universidade federal da paraíba - TEDE

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA
UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE
PROGRAMA INTEGRADO DE DOUTORADO EM FILOSOFIA
HERMANO JOSÉ FALCONE DE ALMEIDA
AGRESSIVIDADE E VIOLÊNCIA EM HOBBES E ROUSSEAU:
ETOLOGIA, GENES E AMBIENTE
JOÃO PESSOA/PB
2010
HERMANO JOSÉ FALCONE DE ALMEIDA
AGRESSIVIDADE E VIOLÊNCIA EM HOBBES E ROUSSEAU:
ETOLOGIA, GENES E AMBIENTE
Tese apresentada ao Curso de Doutorado
Integrado em Filosofia, na linha de pesquisa
Filosofia Prática, como pré-requisito para a
obtenção do grau de Doutor.
Orientador: Prof.: Dr. Giuseppe Tosi
JOÃO PESSOA/PB
2010
HERMANO JOSÉ FALCONE DE ALMEIDA
AGRESSIVIDADE E VIOLÊNCIA EM HOBBES E ROUSSEAU:
ETOLOGIA, GENES E AMBIENTE
Tese aprovado em _____/_____/_____.
COMISSÃO EXAMINADORA
Prof.: Dr. Giuseppe Tosi/Orientador
Prof.: Dr. Castor Bartolomé Ruiz/Membro externo
Prof.: Dr. Fernando Magalhães/Membro interno
Profª.: Drª. Maria das Graças Souza/Membro externo
Prof.: Dr. Artur Perruzi/Membro externo
Prof.: Dr. Vincenzo Di Matteo/Membro interno
Dedicatória
Aos meus pais, in memoriam, a todos que se foram
e
gostariam
de
estar
aqui,
minha
mãe
principalmente. A minha esposa, sempre presente e
me estimulando, e ao meu filho e enteados, que
tiveram paciência com ausência.
Dedico.
AGRADECIMENTOS
A minha querida mãe, Yedda Cantalice Falcone de Almeida, in memoriam, que me fez
sentir um ser humano eficiente.
Ao meu pai, Heraldo de Almeida, in memoriam, que morreu quando eu tinha cinco anos,
deixando um vazio que nunca foi preenchido.
Aos meus avôs, Dalva Cantalice e Américo Falcone, in memoriam, por terem iniciado com
coragem a saga de uma geração de imigrantes italianos que, com dificuldades, estabeleceramse no Brasil.
Ao meu irmão, Antônio Américo Falcone, que me estimulou na arte de ensinar.
A minha amada esposa, Lenilde Dias Ramalho, que teve tanta paciência com uma pessoa
complexa e cheia de feridas existenciais como eu.
Ao meu filho, Francisco Giordano Medeiros de Almeida, por ser diferente de mim, e realizar
o que não pude, em função das minhas limitações físicas.
Aos meus enteados, Mirella Vitória Ramalho e Murilo Valter Ramalho, por terem chegado a
minha vida em momento fundamental.
Aos meus alunos, todos, sem exceção, que me estimulam a aprender a cada dia.
Ao meu orientador, Giuseppe Tosi pela atenção, respeito e paciência dedicados no
constructo deste trabalho.
Aos professores, Marconi Pequeno e Iraquitam Caminha, por terem me guiado nesta
complicada trajetória.
Ao professor Fernando Magalhães, que me alertou para aspectos fundamentais no
pensamento de Hobbes, principalmente na divisão entre ígneos e temperados.
A toda classe docente, que luta por um mundo de luzes.
Às crianças e adolescentes vítimas de abuso e maus tratos, que me inspiraram nesta tese.
A Aramís Melo, que me ajudou a revisar tantas vezes este trabalho.
Aos funcionários da UFPB, principalmente, Francisco e Fátima.
À professora Emília Perez, que com sua luta contra o câncer, me ajudou a persistir na vida,
mesmo em momentos adversos.
Aos Deuses e Santos que evoco na minha fé multifacetada.
E, para finalizar, a todas as pessoas anônimas, que foram e são vítimas da violência,
principalmente em um país que reina a impunidade, que é nosso Brasil.
“Ouvi dizer que a infância é a época mais linda da vida. Eu estava feliz de viver minha infância, mas essa
guerra me tomou tudo. Por quê?”
Domingo, 5 de abril de 1992
Dear Mimmy,
Estou tentando me concentrar nos deveres (um livro para ler), mas simplesmente não consigo. Alguma coisa está
acontecendo na cidade. Ouvem-se tiros nas colinas. Grupos de pessoas chegam de Dobrinja. Para tentar
interromper alguma coisa - o quê, nem eles mesmos sabem. Digamos simplesmente que se sente que alguma
coisa vai acontecer, já está acontecendo, uma terrível desgraça. Na televisão, vêem-se pessoas na frente da
Assembléia Nacional. No rádio toca permanentemente a música 'Sarajevo, meu amor'. Tudo isso é muito bonito,
mas a todo momento sinto uma espécie de cãibra no estômago e não consigo mais me concentrar nos estudos.
Mimmy, estou com medo da GUERRA!
Zlata
[...]
Quinta-feira, 9 de abril de 1992
Dear Mimmy,
Não estou indo à escola. Nenhuma escola de Sarajevo está funcionando. O perigo sobrevoa as colinas que nos
cercam. Apesar disso, tenho a sensação de que pouco a pouco a calma está voltando. Já não se ouvem as fortes
explosões das granadas nem os tiros. Só uma rajada de vez enquanto, depois o silêncio volta bem rápido. Papai e
mamãe não estão indo trabalhar. Estão comprando uma grande quantidade de comida. Meu Deus, eu lhe suplico,
faça com que não aconteça.
A tensão continua grande. Mamãe fica desesperada, papai tenta acalmá-la. Mamãe telefone muito. Ligam para
ela ou então é ela que liga. A linha fica o tempo todo ocupada.
Zlata.
Zlata Filipovic
RESUMO
ALMEIDA, Hermano José Falcone. VIOLÊNCIA E AGRESSIVIDADE EM HOBBES E
ROUSSEAU: ETOLOGIA, GENES E AMBIENTE. 2010. 228 f. Tese (Doutorado Integrado
em Filosofia). UFPB - Universidade Federal da Paraíba; UFPE – Universidade Federal de
Pernambuco; UFRN - Universidade Federal do Rio Grande do Norte, João Pessoa - PB.
O estudo tem como objetivo definir agressividade e violência na espécie humana. Estudar a
agressividade e a violência do ponto de vista filosófico é uma tarefa que requer a colaboração
de várias disciplinas como a biologia, a sociologia e as neurociências, para alcançar a
abrangência e a profundidade que o tema merece, porque são conceitos que transitam do
biológico ao social. Ao falar de agressividade, entra-se numa dimensão biológica, corporal,
genética e neurobiológica enquanto que, ao falar de violência entra-se numa dimensão
exclusivamente humana, que remete à linguagem, à cultura e aos símbolos da sociedade. A
pesquisa foi motivada pelo fato do pesquisador ser psiquiatra da infância e adolescência e ter
vivido em seu cotidiano profissional situações de violência, bullying, abuso sexual e
psicológico que atingem esta faixa etária. Esta sua experiência o motivou para procurar na
filosofia e nas ciências a resposta a perguntas tais como: a agressividade e a violência fazem
parte da natureza ou da condição humana ou são uma construção histórica e social? Existe
uma “natureza humana” determinada biologicamente ou ela é produto da sociogênese
humana? Nesse contexto trata-se de uma pesquisa de caráter bibliográfico, que parte do
pensamento dos filósofos Thomas Hobbes e Jean-Jacques Rousseau, para dialogar com as
ciências biológicas e posteriormente retornar aos dois clássicos da filosofia política e tentar
uma nova síntese sobre o assunto que incorpore as contribuições da ciência. O pesquisador
buscou fazer uma leitura crítica, analítica e sistemática das ciências biológicas, com relevo
para a etologia, a genética e a neuropsiquiatria. A pesquisa pretende definir e separar melhor
os conceitos de violência e agressividade, contando com a contribuição das ciências sociais e
de algumas correntes da psicanálise. A pesquisa se orientou por uma mediação entre duas
tendências opostas: de um lado a tendência à naturalização de ambos os conceitos; do outro,
uma negação dos condicionamentos biológicos e o reconhecimento da socialização como
único fator que acarreta a violência. Dentro desta perspectiva, não se deixa de transitar entre a
filosofia e a ciência, com momentos de empirismo que ressaltam a contribuição da biologia e
da neuropsiquiatria para o estudo. O objetivo é apontar caminhos e separar conceitos que não
estão bem definidos, pois, assim sendo, pode-se delimitar o que é propriamente humano
dentro da esfera da violência e da agressividade. Não pretende-se dar respostas definitivas,
porém, acredita-se que o estudo trouxe mais clareza ao tema em questão, ao defender a tese de
que a violência faz parte da sociogênese humana, sendo exclusiva de nossa espécie e não
sendo totalmente determinada por fatores biológicos, ela pode ser “controlada,” administrada,
pela sociedade. A agressividade faz parte de nossa herança biológica e tem como uma das
principais funções a sobrevivência das espécies. A violência é produto humano, instaurando a
sociedade. Tem seus aspectos positivos, quando coloca limites e faz funcionar a coesão
social; ou aspectos negativos, quando instaura a exploração do homem, gera desigualdades e
provoca danos físicos, psicológicos e de limitação de liberdade do outro. Como produção
humana, a violência pode ser causa de males sociais, assim como a solução para esses males.
PALAVRAS CHAVE: Filosofia, Hobbes, Rousseau, Agressividade, Violência, Biologia.
ABSTRACT
ALMEIDA, Hermano José Falcone - VIOLENCE AND AGGRESSION in Hobbes and
Rousseau, GENES AND ENVIRONMENT; 228 f. Thesis (Integrated Doctorate in
Philosophy). UFPB - Universidade Federal da Paraíba; UFPE - Universidade Federal de
Pernambuco; UFRN - Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
The primary objective of this study is to define aggression and violence in human beings.
Studying aggression and violence philosophically demands a wide range of disciplines such
as biology, sociology, and neuroscience as concepts migrating from the biological to the
social aspect in order to achieve broad and deep knowledge of the theme. When relating to
aggression, we focus on a biological, corporal, genetic and neurobiological dimension; while
referring to violence, we address to an exclusively human dimension concerning the language,
culture, and society symbols. The study was based on the researcher´s career as a juvenile
psychiatrist and his everyday professional experiences with cases involving violence,
bullying, psychological and sexual harassment which have affected individuals at that age.
Philosophy and other sciences were taken as resources to help to get answers to the following
questions: are aggression and violence part of human nature or human condition, or are they
historical and social construction? Is there “human nature” biologically determined? Is it
product of human sociogenesis? This is a bibliographic research starting with thoughts of
philosophers such as Thomas Hobbes and Jean Jacques Rousseau to interact with biological
sciences and then return to the two classics of the political philosophy attempting a further
synthesis of the theme which incorporates the contributions of sciences. The study consisted
of a critical, analytical and systematic reading of biological sciences focusing on etiology,
genetics, and neuropsychiatry. The research aims to define and sort out concepts of violence
and aggression by counting on the contribution of social sciences as well as some currents of
psychoanalysis. It was guided by a mediation between two opposing trends: on the one hand,
tending to adopt both concepts; on the other hand, tending to neglect biological conditionings
and accept socialization as the only factor leading to violence. According to this perspective,
we migrate between philosophy and science with empirical views that highlight the
contribution of biology and neuropsychiatry to the study. The purpose of the study is to point
out ways and sort out concepts not very well defined in order to determine what is essentially
human in the scope of violence and aggression. The study is not expected to give determined
answers, but it is believed to have made the topic clear, supporting the thesis that violence is
part of human sociogenesis and that it is exclusive to human species and not entirely
determined by biological factors, being possibly controlled and administered by the society.
Aggression, in turn, is part of our biological inheritance, and its main function is the species
survival. Violence is a human product that comprises the society. It has positive aspects as it
limits and develops social cohesion; it has negative aspects as it causes human exploitation,
generates inequality, and leads to physical and psychological damages restricting freedom. As
human production, violence can be both the cause of social problems and their solution.
Key words: Philosophy, Hobbes, Rousseau, Aggression, Violence, Biology.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura 01 - Código Genético..................................................................................................152
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.................................................................................................13
CAP. 1 - HOBBES: A Agressividade Humana ..................................................................25
1.1 DO LOBO AO LEVIATÃ ................................................................................................25
1.2 PAIXÃO E PODER: Do Estado de Natureza ao Estado Social ........................................29
1.3 DAS LEIS DA NATUREZA À CRIAÇÃO DO ESTADO: Sobre Pactos e o Poder
Soberano ..................................................................................................................................38
1.4 A NATUREZA HUMANA EM HOBBES: Pequeno Interlúdio ......................................45
1.5 O HOMEM NATURAL ....................................................................................................48
1.6 O ESTADO DE NATUREZA ...........................................................................................56
1.7 AGRESSIVIDADE E VIOLÊNCIA EM HOBBES .........................................................61
CAP. 2 - ROUSSEAU: Do Bom Selvagem ao Contrato Social .........................................66
2.1 O DISCURSO SOBRE A ORIGEM DA DESIGUALDADE ENTRE OS
HOMENS
..................................................................................................................................................73
2.2 DO CONTRATO SOCIAL ...............................................................................................82
2.3 EMÍLIO .............................................................................................................................86
2.3.1 Emílio e Sofia .................................................................................................................93
2.3.2 Sofia ................................................................................................................................96
2.4 AGRESSIVIDADE E VIOLÊNCIA EM ROUSSEAU.....................................................99
CAP. 3 - ETOLOGIA E SOCIOBIOLOGIA: Dos Instintos Básicos à Agressividade
Humana .................................................................................................................................101
3.1 DETERMINISMO, GENE E AGRESSIVIDADE: Behaviorismo e Meio
Ambiente
................................................................................................................................................101
3.2 NOSSA HERANÇA PRIMATA E ADAPTAÇÃO HUMANA: Agressão, Pacifismo e
Bipolaridade............................................................................................................................106
3.3 KONRAD LORENZ: A Agressividade Humana.............................................................109
3.3.1 A Agressividade, Ritos e Socialização .........................................................................109
3.3.2 A Agressividade na Espécie Humana............................................................................117
3.4 A AGRESSIVIDADE E OS GENES: Wilson e Dawkins................................................121
3.4.1 Wilson: o “Gene Egoísta” .............................................................................................124
3.4.2 O Macho Demoníaco ....................................................................................................127
CAP. 4 - BIOLOGIA E BIPOLARIDADE EM FRANS DE WAAL ............................136
4.1 O PODER ........................................................................................................................138
4.2 BIPOLARIDADE ............................................................................................................142
4.3 CONFLICTS RESOLUTION ...........................................................................................144
4.4 AS PARCAS E OS GENES ............................................................................................150
CAP. 5 - AS NEUROCIÊNCIAS E O ANTISSOCIAL ENTRAM EM CENA.............160
5.1 DAMÁSIO, AS EMOÇÕES E OS NEURÔNIOS ESPELHO .......................................160
5.2 TRANSTORNO MENTAL E COMPORTAMENTO VIOLENTO ...............................165
5.3 TRANSTORNO DE CONDUTA E COMPORTAMENTO DISRUPTIVO: Características
Diagnósticas ...........................................................................................................................167
5.4 O ANTISSOCIAL ENTRA EM CENA...........................................................................177
5.5 OUTSIDERS E INTEGRADOS: O Diferencial de Poder em Norbert Elias....................181
5.6 SOBRE ABUSO, BULLYING E NEGLIGÊNCIA .........................................................188
CAP. 6 - DE VOLTA A HOBBES E ROUSSEAU ............................................................196
6.1 O LOBO É O LOBO DO HOMEM, OU O CIDADÃO É UM DEUS PARA O HOMEM?
................................................................................................................................................196
6.2 ROUSSEAU E A CRIANÇA COMO PARADIGMA DA AGRESSIVIDADE E
VIOLÊNCIA ..........................................................................................................................200
6.3 BIOLOGIA, AGRESSIVIDADE E VIOLÊNCIA: Hobbes e Rousseau...................... ...203
CONCLUSÃO..................................................................................................209
REFERÊNCIAS..............................................................................................219
13
INTRODUÇÃO
Estudar a agressividade e a violência, do ponto de vista filosófico, não é uma tarefa
simples. Podemos inicialmente tentar definir o que é cada um desses conceitos, ressaltando
que as definições são instrumentos de trabalho, servindo apenas, para delimitar o termo,
visando a melhor instrumentalizar os conceitos.
