Escolhas alimentares, decisões culturais: a mulher define o que vai pra mesa Nádia Rosana Fernandes de Oliveira e Hugo Aníbal Gonzalez Vela Programa de Pós-graduação em Extensão Rural da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) Cultura alimentar; mulher rural; decisão alimentar ST 6 - Comida e gênero Apresentação Cotidianamente os indivíduos se envolvem em escolhas que determinam seu consumo alimentar, essas escolhas são realizadas tanto na esfera individual, como na esfera coletiva. Nessas duas instâncias a comida passa por representações de acordo com as relações histórico-culturais dos sujeitos envolvidos. No meio rural pode-se interpretar as relações alimentares derivadas pelo parentesco, analisando a família, ou mesmo, a unidade de produção familiar agrícola1. As famílias rurais investigadas neste trabalho possuem relações de produção, preparo e consumo num só ambiente, passando pela trajetória do trabalho realizado na busca do alimento até a sua transformação, na forma de comida à mesa. Nesse cenário a mulher tem se mostrado protagonista do processo decisório referente aos alimentos que irão compor o cardápio alimentar diário da família. Nesse sentido, objetiva-se debater a alimentação enquanto núcleo de escolhas alimentares realizadas pela mulher, para tanto utilizou-se entrevistas em famílias rurais localizadas no município de Jaboticaba, região Médio-Alto Uruguai, RS. Posição da mulher no trabalho e as atividades alimentares Alguns autores sugerem que o modelo de consumo decorrente do modo de produção de alimentos com sentido agro-exportador – promovido a partir da revolução industrial e intensificado na década de 1970 – resultou num modo de vida urbano-industrial onde alguns fatores modificaram o cenário social, político, econômico e cultural. Dentre esses fatores, ficou evidente a tentativa de homogeneização das práticas alimentares, à medida que intensificava-se a pressão sob os sujeitos para a incorporação de novos alimentos na sua dieta. Certos autores explicam estas mudanças. Hartmann (1976) comenta que o aumento da produtividade e da especialização decorrente do processo capitalista das sociedades (destacando as sociedades ocidentais), hierarquizou as atividades entre homens e mulheres, diminuindo a mulher 2 no cenário social. Sobre esses aspectos o autor retrata três principais fatores que somaram para tal efeito: 1) a perda, por parte das mulheres, sobre os meios de subsistência2, em decorrência da transformação dos métodos de produção e em sua desvalorização na divisão do trabalho; 2) a emergência do trabalho privado centrado na família em detrimento do trabalho com característica social e focalizado no grupo de parentesco; 3) o poder masculino assegurado por mecanismos de Estado, elevando a situação do homem enquanto elemento nuclear na reprodução social do grupo familiar em oposição ao grupo de parentesco. Contudo, vale ressaltar que a participação da mulher varia de acordo com as diferentes sociedades, no que diz respeito a sua participação na divisão do trabalho produtivo3. Esses elementos podem ser visualizados quando nos deparamos com as atividades desempenhadas pela mulher no rural. A mulher se comporta como figura central no processo de produção e reprodução, a ela compete as tarefas de alimentação, desde o cultivo, preparo e servida da comida à mesa. É responsável pelo cuidado com os animais – limpeza, alimentação, ordenha –, trabalho na horta, além todas as etapas no preparo da comida de consumo doméstico, processamento dos alimentos e produtos, próprios para a venda e consumo interno, como queijo, nata, chimia, doce em calda, rapadura, pão, bolo, cuca. A decisão também permeia quais alimentos e o modo como serão cultivados na horta, bem como o uso, ou não, de outros alimentos oriundos da lavoura ou do mercado determinando o cardápio doméstico. Assim, pois, constata-se a centralidade da mulher no processo decisório alimentar, daqueles alimentos que serão interiorizados no ambiente doméstico e daqueles que serão destinados à venda. Quando os produtos derivados do trabalho feminino são destinados à venda, a mulher assume todas as etapas de trabalho: colheita, seleção, preparo. Entretanto, ela é excluída daquelas que demandam atividades fora de casa. As esferas exteriores ao ambiente doméstico são conduzidas pelo homem. Brumer (2004) em estudo que examina a situação da mulher na agricultura do Rio Grande do Sul apontou que a posição subordinada das mulheres na esfera produtiva dos estabelecimentos agropecuários era evidenciada de forma que, os homens conduziam e responsabilizavam-se pelos contatos com o exterior: extensionistas, bancos, sindicatos, cooperativas, firmas vendedoras de insumos e compradores. A mulher permanecia fora dos espaços institucionais administrativos, e daquelas funções que demandasse conhecimento tecnológico ou econômico. Outro aspecto elucidado pela autora é a característica denominada às tarefas domésticas realizadas pela mulher como “ajuda”, em contraponto ao trabalho masculino que era associado pela sustentação e viabilização econômica da família, percebendo, assim, a hierarquização na divisão sexual do trabalho. 