Introdução

Propaganda
As práticas de letramento da família e as dificuldades de aprendizagem:
perspectivas para o debate.
Patrícia de Oliveira
Profª Drª Cristina Broglia Feitosa de Lacerda
Universidade Federal de São Carlos – UFSCar
Eixo Temático: 5. Pesquisa em Pós-Graduação em Educação, Linguagem e Mídias.
Categoria: Comunicação Oral.
Resumo
O objeto desta pesquisa são as práticas de letramento dos familiares de crianças com
dificuldades de aprendizagem, com o objetivo de examinar essas práticas, identificando e
relatando sua constituição e construção e a participação das crianças nesses eventos. O
letramento pode ser entendido como os usos e a maneira como os indivíduos fazem uso da
linguagem escrita. Os usos da linguagem escrita feitos pelos familiares podem ser fundamentais
na construção do letramento da criança, levando-a a ter sucesso ou dificuldade na escola. Os
participantes selecionados eram familiares de crianças de uma escola pública municipal do
interior do Estado de São Paulo. Para a coleta de dados foram organizadas reuniões semanais,
no total de 10, com duração de 1h e 30 min. Nas reuniões, os participantes relatavam suas
experiências com a linguagem escrita e os eventos de letramento promovidos para seus filhos.
As reuniões foram filmadas e transcritas para análise e recorte dos dados. Foram apontadas 3
categorias para estudo: eventos de letramento vivenciados pelos participantes, as práticas de
letramento dos participantes, e os eventos de letramento propiciados aos filhos. Os estudos
apontaram que as práticas de letramento vem se transformando devido ao fácil acesso às
tecnologias da comunicação e informação, influenciando a construção dos eventos de
letramento para os filhos, podendo estar distanciando as crianças das práticas convencionais de
letramento e implicando em dificuldades de aprendizagem.
Palavras-chave: letramento, dificuldades de aprendizagem, família, leitura e escrita.
Introdução
Os processos de desenvolvimento do letramento estão ligados às relações que os
sujeitos constroem com a sociedade onde estão inseridos e à presença dos mais diversos objetos
mediadores de seu contexto, conferindo a estes sujeitos um determinado papel e contribuindo
para determinar sua trajetória de vida.
Essas relações podem nascer a partir das primeiras situações de interação que são
estabelecidas com os indivíduos mais experientes de seu meio, que ao orientar ou supervisionar
as ações dos sujeitos menos experientes, media suas relações com o contexto que o envolve,
deixando subjacente em sua orientação e/ ou supervisão um forte aparato de conhecimentos e
valores que serão usados pelos indivíduos menos experientes para construir seus próprios
parâmetros de conhecimentos e valores.
Lahire (2004) aponta que a criança desenvolve seus esquemas comportamentais,
cognitivos e avaliativos através das relações de interdependência com as pessoas com as quais
convive com freqüência, encontrando sua própria forma de relacionar-se a partir dessas relações
de interdependência nas quais se apóia.
Dessa forma, as práticas de letramento utilizadas pelas famílias, a maneira como os
familiares fazem uso da leitura e da escrita, e a forma como a criança participa dessas práticas
familiares de letramento podem se refletir no aprendizado do código escrito, favorecendo seu
sucesso ou promovendo dificuldades durante a aprendizagem escolar.
O letramento e o papel da família
Lemos (1994), ao discutir o processo de aquisição da escrita pela criança, aponta dois
fatores fundamentais para elucidarmos o papel da família e do ambiente familiar no letramento
das crianças: a presença de materiais escritos para serem manipulados pelas crianças e a maneira
como elas participam das diferentes práticas discursivas orais que mediam as relações entre os
indivíduos e de cada indivíduo com o mundo.
Heath (1982, 1983 apud TERZI, 2008), através de um estudo etnográfico com famílias
de três comunidades diferentes acerca das relações que os sujeitos estabeleciam com os usos da
leitura e da escrita, utilizou como categoria de análise os chamados eventos de letramento, que
são entendidos como “as ocasiões em que a língua escrita torna-se parte constitutiva das
interações dos participantes e de seus processos e estratégias interpretativos” (TERZI, 2008, p.
95).