Utilizando a obra, On Agression de Lorenz (1982, p. 23), poderíamos definir agressão
como uma conduta inata a espécies animais, a qual existe na face da terra, antes mesmo do
aparecimento do homem. Não é condição exclusiva do ser humano. É a violência, não a
agressividade, que é própria do ser humano. Nesses termos, a agressão é inerente a todo ser
vivo, tendo componentes biológicos, e a violência é característica da espécie humana. Toda
agressão pode levar à violência, que não é idêntica à agressão, mas sua expressão manifesta,
viva e física.
Segundo algumas correntes da etologia, a agressão serve para sobrevivência, é
necessária à espécie: ideia compartilhada na obra On Agression de Konrard Lorenz (1982) e
na obra Sociobiologia de Edward O. Wilson (1975), por exemplo. A agressividade, partindo
do pressuposto de que é biológica, faz parte das estratégias dos indivíduos das espécies
animais, para sobreviver. A busca por alimentos, reprodução, a luta ao ataque de predadores, a
defesa do território, são apenas alguns exemplos da função biológica da agressividade, que
depende da constituição dos genes, de traços de temperamento, da neurofisiologia, para se
expressar. Não pode ser pontuada como uma característica universal, pois dependerá da
constituição de cada organismo, da espécie e de suas estratégias para sobrevivência, dos
recursos de alimento disponíveis, da população e da organização social. Visto sob esse
aspecto, não podemos simplesmente fazer analogias entre o homo sapiens e as outras
espécies, pois, como estudaremos, existe um corte entre o homem e as outras espécies,
demarcando, assim, uma dimensão diversa para o estudo da agressividade. A confusão
semântica estabelece-se entre os conceitos de agressividade e violência, em função de
usarmos marcos conceitual da biologia, teoria da evolução, etologia, as quais não se aplicam à
nossa espécie. Pretendemos, neste trabalho, utilizar a agressividade como uma dimensão
biológica, que depende de genes, de neurotransmissores, da estrutura do cérebro, de recursos
alimentares, da reprodução. Parafraseando Lorenz (1982, p.98), a agressividade seria um
14
componente de uma cadeia de instintos que se inter-relacionam na interação organismo e
meio ambiente.
A violência, por sua vez, é um fenômeno que diz respeito à nossa espécie. É nossa
marca diferencial, em relação a outras espécies animais. O homem possui linguagem, utiliza
ferramentas complexas, símbolos, cria culturas diversas, com costumes, interações sociais e
maneira de relacionar-se que se distingue de outras espécies animais. Ao falar de violência,
entramos na dimensão humana, na linguagem, no desejo e nos símbolos. A consciência da
violência encontra-se somente no homem.
Girard (2008) levanta a hipótese de o desejo humano ser responsável pela violência.
Onde existe desejo muitas pessoas desejam, gerando a formação de rivais. A violência tem
uma dimensão que se instaura a partir do desejo e da apropriação mimética de objetos de
desejos. Esta apropriação é decorrente do processo de socialização humana. Quem apresenta
os objetos de desejo é o outro. No caso das crianças, os adultos, geralmente, instauram os
objetos culturalmente desejáveis. Desenvolveremos mais detalhadamente esta hipótese no
capítulo 5.
Podemos segundo Cléo Fante (2005, p. 67), classificar a violência de diversas maneiras;
por exemplo, quanto ao grau: violência simples ou pontual, que é aquela em que um ou mais
agressores atacam esporadicamente uma vítima, motivados por desentendimento que acaba
por gerar conflito, e a violência complexa ou frequente, que ocorre, quando um ou mais
agressores atacam habitualmente uma mesma vítima, sem motivação evidente.
Quanto a forma, seguindo a autora, podemos ter 1) violência direta contra uma pessoa,
interpessoal; 2) violência indireta contra utensílios, bens e patrimônios individuais e públicos,
em que se incluem vandalismo e furtos; 3) Violência implícita ou velada, que pode ser
chamada metaforicamente de “violência silenciosa”, incluindo negligência, abandono,
constrangimentos psicológicos; 4) violência explícita, identificada, em que são identificados
autores e vítimas, inclusive no que se refere ao suicídio.
Quanto ao tipo, Cléo Fante (2005) classifica em violência física e sexual; violência
verbal; violência psicológica e violência fatal.
A violência física, como o termo define, é caracterizada por danos causados ao corpo de
alguém, por exemplo, socos, pontapés, utilização de instrumentos, como faca, revólver etc.
Podemos incluir o suicídio, que é a violência contra si mesmo, assim como tipos
intermediários dessa espécie de violência, como autoflagelação, comportamento masoquista.
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A violência sexual ocorre, quando se obriga alguém a manter relações sexuais, que são contra
a sua vontade.
A violência verbal e psicológica é, talvez, a mais sutil e danosa das formas de violência.
Podemos citar negligências, trapaças psicológicas, desvalorização do outro, humilhações e
outros tipos de violência psicológica e verbal. Mais uma vez, segundo a OMS (2008), as
crianças são as principais vítimas desse tipo de violência. A fatal caracteriza-se pela
eliminação de outros ou de si mesmo, o homicídio, que assume grandes proporções em todo o
mundo, ligando-se principalmente a guerras, a atentados terroristas, ao tráfico humano e de
drogas ilícitas, à fome e a genocídios étnicos, e o suicídio, podendo citar exemplos, como
homens-bomba, e suicídios de adolescentes e idosos, que ocorrem com frequência.
Toda essa classificação serve para operacionalizar o estudo da violência, que pode ser
focada em determinados ambientes (doméstico, escola, trabalho), categorias sociais
(mulheres, crianças, imigrantes, negros, índios, idosos). Esta visão privilegia o aspecto
negativo da violência, não conseguindo explicar sua dupla face: se destrói e subjuga
arbitrariamente, mata e instaura o caos, a violência também instaura a ordem, a cultura e
canais úteis para sua utilização.
Como exemplo de uma das máscaras da violência no século XXI, o fenômeno bullying,
hoje, muito estudado, é sinônimo da violência de todos os tipos (física, sexual, psicológica,
verbal e fatal), tendo sua origem no termo inglês, que significa “o desejo consciente e
deliberado de maltratar outra pessoa e colocá-la sob tensão” (Fante, 2005, p. 34), termo que
conceitua comportamentos agressivos e antissociais para a autora.
O bullying caracteriza-se pela violência imposta por agressores às vitimas, em que
existem condutas violentas repetitivas e constantes que acabam gerando desequilíbrio
psicológico em todas as partes envolvidas, principalmente nas vítimas, que, em alguns casos,
segundo Cléo Fante (2005, p. 47), chegam a cometer suicídio.
Para Jeane Middelton-Moz e Mary Lee Zawadski (2008, p. 11-16), o bullying não pode
ser estudado apenas no ambiente escolar, apesar de ser nessa instituição onde se realiza a
maior parte dos estudos, principalmente após os massacres norte-americanos na década de 90.
Para as autoras, o bullying ocorre no interior da família, no trabalho, nas relações amorosas e
em outras instâncias. Para compreender melhor a violência, é fundamental aprofundar o
fenômeno bullying, principalmente, em função de delimitar o tecido das relações humanas
como local de ocorrência de violência, dentro, inclusive, de uma época em que o “processo
civilizador”, segundo Norbert Elias, vem diminuir a violência (1993, p. 189). Sendo uma das
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faces da violência mais estudadas no século XXI, não podemos deixar de analisar esse
fenômeno, correndo o risco de não analisar nosso século.
Dando continuidade às definições, para a Psicologia, violência é definida, em termos
gerais, como “um desequilíbrio psíquico que se traduz pela hostilidade constante contra
terceiros e si próprio”. Para a Psiquiatria, é “um movimento contínuo e persistente, que viola
o direito das vítimas, além de ser um ato de autoagressão, que pode colocar em risco a vida do
próprio sujeito. A Psiquiatria coloca o estudo da agressividade e da violência dentro do campo
dos transtornos mentais, começando na infância, com os transtornos disruptivos (transtorno
do déficit de atenção com hiperatividade, transtorno de conduta e oposicional-desafiador), até
chegar ao adulto, aos transtornos de personalidade, principalmente o antissocial. “O uso de
substâncias psicoativas é também um fator fundamental para o aumento da agressividade e
violência, para a psiquiatria” (SADOCK & SADOCK, 2007, p. 278).
A Psicanálise vem se ocupando da agressividade como um instinto básico, que faz parte
da natureza humana1. Freud, em livros, como Além do Princípio do Prazer, O Futuro de uma
Ilusão e O Mal-estar na Civilização, estuda a categoria da pulsão de morte (thánatos), que
coexiste com Eros, pulsão de vida. Os efeitos de thánatos são devastadores sobre a
civilização, chegando a relegar Eros a segundo plano. Essa dialética pulsional, que lembra e
remete a Empédocles, acaba gerando um ciclo de violência e destruição que só existe no
homem. Utilizando argumentos psicanalíticos, autores, como Jean-Pierrre Lebrun (2008),
Elizabeth Roudinesco (2008) e André Glucksmann (2007) remetem-nos à urgência de estudar
o ódio e as perversões.
Segundo Elizabeth Roudinesco (2008, p. 84), o debate sobre a violência remonta ao
Iluminismo, e, com a entrada em cena de Darwin, ganha contornos que, até hoje, continuam a
perpassar as discussões. Roudinesco (2008) descreve no seu livro A Parte obscura de nós
mesmos, um verdadeiro bestiário de atrocidades cometidas pelo homem na História da
civilização. Para a autora, “seja o gozo do mal ou paixão pelo soberano bem, a perversão é
uma circunstância da espécie humana: o mundo animal está excluído da perversão, assim
como do crime, a qual não somente é uma circunstância humana, presente em todas as
culturas, como supõe a preexistência da fala, da linguagem, da arte, e até mesmo de um
discurso sobre a arte e sobre o sexo” (ROUDINESCO, 2008, p. 11).
André Glucksmann (2007) reinventa a frase de Descartes e coloca: odeio, logo existo.
1
Não temos uma distinção entre agressividade e violência em Freud, sendo a agressividade um instinto
que é confundido com a violência. O mal-estar na civilização (1969).
17
O ódio existe, todos nós já nos deparamos com ele, tanto na escala microscópica dos
indivíduos como no cerne de coletividades gigantescas. A paixão por agredir e
aniquilar não se deixa iludir pelas magias das palavras. As razões atribuídas ao ódio
nada mais são do que circunstâncias favoráveis, simples ocasiões, raramente
ausentes, de liberar a vontade de destruir simplesmente (Glucksmann, 2007, p. 11).
Para Glucksmann (2007, p. 78), o terrorismo é o paradigma da violência no século XXI.
Podemos acrescentar, além do terrorismo, o narcotráfico, o tráfico humano, o Bullying, as
guerras étnicas, religiosas, os maus tratos domésticos, como demonstração da persistência da
violência no referido século.
Remetendo a Homero, a Sêneca, à religião judaica, aos mitos babilônicos e a fontes
mais remotas, Glucksmann (2007, p. 89) coloca, assim como Roudinesco, que o ódio sempre
acompanha a espécie humana. Essa ânsia por destruição é característica de nossa espécie
(Glucksmann, 2007; Roudinesco, 2008; Lebrun, 2008).
O livro de André Glucksmann, O discurso do ódio, abre justamente com a fábula de La
Fontaine sobre o lobo e o cordeiro, onde a natureza assassina do lobo é irreversível. Mais uma
vez, o lobo mitológico aparece, para nos remeter à parte maldita de nós mesmos.
Seguindo os passos de Jacques Lacan (1988) e corroborando com Roudinesco e
Glucksmann, Lebrun coloca que só o homem é capaz de ser um assassino profissional,
matando pelo simples prazer de matar.
A Psicanálise, após Freud, desenvolveu diversas teorias sobre agressividade e violência.
Existe, por exemplo, a corrente lacaniana, que coloca que a violência é uma produção
humana, pois só o homem opera na dimensão do imaginário, do simbólico, tentando alcançar
o real. A linguagem, sendo exclusiva do homem, faz com que só possamos falar de perversão,
crueldade, assassinato, abuso e outras faces da violência, na espécie humana.
Jacques Derrida (2002, p. 89), por exemplo, diz que é impossível que o animal seja
cruel e perverso, pois ele está vivendo em uma dimensão não simbólica, pré-linguística, em
que esses conceitos não têm significado algum. Dominique Lestel (2006, p. 178) tenta
diferenciar o que é humano do que não é. Segundo o autor, não podemos comparar, por
analogia, a agressividade animal e a humana. A linguagem, a cultura, a criação de mitos, as
relações entre os homens são distintas das relações entre animais, inclusive entre os primatas,
que mais se aproximam, por estrutura genética, da espécie humana.
