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A POLIOMIELITE E A INFÂNCIA ESCOLAR
Rosânia Maria Silvano - UNESC
RESUMO
O presente artigo vislumbra uma reflexão acerca do preconceito vivido por crianças vítimas da
paralisia infantil, com relatos de uma professora da Rede Municipal de Ensino em sua trajetória de
vida marcada por situações discriminatórias principalmente no universo escolar. O caminho
percorrido pela entrevistada, vítima da paralisia infantil, não é diferente das muitas crianças nas
diferentes épocas da história. Rejeitadas pelas famílias, entregues à orfanatos ou abandonadas
junto a outros bichos, por acreditarem que deveriam separar os bons dos ruins. A valorização e o
respeito à infância, se deu somente a partir da modernidade. O vírus da poliomielite foi o maior
causador das deficiências em crianças na década de 1970. Não bastasse conviver com as
limitações físicas, convivia-se também com as chacotas, os apelidos e as brincadeiras
preconceituosas. Os diferentes setores sociais mobilizaram-se à encontrar respostas para acabar
de vez com esse mal. Os microbiologistas Jonas Salk e Albert Sabin, desenvolveram uma vacina
inovadora, garantindo a erradicação desse vírus, mas não a qualidade de vida dos afetados. O
despreparo nas estruturas das escolas e fora delas, foram as principais barreiras que contribuíram
para a marginalização desses indivíduos durante um longo período da história até os dias de hoje.
A lei que garante a obrigatoriedade dos deficientes no ensino regular não reflete a realidade
excludente dos educandários desde a mobília até as posturas mascaradas dos professores que
apesar do discurso em favor dos desprotegidos e da diversidade, promovem os bons alunos
valendo-se de métodos competitivos em detrimento da promoção humana.
Palavras-chave: Deficiência – infância – Paralisia Infantil - Preconceito
INTRODUÇÃO
Este artigo tem por objetivo discutir sobre a discriminação e o preconceito que
marcaram a infância de crianças afetadas pelo vírus da poliomielite. Para tanto, a
metodologia utilizada foi a história oral, que possibilitou perceber o que foi significativo
nas experiências de uma dessas crianças. Além da entrevista, o artigo apresenta
reportagens de jornal e revisão bibliográfica sobre o tema inclusão de alunos com
deficiência.
Trabalhar na educação com crianças portadora de deficiência é um desafio que
nos aproxima de uma realidade social que ao longo da história a sociedade excluiu,
discriminou e humilhou.
De todas as deficiências que se conhece, entre elas, a visual,
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a mental, a auditiva e a física, proponho, por meio desse artigo, iniciar uma discussão
acerca da deficiência física adquirida pela paralisia infantil, causada pelo vírus da
poliomelite, que limitou a vida de muitas pessoas. Para conceituar o que venha a ser
essa deficiência, trago o documento publicado pelo MEC da sala de recursos
multifuncionais que define:
A deficiência física se refere ao comprometimento do aparelho locomotor que
compreende o Sistema Osteoarticular, o Sistema Muscular e o Sistema Nervoso.
As doenças ou lesões que afetam quaisquer desses sistemas, isoladamente ou
em conjunto, podem produzir grandes limitações físicas de grau e gravidade
variáveis, segundo os segmentos corporais afetados e o tipo de lesão ocorrida
(MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO / SECRETARIA DE EDUCAÇÃO ESPECIAL,
2006, p.28).
As conseqüências da poliomielite são visíveis para muitos dos que foram
infectados pelo fato de atingir diretamente os membros superiores e/ou inferiores. Este
estudo utilizou reportagens de jornais alertando já em épocas atrás, mais precisamente
nas décadas de 1950 e 1960, campanhas de vacinação em massa feita por empresas,
orientando seus funcionários a levarem seus filhos nos ambulatórios médicos e o
preconceito vivido por crianças em idade escolar. Além dessas reportagens, utilizei o
relato de uma pessoa que foi infectada pelo vírus da poliomielite. A mesma narra as
suas dificuldades em lidar com a deficiência ao longo de sua trajetória escolar.