Na comunidade Maintown, segundo Heath,
os indivíduos possuíam alto grau de
letramento e de valorização da linguagem escrita, de modo que os pais agiam para que os filhos
adquirissem os hábitos e valores próprios de sujeitos letrados. Para isso, a presença de livros e
atividades de leitura na vida das crianças era constante (leitura de histórias antes de dormir,
leitura de caixas de cereais, caixas de brinquedos, etc.) e o adulto colocava-se sempre pronto
para atender a criança quando esta iniciava um evento de letramento. A leitura de histórias antes
de dormir era o evento de letramento mais utilizado, mesmo por famílias que não
compreendiam a importância desse momento para o desenvolvimento do comportamento leitor
e para a aprendizagem escolar.
De uma maneira geral, os eventos de letramento que eram oferecidos pelos pais desta
comunidade às crianças lhes ensinavam a construir sentidos a partir da escrita e a estabelecer
relações a partir desses sentidos, levando-as a ter sucesso na escola.
A comunidade Roadville apresentava práticas de letramento bastante diferentes. Os
adultos faziam leituras para as crianças, mas não exploravam com elas os sentidos dos textos,
prendendo-se somente ao seu conteúdo. A participação das crianças era passiva e pertinente ao
contexto presente, não ficcionando ou descontextualizando conhecimentos e eventos para outras
situações a fim de estabelecer novas experiências. Essas crianças costumavam ter bom
desempenho nas séries escolares iniciais, mas a partir da quarta série seu desempenho começava
a cair, pois não conseguiam fazer generalizações e expressar opiniões pessoais acerca de
eventos e atividades escolares.
A comunidade de Trockton apresentou uma prática de letramento bastante diferente das
demais, pois os pais acreditavam que a fala se desenvolve naturalmente e a oralidade das
crianças não era estimulada. O desenvolvimento lingüístico das crianças se dava através da
participação passiva e da observação da comunicação entre os adultos. O material de leitura
utilizado pelas crianças eram as leituras da igreja local e o questionamento acerca destas leituras
referia-se somente ao seu conteúdo. Como observavam muitos eventos de letramento em grupo
dirigidos por/ para adultos, as crianças começavam a produzir suas próprias histórias
ficcionando histórias verdadeiras e tentavam atrair a atenção dos adultos com suas narrativas.
Na escola, apresentavam os níveis mais baixos no desempenho da leitura e tinham dificuldade
em adaptar-se aos padrões escolares.
Os eventos de letramento propostos pelas famílias e os modos de participação da
criança permitidos nesses eventos são subjacentes ao que Bourdieu (2008) denominou como
capital cultural. Para o autor, “cada família transmite a seus filhos, mais por vias indiretas que
diretas, um certo capital cultural e um certo ethos, sistema de valores implícitos e
profundamente interiorizados” (p. 41). Isto significa que os eventos nos quais a criança está
inserida são regidos pelos sistemas de valores culturais assumidos pela família, no qual os
diferentes tipos de capital cultural poderão determinar a construção de seu saber e de sua relação
com o mundo.
Para Bourdieu (2008), a influência do capital cultural é facilmente apreensível através
da relação entre o nível cultural global da família e o sucesso escolar das crianças. Para o autor,
as questões relativas ao capital cultural transmitido pelas famílias às crianças podem levantar
hipóteses sobre a desigualdade no desempenho escolar das crianças, pois o rendimento escolar
“depende do capital cultural previamente investido pela família” (p. 74).
Isto pode significar que a família, na condição de primeiro grupo social do qual os
sujeitos fazem parte, deixa subjacente nas relações que estabelece com seus membros o seu
capital cultural desde o nascimento de cada um destes, quando manifesta seus desejos a respeito
do desenvolvimento e conseqüente sucesso social da criança quando esta se tornar um adulto.
Portanto, desde seus primeiros contatos com o mundo, a criança é inserida em diversos
eventos provocados pela família que oferecerão condições para que esta se relacione com o
mundo que a cerca e construa suas próprias estratégias para diversas outras relações futuras.
Nesses eventos, a criança começa a estabelecer a sua dialética com o mundo a partir dos
elementos que são colocados a seu alcance pelos adultos que a cercam.
Vigotsky (2008) afirma que as construções de significados que as crianças fazem não
são feitas de maneira espontânea, mas sim apoiadas nos significados transmitidos pela
linguagem dos adultos. Para o pesquisador, é a linguagem do ambiente com seus significados
estáveis e permanentes que nortearão o caminho das generalizações infantis, de acordo com o
nível de desenvolvimento intelectual da criança. Isto não significa que o adulto vai transmitir à
criança o seu modo de pensar, mas ele apresenta à criança um significado consolidado e é em
torno desse significado pronto e acabado que a criança constrói seus pensamentos e conceitos e,
mesmo que sejam idênticos, nunca serão os mesmos, pois a criança faz a sua própria
interpretação dos fatos, ou seja, faz a sua apropriação dos elementos do ambiente.
