ROCK E QUADRINHOS - II Congresso Internacional de Estudos do

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ROCK E QUADRINHOS: INTERTEXTUALIDADE ENTRE
DIFERENTES EXPRESSÕES ARTÍSTICAS
Bruno Camargo Manenti1
Introdução
Desde seu surgimento, entre os anos 1950, o rock and roll esteve associado à
vanguarda e juventude. Ainda que muitos o relacionassem à rebeldia e transgressão, o estilo
musical se manteve influente e em rápida expansão. Criado a partir de referências no rhythm
and blues, country, jazz e folk, sai dos Estados Unidos para conquistar outros continentes.
Mesmo com o preconceito pela cultura do rock, o gênero se consolida com apoio de
gravadoras e da mídia, com aparições de bandas como The Beatles em programas de rádio e
televisão.
Já as histórias em quadrinhos, apesar de mais antigas, demoraram a alcançar um
status artístico. A primeira história desenhada foi desenvolvida pelo norte-americano Richard
Outcault em 1895. “Yellow Kid” introduz conceitos clássicos dos quadrinhos, como
personagem fixo e balões de fala. Por muito tempo, estas revistas estavam associadas aos
públicos infantil e adolescente. A história em quadrinhos como produto cultural ganha
visibilidade nos anos 1960, com autores como Robert Crump e suas produções independentes.
Em 2005, a revista Time publica sua lista dos 100 melhores romances e inclui a graphic
novel “Watchmen”, de Alan Moore e Dave Gibbons. Escrito em 1986, o romance gráfico
mostrou uma nova faceta dos quadrinhos, consolidando-os como arte.
Estas duas formas de expressão, o rock e a história em quadrinhos, mostraram-se
ao longo das décadas forte ligação com a juventude, mas capazes de dialogar com diferentes
gerações com facilidade. Ambas abriram caminhos para as mais diversas criações,
expandindo universos. Assim como o rock dos anos 1950 foi o precursor de subgêneros
1
Formado em Comunicação Social com Habilitação em Jornalismo pela Pontifícia Universidade
Católica do Paraná – PUC-PR. [email protected]
variados, do pop rock de Elton John ao grunge do Nirvana, os quadrinhos publicados em
jornais como “Yellow Kid” foram o primeiro passo para o surgimento de diferentes estilos de
revistas em quadrinhos, dos super-heróis de Stan Lee às histórias eróticas de Milo Manara.
Por estas características de fácil adaptação e livre criatividade artística, rock e
quadrinhos se aproximam. Neste diálogo, surgem trabalhos artísticos que unem referências
dos dois universos.
O presente trabalho foca na produção nacional de histórias em quadrinhos a partir
de 2006 que trazem forte ligação com o rock, seja em histórias baseadas em músicas, em
personalidades ou acontecimentos. Uma análise descritiva de sete revistas traz observações
sobre o uso de símbolos que identifiquem esta influência do rock nos desenhos, como os
quadrinhos se utilizam das canções para criar um novo produto e como se dá esta
intertextualidade.
Entre as obras selecionadas estão: “Rock vs. Comics” de Evandro Esfolando,
“Papai Noel velho batuta”, de Leonardo Melo, “Fire” de André Caliman, “A walk on the wild
side” de Mário César, “Love Hurts” de Murilo Martins, “EP” de Dalts e Magentaking e
“Daytripper” de Fábio Moon e Gabriel Bá.
Símbolo e intertextualidade
As histórias em quadrinhos citadas se utilizam de símbolos para referenciar as
músicas e artistas nas quais se baseiam. Estes símbolos podem ser identificados de diversas
maneiras, seja com desenho, texto ou o conceito criado a partir do entendimento das canções.
Jung define símbolo como “um termo, um nome ou mesmo uma imagem que nos pode ser
familiar na vida cotidiana, embora possua conotações especiais além do seu significado
evidente e convencional” (2008, p. 18).
Esta definição implica que as expressões tenham significados mais complexos,
manifestando-se no caso das revistas em quadrinhos em forma de intertextualidade com as
músicas. Uma palavra ou imagem utilizada no quadrinho poderá ter relação com uma
expressão musical, tornando-se assim multifacetado, por esta interpretação que permeia dois
textos.
Umberto Eco, em “Tratado Geral de Semiótica”, apresenta o conceito de
semiótica como o estudo de “qualquer fenômeno de significação e/ou comunicação” (2012, p.