Para entendermos a dor e a luta de cada pessoa em situação de deficiência física
causada pelo vírus da poliomielite, é importante conhecer como a doença iniciou e as
conquistas políticas e sociais, no sentido da erradicação, principalmente no Brasil, bem
como os preconceitos vividos por pessoas que contraíram a doença.
A Poliomielite, sua disseminação e erradicação no Brasil
A Poliomelite, também conhecida como Paralisia Infantil, é uma infecção aguda
causada por um dos três vírus existentes, transmitida por meio do contato com um
portador do vírus da pólio. A transmissão também se dá pelas fezes humanas, visto que
todos os doentes sintomáticos ou assintomáticos expulsam grandes quantidades de vírus
3
infecciosos nas fezes até cerca de três semanas após a infecção. (CAMPOS;
NASCIMENTO; MARANHÃO, 2003. p.575).
Segundo o Ministério da Saúde de 1988, no Brasil, foram registrados surtos de
poliomielite a partir das décadas de 1930, sendo que no Rio de Janeiro, em 1953,
ocorreu a maior epidemia até então registrada no país.
A imprensa noticiava a
ansiedade da população, desafiando médicos e autoridades a apresentar respostas à
sociedade brasileira.
As epidemias generalizadas eram uma preocupação de todos os países e
assunto nas convenções de saúde, como afirma André Luiz Vieira de Campos, Dilene
Raimundo do Nascimento e Eduardo Maranhão (2003). Segundo esses estudiosos, a
busca por uma vacina eficaz, a fim de erradicar esse mal, mobilizou países de toda parte
do planeta.
De acordo com um jornal de grande circulação da cidade de Criciúma, uma
crônica intitulada “Campanha Contra a Paralisia Infantil” no ano de 1957, mostrava que a
Companhia Siderúrgica Nacional – CSN - maior empresa de extração de carvão mineral
em Criciúma, SC- demonstrava preocupação com a epidemia que se propagava,
anunciando uma campanha de vacinação para os filhos dos funcionários da empresa a
fim de sensibilizar as autoridades locais e circunvizinhas.
A campanha desencadeada teve ajuda da CSN, que despendeu grande
soma para importar a vacina Salk, que combate o mal. Os filhos de empregados que
variam de 6 meses a 7 anos de idade serão vacinados gratuitamente. A finalidade
principal desta crônica é concitar os empregados da CSN, a levarem seus filhos ao
ambulatório para que sejam vacinados e ao mesmo tempo apelar para as
autoridades de todas as cidades vizinhas que, porventura nos ouçam neste
momento, para que também procurem seguir o exemplo da CSN. ( JORNAL
TRIBUNA CRICIUMENSE. Criciúma – SC, 05 de agosto de 1957).
A vacina SALK, desenvolvida pelo microbiologista Jonas Edward Salk e a vacina
SABIN, desenvolvida pelo microbiologista Albert Bruce Sabin, tiveram em sua origem um
soro preparado de uma só estirpe bacteriana ou viral, assegurando uma proteção única
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contra as afecções, por isso diz-se que essas duas vacinas são monovalentes, graças à
interferência que ocorria entre os três tipos de vírus da vacina. Mais tarde verificou-se
que, ajustando-se as quantidades, a interferência entre os vírus podia ser superada.
Tornou-se então possível uma vacina trivalente, contendo os três tipos de vírus. No
Brasil, a vacina Salk começou a ser utilizada, ainda que muito timidamente, a partir de
1955, por intermédio de alguns pediatras, promovidas por secretarias estaduais e
municipais de Saúde, basicamente do Rio de Janeiro e em São Paulo. (CAMPOS;
NASCIMENTO; MARANHÃO, 2003. p 590).