Assim, é na dialética da criança com o meio no qual ela está inserida que suas
concepções acerca do mundo são construídas, por meio das múltiplas possibilidades que podem
ser criadas sobre as maneiras de interagir com ele, e fazendo uso das muitas linguagens
possíveis. É também nessa dialética que a criança constrói o seu processo de letramento.
Mayrink-Sabinson (2009), questionando o papel do adulto proposto por Ferreiro e
Teberosky (1985/1999) no processo de construção do conhecimento da linguagem escrita pela
criança, desenvolveu um registro longitudinal da história do contato de sua própria filha com a
linguagem escrita, iniciando esse registro quando a criança completou um ano de idade e o
encerrando aos 7 anos e 3 meses de idade, quando esta completou a 1ª série do Ensino
Fundamental 1 . Os dados registrados descreviam os encontros da criança com a linguagem
escrita sob a perspectiva de eventos de letramento. A pesquisadora também aponta que os pais
da menina são sujeitos altamente letrados (professores universitários) e que sua babá tinha
Ensino Fundamental completo. Afirma também que após os 2 anos e 6 meses, a menina passou
a freqüentar uma escola de educação infantil que não tinha por objetivo alfabetizar na pré-escola.
1
No momento da pesquisa de Mayrink-Sabinson (2009), o ingresso da criança ao Ensino Fundamental se dava aos 7
anos de idade.
Segundo a autora, quando o adulto toma a atitude da criança frente à linguagem escrita
como um ato de leitura, ele reage de maneira a construir juntamente com a criança o interesse
pela escrita, tornando-se co-construtor do interesse da criança pela escrita. Além disso, as
atitudes da criança que são tomadas como tentativas de leitura são motivadas pelos adultos.
A pesquisadora ainda afirma que a criança incorpora o comportamento do adulto em sua
interpretação acerca dos usos da escrita e também em relação aos jogos de sedução constituídos
pelos adultos: primeiramente é o adulto que seduz a criança com atenção irrestrita para que ela
atente à linguagem escrita, depois a criança passa a usar seu interesse pela escrita para seduzir o
adulto e conseguir atenção irrestrita.
Outros dados apontados por Mayrink-Sabinson (2009) descrevem que os atos do adulto
de nomear os pertences da criança são interpretados como uma situação de posse e poder, logo,
a escrita é vista como um exercício de poder. Da mesma maneira, presenciar eventos de
letramento onde cartas, bulas, receitas e instruções são lidas desenvolve na criança o
conhecimento de que a escrita destina-se a alguém que está ausente e que isto confere à
linguagem escrita veracidade e poder.
Para a pesquisadora, o papel do adulto letrado no processo de letramento das crianças é
muito maior do que de simples informante, pois é ele quem atribui intenções e interesses,
orientando a atenção da criança para os aspectos da escrita, tornando os gestos e a fala
significativos. Assim, o adulto letrado é um co-autor e co-construtor das hipóteses das crianças
sobre a escrita (MAYRINK-SABINSON, 2009).
A importância e o papel da interação entre o adulto e a criança para o processo de
aquisição da linguagem escrita também é afirmada por Rego (1994).
Segundo a pesquisadora, já nos é sabido que as crianças adquirem a linguagem oral a
partir dos contextos comunicativos onde a linguagem é significativa para elas e é fazendo uso da
língua enquanto instrumento de comunicação que a criança passa a vê-la como um sistema
organizado. Por isso é fundamental que a criança participe ativamente em conversas que tratem
de assuntos de seu real interesse, pois isso a leva a progredir rapidamente na linguagem. Assim,
mesmo sendo a criança um organismo pré-adaptado para a aquisição de linguagem, seu ritmo
pode ser afetado pela quantidade de linguagem a qual está exposta e pela qualidade da interação
promovida pelo adulto. Segundo a pesquisadora, para que a criança progrida no
desenvolvimento de seu conhecimento lingüístico é preciso que ela se torne um parceiro
conversacional, tomando parte no diálogo e expandindo os tópicos introduzidos na conversação.