1). É, portanto, a análise de símbolos, seus significados e utilizações. Entre os estudiosos
deste ramo, destacam-se Peirce e Saussure.
Charles Sanders Peirce coloca a definição de símbolo como uma categoria de
signo, sendo que signo, ou representamen, “é qualquer coisa que está para alguém no lugar
de algo sob determinados aspectos ou capacidades” (ECO, 2012, p. 10, grifo do autor).
Símbolos já seriam signos “arbitrariamente relacionados com seu objeto” (id., p. 157), ou
seja, de interpretações abertas.
Peirce propõe a relação triádica de signo, partindo do representamen (o que
representa) para um interpretante (o que significa) através de um objeto (o que é representado)
(COBLEY e JANSZ, 2010, p. 22).
Já para Ferdinand de Saussure o “signo era implicitamente considerado como um
ARTIFÍCIO COMUNICATIVO” (id., p. 10, grifo do autor). Ele apresenta o signo sob dois
aspectos diferentes: significante e significado. Significante é o aspecto material do signo,
enquanto significado é seu aspecto mental, ligados através de uma relação convencional
(COBLEY e JANSZ, 2010, p. 14).
Eco aproxima-se da definição de Peirce, aceitando como signos “fenômenos sem
emitente humano, embora tenham um destinatário humano” (ECO, 2012, p. 11), produzidos
natural ou artificialmente, intencional ou não intencionalmente. Ainda assim, acredita que a
definição de Saussure também possa ser usada, alinhando os dois pensamentos para alcançar
uma melhor análise do objeto de estudo.
Para Mikhail Bakhtin, todo objeto está cercado de discursos, toda palavra "dialoga
com outras palavras, constitui-se a partir de outras palavras, está rodeada de outras palavras"
(FIORIN, 2006, p. 19). Este é o princípio do pensamento sobre intertextualidade, ainda que
Bakhtin nunca tenha utilizado o termo. O autor afirma que cada enunciado (uma posição
assumida por um enunciador) surge como resposta a um enunciado anterior, ao que nomeia
relação dialógica. Estas, segundo Kristeva, "devem ser revestidas de palavras, tornar-se
enunciações, expressões por palavras, posições de diversos sujeitos, para que as relações
dialógicas surjam entre elas" (1974, p. 66).
Cada novo enunciado se utiliza do sentido de um texto anterior para criar uma
nova significação. Dentro dos estudos de Peirce, "o invariante do signo vocabular - sua
significação comum - adquire, no contexto de cada réplica, uma nova significação particular"
(JAKOBSON e POMORSKA, 1985, p. 92). Assim, dentro de cada história em quadrinhos há
elementos trazidos das músicas e de seus contextos, que ganham novo significado através dos
mesmos significantes.
Fiorin explica que “a intertextualidade é o processo de incorporação de um texto
em outro, seja para reproduzir o sentido incorporado, seja para transformá-lo” (1999, p. 30).
Os quadrinhos mantêm diferentes relações com as canções e figuras em que se
baseiam, desde adaptações literais até simples referências.
“Rock vs. Comics”
Evandro Esfolando coloca, em “Rock vs. Comics” (2013), um roteiro
autobiográfico de eventos relacionados a rock ou a quadrinhos que participou entre os anos de
2010 e 2012, no formato que chama de “Resenhas Ilustradas”. O projeto surgiu, como ele
aponta, do dilema entre escolher ir a shows ou a eventos relacionados aos quadrinhos (p. 7).
Cada página representa um evento em que o autor esteve presente, destacando
principais atrações e músicas icônicas das bandas. Para tanto, o autor se utiliza de alguns
artifícios. Um deles é a caricatura dos músicos. Nas imagens, Esfolando dá destaque a
características físicas que identificam os personagens, como a representação de Marky
Ramone, do Ramones, com óculos escuros, Lemmy Kilmister do Motörhead, com chapéu ou
ainda Ringo Starr, ex-Beatles, desenhado com o nariz exageradamente grande.
A caricatura, como analisada por Benjamim Picado e Jessica Neri, se apresenta na
“condição de representação gráfica de traços marcantes que permitem fácil reconhecimento
[...], a redução da expressão humana a poucos traços que dão conta de uma personalidade”
(2012, p. 12).