Nas décadas de 1980 o trabalho se intensificou com o firme propósito de erradicar
esse mal do Brasil. Ainda de acordo com os estudiosos, em 1986, foi criado o Grupo de
Trabalho para a erradicação da poliomielite (GT- Poliomielite), com o objetivo de dar
maior eficácia ao programa de vacinação, sendo desencadeadas as medidas de controle
necessárias, supervisionadas e avaliadas periodicamente, com um acompanhamento
mais refinado do comportamento epidemiológico. Em 1989 registrou-se o último caso
dessa epidemia em nosso país, porém somente em 1994 o Brasil recebeu o certificado
emitido pela Certificação da Erradicação da Poliomielite1. Problema resolvido...
Resolvido?
A infância de muitas crianças que foram infectadas tomou um rumo diferente, pois
tiveram que se ajustar aos moldes de uma sociedade tradicionalmente pensada e
arquitetada para os ditos “normais”.
A Infância, suas significações e a experiência com a Poliomielite
É importante revisitar o conceito de infância, antes de chamar as lembranças da
infância da pessoa que ofereceu depoimento para este artigo.
1
O trabalho de higienização de epidemias encontra-se dentro dos projetos desenvolvidos pelos médicos higienistas, a
partir do século XIX, que objetivavam alcançar a população pobre do Brasil e para isso utilizavam também as escolas
como instrumentos para divulgar os seus saberes.
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O conceito de “infância” recebeu várias significações em diferentes épocas da
história, porém é na Modernidade que “infância” recebe a conotação predominante nos
dias atuais.
A história da infância seria então a história da relação da sociedade, da cultura,
dos adultos, com essa classe de idade, e a história da criança seria a história da
relação das crianças entre si e com os adultos, com a cultura e a sociedade.
(FERNANDES; KUHLMANN, 2004, p.15)
A infância foi registrada por diversos artistas em obras que retratam as crianças
de diferentes épocas, em poesias que traduzem sentimentos sobre elas, suas formas de
brincar e de viver de acordo com os costumes e a cultura de cada povo (ARIÈS, 1981).
Embora a Paralisia Infantil seja uma doença conhecida desde a antiguidade, as
crianças que tiveram suas vidas tolhidas pelo vírus da poliomielite, com certeza viveram
esse período de suas existências, sofrendo discriminação e preconceitos. A infância
citada nestas obras, com certeza é mostrada de acordo com a naturalidade do ser
humano, sem levar em consideração as diversidades corpóreas das atrocidades
acometidas por conta de incidentes, principalmente no que tange as mutilações
causadas por determinadas epidemias.
Muito antes da erradicação da poliomielite, no Brasil, os problemas já haviam
iniciado. Foi a partir da percepção das seqüelas causadas pelo vírus infeccioso, que
muitas pessoas sofrem até hoje com as conseqüências dessa doença, pois infelizmente
a vacina previne, mas não cura, restando então continuar seus caminhos, tendo que
enfrentar os desafios e as armadilhas que a vida lhes reserva.
Algumas famílias, embora com dificuldades, lutavam para minimizar o sofrimento.
Para visualizar, trago duas situações: A primeira trata da lembrança de Rosimari Correa
da Rosa Patrício2, 50 anos de idade, casada, com duas filhas, professora, exercendo o
cargo de auxiliar de direção em uma das escolas municipais da cidade de Criciúma.
Contraiu a paralisia infantil (Poliomielite) com um ano de idade ficando com as duas
pernas sem mobilidade. Locomove-se com ajuda de aparelhos de ferro e muletas. Em
seu depoimento, recorda-se como foi lidar com a mutilação de seu corpo na infância.
2
Rosimari Correa da Rosa Patrício, entrevista concedida à Rosânia Maria Silvano Bittencourt, Criciúma,
08/01/2008.
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Uma de suas lembranças é a experiência que viveu aos nove anos de idade, quando
realizou a primeira cirurgia:
Quando foi para me operar ela [a mãe] dizia assim - Deixa, eu vou te operar, vou
trocar as tuas pernas [risos...] eu vou botar outra nova [risos]. E eu dizia – Não,
mas eu não quero botar outra perna [risos...] Quando acordei da cirurgia, eu
dizia: - Ai mãe, tira essa tábua de cima de mim. [risos].