Rego (1994) também aponta três pontos fundamentais acerca da relação existente entre
os eventos de letramento e o desenvolvimento lingüístico: 1. o fato de que os processos de
socialização promovem o desenvolvimento da criança e facilitam a aprendizagem escolar; 2. a
escola inicia o processo de aprendizado da leitura pressupondo habilidades que são
desenvolvidas a partir das experiências prévias das crianças dentro das famílias e não a partir
dos treinos escolares; e 3. há semelhanças entre a aquisição da linguagem oral e linguagem
escrita, tanto em relação às interações sociais facilitadoras quanto ao trabalho de construção e
descoberta realizado pela criança.
A maneira como os processos de socialização promovem o desenvolvimento da criança
e facilitam a aprendizagem escolar, a formação das habilidades que a escola pressupõe que a
criança já as possua em decorrência da atuação da família em seu processo de desenvolvimento,
e as semelhanças entre a aquisição da linguagem oral e da linguagem escrita devido às
interações sociais facilitadoras desse processo, envolvem a formação de conceitos dentro de um
processo constante de construção e reconstrução, imprescindíveis para os processos de
letramento. Portanto, tanto o exercício realizado pela família em suas práticas e processos de
letramento como a maneira como esta se relaciona com esses processos constituem-se como
ponto de partida para que as crianças construam seus próprios processos de letramento.
Letramento e as dificuldades de aprendizagem
O termo dificuldades de aprendizagem surgiu em 1963, durante uma conferência da
Fund for Perceptually Handicapped Children, nas palavras de Samuel Kirk, educador
designado pelo U.S. Office of Education (GARGIULO, 2006; GARCÍA, 1998), para definir
crianças com inteligência normal, porém com grandes dificuldades no aprendizado escolar.
Segundo Garcia (1998), atualmente nos Estados Unidos há quatro definições
consideradas habilitadas profissionalmente: a da U.S. Office of Education (USOE), de 1977; a
do National Joint Committee on Learning Disabilities (NJCLD); a da Learning Disabilities
Association of America (LDA); e do Interagency Committee on Learning Disabilities (ICLD).
A definição proposta pelo National Joint Commitee on Learning Disabilities (NJCLD),
considerada por muitos especialistas americanos como a mais completa (GARCIA, 1998)
afirma que as dificuldades de aprendizagem são um grupo heterogêneo de transtornos que se
caracterizam por dificuldades significativas para a aquisição e uso da escuta, da fala, da leitura,
da escrita, do raciocínio ou das habilidades matemáticas. Esses transtornos são intrínsecos aos
indivíduos, supondo-se a possível presença de uma disfunção do sistema nervoso central,
podendo ocorrer ao longo do ciclo vital. Podem ocorrer em conjunto com os transtornos e
problemas de conduta de auto-regulação, percepção social e interação social, mas isso não
constitui por si próprias uma dificuldade de aprendizagem. Podem também ocorrer
concomitantemente com outras condições incapacitantes (presença de deficiências, por
exemplo) ou com influências extrínsecas (diferenças culturais, instrução inapropriada ou
insuficiente, etc.), porém não podem ser consideradas como resultado dessas condições ou
influências (GARCIA, 1998).
Essas abordagens definidas por importantes órgãos de pesquisa e divulgação dos
Estados Unidos consideram os transtornos específicos das dificuldades de aprendizagem como
fatores intrínsecos aos indivíduos, configurando-as como atrasos maturativos (ROMERO, 2004)
ou
como
disfunções
bioquímicas
cerebrais
ou
neurofisiológicas
(JOHNSON
e
MYKLEBUST,1983).
Em relação às disfunções bioquímicas ou neurofisiológicas, Johnson e Myklebust
(1983) afirmam que mesmo as crianças que apresentam capacidade motora adequada,
inteligência média ou acima da média, audição, visão e ajustamento emocional adequados,
podem apresentar algum distúrbio psiconeurológico. No entanto, os autores afirmam que “ao se
analisar os distúrbios, é essencial que se considere e se avalie as oportunidades que a criança
teve” (p. 02).
Sobre as teorias dos atrasos maturativos, Romero (2004), afirma que podem ser
compreendidas em dois grupos: os atrasos na maturação neurológica e neuropsicológica, e os
atrasos na maturação de funções psicológicas. Os atrasos na maturação neuropsicológica
nascem de pequenos atrasos maturativos de origem neurológica que afetam os processos
psicológicos básicos. Uma vez afetados, estes irão influenciar os processos de desenvolvimento
da aprendizagem escolar.
