentos fundamentais do método sociológico na Ciência da linguagem. Trad. De Michel Lahud, Yara Teixeira Vieira. 13ª ed. São Paulo: Hucitec, 2004. BOURDIEU, Pierre. Esboço de uma teoria da prática. In: ORTIZ, Renato (org.). Pierre Bourdieu: sociologia. São Paulo, Ática, 1983 a. BRAIT, Beth. Memória, linguagens, construção de sentidos. In: LARA, G. M. P.; MACHADO, I. L.; EMEDIATO, W. (org.) Análises do discurso hoje, vol. 2, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2008, p. 115-132. FAIRCLOUGH, Norman. 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