Para Andrade Filho (2008, p. 2), o comportamento violento da sociedade humana tem
inspirado pesquisas em várias áreas, inclusive a biologia. Para o autor, o homem é a espécie
mais violenta do Planeta, e imputa o fato à sua neurobiologia. Segundo o mesmo autor (2008,
18
p. 108-110), os estudos neurobiológicos avançaram de maneira significativa, nos últimos
anos, para tentar responder a essa pergunta, concentrando-se na genética e sua interação com
os fatores ambientais como componentes essenciais, variáveis necessários, mas não
suficientes no desencadeamento dos comportamentos agressivos e antissociais. Essa tendência
de colocar, no biológico, a causa da agressividade, gera uma falsa dicotomia entre biológico e
social, pouco ajudando a compreender a questão. Devemos como diz Morin (1980, p. 98),
estudar o homem como uma espécie bio-psico-social, ou, parafraseando Deleuze (2002, p.
78), criar conceitos e ferramentas de trabalho que abranjam os conceptos, afectos e perceptos.
O homem é bios, psyché e socius. Estudar a agressividade e a violência requer ter em mente
todas essas dimensões. Neste trabalho, a agressividade aparece como componente biológico,
inato, porque não dizer, necessário à sobrevivência de qualquer ser. A violência introduz a
dimensão social, de relação e de agregação. Ser agressivo é, digamos, a condição necessária
para o desenvolvimento da violência, mas não suficiente, pois ela se instaura como diz
Clastres (2004, p. 89), em uma dimensão social, ou ainda, como coloca De Waal (2007, p.
98), em uma estrutura relacional. A dicotomia, para o homem, natureza-cultura, não é
fundamental para De Waal, já que, por exemplo, os chimpanzés formam sociedades políticas
com estrutura de poder parecida com a humana.
Para Ruiz (2009, p. 54, 55), a agressividade é da ordem do biológico e não apresenta a
intencionalidade da violência, que é humana e depende da consciência do eu e da negação da
alteridade do outro. A agressividade remete a uma dimensão biológica, de que fazem parte a
genética, a neurobiologia, os traços de temperamento, a constituição do corpo, como
componentes biológicos que fazem um ser vivo exteriorizar a agressão, que não pode ser
pontuada pelo aspecto negativo, pois serve para a sobrevivência, a procriação, a sexualidade,
a busca por alimentos, a defesa, o ataque por sexo e alimentos. A não intencionalidade faz da
agressividade um componente natural e necessário à sobrevivência de todo ser vivo. A
violência busca um fim e tem estratégias. Nessa linha de raciocínio, não podemos falar de
violência em espécies não humanas, só de agressividade. Seguindo o autor, “a intenção
significativa transforma a agressividade em violência ao utilizá-la como meio estratégico para
um fim” (RUIZ, 2009, p. 55).
Percebemos, então, uma definição qualitativamente diferente entre agressividade e
violência. Na realidade, para Ruiz (2009, p. 56), só podemos chamar de violência o ato
cometido contra outro ser humano de maneira intencional e deliberado. A destruição de
objetos, o ato de matar um animal, pode ser considerado agressivo e ser questionado como
19
cruel, mas pode servir para a sobrevivência. Já a ação de coagir, humilhar, matar outro ser
humano, depreciar seu patrimônio, cercear sua liberdade é pura violência. A agressão pode ser
um impulso de sobrevivência, um excesso de instinto que precisa descarregar em objetos, em
outras espécies animais e humanos, mas não visa a destruir, a anular e a negar a alteridade do
outro.
Uma tapa, um empurrão, uma briga, uma disputa podem ser considerados atos
agressivos, mas um linchamento, uma surra humilhante, com ação deliberada de quebrar os
ossos de outro ser humano, a coação moral são violências praticadas contra o outro, de
maneira intencional e visando a destruir sua alteridade. Nesse aspecto, a violência não visa só
a destruir e a negar a alteridade de outro, mas de si mesmo. Seguindo este raciocínio, a
agressividade é da ordem do biológico e do natural, e a violência é da ordem do social, da
dimensão da linguagem, do simbólico. A não naturalização da violência remete a fatores
ligados à nossa humanização, à história e à constituição social, mas não podemos
menosprezar a dimensão biológica da agressividade, que faz parte de nossa herança animal.
Entre agressividade e violência existe uma ponte. O homem, através da linguagem, do desejo
e da criação de símbolos, introduz a consciência do eu na agressão, transformando-a em
violência, que é nossa marca como espécie.
Em suma, falaremos, ao longo deste trabalho, sobre agressividade e violência, como
conceitos, que vão do biológico ao social. Ao falar de agressividade, adentraremos uma
dimensão biológica, corporal, genética, neurobiológica; e, ao falar de violência, entramos em
uma dimensão exclusivamente humana, que remete à linguagem, à cultura, aos símbolos e à
sociedade humana2.
Hobbes, no século XVII, cria uma filosofia política voltada para a tese de uma natureza
humana egoísta, agressiva, querelante. Usa referências dicotômicas entre natureza e cultura,
mas considera que o homem é passional por natureza. Esboça, no De Cive, uma biotipologia,
em que os homens podem ser agressivos e egoístas e temperados, sendo que, os primeiros
exercem o poder, dominam, convencem. Se nossa passionalidade é destrutiva, e é inata, e
2
Lembremos que a noção de sujeito é problemática, remetendo à subjetividade. Existe subjetividade
entre os chimpanzés? (TOMASELLO, 2003, p. 33). Portanto, esta pesquisa trata sobre a capacidade de
compreender atos intencionais ou o “outro” como agente intencional diferente, que não se encontra
desenvolvimento entre chimpanzés, sendo característica da socialização humana. O ódio aparece como uma
paixão que propicia a expressão da violência, que parece ser exclusiva da espécie humana. Mas se a violência é
exclusiva da espécie humana, tal exclusividade ocorre a partir de suas características biológicas, logo “naturais”,
ou de suas características sócio-culturais, logo, instaurando uma diferença.
20
quem traz a marca da “maldade” nos genes, prevalece socialmente, é porque nossas estruturas
políticas são formadas por grupos, no jargão de Hobbes, ígneos. Este debate é atual.
Entre os objetivos deste trabalho está a realização de uma análise sobre o homem, partindo de
Hobbes e Rousseau, principalmente no que se refere ao tema da agressividade e da violência,
que assume nos dois autores posições notoriamente paradigmáticas : em Hobbes o homem é
naturalmente agressivo, egoísta e passional; em Rousseau, o homem, ou melhor, dizendo, a
criança, é naturalmente piedosa e usa a agressividade apenas para defesa contra as
dificuldades do meio físico e maturação de estratégias de sobrevivência, sendo a violência um
produto do desenvolvimento social.
Nos postulados hobbesianos, observamos uma antropologia em que o homem é refém
da sua passionalidade, o que faz com que predomine a desconfiança na convivência em estado
de natureza. A herança animal, que acompanha o homem, prolonga-se na formação do Estado.
O homem artificial, em Hobbes, é um produto da passionalidade que só é dobrada através do
medo, forçando à obediência a um Estado forte e centralizador. Para Renato Janine Ribeiro,
“o medo e Hobbes caminham juntos: medo deste ser passional e destrutivo que somos nós,
seja em estado de natureza, seja no Estado social” (RIBEIRO, 2004, p. 8).
Em Rousseau, encontra-se uma antropologia em que o homem nasce com limitadas
necessidades, propensão à piedade e ao amor de si. O mito do bom selvagem e,
principalmente, a criação do Emílio remete-nos a uma natureza humana original que, apesar
dos desvios e da degradação na sociedade civil, deve ser reencontrada através do Contrato
social e da educação.
Rousseau acredita no desenvolvimento da razão e da moral no homem, partindo da
passionalidade e da socialização. A piedade, o amor de si e a sensibilidade, que é a faculdade
inicial de que decorrem razão e moral, fornece-nos a oportunidade de nos livrar do
determinismo biológico, fazendo-nos ascender a uma dimensão eminentemente humana. É o
tema da perfectibilidade humana muito presente em Rousseau.
A sociedade civil decorre do desenvolvimento das faculdades mentais e emocionais do
homem. A propriedade privada instaura a desigualdade, e a sociedade corrompe-se; o contrato
social e a educação conduzem o homem à condição original de liberdade, que, neste
momento, é baseada na vontade geral e nos limites que a moral coloca à degeneração do
homem na sociedade civil.
21
Rousseau acredita que o homem é um ser racional e moral, cujas raízes encontram-se na
infância. Do estado de natureza à formação do Estado Civil, a passionalidade humana é
depurada, seguindo um percurso que culmina com o desenvolvimento da razão e o
aperfeiçoamento da moral.
O que está em discussão, portanto, não é somente o confronto entre duas antropologias,
uma negativa a e a outra positiva, mas a tese da possibilidade de que a natureza humana possa
ser transformada, modificada, pela ação consciente do homem e da sociedade sobre si mesmo
Estudar o tema da agressividade e violência, em Hobbes e Rousseau, é uma tarefa
complexa, que requer, antes de tudo, fidelidade aos pensadores. Mas, esta fidelidade não
impede que se possa e deva trazer a contribuição dos filósofos para o debate contemporâneo
no campo das ciências que estudam a agressividade e violência. Desta maneira, poderemos
compreender melhor o nosso tempo e, acima de tudo, compreender melhor a agressividade e a
violência, que tanto nos inquietam nos tempos atuais, e que constitui um grave problema para
a Filosofia Prática, e para o respeito dos direitos humanos.
Acreditamos que, para a Filosofia, o diálogo entre pensadores de áreas diversas do
conhecimento é fundamental.
Utilizaremos, neste trabalho, Hobbes e Rousseau, remetendo aos seus personagens: O
LOBO E A CRIANÇA.
Não propomos soluções simples e óbvias. Vamos apresentar o resultado de diversas
pesquisas e textos, e longe de qualquer retórica, traçar uma linha de investigação tentando
fugir às facilidades dos modismos que tanto obstruem o avançar do conhecimento É neste
sentido que colocamos a questão norteadora: existe uma “natureza humana”? Se existir, esta
natureza é produto da história ou algo fixo, determinado, que não muda? Neste aspecto, sendo
a violência uma produção humana, caso nossa natureza seja fixa, implica que temos que
conviver com a violência como nossa herança sociocultural. Dentro desta questão temos uma
segunda: A violência pode ser analisada apenas por seus aspectos negativos? Podemos falar
de uma positividade da violência? Para Clastres, por exemplo, a violência intra-grupo instaura
uma ordem e uma convivência dentro deste, sendo um aspecto positivo.
Em relação a outros grupos, a violência instaura a diferença, o outro como inimigo,
tentando eliminar a alteridade. Schmitt faz girar o conceito do político em torno da relação
amigo-inimigo. Os amigos instauram uma violência de coesão entre si, através de códigos de
ética, normas de conduta e ajuda, cabendo ao inimigo a violência que nega a alteridade,
subjuga, fere.
22
Não podemos aceitar esta dimensão grupal apenas. A violência encontra-se também na
dimensão individual, sendo o suicídio um exemplo.
Seguem-se as duas principais questões que iremos defender neste trabalho:
agressividade e violência são conceitos diferentes? A violência faz parte de natureza biológica
humana, ou é um resultado da sua socialização? A partir destas duas questões desdobraremos
nossa tese. A questão central é se a violência faz parte da socialização ou da biologia e pode
ser modificada ou não pela ação do homem. A violência determina nossa natureza, ou pode
ser modificada por ela?
Trazendo Hobbes e Rousseau para o século XXI, vamos encontrar na etologia, na
genética, nas neurociências e na psiquiatria as mesmas questões, colocadas sob o prisma
científico. Hobbes descreve o lado sombrio do homem, recompondo a alegoria do lobo,
Rousseau traz a criança para o cenário da filosofia. Faz desta criança uma alegoria do
cidadão; agressivo, ás vezes, mas nunca perverso, cruel, gozando com o mal.
Seguiremos, nos capítulo 1 e 2, a antropologia de Hobbes e Rousseau, tentando, com
ajuda de alguns comentadores, extrair um conceito que defina agressividade e violência nos
dois autores. A natureza humana e sua relação com a agressividade e violência serão
aprofundadas nestes autores. Tentaremos extrair, apesar de não estar presente explicitamente
na obras de Hobbes e Rousseau, os conceitos de agressividade e violência. Na realidade,
faremos um esforço teórico para retirar estes conceitos dos dois autores.
Em seguida, nos capítulos 3 e 4, aprofundaremos uma discussão com a etologia
(principalmente o conceito de agressão em Lorenz), a psicologia evolutiva, fazendo curtas
referências à teoria comportamental. Nestes capítulos, entraremos na discussão do tema que,
na realidade, vai surgir a partir de Darwin. Lorenz, através da etologia, vai deter-se no tema
da agressividade, sob o aspecto biológico. Wilson e Dawkins continuam os estudos, que em
Wilson assume uma posição biologicizante, tornando as ciências humanas debitaria da
biologia. Em seguida, nos deteremos na primatologia, utilizando principalmente Frans De
Waal, Wranghan e Peterson. Para os primatologistas, nossa proximidade genética com
primatas não humanos, reforça a importância do estudo destes. Em Wranghan e Peterson, a
agressividade e a violência fazem parte de nossa herança primata, principalmente no que
refere-se ao gênero masculino. Para De Waal, temos duas heranças: a dos chimpanzés e
bonobos, cada uma diferente, o que gera uma bipolaridade na espécie humana: de um lado, a
parte agressiva e violenta dos chimpanzés, do outro, o pacifismo e a cooperação dos bonobos.
23
Falaremos também a respeito da resolução de conflitos dentro da temática abordada por
De Waal, por compreender que o tema traz algumas luzes à tentativa de contribuir para
diminuição da chamada violência transgressora. A resolução de conflitos está presente em
primatas não humanos e humanos, e é uma resposta para o controle da violência, no seu
aspecto negativo.
A passagem pela genética, neurociências e psiquiatria, no capítulo 4, se faz necessária,
pois nossa pesquisa une filosofia e ciência, e esta discussão não pode deixar de lado estas
contribuições, mesmo que seja para questioná-las. A genética, hoje, vem se constituindo num
ramo da biologia que tenta responder pelos comportamentos humanos, incluindo agressão e
violência. O estudo do cérebro abre fronteiras sobre a conduta humana, agressividade e
violência. Autores como Matt Ridley e Antonio Damásio, analisam a interação genes, cérebro
e ambiente. A psiquiatria, apesar do reducionismo, analisa o fenômeno da agressividade e da
violência empiricamente, remetendo ao estudo dos transtornos mentais, principalmente os que
mais se relacionam com agressividade e violência, que são os transtornos de conduta na
infância e anti-social, no adulto. No capítulo 6 introduziremos Norbert Elias, principalmente
para discorrer sobre a sociogenêse da violência. Recorremos também a Pierre Clastres, René
Girard, Pierre Bourdieu e Joel Birman. Neste fase do trabalho, iremos analisar a sociogênese
da agressividade e da violência, a formação de grupos, e tentaremos delimitar a agressividade
e a violência, inclusive aprofundando este nos aspectos negativos e positivos.