Os atrasos maturativos psicológicos “seriam o resultado de atrasos maturativos no
desenvolvimento de funções cognitivas, ou de algum de seus componentes, que são básicos para
realizar com êxito as aprendizagens escolares” (ROMERO, 2004, p. 63), ou seja,
comprometimentos dos processos perceptivomotores, espaciais e psicolingüísticos, na atenção,
memória, e na produção de estratégias para a aprendizagem.
Romero (2004), no entanto, considera o papel da interação entre as características
específicas da criança e do ambiente, sobretudo da família, que, para o autor, não apenas influi
na importância e na duração das dificuldades de aprendizagem como pode incidir sobre sua
própria aparição. Por isso, o pesquisador pontua que as maiores críticas em relação às teorias
dos atrasos maturativos apontam a tendência de se esquecer a influência dos estímulos
ambientais, pois processos psicológicos complexos, em seu desenvolvimento, podem ser
mediados por variáveis de naturezas diversas, inclusive as ambientais.
Para Vigotsky (2008), as origens das dificuldades de aprendizagem que as crianças
apresentam principalmente no início do processo de alfabetização devem-se ao fato de que as
funções psicológicas empregadas no domínio de conceitos tão abstratos quanto a relação entre
os símbolos gráficos da escrita e os sons da fala ainda não estão consolidadas.
Para o pesquisador, a formação de conceitos inicia-se numa idade bastante precoce,
porém seu ápice encontra-se na puberdade. Dessa forma, quando a educação formal e o
processo de alfabetização são iniciados, as crianças são obrigadas a operar com processos
rudimentares que mal começaram a se desenvolver (VIGOTSKY, 2008).
Além disso, Vigotsky (2008) afirma a importância das relações entre os sujeitos dentro
dos contextos históricos sociais pré-determinados para a construção desses conceitos. E é dentro
dessas relações que são transmitidos os valores, crenças, tradições e ideias a respeito dos usos
das linguagens e as diferentes formas de se relacionar com o mundo.
Sob essa perspectiva, Bourdieu (2008) considera o capital cultural transmitido pelos
familiares como uma hipótese considerável acerca das dificuldades de aprendizagem (ou
desigualdades no desempenho escolar, conforme descrito pelo autor). Para o autor, o que alguns
pesquisadores e/ ou indivíduos comuns costumam chamar de aptidão ou dom são produtos de
um investimento em tempo e em capital cultural e o rendimento escolar depende desse capital
cultural previamente investido pela família.
Esta influência pode ser determinante na constituição dos processos de letramento das
crianças, pois os estímulos advindos dos contextos podem ser a matéria prima para o
desenvolvimento dos processos mentais que permitirão à criança construir seus próprios
processos de letramento.
Objetivos
A pesquisa teve por objetivo examinar as práticas de letramento das famílias de crianças
com dificuldades de aprendizagem, a fim de se identificar e relatar como são construídas e
constituídas essas práticas e como as crianças participam desses eventos.
Metodologia
Para a coleta de dados, foram organizadas reuniões com os pais de crianças que
estavam apresentando dificuldades na aprendizagem escolar, conforme seleção feita por
professoras de uma escola pública de um município do interior do Estado de São Paulo.
Estas reuniões, com duração aproximada de 1 hora e meia, se realizaram semanalmente
na própria unidade escolar, e contaram com a média de 10 participantes.
Sob o pretexto de oferecer experiências para que os pais pudessem realizar leituras para
seus filhos em casa, os participantes eram levados a falar a respeito de suas práticas de
letramento e, em suas descrições, também comentavam como seus filhos participavam dessas
práticas.
As reuniões foram registradas em audiovisual para posterior análise e recorte dos dados.
Também foi desenvolvido um diário de campo para registrar as impressões e as conversas entre
participantes e a pesquisadora.
Resultados
Os recortes dos dados transcritos apontaram 3 categorias para análise: os eventos de
letramento vivenciados pelos participantes, as práticas de letramento dos participantes, e os
eventos de letramento proporcionados aos seus filhos.
• Eventos de letramento vivenciados pelos participantes
De acordo com os participantes, a criança participava constantemente das atividades
familiares, pois a família desejava que as crianças dominassem alguns “saber-fazer”
relacionados ao trabalho devido às dificuldades de acesso à escola.
P1 – (...) E ele falava pra mim ah, meu filho! Você aprendeu bem porque eu te ensinei.