Esfolando se utiliza também das tipografias características das bandas. Quando
cita nomes como Ozzy Osbourne, Autoramas ou Judas Priest, muda o estilo de letra que vem
usando no texto para incluir os logotipos dos grupos. Acontece uma estilização, um processo
de intertextualidade explicitado por Fiorin como “conjunto de recorrências formais tanto no
plano da expressão quanto no plano do conteúdo (manifestado, é claro) que produzem um
efeito de sentido de individualização” (1999, p. 31).
Ou seja, ao se utilizar da mesma grafia dos logotipos das bandas, fazendo uma
releitura de conhecidos tipos escritos, Esfolando identifica os artistas não só citando-os pelos
nomes, mas dando-lhes o mesmo conteúdo que o logotipo implica.
O autor faz no quadrinho citações a músicas, como a caricatura de Marcelo Nova,
acompanhado do logotipo da banda Camisa de Vênus, com um balão de fala que diz “’isso é
só o fim’”, música de mesmo nome da banda. Fiorin explica: “a citação ocorre quando um
discurso repete ‘ideias’, isto é, percursos temáticos e/ou figurativos de outros” (ibid., p. 32).
No caso, repetindo uma estrofe de música da banda citada.
Há ainda a alusão, onde “reproduzem-se construções sintáticas em que certas
figuras são substituídas por outras” (ibid, p. 31). Isto ocorre quando Esfolando cita a banda
Sepultura. Aqui, ele ironiza o fato da banda brasileira ter um vocalista norte-americano
cantando em inglês. A música “Roots Bloody Roots” ganha uma grafia diferente: “Rutis,
Blodi Rutis!”, como que imitando os fonemas do português.
“Papai Noel Velho Batuta”
A música “Papai Noel Velho Batuta” foi lançada no disco “Mais Podres do que
Nunca”, estreia da banda Garotos Podres, em 1985. Diretamente ligados ao punk, colocam na
música conceitos ligado a este pensamento, como a crítica ao consumismo e ao capitalismo.
Na canção, o Papai Noel, figura natalina que distribui presentes entre as crianças, é associado
a este consumismo de uma sociedade, que favorece as classes altas e deprecia as mais baixas,
com menor poder econômico para comprar lembranças no Natal.
Em 2006, Leonardo Melo assina, na segunda edição da revista Quadrinhópole,
uma adaptação da música para os quadrinhos, ilustrados por Joelson Souza. Destaque da capa,
com ilustração principal, há uma chamada que diz: “Clip desenhado de ‘Papai Noel Velho
Batuta’, dos Garotos Podres!”. A proposta do autor é acompanhar os versos da faixa e adaptálos às ilustrações, como um videoclipe.
O quadrinho, por ser uma adaptação verso a verso, traz nas imagens de maneira
clara esta crítica. O Papai Noel dos desenhos de Melo simboliza, como na canção, a exclusão
e agressão às quais a população menos favorecida está submetida. Seguindo a letra, “rejeita os
miseráveis” e “cospe nos pobres” são alguns versos que ganham quadros bem explícitos e
diretamente relacionados ao trabalho original.
Ferdinand de Saussure fala, em “Curso de linguística geral”, sobre as relações
paradigmáticas no plano do conteúdo, baseadas na similaridade de sentido. Uma palavra pode
ser substituída por outra que mantenha significado igual ou semelhante. Este conceito
compreende, inclusive, a metáfora e a analogia.
No caso de “Papai Noel, Velho Batuta”, Leonardo Melo usa este conceito de
substituição de uma palavra por um desenho, mantendo o significado dos símbolos. A letra da
música em forma de texto se mantém, e as imagens acompanham o significado. Com o título
da música, inclui a primeira imagem, uma sombra que faz referência à figura natalina.
Quando aprsenta os primeiros versos “Papai Noel, filho da puta”, inclui dois quadros. O
primeiro traz uma bota, clássica do personagem. No segundo, inclui seu rosto, com
características associadas ao objeto, como barba branca e gorro.
Com a inclusão, na letra da música, da palavra “filho da puta”, Melo inclui ao
Papai Noel uma expressão facial rude e imoral, fazendo alusão ao significado da expressão
“filho da puta”. Já nos versos “aquele porco capitalista/presenteia os ricos”, mostra o
personagem apertando as mãos de um homem, que segura um saco de dinheiro, indicado pelo
cifrão ($), símbolo que indica dinheiro, riqueza e, por fim, o sistema capitalista.