Após todas estas análises, no capítulo 6, vamos mostrar um pouco as máscaras da
violência na sociedade humana. A negatividade da violência como negação da alteridade. Por
ter formação em psiquiatria infantil, optamos por falar de abuso, negligência, maus-tratos e
bullying. É apenas uma pequena amostra da violência transgressora entre seres humanos.
Poderia ter escolhido falar sobre terrorismo e guerra, fenômenos típicos da violência política,
mas acredito que nossa tentativa é definir conceitos, e as máscaras da violência são sociais,
existindo apenas diferença de grau. Um abuso infantil praticado com freqüência não pode ser
considerado menos violento de que um massacre. Existe uma diferença de grau e intensidade,
mas são todas formas de violência.
Logo após, faremos um retorno a Hobbes e Rousseau, fazendo uma ponte com a
biologia, sociologia e as faces da violência.
Finalmente concluiremos nossa pesquisa,
tentando apresentar uma síntese de tudo que foi discutido. Na conclusão delimitaremos
agressividade e violência, contextualizando no pensamento de Hobbes e Rousseau. A
questões para as quais buscamos uma resposta nesta pesquisa são: a natureza humana é
24
determinada e fixa, ou mutável? Agressividade e violência fazem parte da natureza humana
ou existem diferenças entre os dois conceitos? O que pertence a nossa herança biológica e a
nossa socialização?A violência é sempre o negativo do ser humano, ou tem seus aspectos
positivos e construtivos?
Uma vez definindo estes aspectos, vamos iniciar o nosso percurso a partir de Hobbes,
tentando aprofundar sua visão antropológica, abrindo assim nosso trabalho.
25
CAP. 1
HOBBES: A Agressividade Humana
1.1 DO LOBO AO LEVIATHAN
A razão do mais forte é sempre a que vigora:
nós vamos mostrar isso agora.
Um cordeirinho bebia
numa fonte de água pura,
veio um lobo em jejum, em busca de aventura,
e que a fome a essas plagas conduzia
“quem coragem te dá de sujar-me a bebida?”
disse-lhe a fera enfurecida.
(LA FONTAINE, 2002, p. 42)
Extrair, em Hobbes, uma antropologia é uma tarefa relevante, para se tentar
compreender os demais aspectos do seu pensamento. No De Cive (1641), segundo tradução
própria, reportando-se à literatura clássica, Hobbes coloca que o homem é um Deus para ele
mesmo, assim como é um lobo. Essa máxima antiga permanece até hoje, no imaginário, sendo
associada à filosofia de Hobbes. Na realidade, ela remonta à Asinaria, de Plauto3, que repete
uma versão antiga sobre homens e lobos. Essa visão remete a uma agressividade natural, que,
desde os Elementos da Lei Natural (1640), Hobbes desenvolve. No De Cive, aparece, pela
primeira e única vez, a máxima do lobo, mas ficou associada ao pensamento de Hobbes, que,
segundo Skinner (1999, p. 234), utiliza, apesar da pretensa intenção científica, várias
alegorias clássicas, que aparecerão, principalmente, no Leviathan.
Pontuar, em Hobbes, a agressividade e a violência não é uma tarefa simples. O conceito
de homem é construído, de acordo com minha tradução, desde o De Cive, até o De Homine,
corroborando a tese de que o homem, em estado de natureza, é agressivo. A liberdade e a
igualdade naturais deixam-no à mercê de suas paixões. O estado de natureza, em Hobbes, é
um constructo que serve ao propósito de justificar a construção do Estado e do homem
artificial. Podemos seguir Zarka (2001, p. 45-67), que faz uma análise da linguagem em
Hobbes, considerada “a maior invenção do homem” (ZARKA, 2001, p. 123), produzindo um
ponto de corte na nossa espécie, tornando-nos diferentes de todas as outras espécies animais.
Com o advento da linguagem, a socialização, no homem, toma um rumo complexo, e os
3
Titus Maccius Plautus (250 – 184 a.C.) foi um comediógrafo romano que escreveu a Asinaria, ou seja,
a comédia dos asnos, na qual está presente a famosa frase: lupus est homo homini, v. 495.
26
desejos encontram objetos que não mais se inserem em uma ordem natural. A relação com o
outro passa, para Zarka (2001, p. 98), a ser determinante, após o advento da linguagem, para
definir uma socialização. Nesse aspecto, a violência é uma construção da complexidade das
relações entre os homens, produzida pela linguagem.
Em relação à ciência da época, fisiologistas e anatomistas derrubavam a medicina
galeneana; Bacon e depois Descartes alicerçavam a ciência e seus métodos como espaço da
verdade; Copérnico, Kepler, Galileu construíam outro universo; o mundo feudal cedia lugar à
formação do Estado Moderno; a Reforma Protestante abria o caminho para as sangrentas
guerras de religião: guerras civis, sedições, uma “aristocracia que não renunciava facilmente
ao poder” (ELIAS, 1993, p. 98), camponeses vitimados pela peste e fome, enfim, um mundo
que se abria, outro que se fechava.
Hobbes, nesta matriz do século XVII, desde Os Elementos Da Lei Natural e Política
(1640), vem tentando dar respostas sobre o que é a natureza humana, desdobrando o homem
em natural e artificial. No estado de natureza, predomina a guerra, a disputa, a discórdia e a
vontade de poder, o que torna a vida uma ameaça constante. No Estado social, criado através
do pacto, são impostos limites à liberdade e ao direito natural, que é a ausência de
impedimentos externos ao movimento.
Em sua visão antropológica, Hobbes desconfia da possibilidade de o homem se
organizar em grupos e por leis da natureza e vai tecendo os fios da possibilidade radical, que é
a entrega da liberdade do estado de natureza nas mãos de um Governo forte: única solução
possível para a sobrevivência em sociedade.
Para Hobbes, o ser humano é egoísta, violento e individualista, e a passionalidade,
acionada pelo instinto de preservação, modela sua vida no estado natural. Nesse estado,
somos todos regidos pelo egoísmo e pelo desejo de poder. Essa visão, nos Elementos, não
chega a radicalizar tanto quanto no Leviathan, com a solução hiperbólica do capítulo XII, em
que existe uma tendência geral, em todos os homens, para a busca de poder.
No De Cive (capítulo 1), Hobbes divide os homens em “temperados” e “ígneos” e
chega, inclusive, a colocar que os ígneos, com propensão para a violência, movidos pela
vanglória, podem existir em menor quantidade que os temperados. Escreve Hobbes:
Todos os homens no estado de natureza têm o desejo e a vontade de ferir, mas não
procedendo da mesma causa, não deve ser condenado com o mesmo rigor. Um,
conformado àquela igualdade natural vigente em nós, permite aos demais o mesmo
que ele reivindica para si (é o pensamento de um homem temperado, e que avalia
seu poder de maneira correta). Outro, supondo sua superioridade frente aos demais,
quer ter licença para fazer o que bem entende, exigindo mais respeito e honra do que
27
julga serem devido aos demais (é a exigência de um espírito ígneo). No segundo
homem, a vontade de ferir vem da vã glória, e da má avaliação que ele faz da sua
própria força; no outro, provém da necessidade de defesa, assim como a sua
liberdade e seus bens, da violência daquele (HOBBES, 2004, p. 33)
Os temperados entram na escalada de violência, para se defender. Uma guerra entre
lobos e ovelhas? As ovelhas apenas se defendendo, utilizando pastores e caçadores, para não
ser presa dos lobos. Seguindo seu próprio curso, a competição, a guerra e a luta contínua
fazem do ser humano um projeto passional e querelante. No estado natural, todos são iguais,
porém incapazes de uma vida pacífica.
A luta pela autopreservação e o desejo de poder fazem com que todos os homens, ou os
ígneos-lobos, apropriem-se dos meios, para garantir a sobrevivência. Nessa busca, existe a
necessidade de acumular bens (recursos naturais e territoriais), gerando excedentes para
aqueles que se apropriam de maior quantidade de recursos, o que culmina com a competição;
conseqüentemente, estabelece-se uma fonte de guerra contínua. Os temperados têm que
reagir, senão são engolidos. No estado natural, todos são iguais, inclusive os mais fracos, que
“podem usar da inteligência e habilidade para superar os mais fortes” (HOBBES, 2000, p.
78).
Em resumo, o homem é, para Hobbes, quer natural ou artificial, um ser passional, cujo
“desejo não cessa de mover-se para alcançar poder e mais poder num movimento incessante
que finda com a morte” (HOBBES, 2000, p. 116). As paixões da curiosidade e do medo nos
fazem buscar a ciência e a religião. Através da curiosidade, inventamos a linguagem e
desenvolvemos a razão. Assim, tornamo-nos homens falantes e racionais, mas nossa natureza
move-se pela passionalidade. Existem as leis, a espada e a face de Deus, mas, ainda assim, a
nossa passionalidade burla, engana e faz-nos buscar o poder guiado pela vanglória e pelo
orgulho. Mas essa passionalidade, com o advento da linguagem (ZARKA, 2001, p. 78), sofre
transformações que separam o homem de outras espécies animais, introduzindo um modelo
de socialização singular.
Analisaremos detalhadamente esses aspectos. Vamos acompanhar Hobbes, depois de
delimitarmos alguns aspectos de sua antropologia, a relação com agressividade e violência,
situadas em uma época de transformações, que foi o século XVII. O lobo faz agora o início da
caminhada pelo bosque. Acorda cedo. Está no século XVII, transitando entre Inglaterra e
França, seguindo os passos de Hobbes, como uma sombra. O lobo e Hobbes seguem juntos; e,
entre eles, o medo. De mãos dadas, Hobbes e o lobo, o medo começa a fazer sua aparição.
28
Passaremos agora a aprofundar essa história, seguindo os passos de Hobbes, do lobo e do
medo.
29
1.2 PAIXÃO E PODER: Do Estado de Natureza ao Estado Social
[... ] Pois me mantendes em afãs,
tu, os pastores e os cães.
Já me disseram; vou vingar tantas maldades.
Mata adentro sem demora,
o lobo arrasta e o devora,
sem mais qualquer formalidades
(LA FONTAINE, 2004, p. 42).
Hobbes, discorrendo sobre a teoria das paixões, fala sobre dois tipos de movimento: o
vital, que diz respeito a funções fisiológicas - respiração, circulação, pulsação; e o voluntário.
Neste, existe, a princípio, imaginação e pensamento, e depois um movimento que o faz agir.
A origem desses tipos de movimentos voluntários encontra-se na imaginação e no
pensamento. Para um corpo se mover, tem que ocupar um espaço. O início do movimento,
após a imaginação, chama-se esforço, que tende a caminhar em direção a algo, a causa deste
movimento. A este esforço chama-se apetite ou desejo, o apetite é restrito a funções vitais,
fome e sede, e o desejo é mais amplo.
Além do desejo, que busca algo, existe a aversão, que evita. A esta, liga-se o ódio, e,
àquele, o amor. Em relação aos apetites e às aversões, algumas nascem com o homem
(excreções, fome, etc.), e outras são produzidas pela observação dos efeitos em nós ou em
outros. Para Hobbes:
Dado que a constituição do corpo de um homem se encontra em constante
modificação, é impossível que as mesmas coisas nele provoquem sempre os mesmos
apetites e aversões, e muito menos é possível que todos os homens coincidam no
desejo de um só e mesmo objeto (HOBBES, 2000, p. 65).
Existe um movimento circular que parte dos objetos externos e provoca outro
movimento em nós, chamado sensação. A sensação provoca outro movimento que se
prolonga pelos nervos e coração, produzindo um efeito, no corpo, que se chama apetite ou
aversão, em relação ao objeto que iniciou o movimento. Este movimento final Hobbes
denomina deleite ou perturbação do espírito, afirmando que:
Portanto, o prazer ou deleite é a aparência ou sensação do bem, e desprazer ou
desagrado é a aparência ou aversão do mal. Consequentemente, todo apetite, desejo
e amor é acompanhado por um deleite maior ou menor, e todo ódio e aversão por
um desprazer e ofensa maior ou menor (HOBBES, 2000, p. 66).
30
Hobbes enumera diversos tipos de paixões, dentre elas a esperança e o medo, os quais,
mais adiante, estarão na origem da passagem do estado de natureza para o Estado social. O
medo, na realidade, acompanha o homem em estado de natureza e é um dos principais fatores
da tentativa de saída desse estado.
Podemos, inicialmente, refletir, que, para Hobbes, o homem em estado de natureza é
agressivo. Competição, desconfiança e vanglória movem o teatro hobbesiano do homem em
estado de natureza; nesse universo virtual, o medo do homem, que pode prejudicar o outro,
enganar, violar, escravizar, abusar e ser cruel, é o único freio. Por medo, cria-se o pacto; por
medo, deve-se obedecer ao soberano; por medo, principalmente da morte violenta, saímos do
estado de natureza; por medo, tornamo-nos súditos. Acompanhando Leo Strauss (1963, p.
98), o medo é um dos elementos mais importantes na filosofia de Hobbes, que é tão
hiperbólico quanto a vontade de poder. Nessa relação, o desejo de poder, que move o instinto
de sobrevivência, depara-se com o medo. Para Strauss (1963, p. 89), o medo de nós mesmos,
associado ao de não conseguir os meios necessários, para manter as aquisições e as conquistas
do estado de natureza, move o homem hobbesiano, possibilitando uma moral. Mesmo a
esperança, que Ribeiro (2004b, p. 34) contrapõe ao medo, não é suficiente, para diminuí-lo.
Dentro da metáfora do lobo, Hobbes e o medo, o último freia o lobo e faz dele uma sombra
trêmula de Hobbes.
Continuando a análise das paixões, cobiça, ambição, pusilanimidade, magnanimidade,
mesquinhez, luxúria, complacência, ciúme, vingança e vanglória servem para acirrar a guerra
e a disputa entre os homens. A crueldade é a exacerbação com vistas a prejudicar alguém sem
consideração pelo outro. A inveja provoca competição e desejo de destruir, no outro, algo que
não temos. Dessas, no De Cive, a vanglória é o que move o homem de constituição ígnea. Na
realidade, o “verdadeiro lobo” é competitivo e gera desconfiança nos de constituição
temperada, que apenas defendem-se. No Leviathan, a vanglória é uma das três principais
causas da agressividade mútua entre os homens, a qual contribui para a escalada de violência
generalizada. Hobbes (2000, p. 103) a compara a um tipo de loucura. O vinho (álcool), a
melancolia são outros tipos de loucura, mas a vanglória gera disputa e aumenta a
agressividade, pois se passa a avaliar, de maneira distorcida, o grau de poder, atribuindo mais
valor do que temos na realidade. A vanglória é relacional, da ordem da linguagem. O medo
que se instala é também relacional, por isso, “devemos concluir então, que a origem de todas
as sociedades grandes e duradouras não é a boa vontade mútua que os homens têm entre si,
mas sim o medo mútuo, que nutriam uns pelos outros”. (HOBBES, 2004b, p. 32).