Você, não é qualquer veterinário que te passa para trás, não. Você é bom, ele falava.
Nas situações em que os pais se opunham aos estudos escolares devido a questões
socioeconômicas, culturais, etc., a criança podia contar com o apoio de outros familiares.
P2- Minha tia me ajudava, meu tio... depois meus primos também me ajudavam. Foi
pelo fato disso que eu consegui estudar até a 8ª série. Quando era para eu fazer a
última prova e pegar o diploma, eu o peguei e depois não fui mais para escola.
Nos eventos de letramento havia uma preocupação com a qualidade das transmissões
dos saberes. Para isso, os familiares procuravam tornar o momento prazeroso para as crianças,
assegurando a qualidade dessas transmissões. Para isso eram utilizados vários recursos, desde a
preparação do ambiente até o uso de variados tipos de narrativas orais: contos, lendas, narrativas
sobre situações reais, etc.
P3– A gente acendia uma fogueirinha ali... ele contava o que ele fez quando era
criança, quando ele começou a trabalhar, (quando) ele ia caçar, (...) porque às vezes
ele contava que tinha lobisomem, que ele se perdeu no mato, que no outro dia os
parentes, meus tios, foram procurá-lo. (...)
Apesar das dificuldades de acesso à escola, havia a valorização do domínio da
linguagem escrita, a preocupação com as mudanças promovidas no panorama mundial devido
ao avanço das tecnologias apoiadas no trabalho cognitivo, com o crescente aumento das
atividades empregatícias nesse tipo de trabalho, e com o crescimento das demandas sociais
permeadas pelo uso das tecnologias.
P1 – (...) Meu pai falava, (que) com o tempo, que já está acontecendo, (...) se não
tivesse (estudado até) a 8ª série, a pessoa estava arrumada, ela não trabalhava mesmo.
Já aconteceu!
• As práticas de letramento dos participantes
As práticas de letramento mostraram-se apoiadas nos recursos oferecidos pela
tecnologia e pela mídia, levando os indivíduos a novas práticas de letramento e a desenvolver
novos comportamentos em relação aos usos da leitura e da escrita, substituindo as práticas de
letramento convencionais pelos usos dos recursos tecnológicos.
P4 – Computador, que aparece muita coisa, está mostrando muita coisa para eles (as
crianças). A televisão já está falando e você só está ouvindo, no rádio passa muita
coisa. Ôh! Eu estou ouvindo bastante coisa, eu vou pegar uma revista pra ler? Eu vou
ver o que eu ouvi, vou ler o que eu já ouvi? Então eu vou deixar de ler às vezes...
A acessibilidade à informação oferecida pela internet, assim como a própria
acessibilidade da internet, também foram citadas pelos participantes.
P4 – Hoje se eu quero alguma coisa que não está na televisão, eu tenho na internet.
Você não vai pegar um livro, uma revista, um jornal, dificilmente você vai se dar ao
trabalho de correr atrás de uma revista, atrás de um jornal porque está tudo na
internet...
Sobre as práticas de letramento convencionais, os participantes demonstraram
desconforto e dificuldade para utilizar o código escrito. Além disso, o hábito de leitura foi
considerado parte constituinte do status social dos indivíduos que tiveram acesso aos níveis
mais altos de escolaridade.
P7 - Eu, eu gosto de ler, né? Tenho só a 4ª série mais eu gosto de ler. Leio revistas, às
vezes um livrinho pra ler... Caça-palavra... Eu leio revista... eu gosto de ler...
Nas situações em que é exigido o domínio do código escrito, ou é preciso construir
significações a partir de imagens e figuras, os participantes afirmaram que sempre buscam o
apoio de pessoas mais alfabetizadas ou fazem uso de suas experiências pessoais para construir
as interpretações.
P1 – Agora, hoje, eu falo a Bíblia sem estudá-la. A minha esposa lê para mim e eu
traduzo a palavra para a igreja. Eu não leio nada (...)
• Eventos de letramento oferecidos pelos participantes aos seus filhos
Conforme os relatos dos participantes, a maneira como a família se reúne atualmente
mudou bastante. Isso se deve, entre muitos fatores, à presença dos recursos tecnológicos e
midiáticos que vem pautando e colaborando com as argumentações dos eventos de letramento.
Além disso, está subjacente a idéia de que o domínio das tecnologias, por si só, trará benefícios
para o progresso educacional das crianças.