Segundo uma leitura baseada em Saussure, aqui o cifrão tem duplo significado. O
significante do cifrão tem uma identificação imediata ao objeto, como dinheiro, e outra
dinâmica, com o sistema de produção identificado por este símbolo. (COBLEY e JANSZ,
2010, p. 22).
“Fire”
A história “Fire”, de André Caliman, foi publicada em 2010 em uma revista de
mesmo nome. Ela é escrita toda em inglês, incluindo a referência na contracapa que diz que o
quadrinho foi baseado na música “Fire”, de Bruce Springsteen. A canção foi escrita em 1977
e lançada em 1986, no EP “Fire/Incident on 57th Street”.
A letra de “Fire” é narrada em primeira pessoa, com um personagem masculino
narrando um encontro em um carro com uma mulher. Ele liga o rádio, se aproxima dela e ela
se afasta, dizendo que não gosta dele, ao que ele responde saber que é mentira, pois quando se
beijam, há “fogo”. Springsteen usa, aqui, a palavra “fogo” de maneira metafórica,
relacionando-a a “paixão”, como exemplo de substituição proposto por Saussure.
O quadrinho não é uma adaptação da música, mas utiliza-se do mesmo contexto,
apresentando elementos similares. Caliman usa um narrador em primeira pessoa, um homem
que está de carona no carro de uma mulher. No rádio, toca “Fire” de Springsteen, aparecendo
um quadrinho específico do leitor do aparelho com o nome da canção. O refrão vai surgindo
nos balões de narrador, com aspas, intercalados com pensamentos do personagem. Há ainda
balões de fala, onde os personagens comentam sobre gostar da música.
O homem tenta beijar a moça, ela recua, eles se olham e ele tenta novamente. Ela
se irrita, dizendo que vai estapeá-lo. Ele a desafia, ela o atinge e começa a rir. Os dois se
beijam. A história do quadrinho segue, de certa maneira, a mesma linearidade da música.
Acontece, então, uma referência, como afirma Eco, quando se “põe um ENUNCIADO (ou a
correspondente PROPOSIÇÃO) em contato com uma CIRCUNSTÂNCIA CONCRETA por
meio de um artifício INDICAL” (2012, p. 143, grifo do autor). Ou seja, a obra de Springsteen
como enunciado entra em contato com a ação que acontece no quadrinho através da música
tocada na rádio.
Acontece, ainda, uma ação de reconhecimento, que “se dá quando um
determinado objeto ou evento (...) é entendido pelo destinatário como expressão de um dado
conteúdo” (Ibid., p. 194). A história do quadrinho repete o que acontece na música, mantendo
também esta relação entre as obras.
“A walk on the wild side”
Na revista “Entre Quadros”, de 2011, Mário César traz duas histórias. Uma delas
leva o mesmo título de uma música de Lou Reed, “A walk on the wild side”, do álbum
“Transformer”, de 1972. Na primeira página da história, uma inscrição aponta que o trabalho
é baseado no conto “Uma história de amor”, de Pedro Cirne.
O quadrinho apresenta o personagem principal, retratado como uma pessoa triste,
sem motivação e com poucos relacionamentos pessoais. Em um almoço com a família,
começa a ouvir partes da música de Lou Reed, e uma garota aparece dançando. Apenas o
personagem principal consegue vê-la, pergunta seu nome e ela pede que ele adivinhe, antes de
desaparecer no ar. Um segundo encontro acontece, em uma livraria. No terceiro, na casa do
personagem, a garota pergunta se ele já decifrou seu nome, ao que ele responde (e nos balões
de fala dos quadrinhos, há aspas, indicando citação): “’Eu estou contente de eles terem
começado a lançar enigmas. Eu acredito que eu soluciono este’” (CÉSAR, 2011, p. 23).
A criança diz que precisa ir e desaparece novamente. Dias depois, o irmão do
personagem principal o leva a uma festa à fantasia e o entrega uma roupa do Chapeleiro
Louco, personagem do livro “Alice no País das Maravilhas”, de Lewis Carroll. Ele encontra a
garota novamente, ele reclamando dos sonhos que deixou para trás, e ela o encorajando a lutar
por eles. A morte aparece, personificada, para levar a menina embora, e o homem mostra seus
primeiros passos para uma mudança na vida.