Percebe-se no sentimento da mãe, a impotência diante da doença da filha ao
afirmar: “vou trocar suas pernas”, como se isso fosse possível! Nesse momento, a mãe
tinha consciência do que seria a vida de sua filha e o sentimento de querer mudá-la era
muito forte. Em contrapartida, em plenos nove anos, ao alegar que não queria colocar
outra perna, Rosimari já apresentava noção de corporeidade, mostrando o sentimento de
sua consciência corporal.
A segunda situação trata da dor de um pai que vê negada a matrícula de sua filha
na escola por ser deficiente física. Isso foi motivo de revolta e indignação na época,
levando esse pai a procurar a imprensa de sua cidade, o Jornal Tribuna Criciumense, em
1963, que noticiou em primeira página uma manchete sobre preconceito e discriminação
intitulada “Porque é aleijadinha não pode estudar”, fazendo referência a uma
determinada Instituição de Ensino bastante conceituada na cidade de Criciúma, que
negava a matrícula de uma criança, vítima de paralisia infantil. Segundo o jornal, o
educandário alegou que para o defeito físico da menina, não possuía um profissional que
a acompanhasse nas atividades pedagógicas:
Causou certa má impressão nos meios educacionais desta cidade a recusa, por
parte da Casa da Criança, instituição de ensino que muito recomenda Criciúma,
de matricular, em seu estabelecimento a menina, vítima de paralisia infantil,
Sonia Maria Ribeiro, com 6 anos de idade, filha do operário aposentado Alceu
Ribeiro, residente no Bairro São Cristovão, Rua 25, portadora de uma bolsa
escolar cedida pela Prefeitura Municipal.
A alegação dessa negativa, um tanto descaridosa e injustificável, foi que, devido
o defeito físico da menina, infelicidade a que todos nós estamos sujeitos, carecer
de alguém que a acompanhasse, no estabelecimento de ensino, na qualidade
de pagem. Entretanto, alega-se a existência, na mesma casa de ensino, de uma
criança em idênticas condições de saúde, recebida, entretanto ali com as
melhores manifestações de carinho.
Havendo precedente na impugnação, mesmo que não houvesse, ninguém pode,
mesmo sem ser corporação educacional e por cima entregue aos cuidados de
pessoas de fé religiosa insuspeita, impugnar o ensino a nenhuma pessoa
humana, por mais ferida que seja pelo destino.
Procuramos conhecer o que havia a respeito, recebendo, no estabelecimento, a
informação de que, mais tarde, seria publicada uma nota esclarecendo o fato,
7
aguardando-se a chegada do Sr. Nelson Alexandrino, em viagem
presentemente, para aclarar o assunto. (JORNAL TRIBUNA CRICIUMENSE,
09/03/1963, p. 1).
Em todos os tempos, o deficiente3, foi discriminado e isolado da sociedade. Para
a maioria dos pais, ter um filho deficiente representava um conflito pessoal e social, pois
crianças com algum tipo de deficiência eram simplesmente rejeitadas nos mais diversos
ambientes. “Assim, no caso de deficiência congênita ou adquirida durante o nascimento,
a criança começa a enfrentar seus primeiros problemas oriundos da rejeição, em razão
do despreparo de seus pais”. (ARAÚJO. 1994 p.17)
Na Grécia, na época do Império Romano, de acordo com Veyne (1989), as
crianças malformadas eram enjeitadas ou afogadas, não por raiva, mas pela crença de
que era preciso separar o bom do ruim, daquilo que não serviria para nada (mesmo em
se tratando de seres humanos).