31
Outras paixões podem ser vistas como altruístas: a confiança, a benevolência, a
indignação, a bondade natural, a amabilidade. Hobbes não desenvolve suficientemente essas
paixões, mas podemos conjecturar que se encontra em homens temperados.
Podemos constatar, para concluir sobre as paixões, que a curiosidade, para Hobbes, é
uma paixão especificamente humana e não se encontra em outras espécies animais, assim
como a admiração, que desperta o apetite de conhecer a causa. A curiosidade, como paixão
humana, conduz à linguagem. Remetendo a Zarka (2001, p. 89), o homem hobbesiano,
independentemente dos constructos de estado de natureza e social, começa a ganhar
consistência a partir da linguagem. A violência começa a ser escrita, em toda intensidade, a
partir desse momento. Como a linguagem é relacional, a violência é um desenvolvimento
dessa complexidade das relações entre os homens. Esse fato, seguindo Zarka (2001, p. 98),
fala contra as tentativas de analisar a violência, em Hobbes, como um instinto. A violência,
em Hobbes, é relacional; a um artifício e a uma invenção, assim como a linguagem. Podemos
perceber o componente de socialização que conduz o homem até a violência.
Segundo Hobbes, continuando o movimento provocado pelas paixões, podemos pontuar
a deliberação e a vontade como movimentos importantes nas atividades ou nos atos
voluntários. As ações voluntárias se originam de desejos e de aversões. Não é só o desejo de
alcançar ou obter algo, mas o medo de alguma coisa ou a aversão a algo que desencadeia a
vontade, antes de deliberar, ou seja, de pôr fim à liberdade de se mover entre desejo e aversão.
Hobbes define, na deliberação, “o último apetite ou aversão imediatamente anterior à
ação ou omissão desta e o que se chama vontade, o ato, (não a faculdade) de querer.”
(HOBBES, 2000, p. 63). O ser humano é um movimento de paixões, ora buscando objetos
almejados, ora evitando-os. A deliberação cessa o movimento e põe fim à liberdade de
praticar, ou não, a ação. Sobre a deliberação, ainda afirma que:
Esta sucessão alternada de apetites, aversões, esperanças e medos não é maior no
homem do que nas outras criaturas vivas , consequentemente os animais também
deliberam. Diz-se então que toda deliberação chega ao fim quando aquilo sobre o
que se deliberou foi feito ou considerado impossível, pois até este momento
conserva-se a liberdade de fazê-lo ou evitá-lo, conformemente aos próprios apetites
ou aversões (HOBBES, 2000, p. 63).
Muitas paixões são comuns ao homem e a outras espécies. Os animais só não possuem a
linguagem para expressá-las. É neste ponto que Hobbes, o lobo e o medo se unem. O artifício
está criado. Considerando divisões “dicotômicas” (BOBBIO, 1991, p. 9), como natureza e
32
cultura, podemos ver o homem como a espécie que vai transformar e modificar a natureza;
reinventá-la.
Em relação à religião, para Hobbes (2000, p. 123), só no homem a encontramos, sendo
essa uma busca especificamente humana. A curiosidade, a procura de causas e a busca dos
consequentes e antecedentes, com ordenação da memória, é o que nos leva até a religião. Os
dois primeiros motivos acarretam a ansiedade, que conduz a encontrar, na origem de uma
busca, a superstição ou o poder dado a agentes invisíveis. Esses erros de raciocínio aliados à
ansiedade levam à crença nos fantasmas, à ignorância das causas segundas, à devoção pelo
que só teme, e para a aceitação das coisas acidentais como prognósticos. À soma desses erros
de raciocínio denominamos religião. Hobbes chama de religião dos gentios a que tem como
origem a ignorância, contrapondo a religião que provém do desejo de conhecer as causas
primeiras dos corpos naturais e suas diversas virtudes e operações.
Podemos, ao inferir do efeito a causa próxima e passar a investigar profundamente o
conjunto de causalidade, até chegar à causa primeira ou ao motor principal que é chamado
Deus. “Assim, com princípios do correto raciocínio que leva o homem à ciência, chega-se a
Deus. Esta pode ser chamada a verdadeira religião” (HOBBES, 2000, p. 100).
A religião geralmente é utilizada pelo Estado, para manter o povo em obediência e paz.
Fundadores e legisladores incutem na mente do povo, crenças e preceitos, para melhor obter o
objetivo de controlá-los. Atribuem, assim, a um Deus ou a vários, as crenças que ajudam o
cumprimento dos seus desígnios. Religião como criação puramente humana4. Citando René
Girard (2008, p. 34-37), a violência e o sagrado mantêm uma relação de tentativa de sublimar
a violência, canalizando-a para fins menos irracionais. A violência torna-se “menos gratuita”.
Para Girard (2008, p. 36), a religião pode ser considerada precursora do sistema jurídico, já
que opera com interdições e colocação de limites às ações humanas.
Deixando a religião, que, como vimos, é uma criação puramente humana, a
antropologia, em Hobbes, no que se refere às virtudes intelectuais, coloca o discernimento, a
distinção, o juízo e a prudência como condutores da imaginação correta. Os talentos, que
conduzem a um correto uso da imaginação, são de dois tipos: naturais, que dizem respeito à
experiência, cujo corolário é a celeridade e a firmeza na direção da cadeia imaginativa; e os
adquiridos, que dizem respeito ao uso da razão, pois como já foi visto nada mais é que o uso
correto de nomes. Podemos conjecturar que os temperados não possuem também essas
4
A relação de Hobbes com a religião foge ao escopo deste trabalho, mas podemos adiantar que, apesar
da ruptura com a escolástica, Hobbes acaba por optar por uma solução que coloca Deus como o motor de todo
movimento.
33
virtudes, já que os ígneos são conduzidos pela vanglória, que prejudica o discernimento e faz
da imaginação e do desejo um movimento turbulento e ávido por poder.
Para Hobbes, as diversas diferenças de talentos consistem na diversidade de paixões,
que, associadas aos costumes e à educação, produzem inclinações diferentes na mesma pessoa
ou em várias. Podemos encontrar, nesta passagem, uma chave entre a biotipologia de ígneos e
temperados, da interação constituição e ambiente.
As paixões que provocam de maneira mais decisiva as diferenças de talento são,
principalmente, o maior ou menor desejo de poder, de riqueza, de saber e de honra.
Todas as quais podem ser reduzidas à primeira, que é o desejo de poder. Porque a
riqueza, o saber e a honra não são mais do que diferentes formas de poder
(HOBBES, 2000, p. 75).
Numa passagem do capítulo VIII do Leviathan, Hobbes se refere aos pensamentos
como “batedouros do desejo”, que vão ao exterior buscar a coisa desejada. O movimento
agora se encontra completo: inicia-se com um corpo exterior que produz a sensação e termina
em um objeto que é buscado pelo desejo. Não desejar, portanto, é morrer. As paixões fracas
são debilidades, as indiferentes distrações e leviandade, e paixões fortes e veementes, loucura.
Existem, para Hobbes, muitas espécies de loucura, as quais são originadas pelo orgulho
e pela vanglória. Esta é um dos vetores passionais que produzem a violência. Remetendo a
loucura à origem dos homens-lobos (BARING-GOULD, 2008, p. 34), o núcleo desse lobo
encontra-se nesta origem histórica.
Das paixões, a mais forte e fonte de todas as outras é o desejo de poder. Este é o alicerce
por que todos os movimentos são iniciados e perpetuados, sendo uma força motriz que faz o
corpo sair em busca do que for mais adequado para sua autopreservação.
Para Hobbes, o desejo de poder é um movimento contínuo, que busca sempre mais
poder. Não existe repouso, apenas a passagem de meios, para adquirir mais poder por outros
meios.
Assinalo assim, em primeiro lugar, como tendência geral de todos os homens, um
perpétuo e irrequieto desejo de poder e mais poder que cessa apenas com a morte, e
a causa disto não é que se espere um prazer mais intenso do que aquele que já se
alcançou, ou que cada um não possa contentar-se com um poder moderado, mas o
fato de não poder se garantir o poder e os meios para viver bem que atualmente se
possuem sem adquirir mais ainda (HOBBES, 2000, p. 91).
O poder natural diz respeito às faculdades do corpo ou do espírito, ou seja, a força, a
eloquência, a sagacidade, a beleza e o poder instrumental são os meios utilizados, para
adquirir mais poder. Em relação a este, o de vários homens ou muitos constitui o maior tipo,
nesse aspecto aparece o poder de grupo, facção ou do Estado, sendo este o maior.
34
Uma vez que o poder é um movimento pela busca de mais poder, Hobbes deduz que
passa, então, a ser impossível garantir a paz e a harmonia entre os homens. Quanto maior o
poder, maior o esforço para ampliá-lo, seja através do desejo de honra ou glória, ou, então, de
cobiça. O desejo de riqueza, honra, manda, obediência leva os homens à luta acirrada e à
competição, as quais redundam na subjugação de uns por outros. Mais uma vez especulamos,
se esse desejo de poder descreve o homem ígneo, e não o temperado, cujas paixões
predispõem à paz e à cooperação.
Para Schmitt (2004), Hobbes criou um Deus mortal, formado com partes de Deus,
animal, homem e máquina. O poder maior do Estado é uma criação dos símbolos da
linguagem. Uma extensão do poder individual do estado de natureza. O pacto é o fundamento
dessa relação em proporção maior.
O lobo de Hobbes, no entendimento de Schmitt (2004, p. 48), é inteligente, predador,
produto mítico da alegoria do estado de natureza. Mas a grande criação de Hobbes é o
Leviatã, o monstro marítimo feito com pedaços de Deus, lobos, homens e que para funcionar
torna-se uma máquina. Este é, para Schmitt (2004, p. 67), a grande construção do poder, em
Hobbes.
Em Hobbes, existem movimentos, de um lado, ilimitados, de desejo de poder, de outro,
desejos que limitam a busca dos meios, para atingir o acúmulo de poder: o medo, a ciência e
as artes, que buscam equilíbrio para atingir a paz, quebrada e violada pela vanglória, ambição,
orgulho, competição e honra.
Nos capítulos X e XI do Leviatã, Hobbes ainda não discorre sobre pactos, mas já os
ensaia implicitamente. Fala sobre um ser humano passional, cuja razão, através da esperança e
do medo, aponta-nos um caminho, para sairmos dessa turbulência insaciável de desejos de
poder e mais poder. Os costumes já vislumbram a possibilidade de uma tentativa de paz.
Antes de deduzir, através das leis e dos direitos naturais, a raiz da formação do homem
artificial, Hobbes ainda faz tentativas de equacionar a balança de um mundo aterrorizante que
se encontra nas nossas paixões. O medo, a esperança e a razão tentam criar costumes e leis,
para harmonizar a vida; a ignorância e a curiosidade criam a religião, para explicar o que não
tem explicação e fazer conviver o não convivível.
A natureza do poder, para Hobbes, é idêntica à da fama, dado que cresce, à medida que
progride, ou à do movimento dos corpos pesados, “que quanto mais longe vão mais
rapidamente se movem” (HOBBES, 2000, p. 83).
35
A natureza passional do homem ultrapassa a de todos os outros animais. O movimento
inicial do desejo e da aversão é comum a outras espécies, porém, no homem, a imaginação e a
linguagem criam um universo complexo de paixões e objetos de desejo que tornam os
movimentos iniciais, amplos, complexos e infindos. Paixões, como a vanglória, a riqueza, o
orgulho, a cobiça, a ira, a luxúria conferem a nossa natureza uma insaciabilidade acentuada.
Tendo, como princípio motor do desejo, o acúmulo de poder e mais poder, Hobbes nos
oferece um teatro dos horrores, onde essas paixões são retroalimentadas pela conquista, pela
subjugação e pela força.
Ao termos um objeto do desejo para três pessoas, este provoca vanglória e cobiça, uma
pessoa prepondera sobre as outras duas, subjugando-as e submetendo-as a uma vontade única,
porém o movimento não cessa, e, tanto o que conquistou o objeto de desejo quanto os que
perderam continuarão lutando. Desse objeto passa-se a outro, e, a outro, com cada vez mais
homens disputando.
A felicidade é um contínuo progresso do desejo, de um objeto para outro, não sendo
a obtenção do primeiro, outra coisa senão para conseguir o segundo. Sendo a causa
disso o objeto de desejo do homem, não é gozar apenas uma vez, e só por um
momento, mas garantir para sempre os caminhos do seu desejo futuro (HOBBES,
2000, p.91)
Nesse universo não existe lugar para valores de bem e mal, de justo e injusto. Bom é o
que me faz obter o que desejo, e mal é o que me afasta desse objeto.
Justo é o que aumenta minha potência em acumular poder, e injusto é o que enfraquece.
Nessa equação de autopreservação, de desejo e de poder, acumulam-se bem mais do que
deveria ser acumulado para sobrevivência. Excesso para uns, escassez para outros. Em um
mundo onde justo e injusto não existem, as disputas são a regra, e a justiça e a injustiça, um
simples detalhe, no entanto existe a esperança e o medo. Essas paixões conduzirão a uma
possibilidade de paz. A razão, aos poucos, tenta jogar luzes sobre a passionalidade, mas
necessita da ajuda do medo, para melhor guiar nossos destinos. Nesse exato momento em que
o desejo de poder nos leva a temer a morte, esta nos lembra que devemo-nos autopreservar, e,
por medo de perder a vida, essa paixão, junto à esperança, conduz-nos à razão, que tenta nos
tirar do estado de guerra e vai-se disciplinando, criando métodos.
Para Schmitt (2004, p. 26-27), Hobbes substitui o Cogito de Descartes, a alma que liga
o homem a Deus, por uma máquina. O Estado é produto do homem.
É verdade, a primeira decisão foi a metafísica de Descartes, considerando a alma
humana como homem-máquina, composto de corpo e alma, como um intelecto em
36
uma máquina. Um simples passo de transportar este homem grande idéia, a medida
foi tomada por Estado. Esse passo foi dado por Hobbes. Porque, como vimos, este
passo significa que a alma do "grande homem" é transformada de uma máquina 5
(SCHMITT, 2004, p. 32-33).
Para Bobbio (1991, p. 30-31), o homem hobbesiano refaz a natureza, que é defeituosa,
insuficiente e leva as paixões humanas a expressarem-se de maneira egoísta e violenta. Nesse
estado, igualdade e liberdade deixa o homem à mercê de seus próprios desejos,
principalmente o de poder. Tendo que reinventar a natureza, transformá-la, dentro do espírito
baconiano, a natureza tem que ser “melhorada” (BOBBIO, 1991, p. 37). O artifício, para
Bobbio (1991, p. 37), é a solução de Hobbes, o qual é a criação do Estado, que é uma
“segunda natureza humana” (BOBBIO, 1991, p. 33), melhorada.