P8 - Outro dia estávamos assistindo (televisão), aí eu passei, não tem aquele programa
do Gugu, que ele tinha... (o programa) dá a casa para a pessoa, aí eu vi uma casinha
de tábua, ai eu falei pra ele: (você) está vendo? Eu já morei numa casa assim, que não
tinha banheiro, que o banheiro era um pneu.(...)
Em relação ao aprendizado do código escrito, os participantes relataram dificuldade em
compreender e lidar com as novas estratégias de ensino utilizadas pela escola, levando-os a
questionar os processos de ensino e a qualificação dos professores.
P9 - As crianças não aprendem mais a ler. O modo de ensinar mudou... de ler... E eles
têm preguiça de ler! A Ana Julia não gosta de ler!
Conclusões
Nosso atual momento sócio-histórico e cultural tem proporcionado aos indivíduos
experimentar o uso de recursos tecnológicos que permitem ter acesso a informação,
comunicação e conhecimentos de diferentes naturezas em tempo real e em linguagem acessível.
Com o acesso cada vez mais fácil às tecnologias, os usos da leitura e da escrita podem
estar se transformando sob alguns aspectos (SOARES, 2002), o que pode levar a
interpretações controversas sobre os efeitos e conseqüências dos usos dessas tecnologias e os
processos de leitura e escrita.
Os dados apontam que os participantes se apóiam no uso das tecnologias em situações
nas quais são exigidas a leitura e a escrita da maneira convencional; porém parecem
desconhecer a relação que estes recursos possuem com a leitura e a escrita.
O forte apoio encontrado na tecnologia em substituição à leitura e à escrita
convencionais pode ser resultado da falta de escolarização ou de uma escolarização
inadequada, permeada por crenças controversas acerca da aprendizagem dos usos da
linguagem escrita (GOULART, 2007).
Com a alfabetização focada no domínio do código escrito e não nos usos da linguagem
escrita, a aprendizagem ficava reduzida para um considerável número de alunos,
principalmente os provenientes de famílias cujo capital cultural era restrito. Mesmo para
aqueles que adquiriam a tecnologia da escrita, a aprendizagem dos usos da linguagem escrita
eram restritivos, o que pode ler à interpretação errônea de que hábitos de leitura são
comportamentos apenas de indivíduos que tiveram acesso à níveis altos de escolaridade.
Dessa forma, o uso das tecnologias se torna mais atraente justamente por oferecer
facilidades que se parecem se sobrepor aos da leitura e da escrita convencionais.
Soares (2002), analisando o uso das tecnologias digitais e o hipertexto, afirma que os
recursos tecnológicos podem propiciar a promoção de processos cognitivos inerentes a essa
nova forma de letramento que, para Ramal (apud SOARES, 2002), aproxima mais os
indivíduos do próprio esquema mental por permitir que os sujeitos interajam com dimensões
sobrepostas de conhecimentos que se interpenetram e, usando a imaginação, componham e
recomponham cada leitura. Assim, os usos dos recursos tecnológicos podem ser outra forma de
letramento, diferente do convencional com portadores de textos de papel, e também mais
democrático por permitir seu domínio pelos indivíduos com diferentes níveis de letramento.
As controvérsias a respeito dessa nova modalidade de letramento podem indicar que
ainda estamos muito arraigados às práticas de letramento nos portadores de papel, levando os
indivíduos e instituições a legitimar apenas essas práticas como condições para um
comportamento letrado efetivo.
Além das questões relativas aos usos dos recursos tecnológicos e às transformações que
estes podem estar propiciando à leitura e à escrita, os eventos de letramento vivenciados pelos
participantes durante sua infância foram bastante diferentes dos eventos que vem
proporcionando a seus filhos.
Em sua infância, os participantes contaram com a participação bastante ativa dos
adultos em suas relações; em relação aos seus filhos, isso têm sido diferente.
Os eventos de letramento proporcionados aos filhos têm sido mediados pelos
recursos tecnológicos e midiáticos, demonstrando grandes transformações na maneira como os
indivíduos estão se relacionado entre si e com o conhecimento.
Por exemplo, o estranhamento causado pelas novas estratégias de ensino utilizadas
pela escola e que tem levado os familiares a questionarem os métodos, as técnicas e até mesmo
a qualificação dos professores mostram como a relação com o conhecimento também
mudou, pois a escolarização dos participantes advém de um período sócio-histórico e
cultural em que a aprendizagem era determinada pelo domínio da técnica, enquanto que a
escola de hoje busca o domínio do objeto de conhecimento.