Para resolver esse problema social, a partir do século XIX, as instituições de
caridade iniciaram um processo de recolhimento de crianças abandonadas. Januzzi
(2004) acredita que tais crianças apresentavam defeitos físicos ou mentais, pois as
crônicas da época revelavam “que essas crianças eram abandonadas em lugares
assediados por bichos que, muitas vezes, as mutilavam ou matavam”. A “Roda dos
Expostos” foi outra tentativa de diminuir (ou esconder) esse “entrave social”, quando os
responsáveis não desejavam seus filhos por alguma anomalia ou mesmo pela
incapacidade de criá-los. Nesse caso, eles ali os depositavam sob a guarda das
congregações religiosas. Outras crianças, porém, não recebiam o mesmo tratamento.
Elas eram recolhidas nas Santas Casas, junto a adultos doentes e alienados,
considerados loucos, pois, ainda conforme análise de Jannuzzi (2004) havia poucos
abrigos para as pessoas assim classificadas, e, de acordo com a visão hegemônica da
época, a loucura era tomada como caso de polícia e não de hospital.
As percepções que as pessoas constroem de si e dos outros resultam, em grande
parte, de um complexo processo histórico, no qual, “a cultura imprime as suas marcas
em cada indivíduo, ditando normas e fixando ideais, de forma que nossa singularidade
acaba por revelar a história acumulada de uma sociedade”. (ALVES, 2005, p.35)
3
Ao invés de abordar o termo portadores de Necessidades especiais, neste artigo, preferi utilizar “Pessoa deficiente”,
pois de acordo com SASSAKI (2003), é um termo que foi utilizado no texto da Convenção dos direitos e da Dignidade
das Pessoas com Deficiência, elaborado pelo Comitê Especial da ONU.
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Assim como a infância apresentou diferentes significações ao longo da
história, a criança que apresentava determinadas deficiência física também ia recebendo
adjetivos ou apelidos pejorativos que, em muitos momentos, serviriam como “chacotas”
diante de brincadeiras preconceituosas.
Deficiência: Conceito e Pré-Conceito
Para conceituar uma deficiência, durante muito tempo era comum usarem termos
preconceituosos do tipo, aleijadinha(o), doente, coitadinho(a), por isso é muito importante
modificar a postura quanto aos conceitos que nos foram repassados e que ainda
continuam sendo reproduzidos ao se referirem a essas deficiências.
A partir da
Convenção Interamericana para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação
contra as Pessoas Portadoras de Deficiência, celebrada na Guatemala, em maio de 1999
e amparada pela Constituição Brasileira por meio do decreto nº 3.956/20014, fica
evidente a impossibilidade de qualquer forma de discriminação ou diferenciação que se
baseie na deficiência. A partir daí, autores e estudiosos, passaram a defender termos
diferenciados para se referirem aos deficientes de maneira geral:
Aleijado; defeituoso; incapacitado; inválido. Estes termos eram utilizados com
freqüência até a década de 80. A partir de 1981, por influência do Ano
Internacional das Pessoas Deficientes, começa-se a escrever e falar pela
primeira vez a expressão pessoa deficiente. O acréscimo da palavra pessoa,
passando o vocábulo deficiente para a função de adjetivo, foi uma grande
novidade na época. No início, houve reações de surpresa e espanto diante da
palavra pessoa: "Puxa, os deficientes são pessoas!?" Aos poucos, entrou em uso
a expressão pessoa portadora de deficiência, freqüentemente reduzida para
portadores de deficiência. Por volta da metade da década de 90, entrou em uso a
expressão pessoas com deficiência, que permanece até os dias de hoje
(SASSAKI, 2003, p.3).
Independentemente das mudanças dos termos apregoados, devemos ter o
cuidado para que o preconceito não fique mascarado em cada novo termo, criado para
se dirigir aos deficientes.
A sociedade atual vive uma mudança de paradigmas no que diz respeito ao
tratamento com os diferentes. As escolas regulares passaram a atender uma gama de
4
Decreto nº 3956, de 8 de outubro de 2001. Disponível em http:/ www.planalto.gov.br/civil/decreto/2001/d3956.htm,
acesso em 21 de dezembro de 2008.