Relojoeiro ou arquiteto, o homem - ou melhor, o gênero humano em seu
desenvolvimento histórico- construiu, ao instituir o Estado, o mais complicado,
talvez o mais delicado, certamente o mais útil dos engenhos, o que lhe permite nada
menos do que sobreviver na natureza nem sempre amiga. Se é verdade que o homem
é chamado não apenas a imitar, mas a corrigir a natureza, a expressão mais alta e
nobre dessa sua qualidade de artifex é a constituição do Estado (BOBBIO, 1991, p.
33)
Porém, nada disso seria possível sem a invenção da linguagem: é o corte, o limite entre
nossa ligação com outras espécies. A linguagem dá forma, voz e expressão às nossas paixões,
tornando-as ou tentando torná-las inteligíveis. Sem a linguagem, as paixões seriam vontade e
deliberações sem significante e significado, ou, utilizando o nominalismo hobbesiano, sem
marcas e sinais.
Linguagem, razão e ciência almejam domesticar nossas paixões e nos fazer humanos,
entretanto o medo e a esperança é o que nos impulsionam a uma vida viável em sociedade.
Essa natureza passional é um dos principais aspectos da antropologia hobbesiana e
devemo-nos deter nela, para tentarmos entender o próximo passo, que é a construção do
homem artificial ou social. Movidos por apetites, desejo, aversões, amor e ódio, buscamos a
5
“Cierto que la primera decisión metafísica fue de Cartesio, al considerar el alma humana como una
máquina y al hombre, compuesto de cuerpo y de alma, como un intelecto em una máquina. Un simple paso
bastaba para trasnportar esta idea al hombre magno, al Estado. El paso fue dado por Hobbes. Pero como ya
hemos visto, este paso tuvo como consecuencia que el alma del “hombre magno” se transformase em parte de
una máquina” (SCHMITT, 2004, p. 32-33). (Tradução Livre)
37
autopreservação através do poder, que, para Hobbes, até a matemática subjugaria, se esta
fosse objeto de disputa6.
Portanto, em Hobbes, o homem é uma espécie entre as outras espécies, diferente delas
pela linguagem e pela razão. No homem, a passionalidade é complexa (devido à linguagem e
à razão, as quais produzem símbolos de desejo e de aversão), tornando a vida em estado de
natureza uma eterna competição de todos contra todos. Nesse momento, podemos já
compreender que, em Hobbes, não existe uma diferença entre agressividade e violência. O
homem, no estado de natureza, é violento, e esta violência é produto da complexidade das
relações humanas que decorrem da criação da linguagem. A violência é relacional. Frutos de
glória, honra, vanglória, da loucura que acompanha o sapiens na sua jornada pelo mundo.
Neste momento, Hobbes já tenta fugir do lobo e correr com o medo, rumo a um universo do
artifício. A razão o faz construir uma morada para o medo. Monstro contra monstro: Lobo
versus o “Monstro do Mar”. Contaremos esta história, a partir de agora, mas continuando a
aprofundar o que o criador de monstros tem a nos dizer.
6
Devemos ficar atentos para a influência de Aristóteles na teoria das paixões de Hobbes. Leitor e
tradutor da Retórica das Paixões de Aristóteles, Hobbes utiliza conceitos e categorias do filósofo grego para
montar seu arcabouço das paixões. Em Aristóteles é construída uma ética para convivência em sociedade cuja
política é o mais importante objetivo, já que o homem é um animal político.
38
1.3. DAS LEIS DA NATUREZA À CRIAÇÃO DO ESTADO: Sobre Pactos e o Poder
Soberano
“Mordido por cães, um lobo estava em estado lastimável,
a ponto de não poder sequer buscar alimento.
Avistou então um cordeiro, e lhe implorou que lhe desse de beber
da água do rio que era próximo:
‘pois se tu me deres de beber, encontrarei por mim mesmo o que comer’.
E o cordeiro respondeu: ‘mas se eu te der de beber,
eu ainda serei teu alimento’”.
(ESOPO, 2008, p. 120)
Seguindo Hobbes, a igualdade, no estado de natureza, leva, na sequência, à igualdade de
cada um a desejar tudo que contribua para sua preservação ou deleite. Essa é a raiz da
competição e luta de todos contra todos. Segundo Hobbes (Leviathan, cap.VI), se um objeto é
desejado por mais de uma pessoa, instala-se a rivalidade e briga acirrada por este objeto,
sendo a natureza do desejo o poder acumulativo, cada um vai tentar dominar e subjugar o
outro e conseguir obter o objeto de desejo sobre sua posse e conquista. Zarka (2001, p. 255309) divide as paixões, segundo Hobbes, em individuais e relacionais. Das individuais, que
podemos chamar de inatas, são as duplas, desejo/aversão; amor/ódio; prazer/dor, e partem do
espaço sensorial interno para o mundo externo, porém essa relação com o objeto de desejo já
introduz uma relação, já que existe a mediação da linguagem. Podemos, seguindo Zarka
(2001), conjecturar convergências entre Hobbes e Rousseau, já que, neste ponto, o desejo,
com o advento da complexidade das relações humanas, propiciadas pela linguagem,
introduzirá o elemento de discórdia e de disputa. Seguindo Zarka (2001, p. 255-309), dentro
das paixões complexas, podemos citar concupiscência, luxúria, ciúme, curiosidade,
admiração, glória e vanglória, entre outras.
Podemos pontuar a importância da linguagem neste ponto. Se o homem não tivesse
“inventado a linguagem”, ficaria em uma dimensão bem próxima à dos primatas não
humanos. Mas esse é o ponto de corte. Zarka (2001, p. 301) coloca que a curiosidade, como
paixão complexa, relacional, é quem dá o movimento dessa passagem. Como Hobbes
(Leviathan, 2000, p. 47) coloca, a curiosidade é especificamente humana, e é esta paixão que
impulsiona o homem para desenvolver a linguagem, complexificar as relações, e
principalmente, instaurar a vontade de poder. Nesse aspecto, Zarka (2001, p. 256) observa
outro ponto que pode ser comparado com o conceito de perfectibilidade humana de Rousseau,
sendo que Hobbes parte da autopreservação, que não é devir. A curiosidade, em Hobbes,
39
instaura uma dimensão temporal que parte do aqui e agora, para sobrevivência e projeta o
futuro. Nessa sequência, o desejo de poder busca meios, para se autopreservar e garantir o que
foi adquirido, ampliando o campo de ação. Mais adiante, voltaremos ao conceito de
perfectibilidade em Rousseau e faremos novos paralelos.
No momento, o fundamental é fixar, utilizando o próprio Hobbes, que, sendo o homem,
por natureza, associal e, como diz na obra Do Cidadão (HOBBES 2004b, p. 23): “Assim, não
buscamos a sociedade naturalmente e por si própria, mas que, para que possamos dela receber
alguma honra ou lucro. Desejamos estes em primeiro lugar e, aquela secundariamente”.
Curiosidade e vontade de poder, para Zarka (2001, p. 256), são paixões intersubjetivas,
decorrentes da socialização humana. Delas decorrem as demais e, inclusive, a transformação
das paixões individuais para um espaço inter-individual. Existe uma tendência de cada um
querer atribuir o valor que dá a si mesmo como valor maior, sendo a vanglória uma das
paixões que mais proporciona a disputa. Vemos, assim, aparecer o espaço relacional. Os
conceitos de valor e de preço, em Hobbes, podem remeter, segundo Bobbio (1991, p. 34), ao
início da construção de um ethos da classe, já que a burguesia passa a ocupar uma posição
que, aos poucos, torna-se hegemônica em relação à aristocracia.
Para Hobbes, as causas principais da discórdia são a competição, a desconfiança e a
glória. A competição leva ao uso da violência com o outro; a desconfiança, a criar fortalezas e
outros artifícios, para defender a conquista; e o terceiro, a glória ou vanglória, para ressaltar a
tendência da natureza humana, a disputar por ninharias e outras migalhas. Nesse estado de
guerra perpétua, as noções de justiça, injustiça, bem e mal não existem: “a justiça e a injustiça
não fazem parte das faculdades do corpo ou do espírito” (HOBBES, 2000, p. 110). Em
relação ao estado de guerra, não é necessário, para Hobbes, a guerra de fato, mas, tal como o
clima prediz chuvas e tempestades, o lapso de tempo, em que exista a intenção de lutar e de
subjugar, é considerado guerra mesmo não havendo. A pré-condição existe e pode precipitarse a qualquer momento. Nessa condição natural de guerra de todos contra todos, também não
existe a distinção entre o que é meu e seu, sendo a propriedade algo que se conquista e
preserva através da força e da subjugação. Escreve Hobbes, em uma passagem famosa: “Desta
guerra de todos os homens contra todos os homens também isto é consequência que nada
pode ser injusto. As noções de bem e de mal, de justiça e de injustiça não podem aí ter lugar.
Onde não há poder comum não há Lei e onde não há lei não há injustiça. Na guerra a fraude e
a justiça são as duas virtudes cardiais” (HOBBES, 2000, p. 110).
40
A partir deste movimento de luta, no estado de natureza, são criadas as condições de
possibilidade para sair dele, que parte também do movimento das paixões. De acordo com
Hobbes: “As paixões que fazem os homens pender para a paz são o medo da morte, o desejo
daquelas coisas que são necessárias para uma vida confortável, e a esperança de consegui-las
através do trabalho” (HOBBES, 2000, p. 111).
O medo da morte é o movimento passional inicial que tenta afastar-nos do estado de
natureza. O mesmo instinto de autoconservação que nos faz lutar e subjugar, agora, sob os
auspícios do medo da morte, faz-nos desejar sair da guerra para o estado de paz, pois é a partir
do desejo que tentamos sair do estado de natureza. A razão, então, cria leis, chamadas leis da
natureza, que possibilitam a convivência pacífica entre os homens e favorecem a saída deles
do estado de natureza. Para Hobbes, “a razão sugere adequadas normas de paz, em torno das
quais os homens podem chegar a acordo. Essas normas são aquelas a que por outro lado se
chama lei da natureza” (HOBBES, 2000, p. 111).
O direito de natureza é a liberdade que cada um tem de usar o poder da maneira como
quiser, com a finalidade de preservar a sua vida. Para Hobbes, utilizando um conceito da
física, a liberdade é a ausência de impedimentos externos, cujo movimento de um corpo só
pode ser parado por outro. No caso do homem, o limite refere-se ao impedimento de utilizar o
poder da forma como melhor aprouver.
Através dessas definições, segundo Hobbes, pode-se deduzir que, no estado de natureza,
o homem usa seu poder da maneira como melhor lhe convier, cuja utilidade é a conservação
da própria vida. O que impede esse movimento é o outro, que também pode usar esse poder.
Quando duas ou mais pessoas desejam o mesmo objeto, inicia-se uma disputa, em que alguém
deve subjugar outrem, ou limitar e cercear o uso do poder como bem entender. Como a
natureza do poder é cumulativa, existe uma tendência a obter sempre mais em relação àquilo
de que se necessita. Como vimos anteriormente, isso leva à vanglória, que retroalimenta o
círculo de poder e mais poder. A este direito de natureza, jus naturae ou jus naturalis, Hobbes
contrapõe as leges naturalis ou leis da natureza:
Um preceito ou regra geral, estabelecido pela razão, mediante o qual se proíbe a um
homem fazer tudo o que possa destruir sua vida ou privá-la dos meios necessários
para preservá-la, ou omitir aquilo que pense poder contribuir melhor para preservála (HOBBES, 2000, p. 113).
O direito é a liberdade de fazer, ou de omitir, enquanto a lei determina, ou obriga a
fazer, ou a omitir. A lei delimita o movimento ininterrupto instaurado pelo direito. No estado
41
de direito ou de natureza, existe a guerra de todos contra todos, porém cada um usa sua
passionalidade e razão, para alcançar os objetos que deseja.
No estado de natureza, a guerra de todos contra todos pode levar à morte ou à constante
ameaça de aniquilação, que, por sua vez, vai de encontro à busca da autopreservação. Nesse
momento, intervém a razão, criando leis que buscam a paz e o direcionar do movimento para
a limitação da liberdade natural. Esta busca pela paz, na medida em que se tenha esperança de
conseguir, e caso não a consiga procurar, a ajuda e vantagem da guerra é a primeira lei da
razão. Na segunda lei, Hobbes (2000, p. 114-115) avança e fala sobre renúncia ao direito e à
liberdade naturais, desde que o outro renuncie também. Essa reciprocidade é fundamental,
pois o cerceamento da liberdade deve ser para todas as partes envolvidas. Na transferência,
deve existir a bidirecionalidade, já que, na medida em que eu transfiro o direito, o outro
também transfere. A essa transferência mútua de direitos damos o nome de contrato. Quando,
no contrato, alguém transfere seu direito a outro, esperando que este cumpra seu
compromisso, em um tempo futuro, referimo-nos a pactos.
Os únicos direitos que não podem ser transferidos, para Hobbes, são o de resistir ao
ataque de alguém que quer tirar nossa vida, ou ainda, o de resistir à cadeia, ao ferimento e ao
cárcere, pois vão de encontro à autopreservação da vida.
Os contratos e pactos são atos voluntários que visam a um bem para si, o qual é a
autopreservação que o estado de natureza não garante. Para Hobbes, a realização do contrato
tenta colocar limite no estado de natureza. Os contratos se referem ao futuro. Segundo essa
delimitação, pelo contrato, Hobbes remete à possibilidade do não cumprimento do pacto, no
que se refere às coisas futuras. Nesse caso, para Hobbes:
Quando se faz um pacto em que ninguém cumpre imediatamente sua parte e uns
confiam nos outros, na condição de simples natureza que é uma consideração de
guerra de todos os homens contra todos os homens, a menor suspeita razoável torna
nulo este pacto. Mas se houver um poder comum situado acima dos contratantes
com direito e força suficientes para impor seu cumprimento, ele não é nulo
(HOBBES, 2000, p. 117).
Nesse trecho, Hobbes faz uma distinção crucial entre o homem no estado de natureza e
o homem em sociedade civil e, na sequência, faz referência ao modo, para obrigar e
normalizar o cumprimento dos pactos, já que o homem em estado de natureza está à mercê de
paixões diversas e desejos contínuos, não estando propenso a cumprir os pactos.
42
Todo pacto é um ato da vontade, que, como vimos anteriormente, é o último ato na
deliberação, portanto, só se deve prometer o que for possível cumprir, sendo o impossível um
não pacto.