Por isso, ao concordarem que a tecnologia pode ser mais atraentes do que os
recursos utilizados pela escola, podem estar refletindo suas próprias experiências, já que
acreditam que não é preciso ler nem escrever para dominá-la.
Como ainda são muito poucos os estudos sobre os processos cognitivos e a leitura e
a escrita nos meios digitais, a influência das tecnologias no processo de constituição do
letramento dos indivíduos e suas consequências sociais, cognitivas e discursivas ainda não
estão totalmente compreendidas (SOARES, 2002).
Dessa forma, compreender os efeitos das tecnologias da informação e comunicação
no processo de letramento dos indivíduos pode trazer conhecimentos consideráveis a respeito
das crenças de que essas se sobrepõem às práticas convencionais de leitura e escrita.
Essas crenças, dentro do processo de transmissão do capital cultural, pode
distanciar ainda mais as crianças das práticas convencionais de letramento.
E, ao distanciar as crianças das práticas convencionais de letramento, podem também
estar distanciando as crianças das práticas escolares, pois estas se apóiam quase que
exclusivamente em práticas convencionais de uso da leitura e da escrita. Portanto, se a família
não faz uso das práticas convencionais de letramento, as atividades escolares que fazem uso
dessas práticas convencionais perdem seus sentidos e significados, mesmo que possuam forte
apelo social, como a escrita de bilhetes e cartas. Nesse ínterim, a criança passa a se distanciar
do código escrito de uma maneira que pode afetar o seu aprendizado, o que poderá levá-la a
apresentar dificuldades em seu processo de alfabetização.
Referências
BOURDIEU, P. Escritos de Educação. 10ª edição. Petrópolis: Vozes, 2008.
FERREIRO, E.; TEBEROSKY, A. Psicogênese da língua escrita. Porto Alegre: Artes Médicas
Sul, 1999.
GARCIA, J. N. Manual de dificuldades de aprendizagem: linguagem, leitura, escrita e
matemática. Porto Alegre: Artes Médicas, 1998.
GARGIULO, R. M. Persons with Learning Disabilities. In: Special Education in
Contemporany Society: an introduction to exceptionality. USA: Thomson, 2006.
GOULART, C. Processos de letramento na infância: aspectos da complexidade de processos de
ensino-aprendizagem da linguagem escrita. In: SCHOLZE, L.; RÖSING, T. M. K. Teorias e
práticas de letramento. Brasília: Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais
Anísio Teixeira, 2007.
JOHNSON, D. J.; MYKLEBUST, H. R. Distúrbios de Aprendizagem. São Paulo: Livraria
Pioneira Editora, 1983.
LAHIRE, B. Sucesso escolar nos meios populares: as razões do improvável. 1ª edição. 2ª
reimpressão. São Paulo: Editora Ática, 2004.
LEMOS, C. T. G. de. Prefácio. In: KATO, M. A (org.) A concepção da escrita pela criança. 2ª
edição. Campinas: Pontes, 1994.
MAYRINK-SABINSON, M.L.T. Reflexões sobre o processo de aquisição da escrita. In: ROJO,
R. (org.) Alfabetização e letramento: perspectivas lingüísticas. 4ª reimpressão. Campinas:
Mercado das Letras, 2009.
REGO, L. B. Descobrindo a língua escrita antes de aprender a ler: algumas implicações
pedagógicas. In: KATO, M. A (org.) A concepção da escrita pela criança. 2ª edição.
Campinas: Pontes, 1994.
ROMERO, J. F. Atrasos maturativos e dificuldades de aprendizagem. In: COLL, C.;
MARCHESI, A.; PALACIOS, J. (ogs). Desenvolvimento psicológico e educação: transtornos
do desenvolvimento e necessidades educativas especiais. 2ª edição. Porto Alegre: Artmed, 2004.
3 v.
SOARES, M. Novas práticas de leitura e escrita: letramento na cibercultura. Revista
Educação e Sociedade, Campinas, v. 23, n. 81, p. 143-160, dez 2002.
TERZI, S.B. A oralidade e a construção da leitura por crianças de meios iletrados. In:
KLEIMAN, A. B. (org.) Os significados do letramento: uma nova perspectiva sobre a prática
social da escrita. 10ª reimpressão. Campinas: Mercado das Letras, 2008.
VIGOTSKY, L.S. Pensamento e Linguagem. 4ª edição. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
Download