9
alunos com diversas deficiências, sem que a elas fosse fornecida a estrutura física
necessária ou a preparação de seus profissionais para que tenham condições efetivas
de fazer da diversidade um meio para se alcançar o crescimento de todos.
Se as escolas, embora enfrentando dificuldades estruturais de toda ordem, estão
recebendo, nos últimos vinte anos, alunos portadores de deficiência, mesmo que tenham
sido obrigadas a aceitá-los por força da lei, questiona-se como essa relação − criança
deficiente e escolas regulares − se estabelecia antes do risco de sanção legal.
Neste sentido, Rosimari recorda alguns momentos de sua trajetória escolar:
Comecei a estudar no “Humberto de Campos”. Aquele morro pra descer ali era
cheio de lama. Eu era muito fraquinha. Ah! Pra chegar a casa... vomitava, eles
[os irmãos] iam me buscar. Eles me levavam no colo às vezes quase até lá. Eu
estudava no horário das 11h às 14h. Ele [o irmão mais velho] me levava. Eu
tinha uma professora muito legal, nunca mais a vi. Ela me pegava no colo.
Naquela época, aquela escolinha bem antiga, tinha uns degraus bem difíceis de
subir. E era ela que me ajudava, bem pequenininha, a minha professora da
primeira série, a dona Sônia... Enquanto eu estudei lá, ela sempre me carregava
no colo. Sempre, até hoje, eu lembro, E depois que ela saiu, veio outra
professora que fez a mesma coisa. Com as professoras, nunca tive problemas...
Só não me mandavam no quadro e não fazia Educação Física.
Como se já não fosse o bastante conviver com as limitações físicas, esta aluna
ainda convivia com as limitações práticas do seu universo escolar no que diz respeito às
atividades pedagógicas. Em sua fala, fica evidente que sua presença em sala de aula
era meramente física, quando afirma que seus professores não a permitiam fazer
Educação Física ou não a mandavam no quadro para realizar qualquer atividade
pedagógica.
As diferenças devem favorecer ou estimular as trocas e, como conseqüência, a
construção do conhecimento, que, por sua vez, também não pode ser causa de
discriminação e preconceito. De acordo com Rosangela Machado (2007), a deficiência
física não deve ser encarada como um problema ou um empecilho, atrapalhando o
processo de desenvolvimento e de aprendizagem.
Com base nos princípios do
Desenho Universal e da Lei nº 10.098/005, as escolas devem promover um ambiente
acessível, onde as barreiras arquitetônicas não impeçam os deficientes de circularem
livremente pelos espaços, pois, ao contrário, garante-se a participação efetiva dos
5
Lei Nº 10.098, de 19 de dezembro de 2000. Disponível em www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L10098.htm, acesso
em 21 de dezembro de 2008
10
alunos com deficiência nas atividades escolares. O livre acesso deve ser garantido a
todos sem discriminação, numa condição de igualdade, para que o deficiente exerça o
seu papel de cidadão com dignidade e liberdade.
Montoan (2007) observa que, ainda hoje, as escolas atuam no sentido de
promover os bons alunos, valendo-se, para isso, de métodos competitivos,
classificatórios e desiguais, apesar do conhecido discurso do respeito às diferenças e do
enfoque processual do ensino-aprendizagem, no qual se destaca a avaliação. Essa
prática nada contribui para a promoção plena do indivíduo, desconsiderando seus limites
e suas especificidades.
As seqüelas do vírus da Poliomielie foram dolorosas, principalmente quando visto
pela ótica do preconceito e discriminação. Ao observar o depoimento de Rosimari
Correa da Rosa, ao se referir ao seu passado escolar, por mais que procurasse e
encontrasse momentos de gentileza, carinho e solidariedade por parte dos colegas,
irmãos e da professora, percebe-se que nada era pensado para as pessoas deficientes,
que pudesse diminuir o sofrimento delas. Os educandários com grandes escadarias
inibiam qualquer indivíduo que ousasse matricular-se, conforme relata:
No banheiro era uma dificuldade porque também tinha escada. Eu tinha que me
segurar quando eu tinha que ir ao banheiro ...e uma vez eu não segurei e sujei as
calças [risos...], na terceira série... A professora bem discreta, disse que era pra
eu ir embora.
