O TRABALHO COM PROJETOS E A ABORDAGEM DE REGGIO EMÍLIA O livro “As Cem Linguagens da Criança - A abordagem de Reggio Emilia na Educação da Primeira Infância” é fruto da experiência vivida por educadores americanos em escolas municipais italianas e das reflexões recolhidas por eles dos educadores dessas escolas. Carolyn Edwards, Lella Gardini e George Forman, autores desse livro, estabelecem comparações entre o sistema educacional em Reggio Emilia e o americano. Surpreendentemente, encontrase com freqüência, concepções pedagógicas e situações de sala de aula americanas bem semelhantes às experiências brasileiras. Esse livro traz uma série de concepções educativas e vivências pedagógicas de crianças na faixa etária entre zero e seis anos de idade, nas escolas italianas de Reggio Emilia, que podem servir de base para reflexão no trabalho realizado pelos professores brasileiros. Serão apresentadas as suas idéias principais, em forma de síntese. Foram destacados os pontos considerados suficientes para ilustrar o que já foi citado sobre planejamento por projeto de trabalho, mas o livro merece uma demorada e deliciosa leitura. Reggio Emilia é uma pequena cidade na região de Emilia Romagna, no nordeste da Itália. Em seu sistema municipal de educação infantil conta com várias escolas para crianças com faixas etárias separadas em três a seis e de zero a três anos de idade. O sistema surgiu de um movimento de colaboração entre pais e, por isso, há o reconhecimento da relação de parceria entre eles, os educadores e as crianças. Essas escolas tornaram-se uma referência mundial para o trabalho com projetos na educação infantil. O espaço da sala de aula é organizado de forma a facilitar a cooperação na resolução de problemas. Os trabalhos das crianças são amplamente expostos e os arranjos são feitos de forma a chamar a atenção para o ambiente e seus estímulos. Como exemplo, em uma das escolas há uma turma com doze bebês, dezoito crianças que engatinham e vinte e oito pré escolares para duas professoras. Ao serem questionadas sobre a necessidade de mais pessoas, elas respondem que gostariam de mais espaço. A mistura de crianças com idades diferentes na mesma sala é uma concepção bastante presente na Itália, de que as criança aprendem umas com as outras, ou seja, parceiros mais experientes fazem a mediação do conhecimento no ambiente social. Os projetos são desenvolvidos em pequenos grupos, de acordo com o interesse das crianças e a continuidade do trabalho é garantida, pois uma dupla de professores fica com um mesmo grupo por três anos. Os professores são a memória do grupo. Relembram, com o apoio de registros escritos ou gravados, as conversas, hipóteses, possibilidades de soluções de problemas dados pelas crianças. A relação entre os professores está baseada na troca de pontos de vista e busca de perspectivas variadas para o desenvolvimento do trabalho. Em relação às famílias, se estabelece uma parceria em benefício do desenvolvimento e aprendizagem das crianças. As crianças são incentivadas a explorar o ambiente e a expressar se utilizando as várias formas de linguagem como desenhos, pinturas, colagens, esculturas, movimento, música, montagens, teatros, escrita, oralidade, representando simbolicamente idéias e, assim, desenvolvendo suas capacidades intelectuais. Impressiona o nível de representação e a qualidade estética da produção das crianças. Em seus registros, as crianças demonstram uma riqueza de pensamento exposta nos detalhes, própria de exploradores, fruto de observações minuciosas e atentas dos elementos, objetos das investigações das crianças. Sobre a criatividade, a idéia é de que ela se faz presente no desenvolvimento da criança e não é uma capacidade isolada. A criatividade exige o estabelecimento de conexões entre pensamento e expressão, dando vazão às múltiplas linguagens da criança. A abordagem pedagógica utilizada é a concepção de currículo emergente e construtivismo social. Os educadores esclarecem que o planejamento do currículo e as atividades para crianças menores de seis anos