3 Em realidade, podemos observar que quando os produtos característicos do trabalho feminino (levantados anteriormente) são sujeitos a tecnificação, ou até mesmo em situações onde aumente a venda dos produtos; a produção passa a ser assumida pelo homem, e “deixa de ser responsabilidade da mulher, passando ao controle masculino” (MENASCHE, 2002)4. Estas posições hierárquicas dos trabalhos realizados pelos diferentes indivíduos do grupo familiar podem ser entendidas sob a relativa invisibilidade do trabalho executado por crianças, jovens e mulheres (Brumer, 1996), ou seja, não fica evidente, no seio da produção familiar agrícola, a importância e relevância do trabalho da mulher junto às atividades cotidianas. Este fica muitas vezes desenhado como ajuda, como um braço a mais no trabalho, mas geralmente não associado à centralidade que seu trabalho é merecedor. Nesse sentido Brumer (2004, p. 210) conduz a justificativa pelas tradições culturais que: “priorizam os homens às mulheres na execução dos trabalhos agropecuários mais especializados, tecnificados e mecanizados, na chefia do estabelecimento e na comercialização dos produtos; pelas oportunidades de trabalho parcial ou de empregos fora da agricultura para a população residente no meio rural; e pela exclusão das mulheres na herança da terra”. Análises como estas são associadas também ao ideário do tipo de trabalho “leve” e pesado”, onde centra-se na posição do trabalho na hierarquia familiar e não na atividade em si, já que as mulheres executam trabalhos leves e trabalhos pesados nas suas atividades cotidianas (PAULILLO, 1987). O que vai pra mesa? – Conflitos na decisão Estando a mulher no papel de articuladora daquilo que será submetido ao consumo alimentar, visto que é quem define o que deve ser cultivado e o que deve ser comprado, o seu universo de trabalho – geralmente além do trabalho junto à lavoura, é responsável pela horta, pomar e criação de galinhas, porcos e vacas de leite – está intimamente conectado a oferta de alimentos para a unidade doméstica. Entretanto, a opção por escolher determinado alimento percorre aspectos como o risco alimentar em ingerir resíduos químicos (Menasche, 2003), a compreensão da comida artificial que é oferecida nos mercados e as condições de saúde e doença relacionadas aos alimentos. Estes fatores sugerem a existência de um conflito com o cardápio culturalmente aceito para apreciação dos familiares. Na localidade estudada vimos que a mulher vivencia um conflito entre os produtos alimentares comprados no mercado e aqueles cultivados no ambiente interno a unidade doméstica. Os produtos comprados assumem a posição de vilões na medida em que estão representados por descaracterizar a cultura local. 4 Questões como a seguinte são evidenciadas em conversas sobre a compra de alimentos no mercado: “a vizinha não é caprichosa, compra tudo no mercado, não faz mais pão, nem cuca, não tira leite, compra tudo na padaria (...) a mãe ensinou tanta coisa que hoje ela não aproveita mais”; revelam a preocupação com a tradição em preparar os doces e pães do modo como foi ensinado pela sua mãe, observando que ações dessa natureza não são “caprichosas”. Fischler (1998) mostra que tem crescido as inquietações sobre as condições dos alimentos em conferir saúde aos indivíduos. A boa nutrição tem sido entendida como algum pacote pronto e fechado a ser adotado pelas pessoas, desconsiderando suas relações sociais e culturais com a comida – como se esse fator não fosse extremamente relevante para as condições de saúde. O autor também aponta que, em virtude das melhorias tecnológicas da medicina, a expectativa de vida aumentou apontando a crescente incidência de doenças cardiovasculares e cânceres (“patologias da civilização”, de acordo com o autor). A partir dessas evidências há uma pressão para a busca de alimentos que garantam a saúde e a boa nutrição dos indivíduos que, por sua vez, reagem de maneira hostil aos industrializados “desconhecidos”. O cuidado na garantia da saúde por meio do consumo alimentar entra em cena quando se falam de produtos como o açúcar, a banha e as comidas “fortes”. A produção de açúcar mascavo – mais comumente chamado de açúcar de cana na localidade – é presente em poucas famílias locais. Do cultivo da cana-de-açúcar originam-se o caldo de cana, o melado, a rapadura, o puxa-puxa e o açúcar de cana. Destes produtos o mais comumente encontrado na cozinha das famílias é o açúcar, pois tem maior durabilidade, e é empregado em várias preparações culinárias. Contudo, nos mercados e feiras locais este e os demais produtos da cana não são comercializados, ganhando a preferência outros produtos como o açúcar branco, que é usado para preparar pães, bolos, cucas, bolachas, doces em calda e chimias. Nas vivências e entrevistas podemos ver algumas pessoas indicando a preocupação quanto ao uso de açúcar branco. A principal preocupação quanto ao uso do açúcar branco é a questão da saúde. Muitos indivíduos que não