Os banheiros com escadas e sem corrimãos faziam com que os deficientes
físicos que necessitasse do seu uso, segurassem suas necessidades físicas e por
conseqüência o desencadeamento de outros problemas na ordem biológica, sem contar
a humilhação de não conseguir agüentar suas necessidades durante as aulas.
Conclusão
O convívio escolar é a oportunidade de uma criança ampliar seus desafios a fim
de possibilitar a construção de seus conhecimentos e essa experiência não pode ser
diferente para uma criança com deficiência. Para que isso de fato aconteça, é
necessário que o ambiente seja favorável e as oportunidades vivenciadas por todos.
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A erradicação da Poliomielite foi um ato de cunho político e social que eliminou
nas Américas e principalmente no Brasil, a proliferação de uma doença que produzia a
incapacidade física permanente. Acredita-se, portanto, que foi uma ação bem sucedida.
Esse mal que se espalhou por todos os cantos do Brasil tornou-se uma preocupação dos
médicos higienistas, porém esta preocupação com tamanha intensidade a fim de eliminar
a epidemia, era realmente uma preocupação com o bem estar da população pobre ou
para que o “problema” não tomasse proporções maiores também na classe alta?
A erradicação desse mal não trouxe a saúde dos que já haviam se contaminado,
portanto outro problema social e tão grave quanto à própria doença foi o convívio com a
deficiência para o resto da vida. Crianças tiveram o relacionamento social marcado pelo
preconceito, a discriminação e por que não dizer a humilhação diante de determinadas
situações vivenciadas, principalmente no cotidiano escolar desses indivíduos.
A partir dos estudos apresentados e o relato da entrevistada, que enfrentou tudo e
a todos para conseguir seu emprego, sua própria família, enfim seu espaço, relatando
momentos principalmente no cotidiano escolar, percebo o quanto é difícil encontrar em
nossa sociedade, outras pessoas com limitações físicas, num mesmo patamar
profissional que ela6.
A criança deficiente não pode ficar fadada à marginalidade a partir de uma
deficiência que dificulte o convívio social, mas ao contrário, pois a infância deve ser
desfrutada intensamente com os seus desafios e descobertas.
REFERÊNCIAS
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docentes e implicações pedagógicas. Inclusão: Revista da Educação Especial /
Ministério da Educação, Secretaria de Educação Especial. v.1, n.1 (out.2005) –
Brasília: Secretaria
de Educação Especial, 2005.
ARAÚJO, Luiz Alberto David. A proteção constitucional das pessoas portadoras de
deficiência. Brasília. CORDE, 1994.
6
Rosimari Correa da Rosa teve sua trajetória escolar, do Ensino Fundamental (Antigo primário e ginásio) até o
magistério (antigo segundo grau), todo em Escola Pública Estadual. Cursou pedagogia na antiga FUCRI/UNESC e
especializou-se em Educação Especial. Desde 1981 leciona na Rede Municipal de Criciúma, sendo que a partir de
1983 reveza-se nos cargos de diretora ou auxiliar de direção e neste ano de 2009, aguarda a sua aposentadoria.
12
ARIÈS, Philippe; FLAKSMAN, Dora, História social da criança e da família. 2ed. Rio
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https://www.planalto.gov.br/ccivil/decreto/2001/d3956.htm. Acesso em 21 de dezembro
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13
VEYNE, Paul. O Império Romano. In: História da Vida Privada. v. 1. São Paulo:
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FONTE ORAL
Rosimari Correa da Rosa Patrício, entrevista concedida à Rosânia Maria Silvano
Bittencourt, em Criciúma dia 08/01/2008.
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