frequentemente geram conflito, pois existem pontos de vista um pouco controversos a respeito de como elaborá-los. Em algumas teorias, o planejamento é um método que correlaciona, anteriormente, os objetivos gerais com os objetivos específicos para cada atividade.] No currículo emergente de Reggio Emilia, o planejamento é um método de trabalho no qual os professores estabelecem os objetivos gerais, mas não os específicos, e, sim, hipóteses do que possa ocorrer. Os objetivos específicos são flexíveis e adaptados aos interesses e necessidades das crianças. “Os professores seguem as crianças e não os planos. Os objetivos são importantes e não serão perdidos de vista, mas o porquê e como se chegar até eles são mais importantes.” Lóris Malaguzzi O currículo emergente está vinculado ao construtivismo social e nessa abordagem parte-se do pressuposto de que a criança é forte, rica e poderosa. É um sujeito com direitos e não apenas necessidades, que tem potencial e desejos. É dessa concepção de criança que eles partem para o planejamento e desenvolvimento de todo o trabalho. Quanto ao papel do professor no currículo emergente e construtivismo social, há aspectos importantes a se observar. Primeiramente, o professor mais escuta do que fala. Fica atento às manifestações e movimentos do grupo, a suas hipóteses sobre os variados assuntos, procede a uma escuta profunda, não dá respostas prontas e automáticas, deixa que as crianças pensem em várias soluções. Por isso, ele preza a investigação científica, incentiva a curiosidade, envolve-se com as crianças numa tempestade de questionamentos e possibilidades de respostas. Ajuda a criança a descobrir respostas e a indagar. Ao contrário do que ocorre normalmente nas escolas bra si leiras, em Reggio Emilia, o professor dá importância ao inesperado. Em nossas escolas, os professores têm certa dificuldade em aceitar aquilo que surge de última hora, ou precisam organizar esse tipo de informação na “hora da novidade”. Propõem espaço e tempo determinados para que a criança relate o que lhe parece inédito e interessante e, ao terminar esse momento, não se fala mais sobre o assunto. Lá, o professor incentiva e chama a atenção das crianças para qualquer fato surgido espontaneamente, dá a eles a conotação de surpresa. Não se considera desperdício o tempo que se oferece à criança para observar o novo ou o velho. A criança que passa um longo tempo observando uma flor, um inseto, enchendo e esvaziando um recipiente, não é interrompida para fazer outra atividade, pois parte-se do principio de que ela está investigando, descobrindo as características e propriedades de seu objeto de estudo, analisando suas ações e reações. Isso é ciência! Em Reggio Emilia, a concepção é de que todo crescimento emerge do processo de construção social e de si mesmo. A ação e a socialização no grupo são fatores importantes, e para a organização dos projetos há determinados critérios., pois, conforme o número de componentes, há mais ou menos conflitos e eles são muito importantes e ricos. Os grupos são limitados a cinco componentes para que a dinâmica não fique demasiadamente complexa. Para viabilizar o trabalho, é preciso cuidados com o planejamento e com a organização dos seguintes itens: 1--trabalho em equipe 2--participação (escola-família, participação e gestão social) 3--ambiente (arquitetura, espaço, níveis) 4--atividades que envolvam as crianças Para ilustrar como é possível desenvolver um currículo emergente, o livro apresenta o projeto Multidão. Os educadores combinaram com o grupo e seus pais e prepararam uma caixa para cada criança levar nos passeios de férias, a fim de recolherem elementos, objetos, recordações significativas vivenciadas. O principal objetivo dos educadores era manter o vínculo das crianças com a escola, no período de afastamento, para manter vivo o interesse por aprender. Ao retornarem com seus preciosos tesouros, o que chamou a atenção não foi, como os educadores imaginaram, conchas, pedras, folhas, enfim, elementos recolhidos na natureza ou histórias sobre praias e