A história, como aponta o próprio autor, fala sobre “saber aproveitar a vida”
(ibid., p. 2), passar a olhar os acontecimentos por um prisma diferente, enfrentar mudanças.
Esta é a mesma premissa da canção de Lou Reed, que reúne em alguns versos histórias de
pessoas que mudaram o rumo de suas vidas, enfrentando o “lado selvagem” (“wild side”).
Mário César, no entanto, não aponta a música como referência direta para o
quadrinho, mas o conto de Pedro Cirne. O roteiro é muito parecido nos dois enunciados,
fazendo a mesma relação dos personagens. Ainda, o texto de Cirne traz referências à canção e
ao livro de Carroll. Ou seja, quando César se utiliza destas citações, está mostrando uma
referência feita originalmente no texto escrito por Cirne.
Ainda que César não demonstre com palavras o uso de elementos de “Alice no
País das Maravilhas”, ele inclui de maneira sutil, como a fantasia do personagem principal ser
a mesma roupa de um personagem de Carroll, e a fala com aspas retirada do livro. Estas
referências são ocorrências de símbolos que, como apontam Jakobson e Pomorska sobre a
teoria de Peirce, não são “um objeto, mas apenas uma lei-moldura (frame-law) que propicia
diferentes aplicações contextuais de fato”, (1985, p. 92). Cirne usa o nome do livro em seu
texto, enquanto César não mostra o livro nem seu título, mas parte desta mesma referência
para criar novos elementos intertextuais.
Quanto à música, ela aparece no quadrinho em situação de amostra, como
apontada por Umberto Eco: quando “só uma parte de um objeto é selecionada para exprimir o
objeto inteiro” (2012, p. 199). Como exemplo, o autor apresenta “citações musicais, onde um
início assobiado pode significar a quinta de Beethoven” (ibid., p. 199).
“Love Hurts”
Murilo Martins publica, em 2011, a revista “Love Hurts”, condensando diversas
histórias curtas unidas pelo tema do sofrimento pelo amor. O nome do quadrinho faz
referência direta à música de mesmo título da banda Nazareth. Escrita nos anos 1960 pelos
irmãos Felice e Boudleaux Bryant, foi gravada por vários artistas, mas em 1975 ganhou sua
mais famosa versão com a banda de rock, lançando-a ao sucesso mundial. A canção se tornou
“uma espécie de hino para aqueles que sofrem decepções amorosas” (SANTOS, 2007).
O autor usa o nome da música para simbolizar as histórias que falam de amor e
tristeza. Acontece então uma conotação, que acontece quando “o plano da expressão é outro
código. (...) O que constitui uma conotação enquanto tal é o fato de que ela se institui
parasitariamente à base de um código precedente e não pode ser veiculada antes de o
conteúdo primário ter sido denotado” (ECO, 2012, p. 46).
Entre as histórias publicadas, destaca-se “Discografia”, de caráter autobiográfico
em que Martins coloca sua relação com a banda R.E.M.. A maioria das páginas é preta,
formando uma borda em cada desenho, com um quadrinho por página. Na primeira imagem,
tem-se uma figura masculina em uma sala de estar, com balão de fala, contando como
conheceu a banda. Ao fundo, há versos de músicas dispersas de maneira etérea.
Nos quadros seguintes, há sempre o balão de fala, mas o personagem não volta a
aparecer. Grande parte das imagens reproduzem uma capa de um disco específico do R.E.M.,
citado nas falas. Ou ainda, quando o personagem comenta sobre a fita cassete, o desenho
representa o objeto, cercado por letras de músicas. Mais ao fim, o artista coloca um a um a
capa dos discos que possui em sua coleção, como miniaturas desenhadas. Há, ainda, um
quadrinho que imita uma reportagem jornalística de página de internet, sobre o fim da banda.
No último quadro, em página toda branca, um túmulo com data de criação e término da
banda.
Martins utiliza-se de signos icônicos ao representar as capas dos álbuns. Na
definição de Peirce, um símbolo é icônico quando “pode representar o seu objeto sobretudo
por via de similaridade” (apud ECO, 2012, p. 172). Já na fita cassete, na matéria jornalística e
no túmulo, utiliza-se de estilização: “Entendemos por ESTILIZAÇÃO certas expressões
aparentemente ‘icônicas’ que na verdade resultam de uma convenção que estipula sua
reconhecibilidade em virtude do seu acordo com um tipo expressivo não estritamente
prescritivo que permite muitas variantes livres”, (ibid., p. 203).