Dando continuidade às leis da natureza, a terceira e importante lei diz respeito ao
cumprimento dos pactos celebrados. Essa definição da terceira lei como obrigação do
cumprimento do pacto é fundamental para nortear o conceito de justiça em Hobbes, para
quem a injustiça é o não cumprimento dos pactos, e a justiça é o seu cumprimento. Para
existir justiça, é necessário o Estado social que, pela força, obriga ao cumprimento dos pactos.
Hobbes afirma que:
Portanto, para que as palavras “justas” e “injustas” possam ter lugar, é necessária
alguma espécie de poder coercitivos, capaz de obrigar igualmente os homens ao
cumprimento dos seus pactos, mediante o terror de algum castigo que seja superior
ao benefício que esperam tirar do rompimento do pacto, e capaz de fortalecer aquela
propriedade que os homens adquirem por contrato mútuo como recompensa do
direito universal a que denunciaram (HOBBES, 2000, p. 123).
Em seguida, Hobbes completa: “não pode haver tal poder antes de erigir-se um Estado”
(HOBBES, 2000, p. 123). Esta passagem é importante, no que tange à dificuldade que os
homens possuem de, por si próprios, conseguir a paz. Mesmo a razão não consegue alçar um
nível de consciência em que se possa confiar no outro, sendo necessário um poder externo
forte.
Como vimos, no estado de natureza, não existe justiça e injustiça, nem meu e seu. Esse
limite em que termina um conceito e começa outro, é-nos dado pelo Estado social, não
fazendo parte da natureza humana no estado de natureza. A justiça é, portanto, uma
consequência do Estado social ou artificial.
Na quarta lei da natureza, Hobbes fala sobre a gratidão, que é o reconhecimento do
benefício ou da graça dada por uma pessoa a outra. A ingratidão mantém, assim, o estado de
guerra e perpetua querelas e desavenças.
A quinta lei refere-se à complacência, que é a capacidade de acomodação de uns em
relação aos outros. A complacência leva à sociabilidade e busca, portanto, o estado de paz; o
oposto nos faz insociáveis, contribuindo para o estado de guerra.
A sexta lei busca o perdão às ofensas passadas, para garantir a paz no futuro. A sétima
nos fala da vingança, em que devemos reparar apenas o bem futuro, nunca o mal passado. A
crueldade é o vangloriar-se na vingança relacionada a um ato passado, o que contribui para o
estado de guerra.
43
A oitava lei é sobre evitar ódio, desprezo e ira pelo outro, em gestos ou palavras. Dessas
leis, Hobbes deduz outras, que, cada vez mais, vão perfilando a possibilidade da convivência
em sociedade. Rompe-se, assim, com o estado de natureza.
Todas as leis da natureza remetem sempre à primeira, que diz respeito ao esforço de
buscar a paz por todos os meios. As leis da natureza falam sobre reciprocidade entre os
homens. Em muitas passagens do Leviathan, Hobbes repete a máxima: “fazes aos outros o
que gostarias que fizessem a ti”. Sendo assim, essas leis instauram a “filosofia moral” de
Hobbes, que define o que é justo, injusto, bom, mau. Sendo assim, Hobbes expõe que
Todas as leis da natureza são imutáveis e eternas, pois a injustiça, a ingratidão, a
arrogância, o orgulho, a iniqüidade, a acepção de pessoas e os restantes jamais
podem ser tornados legítimos, pois jamais poderá ocorrer que a guerra preserve a
vida, e a paz a destrua (HOBBES, 2000, p. 132).
As leis da natureza obrigam in foro interno impondo o desejo de que sejam cumpridas,
in foro externo ocorre a imposição do desejo de praticá-las.
Hobbes faz uma diferenciação entre os ditames da razão, que são apenas teoremas e
conclusões sobre o que se deve fazer para a autopreservação, sendo inapropriadamente
chamadas leis, e a lei verdadeira que é:
A palavra daquilo que tem direito de mando sobre outros. No entanto, se
considerarmos os mesmos teoremas como transmitidos pela palavra de Deus, que
tem o direito de mando sobre todas as coisas nesse caso serão propriamente
chamados Leis (HOBBES, 2000, p. 135).
Apesar de as leis da natureza serem feitas para preservar a paz, ainda assim não existe a
garantia de que serão cumpridas, devido à turbulência das paixões humanas. Nesse ponto,
Hobbes parte para a solução final que é a de erigir um Estado absoluto forte, para controlar
nossas paixões e atuar em favor do instinto de preservação ainda não garantido pelas leis da
natureza. Segundo Hobbes:
As leis da natureza por si mesmas na ausência do temor de algum poder capaz de
levá-las a ser respeitadas, são contrárias as nossas paixões naturais, as quais nos
fazem tender para parcialidade, o orgulho, a vingança e coisas semelhantes e os
pactos sem a espada não passam de palavras, sem força para dar a menor segurança
a ninguém (HOBBES, 2000, p. 141).
Nessa sequência, Hobbes acaba duvidando da capacidade do homem para se autogerir e,
consequentemente, duvida da própria razão para controlar nossas paixões. Vimos que o
contrato e o pacto são atos da vontade humana. Assim como estes, a entrega da autonomia a
44
um poder soberano também é obra da vontade, agindo em favor da autopreservação. As leis
de natureza são tentativas de nos tirar do estado de guerra.
A razão falha, em parte, nesse propósito e, incapaz de alcançar a paz, o homem delibera
para entregar sua autonomia ao soberano. Só o poder externo coercitivo pode garantir-nos a
paz. Cria-se, assim, o Leviatã ou Estado social artificial.
45
1.4 A NATUREZA HUMANA EM HOBBES: Pequeno Interlúdio.
Um lobo perseguia um cordeirinho,
e este procurou abrigo em um templo.
Como o lobo o chamasse,
argumentando que se ele ficasse ali,
o sacerdote iria sacrificá-lo ao Deus,
ele respondeu:
“mas, para mim, é preferível ser sacrificado a um deus
a perecer nas tuas garras”
(ESOPO, 2008, p. 116)
Antes de prosseguir a nossa análise, é oportuno pontuar alguns aspectos importantes da
antropologia hobbesiana:
1.
O homem comunga, com outras espécies, faculdades semelhantes: sensação,
imaginação, recordação, experiência, prudência, paixão e desejos são comuns ao homem e a
outras espécies animais. A matéria, o movimento, o bios perpassa, no início, tanto o homem
quanto outros animais, significando a imersão inicial do homem na natureza. Hobbes não fala
de alma, cogito, transcendência. Existe uma imanência original, que se encontra no corpo. O
movimento, como lei física, é o que tudo inicia, e, nesse ponto, temos um Hobbes materialista
e mecanicista. O homem tem uma natureza passional, comum a outras espécies, a qual retira
de nós a autonomia de nos guiarmos pela razão; esta não nasce com o homem, mas se faz no
homem;
2.
A linguagem é o marco decisivo que nos torna singulares, a qual aparece na nossa
espécie, e, através dela, ascendemos à razão; ela é pragmática, calculativa. Linguagem e razão
estão sob o comando do instinto de autopreservação, que é um componente fundamental de
nossa natureza passional. Só podemos falar do homem como dado antropológico, a partir da
linguagem, portanto, a linguagem é a ponte entre a natureza e o relacional, ou ainda entre o
bios e o anthropos;
3.
A linguagem, por si só, não é suficiente para nos manter no status antropológico; é
necessária a razão, e, mais ainda, a razão como método. A verdade nunca é absoluta quando
humana, mas suficientemente consistente e delimitada, para nos fazer conhecer as causas e as
consequências dos fenômenos. Nesse ponto, o homem é antropossocial, tentando distanciar-se
da natureza;
46
4.
A autopreservação é o que, em estado de natureza, faz-nos buscar poder e mais poder
para se expandir. A autopreservação, no estado de natureza, tende à expansão e ao acúmulo de
poder7;
5.
Para assegurar a possibilidade de paz, Hobbes deduz, então, as leis da natureza. Se,
sob a base do direito natural, o homem pode, hipoteticamente, mover-se e se expandir a
expensas dos outros homens, já que todos nascem livres para buscar poder e mais poder, sob o
limite das leis da natureza, que são regras da razão, em favor da busca da paz, o movimento
encontra oposição, e somos obrigados a levar em consideração o outro. As leis da natureza
criam a condição de possibilidade para convivermos em sociedade sem nos autoagredirmos.
Elas dependem da linguagem e da razão para existirem, tentando retirar o homem do estado
de natureza para o Estado social, criando, assim, o homem artificial. Para Hobbes, só no
Estado social, ou seja, no antropossocial, é que o homem pode domesticar sua natureza sem
limites, para buscar, nos atos morais, um convívio pacífico em sociedade.
6.
Ao mesmo tempo em que nos fala sobre leis da razão e dos pactos, Hobbes começa a
desconfiar desses artifícios, para garantir a paz. Ele nos remete ao poder da espada ou a um
poder forte e soberano que pode dobrar nossa vontade, fazendo-nos cumprir contratos e
pactos. A não confiança no homem e na sua razão leva, aos poucos, à solução radical, que é a
entrega da autonomia e da capacidade de tentar sair do estado de natureza a um soberano com
poderes absolutos.
7.
Ígneos e temperados são duas biotipologias esboçadas, em De Cive, por Hobbes.
Nessa divisão, podemos começar a conjecturar que existem naturezas humanas diferentes,
com traços inatos, que predispõem uma maior ou menor agressividade. Consequentemente, a
violência, de ordem social, tem relação com os temperamentos ígneos. Essa divisão não
significa que estejamos trabalhando com dualismos, valoração tipo bons e maus, mas tentando
compreender a complexidade da natureza humana, que não pode ser tomada como
homogênea.
7
Segundo a lei da inércia, se um corpo não for parado por outro corpo, este tende a continuar em
movimento contínuo. Assim, caso nada pare ou limite o movimento por busca de poder no estado de natureza,
este continua até a destruição e subjugação de mais e mais corpos. É hipoteticamente, o estado de liberdade, que
é a capacidade que um corpo tem de se mover ao infinito se não for parado por outro corpo. A isto Hobbes
denomina estado de natureza onde o homem encontra-se sob o domínio de Bios. Neste estado existe a guerra de
todos contra todos. Não existe bem ou mal, justiça e injustiça – só força, poder, paixão e expansão. A linguagem
emerge das camadas do Bios, junto com a razão, mas esta não é suficiente para deter este movimento de
destruição de uns por outros.
47
Hobbes nos conduz, então, ao monstro Leviatã, que tem, no arcabouço, o homem, com
seus pactos e suas leis da razão, os quais vão se complexificando na sua incapacidade de
conseguir a paz, até restar a cabeça e o cérebro do Leviatã, último esforço do homem para
tentar conseguir a tão difícil paz. Está criado o ser artificial perfeito para Hobbes. Por vontade
e deliberação humana, faça-se o Leviatã, nascendo, assim, o Estado que, em Hobbes, é a
solução mais viável para alcançar a tão almejada paz no Estado social.
Passemos agora a descrever o homem natural, em Hobbes, para melhor aprofundar sua
antropologia e a relação desta com a agressividade.
48
1.5 O HOMEM NATURAL
O bom sucesso dos malvados
incentiva a muitos
para a prática do mal
(FEDRO, 2006, p. 58).
Para construir seu projeto, Hobbes inicia por definir o corpo, o homem e o cidadão: “Do
Bios ao Artifício”. Para Hobbes:
A natureza do homem é a soma das suas faculdades e potências naturais, tais como
as faculdades da nutrição, movimento, geração, sensação, razão, etc. Chamamos
estas potências de naturais e elas estão contidas na definição do homem sob estas
palavras: animal e racional (HOBBES, 2000, p. 12).
O homem animal que nos interessa no momento liga-nos à natureza, e esta nos liga a
outras espécies que possuem as mesmas faculdades, tais como: sensação, imaginação, paixão,
experiência, prudência e preservação da vida. Em Hobbes, o homem é um animal como
outros animais, e os animais de outras espécies não chegam a constituir sociedades políticas
complexas, em função de suas paixões serem mais simples e estarem associadas à
autopreservação de necessidades básicas, como excreção, alimentação, reprodução e
sobrevivência8.
Hobbes enumera alguns argumentos que diferenciam o homem de outras espécies:
1) a competição pela honra e pela dignidade não está presente em outras espécies;
2) estas últimas não diferenciam o bem comum do bem individual e, por natureza,
tendem para o bem individual, o que acaba promovendo o bem comum. O homem tende a
comparar e a tirar prazer do que é eminente;
3) em função de não possuir o uso da razão, não existe, em outras espécies, o
julgamento do outro, enquanto o homem sempre se julga mais sábio;
4) os outros animais, que não o homem, não estão sujeitos aos males e aos vícios no uso
da linguagem, os quais são inerentes ao homem;
8
O termo biologia (ao grego-bios e logos) foi introduzido por Lamarck em 1802 para designar,
dentro do campo das ciências naturais, a ciência da vida animal e vegetal. Até então, era conhecido como
“história natural”. Está presente na obra de Aristóteles e no renascimento se desdobrou em ramos distintos:
botânica, morfologia, anatomia e fisiologia. Hobbes, através da real society, entrou em contacto com as mais
recentes descobertas da anatomia e fisiologia, assim como Descartes, Jassenal, Mersenne. Não podemos
delimitar o termo biologia como utilizado na época de Hobbes. Este termo passa a se tornar autônomo e a
designar um ramo da ciência a partir de Spencer e Darwin.
49
5) a não distinção entre a injúria e o dano faz com que não exista o sentimento de ofensa
em outras espécies; enquanto, na nossa, quanto mais satisfeitos, mais ofensivos somos; “por
último, o acordo vigente entre essas criaturas é natural, ao passo que no homem surge apenas
através do pacto, isto é, artificialmente”. (HOBBES, 2000, p. 143).
Nessa passagem, é fundamental situar o que começa a definir aquilo que é propriamente
humano: paixões, como vaidade, orgulho, vanglória, inveja, curiosidade, os quais não servem
para garantir nossa sobrevivência, mas para aumentar nosso poder. Linguagem e razão
possibilitam nomear conceitos, como justo, injusto, meu, seu, bem e mal, a religião, que nasce
da curiosidade e da revelação divina, e, por fim, a necessidade do pacto ou do artifício, para
tentarmos viver em paz, o que, para as outras espécies, é uma consequência de sua pertença à
natureza. O homem rompe com a natureza e cria o Estado artificial. É no espaço das relações
humanas, principalmente com a invenção da linguagem, que o homem definitivamente
distancia-se de outras espécies. Longe de perceber Hobbes como defensor de instintos inatos,
o que pode criar falsas analogias com o determinismo genético, como analisaremos mais
adiante, a agressividade e, principalmente, a violência humana, inscrevem-se em uma ordem
social.