montanhas, mas a descrição de um menino: no local onde passou férias havia uma rua comercial muito cheia, na qual “...algumas pessoas sobem a rua, outras descem. A gente não consegue ver nada, só consegue ver uma multidão de braços, pernas e cabeças.” Imediatamente, os educadores, em sua profunda escuta, perceberam que a palavra gerou excitação nas crianças e perguntaram o que era uma Multidão. As respostas das crianças foram variadas e, como sempre, registradas pelos adultos, mas, ao expressarem suas idéias em linguagem gráfica, usando desenho, perderam a imagem de que a multidão, como no relato de outra criança “...Ela vai para esquerda, vai para a direita, para a frente e quando esquecem algo, eles voltam”. Ao compararem seus desenhos com os registros das idéias, as crianças perceberam a diferença e as justificativas. Entre várias, foi a de que haviam desenhado apenas uma parte da multidão. Uma das crianças admitiu que só sabia desenhar pessoas de frente. Trabalharam então a idéia de tridimensionalidade usando as próprias crianças em várias posições, e o grupo concluiu que era como se estivessem dentro de um quadrado, com quatro lados. As professoras levaram o grupo para o centro comercial da cidade, e lá as crianças observaram as pessoas, misturaram-se a elas e tiraram fotos. Depois, as fotos foram reveladas em slides, e as crianças misturaram-se às imagens projetadas na parede da sala de aula. Fizeram novos desenho, alguns já com evolução nas posições. Recortaram figuras humanas e de animais, colaram, transformaram-nas em fantoches, dramatizaram, modelaram com argila, enfim, exploraram as várias linguagens para criar novas multidões; surge mais outra dúvida: Pode-se juntar na mesma multidão pessoas com roupa de praia e pessoas com roupa de festa? E de diferentes tamanhos? Para solucionar esse problema, ampliaram e reduziram figuras em uma copiadora para que “parecessem normais“. Nesse breve relato, podem-se perceber a riqueza e criatividade do trabalho, a preocupação com o envolvimento das crianças, o levantamento de questões para que o grupo pense e encontre soluções, o esforço cognitivo instigado pelos adultos ao solicitarem comparações das crianças entre seus registros verbais e gráficos. É visível a concepção de criança capaz, com poder de decisão, inteligente, plenamente ativa. De acordo com o livro, são seis as lições que se podem aprender com o trabalho de Reggio Emilia: As crianças e os adultos trabalham juntos nos projetos. Não há menosprezo ao conhecimento e às sugestões das crianças e os assuntos são estudados em toda profundidade possível. O uso de desenhos como base nas discussões provoca grande interesse das crianças. Ao observarem seus próprios desenhos, as crianças são capazes de perceber as informações do projeto estudado e de como elas estão explícitas em seus registros. É uma forma de leitura bastante interessante e apropriada às crianças que ainda não se alfabetizaram. A representação realística não inibe o desejo pela expressão abstrata e criativa, ou seja, o fato de as crianças usarem o desenho ou outras formas de linguagem para expressar idéias e pensamentos reais, concretos, relacionados ao assunto estudado, não inibe o seu desejo de criar livre e artisticamente. O relacionamento entre o professor e os alunos é enriquecido com a utilização de projetos no trabalho pedagógico. Os assuntos tratados são profundos e especiais para todos e não apenas amenidades como orientar os alunos para a higiene, lanche ou hora da atividade. O trabalho da criança é encarado com seriedade. O professor não faz elogios vazios e comentários desatentos às produções das crianças. Ao contrário de várias situações que ocorrem cotidianamente nas escolas, o professor observa o trabalho da criança com atenção, discute, faz perguntar, enfim, interessa-se de fato. O modelo educacional está baseado em relacionamentos comunitários.Toda a comunidade participa e colabora com o processo educativo das crianças. Todos, crianças e adultos, estão envolvidos e engajados na qualidade do trabalho pedagógico.