“EP”
Diferentemente dos outros quadrinhos analisados, “EP”, de Dalts e Magentaking
(publicado em 2011), não traz nenhum tipo de palavra escrita. Não há balões de fala nem
narração. Toda a história é construída a partir dos desenhos em preto e branco, focando em
dois personagens guitarristas de bandas em um duelo. Cada um tem suas próprias referências
musicais, representadas pelas imagens de músicos que rodeiam os personagens de maneira
etérea.
Um deles, moreno, traz conceitos de David Bowie, John Lennon e Mick Jagger. O
outro, loiro, apresenta influências de Elvis Presley, Creedence Clearwater Revival e Bob
Dylan. Cada personagem é representado pelos autores do quadrinho de maneira diferente,
com traços diferentes. As imagens em que o moreno aparece, geralmente nas páginas pares,
são mais saturadas, pesadas e com muito mais espaços negros. Já as do loiro (que aparecem
principalmente nas páginas ímpares) têm traços leves onde prevalece o branco.
Esta organização das páginas, contudo, não é regra. Há momentos em que ambos
aparecem no mesmo quadro, unindo os dois estilos diferentes para uma única imagem.
Em comum, os personagens trazem um símbolo de raio em suas camisetas.
Tentando vencer a batalha, o guitarrista moreno realiza um pacto com os deuses do rock:
figuras lendárias do gênero musical que aparecem em grandes nuvens. Recebe das mãos de
Jimi Hendrix um raio, idêntico ao das camisetas. O fato causa uma briga entre os
personagens, representada por desenhos caóticos. A batalha termina em uma fusão dos corpos
dos dois personagens, agora transformados em um só (trazendo referências dos traços dos
dois artistas).
Renato Lebeau publicou no site Impulso HQ uma resenha do quadrinho, em que
analisa toda esta questão do personagem duplo se unificando. “Apesar de a publicação tratar
de caos e dualidade, podemos colocar também um terceiro elemento: a busca por si próprio.
Mais do que um estilo, o personagem busca uma identidade” (LEBEAU, 2012).
A dualidade dos personagens exposta na coloração em preto e branco dos
quadrinhos sugere relação com o símbolo chinês Yin Yang. A figura circular é um dos mais
conhecidos emblemas para representar a dualidade humana, ao colocar na mesma imagem
dois lados opostos, “as duas forças complementares que compõem todos os aspectos e
fenômenos da vida” (ENCYCLOPAEDIA BRITANNICA, 2013, tradução própria)2. O
círculo é composto por um lado preto e outro branco, divididos por uma linha ondular, que
sugere movimento. Dentro de cada lado, há um círculo pequeno com a cor oposta, sugerindo
que cada lado possui em si um pouco de seu próprio oposto. A crença chinesa diz que a vida é
feita baseada no equilíbrio destes dois lados.
A história não apresenta referências diretas a alguma música específica, mas é
claramente inspirada pelo rock de maneira geral. Mais especificamente, a imagem de Jimi
2
“The two complementary forces that make up all aspects and phenomena of life”.
Hendrix com um raio lembra uma canção do músico, intitulada “Midnight Lightning”.
Lançada pela primeira vez em 1975, no disco póstumo de mesmo nome, trazia uma versão de
pouco mais de seis minutos. Em 1997, no disco “South Saturn Delta”, uma versão diferente
da música, um solo improvisado com alterações na letra e pequenas mudanças nos acordes, é
lançada com o mesmo nome, com três minutos de duração.
Ambas as músicas, porém, falam de um casal perdido tentando se encontrar. No
solo, há importantes versos a serem destacados, como “You got your God and so do I” e
“Gotta keep on moving/To understand both sides of the sky”. Estas frases colaboram com a
noção de dualidade que circunda “EP”, bem como a apresentação de músicos do rock como
deuses. O fato da canção ter duas versões amplia este conceito dúbio.
Assim, a referência à música no quadrinho se dá, não só pelo significado de
algumas estrofes, mas também pelo contexto das canções. Esta relação é identificada com o
conceito de ideologema de Kristeva, em que a intertextualidade dá, em diferentes níveis do
texto, coordenadas históricas e sociais, “na medida em que nele se cruzam valores semióticos
(arbitrariedade do significante/significado) e sociais (a historicidade, necessária para a
materialização do sentido)” (ALÓS, 2006, p. 12).