produzem o açúcar mascavo a partir da cana-de-açúcar compramno, pois acham que é mais saudável que o branco. Já aqueles que produzem o fazem pela preocupação em não comprar um produto que é obtido facilmente por meio do cultivo, ademais, posicionam-se também pela preocupação com a saúde. A banha é outro produto que chama atenção pela variabilidade de preparações em que está presente, principalmente os pratos com carnes. Entretanto, a preocupação em não usar demasiadamente a banha faz com que as famílias adquiram o óleo vegetal de soja, e menos frequentemente, o azeite de oliva, que é utilizado no tempero das saladas de hortaliças, essencialmente. No uso da banha perceber-se que há um conflito entre a questão de saúde (novamente!) e a manutenção dos costumes no preparo tradicional das carnes. No preparo de um 5 prato, a banha é empregada para fritar a carne e os temperos, é comum ao se questionar “Por que você usa a banha?” As respostas serem do tipo: para “dar gosto” e “dar cor”, na comida. Contudo, no decorrer da conversa nota-se que os aspectos relacionados à saúde são também preocupantes, pelo valor de “pesado” e “gorduroso” que está associado à banha. A questão da saúde desejada é frequentemente mencionada nas conversas sobre alimentação. Quando se fala sobre o comer alimentos saudáveis as primeiras lembranças são das frutas e hortaliças, e depois o alimento “de casa” – em oposição aos alimentos comprados no mercado – que são as criações de galinhas, porcos, mais comumente, e também, os produtos “tradicionais” como a farinha de milho do moinho, os doces feitos em casa como a rapadura e as compotas. Essa posição de alimentos industrializados gera um confronto entre os produtos comprados “de mercado”, “artificiais”, e os produtos “crioulos”, “feito em casa” entre a população, gerando uma disputa pela tradicionalidade das preparações em espaços como as festas da comunidade, ou em datas importantes do calendário local. Sendo assim, podemos enunciar que a cultura alimentar local está inter-relacionada com estas inquietações e com o comportamento da mulher na unidade doméstica. Já que é a mulher quem está na porta de entrada e quem define o que vai à mesa, e nela que se focam as ações e preocupações sobre a situação de segurança alimentar do grupo familiar. Sendo assim torna-se fundamental analisar as conexões do alimento, enquanto bem de consumo submetido à apreciação do grupo familiar, bem como, a compreensão da posição do trabalho da mulher na unidade familiar agrícola, pois, decorrente disso pode-se analisar a complexidade existente entre as relações do consumo alimentar e da cultura local. Referências BRUMER, A. mulher e desenvolvimento rural. In: PREVESLOU, C.; ALMEIDA, F. R.; ALMEIDA, J. A. (org). Mulher, família e desenvolvimento rural. Santa Maria: Ed da UFSM, 1996, 152p. BRUMER, A. Gênero e agricultura: a situação da mulher na agricultura do Rio Grande do Sul. Revista Estudos Feministas. Florianópolis v.12. n.1. jan/abr, p.205-227, 2004. FISCHLER, C. A ‘McDonaldização’ dos costumes. In: Flandrin, J. L.; Montanari, M. História da alimentação. São Paulo: Estação Liberdade, 1998. HARTMANN, H. Capitalism, patriarchy, and job segregation by sex. Journal of Women in culture and society, v. 1. n. 3. p. 137-169, Spring, 1976. MENASCHE, R. Homens e mulheres, agrotóxicos e percepções de risco: notas de pesquisa. VI congresso da associação Latino-americana de sociologia rural: sustentabilidade e democratização das sociedades rurais da América Latina. UFRGS, Porto Alegre, nov. 2002. 6 MENASCHE, R. Os grãos da discórdia e o risco à mesa: um estudo antropológico das representações sobre os cultivos e alimentos transgênicos no Rio Grande do Sul. Tese (Doutorado em Antropologia Social) – Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2003. PAULILO,M. I. O peso do trabalho leve. Ciência hoje, v.5, n.28, p. 64-70, jan./fev.,1987. 1 Este trabalho não discutirá sobre a pertinência, ou não, no uso dos termos: família ou unidade de produção familiar. Vale ressaltar que os indivíduos que entrevistamos identificam-se enquanto família, usando expressões do tipo: “aqui em casa se come assim”, “na nossa família as coisas são divididas (...)”. 2 Estudos analisados por Brumer (1996) mostram que há uma relação entre a composição sexual da força de trabalho familiar nas atividades agrícolas e o acesso das famílias aos meios de produção. A autora coloca que o acesso limitado à terra corresponde ao aumento nos recursos de mão-de-obra no trabalho agrícola. 3 Para estas questões ver também: CARNOY, Martin. Estado e teoria política. 12ª edição, São Paulo: Papirus, 2006; onde o autor questiona-se quanto a natureza dos conflitos e a inclusão dos conflitos de gênero., num contexto onde “é o Estado e não a produção que deve ser e será o principal foco da luta de classes”, p. 329. 4 O domínio masculino se dá nas esferas do trabalho com o leite, que passa do manual/feminino, para o tecnificado/masculino; ou mesmo, no processamento agroindustrial realizado pela mulher, e comercialização dos produtos pelo homem.