“Daytripper”
“Daytripper” é uma graphic novel escrita em 2011 pelos irmãos Fábio Moon e
Gabriel Bá. O quadrinho é formado por diversos dias específicos na vida de Brás de Oliva
Domingos, jornalista que faz textos para a seção de obituários. A história reúne estes
momentos que foram significativos para Oliveira, como o primeiro beijo e a morte do pai. Ao
fim de cada capítulo, o personagem passa pela morte, com o narrador realizando um texto de
obituário para cada fim.
As mortes ao fim de cada dia de Domingos ganham aqui sentido simbólico, uma
vez que representam a mudança na vida do personagem. Como comenta Jung, “a consciência
só pode existir através do permanente reconhecimento e respeito do inconsciente: toda vida
tem que passar por muitas mortes” (2000, p. 104).
“Day Tripper” é também uma música dos Beatles, lançada em 1965 como single.
A música trata de um personagem masculino comentando sobre uma mulher, que faz viagens
diárias (“Day trips”) só com o ticket de ida. Em diversas entrevistas, os integrantes da banda
comentam sobre diferentes significados sobre a canção. John Lennon disse que é sobre estas
pessoas que fazem viagens diárias, mas também uma crítica aos “hippies de fim de semana”,
que não abraçavam o movimento completamente. Anos depois, assume que a letra faz
referência direta ao uso de drogas (REVISTA ROLLING STONE, 2011).
Em entrevista, os autores do quadrinho admitem a referência à canção, frisando o
uso da palavra como título: “além de ter esta conotação mais leve, mais inocente de um
passeio bucólico, tem uma relação do início dos Beatles fazendo experimentações com
drogas. Essa coisa de ter mais de uma leitura era algo que a gente queria pra essa história”
(BÁ, apud RODRIGUES, 2011).
Bá e Moon se utilizam do conceito da música e da palavra para inserir uma
significação à história, que não apresenta nenhuma outra relação com a canção. Como aponta
Michel Arrivé, “as palavras da língua são símbolos” (1994, p. 13), sendo assim, quando os
autores mantém o nome do quadrinho em inglês na edição brasileira, querem explicitar a
relação com a simbologia da expressão “Day tripper” do inglês e, portanto, referenciando à
canção dos Beatles.
A expressão no inglês já tinha seu significado quando foi utilizada pela banda,
ganhando outro a música. Ao ser transmitida para o quadrinho, adquire uma nova.
O cruzamento das circunstâncias e das pressuposições
entrelaça-se com o cruzamento dos códigos e dos subcódigos, fazendo de
cada mensagem ou texto uma FORMA VAZIA a que se podem atribuir
vários sentidos possíveis. A mesma multiplicidade dos códigos e a indefinida
variedade dos contextos e das circunstâncias faz com que a mesma
mensagem possa ser codificada de diversos pontos de vista e com referência
a diversos sistemas de convenções (ECO, 2012, p. 127, grifo do autor).
A intenção dos autores em ter uma obra aberta, em que se podem inferir diversos
significados, tem relação com o título e sua origem na faixa dos Beatles, que também incluem
nela suas diversas significações. “Cada palavra tem um sentido ligeiramente diferente para
cada pessoa [...] uma noção geral é recebida num contexto individual, particular e, portanto,
também compreendida e aplicada de modo individual, particular” (JUNG, 2008, p. 47).
Os autores se utilizam ainda de outra leitura da mesma expressão “Day tripper”,
ao selecionar para cada capítulo um dia na vida do personagem, como se a história fosse uma
viagem pelos dias de Domingos. Barros explica que, “a intertextualidade na obra de Bakhtin
é, antes de tudo, a intertextualidade ‘interna’ das vozes que falam e polemizam no texto, nele
reproduzindo o diálogo com outros textos” (1999, p. 4). Aqui, se aplica também a observação
sobre o fato do personagem ser jornalista de obituários e cada capítulo terminar com o
narrador se utilizando de um obituário para comentar a história, um diálogo do texto com si
próprio.
Conclusão
Henry Jenkins comenta sobre o modo de produção transmidiática, em que uma
história se desenvolve em diferentes plataformas ou meios de comunicação. "Uma história
transmidiática desenrola-se através de múltiplas plataformas de mídia, com cada novo texto
contribuindo de maneira distinta e valiosa para o todo. (...) Cada produto determinado é um
ponto de acesso à franquia como um todo" (2009, p. 138-139).
Ainda que as histórias em quadrinhos não caracterizem uma franquia em relação
às músicas, apenas utilizando-se delas como contexto e inspiração, criam um produto novo
com novos conceitos dentro do universo original da canção. A história parte do meio musical
para o quadrinho, com adaptações para cada plataforma e mudanças estruturais e conceituais,
mas não deixam de fazer parte do imaginário das músicas.
Na construção das canções, cada uma se utiliza de um conteúdo específico para
elaborar seu próprio universo. Os artistas do quadrinhos, ao buscar referências nas músicas,
recriam certos conceitos, mas também contextos sociais aos quais estão inseridos. É possível
perceber esta relação, com maior ou menor intensidade, em todas as obras gráficas. Por
exemplo, nas imagens abstratas de “Daytripper”, que fazem referência ao uso de drogas pelos
Beatles, ou em “Rock VS. Comics”, pela história que acompanha um roteiro de diversos
shows e eventos pelos quais passou o autor. Pois, como coloca Alós, “o texto dialoga sim com
outros textos, mas também com o contexto social, a realidade transfigurada em texto” (2006,
p. 22).
Ao transpor para outra mídia uma história criada em melodia, há diferenças entre
o conteúdo de cada produto, que busca se adaptar à sua própria plataforma. “Por sua própria
natureza, a adaptação é um processo de transição ou conversão de uma mídia para outra. [...] a
adaptação implica mudança” (SEGER, 2007, p. 18). A técnica da reprodução de um conteúdo
a outra plataforma, “na medida em que permite à reprodução ir ao encontro daquele que a
recebe em sua respectiva situação, atualiza o que é reproduzido” (BENJAMIN, 2012, p.23).
Os autores dos quadrinhos são, antes de criadores de um novo produto, receptores
de um antigo, as canções. Quando recebem o estimulo através da música, funcionam como
agentes transformadores, atualizando e reproduzindo a arte dos músicos, adaptando-as a uma
nova plataforma. Essa intertextualidade renova um conceito colocado por Walter Benjamin, o
da “existência única no local onde se encontra” (ibid., p. 17). Há muito tempo a música já não
está mais presa a um momento e local específicos, por sua reprodução em rádios e gravações
em diferentes mídias, por exemplo. Aqui, com os quadrinhos, ganha este caráter intertextual,
de poder sair ainda mais de seu contexto original, mudando inclusive sua plataforma.
Assim, o conceito de aura proposto por Benjamin, essencial à obra de arte, se
desfaz. Ele já apontava a decadência deste modelo artístico.
O que é propriamente aura? Um estranho tecido fino de espaço
e tempo: aparição única de uma distância, por mais próxima que esteja. [...]
Diariamente, torna-se cada vez mais irresistível a necessidade de possuir o
objeto na mais extrema proximidade, pela imagem, ou, melhor, pela cópia,
pela reprodução (ibid., p. 18-19).
A obra de arte se aproxima hoje do conceito de Pierre Lévy, explicitado por Henry
Jenkins: “A obra de arte será o que Lévy chama de ‘atrator cultural’, unida, criando uma base
comum entre as diversas comunidades; podemos também definir a obra de arte como um
ativador cultural, impulsionando sua decifração, especulação e elaboração” (2008, p. 135).
Para alcançar estas condições, a obra necessita da reprodutibilidade, para atingir um público
maior, e da intertextualidade, que atualize seus conceitos e ganhe novo público através de
diferentes plataformas.
A adaptação de uma música para um quadrinho inclui ainda conceitos do produto
cult ditado por Umberto Eco, explicado por Jenkins como sendo um produto “feito para ser
citado [...] porque é feito de citações, arquétipo, alusões, referências retiradas de uma série de
obras anteriores. Um material assim cria ‘um tipo de emoção intensa’” (ibid., p. 137). O leitor
familiarizado com as músicas usadas nos quadrinhos estabelece uma relação emocional
diferenciada com cada história, carregando significados do contexto e conteúdo das canções
para dentro das histórias. Pode, portanto, entender os símbolos usados pelos autores de
maneiras diferentes, mais abertas (exemplificando o conceito de símbolo posto por Peirce), e
imergir com maior fluidez nos quadrinhos.
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