Podemos arriscar afirmar que existe uma biotipologia da agressividade em Hobbes,
entre ígneos e temperados, que pode falar em favor de um componente inato relativo à
agressividade. A criação de hábitos, pela socialização, que, em Hume (2000, p. 23), assume
um significado fundamental dentro do comportamento humano; em Hobbes, já exerce um
papel bastante relevante.
Comparando um pouco com Aristóteles – de quem Hobbes tira “boa parte da teoria das
paixões”9, apesar de tentar contrapor-se à filosofia aristotélica, principalmente, quando passa
da “fisiologia para a ética e política” (MACPHERSON, 1970, p. 89) -, Hobbes não situa na
razão, mas nos movimentos passionais do corpo, a causa das ações10. O homem é força
corporal, passionalidade e experiência. A autoconservação ou preservação da vida é o
fundamento desse corpo, e sua preservação é obtida através do poder natural e instrumental,
que aumenta a potência do corpo, para obter possíveis bens futuros; no homem, associa-se às
paixões que são complexificadas pela linguagem. Esse poder é o movimento ou a liberdade de
mover-se no espaço, até outro corpo impedi-lo (lei da inércia). Glória, reputação, riqueza,
9
A retórica das paixões é uma das principais influências de Aristóteles na teoria das paixões de Hobbes
(STRAUSS, 1963, p. 34).
10
Nesta diferença encontramos o determinismo hobbesiano que percebe o homem como um ser da
natureza controlado por paixões e necessidades.
50
vanglória, vingança, competição, inveja, todas essas paixões levam ao movimento de poder
invadir e, cada vez mais, ocupar o espaço do outro.
Essa equação do poder assume uma dimensão geométrica, pois não são apenas a
qualidade e a diversidade dos desejos que movem a busca por poder, mas a incerteza quanto a
garantir os meios necessários para a sobrevivência que impele o homem a adquirir mais
poder. Esse movimento ocorre até o limite em que a causa inicial encontra-se ameaçada pela
morte.
A preservação da vida e o acúmulo de poder criam, para Hobbes, algumas dificuldades,
quais sejam: 1) a vida e sua manutenção são o princípio e a finalidade aos quais todo corpo ou
ser vivo almeja; 2) o poder ou a expansão do movimento para a garantia dos meios de
sobrevivência do corpo nos faz ameaçar, ou tirar o direito à vida de outros corpos; 3) no
estado de natureza, todos são iguais e têm direito a garantir os meios para a manutenção da
vida, da maneira como melhor aprouver; 4) o conflito, a guerra, a ameaça à vida do outro são
as consequências lógicas desse movimento, inclusive, de quem acumula mais e mais, já que
existem outros que serão lesados e tentam, por todos os meios, defenderem-se e
reconquistarem o que foi usurpado; 5) nesse exato momento, sentindo a ameaça de morte, ou
a iminência da privação do maior bem, a vida, a paixão do medo faz cessar esse movimento.
Nesta passagem, o homem começa a deixar o estado passional de natureza e tenta entrar no
Estado artificial dos pactos e das leis jurídicas11.
Para Renato Janine Ribeiro, é a contradição das paixões que move o homem, que o faz
viver. Podem-se reduzir os pares a multiplicidade das paixões: medo e esperança, aversão e
desejo ou, em termos físicos, repulsa e atração. “Mas não é possível escutar a filosofia
Hobbesiana pela nota só do medo, que não existe sem o contraponto da esperança”
(RIBEIRO, 2004a, p. 23). Esperança de conseguir uma vida melhor, com os meios para
usufruir um certo conforto e uma possibilidade de trabalho, porém, se seguirmos Strauss
(2006, p. 89), o medo vence a esperança, sendo esta apenas um dever. O medo é real, é o hoje
se projetando no amanhã. No teatro do estado de natureza, o medo é a grande sombra, sem o
qual o lobo não teria freios; a razão é só um adorno para o medo. Para Strauss (2006, p. 98),
11
Para Thamy Pogrebinschi, esta é uma visão secularista. A leitura secularista de Hobbes centra-se no
autointeresse, no medo e no direito. As referências bíblicas, abundantes no Leviathan, são descartadas por esta
visão. Segundo a autora “o que é preponderante, portanto, nestas interpretações, é a imagem de um soberano
absoluto e um conceito de obrigação que nascem do contrato social, ou melhor, do consenso dos homens que
participam deste contrato” (POGREBINSCHI, 2003, p. 36). Neste aspecto esvazia-se o conteúdo religioso da
obra de Hobbes e não se considera o papel da fé, além do medo, esperança, autopreservacão e razão como
movimento que possibilitam a saída do estado de natureza.
51
Hobbes entende que o medo possibilita uma moralidade no homem. Ao ter medo do outro, da
morte violenta, ele passa a tentar criar uma moral que preserve sua vida e a do outro. Uma
convivência viável, mas, antes, o medo do outro, da agressividade e da violência faz com que
o homem use a razão calculativa, pragmática, para tentar um acordo com outros homens.
Paradoxalmente, a moral precisa do medo para frear a agressividade e a violência. Temos que
sentir, na pele, a iminência da morte, para tentar fazer um acordo. A moral, em Hobbes, não
se dá pela empatia, pela piedade, como em Rousseau, mas pelo medo, sendo heterônoma.
Em relação a esse aspecto, Macpherson (1970) faz uma leitura equivocada de Hobbes,
considerando que ele descreve a “Economia do individualismo possessivo”, quando fala do
estado de natureza. Recorta apenas o aspecto do conflito, considerando-o uma característica
competitiva da nascente burguesia, sob o aspecto econômico. Não considera o medo e a
esperança, muito menos o movimento para sair desse estado, que tenta impor limites à
acumulação desmedida de bens. Percebe, então, divisões na teoria Hobbesiana, com
incompatibilidade entre o antropológico e o político.
Macpherson (1970, p. 57-59) coloca que a psicofisiologia de Hobbes é diferente da
ética e política. O homem e sua psicofisiologia são o homem da sociedade “do individualismo
possessivo”, da classe burguesa, com sua avidez e competição econômica. Insere Hobbes e
seus constructos em uma sociedade e época específicas, criando uma visão retrospectiva que é
uma análise arbitrária. Em Strauss (2006, p.78), para Locke, existe uma definição concreta de
um compromisso com a nascente sociedade burguesa; principalmente no que se refere à
propriedade e à função do Estado; já em Hobbes, a solução política tenta limitar a acumulação
do poder pela burguesia, através do poder soberano, para quem o Estado moderno nasce com
a fusão de limitar o acúmulo de capital pela burguesia12.
Strauss (2006, p. 98) coloca que o homem hobbesiano é uma mistura do ethos
aristocrático e do burguês. Não enfatiza tanto os aspectos econômicos da burguesia, mas os
morais, que estão longe de formar um “individualismo possessivo”. Vendo a burguesia como
uma classe em ascensão, Strauss (2006, p. 78) diminui os efeitos da apropriação do capital, da
acumulação primitiva, do ethos predador, para falar de uma nascente moralidade burguesa,
que se contrapõe a um ethos aristocrático em decadência, Hobbes teria percebido essas
transformações, e o estado de natureza torna-se o constructo desses movimentos históricos.
Independentemente das interpretações de Macpherson e Strauss, ele permanece como núcleo
12
Pode-se até conjecturar que este aspecto em Hobbes vai de encontro ao liberalismo e fala a favor de
uma maior intervenção do Estado na economia.
52
central do que estamos analisando até o momento em que as relações humanas ou a “criação
do social” é um fato fundamental no processo de humanização, desenvolvimento da violência,
das relações de poder.
Continuando a seguir Hobbes para alicerçar nossos argumentos, o referido autor coloca
que as paixões, no homem, são diversas e dependem da diferença da constituição do corpo e
da educação. Como existem diferentes constituições do corpo e dos costumes, temos diversos
tipos de paixões, e suas gradações vão da debilidade até a loucura, grau mínimo e máximo, a
qual é o excesso que provém da vanglória ou do orgulho. Estes são tipos de combustíveis que
fazem acender a fogueira da vontade de poder. Mais uma vez remetemos, principalmente, ao
De Cive, onde temos a tipologia do homem temperado e ígneo. Podemos tentar construir a
hipótese de que existe um fio que conduz Hobbes às neurociências e à Psiquiatria.
Biotipologia, diferenças constitucionais, loucura e álcool (que Hobbes coloca como
produzindo efeito igual à loucura), estão na raiz da violência? O lobo é um antissocial?
Voltaremos a essas questões, aprofundando-as, mais adiante. Sobre a vanglória, que é
loucura, Ribeiro (2004b, p. 34) indaga:
O que causa a guerra? É a vanglória que nos indispõe a nos admitirmos iguais aos
outros, forçando à defesa aqueles homens que são moderados e reconhecem a
igualdade [...] No Leviatã, finalmente, a glória recua a terceira das causas beligeras,
mas uma glória que é vanglória (RIBEIRO, 2004b, p. 214).
Para Ribeiro (2004b. p. 67), no Leviatã, existe a contraposição entre o homem sensual e
o generoso, e aqueles que estão dispostos a não cumprir normas e são guiados pelas paixões,
principalmente a vanglória e o orgulho. Dentre as causas principais da discórdia, que são a
competição, a desconfiança e a glória ou vanglória, os sensuais ou sem limites seriam os
arautos da guerra. Mais uma vez reforçando que, apesar de, no Leviatã, Hobbes ter
generalizado a guerra de todos contra todos como uma “tendência geral da humanidade”
(HOBBES, 2000, p. 156), em outras obras (Elementos e, principalmente, De Cive), Hobbes
complexifica o homem, e explora algumas possibilidades para a violência que não seja uma
hiperbólica generalização de uma tendência da natureza humana.
Retornando a análise do passional, uma visão detalhada das paixões, em Hobbes,
revela-nos um movimento que nos arrasta para a guerra, e outro que nos leva a tentar a paz.
A vida e sua autopreservação é o elemento que nos impulsiona para a guerra e a busca
da paz. O estado de natureza, em que o homem pode usar seu próprio poder, da maneira como
quiser, para sua própria preservação, utilizando julgamento e razão individuais, é o espaço de
exercício deste poder. No estado de natureza, a liberdade é caracterizada pela ausência de
53
impedimentos externos: liberdade significa, em sentido próprio, a ausência de oposição
(entendemos, por oposição, os impedimentos externos ao movimento, a qual não se aplica
menos às criaturas irracionais e inanimadas que às racionais).
O livre arbítrio é, portanto, a ausência de impedimentos de fazer o que o homem tem
vontade, desejo ou inclinação. Assim como a liberdade e a necessidade são compatíveis, não
podemos inferir que existe uma liberdade absoluta no homem. O medo e a necessidade nos
obrigam a praticar, ou não, determinado ato, e, mesmo em estado de natureza, essa liberdade
não é total.
A liberdade e a necessidade são compatíveis: tal como as águas não tinham apenas a
liberdade, mas também a necessidade de descer pelo canal, assim também as ações
que os homens voluntariamente praticam, dado que derivam de sua vontade,
derivam da liberdade; ao mesmo tempo em que, dado que os atos da vontade de todo
homem, assim como todo desejo e inclinação, derivam de alguma causa, e essa de
uma outra causa, numa cadeia contínua (cujo primeiro ela está na mão de Deus, a
primeira de todas as causas) elas derivam também da necessidade (HOBBES, 2000,
p. 172).
Como já foi relatado, no estado de natureza, existe uma guerra generalizada, o que faz
com que o uso dessa liberdade, em estado natural, provoque o medo da morte, que vai de
encontro à preservação da vida. No Estado social, com a criação do Leviatã, não podemos
mais falar da liberdade do homem, mas do súdito. Podemos extrair, então, que o uso
inadequado da liberdade leva o homem à guerra, ao medo da morte e à destruição.
Hobbes distancia-se da eudemonia aristotélica, cuja razão nos guia para um bom uso da
liberdade. O homem, animal político, em Aristóteles, ao fazer uso da razão, atinge o estado de
autarquia, tornando-se, assim, um cidadão livre e responsável. O modelo Hobbesiano é
totalmente diferente do aristotélico, que parte da família como sociedade natural até chegar ao
Estado, como meio de realização maior do homem, sendo uma evolução natural, e não um
pacto por medo, a criação do Estado. Para Matos (2007, p. 87), Hobbes procede considerando
o homem um artista, capaz de criar o homem artificial como solução para a passionalidade e a
agressividade sem limites em estado de natureza, o que o diferencia totalmente da tradição
aristotélica. O artifício, em Hobbes, introduz, no homem, uma dimensão de corte e
transformação de sua pertença à natureza. O homem refaz a natureza, criação imperfeita, e a
si próprio, como natureza imperfeita.
No capítulo XVI do Leviatã, Hobbes fala sobre pessoa natural, quando discorre através
de suas próprias palavras, e pessoa artificial, quando cita através da palavra de outros. Ator e
autor, o homem recria a si e a natureza, para viver em sociedade. Nesse aspecto, a sociedade
54
civil é obra do homem, um artifício para melhorar a natureza, que é imperfeita e faz do
homem um ser querelante e movido pela disputa e glória. Existe, assim, um corte entre o
homem natural e o artificial. O artificial utiliza o texto criado por ele mesmo (autor) e o
executa como súdito.
Podemos até conjecturar, se o “processo civilizatório” de Elias não se encontra na
formação do homem natural em homem artificial. O Estado Hobbesiano cria um outro
homem, artificial. Vamos analisar, seguindo Hobbes, mais um pouco, esse estado de natureza,
para pontuar a passagem do homem natural para o artificial.
No capítulo XIII do Leviatã, Hobbes tece os fios que consolidarão sua visão
antropológica do homem passional e belicoso.
Poderá parecer estranho a alguém que não tenha considerado bem estas coisas que a
natureza tenha assim dissociado os homens, tornando-os capazes de atacar-se e
destruírem-se uns aos outros. E poderá, portanto talvez desejar, não confiando nesta
inferência, feita a partir das paixões, que a mesma seja confirmada pela experiência
(HOBBES, 2000, p. 109).
Nesta passagem, Hobbes nos convida a olhar nossa realidade ou parar um pouco para
uma auto-reflexão e diz:
Que seja, portanto ele a considerar-se a si mesmo, que quando empreende uma
viagem se arma e procura ir bem acompanhado, que quando vai dormir fecha suas
portas, que mesmo quando está em casa tranca os seus cofres, isto mesmo sabendo
que existem leis e funcionários públicos armados, prontos a vingar qualquer injúria
que possa ser feita (Hobbes, 2000, p. 109).
Esse homem passional, cujo poder é cumulativo, buscando sempre mais poder, é o
homem em estado de natureza. O estado de natureza é povoado por lobos, homens ígneos e
temperados, uns desejando somente o necessário, outros, tudo, criando excedentes e gerando a
“parte maldita” (BATAILLE, 2005, p. 26). Hobbes busca, no mar, seu monstro: abre a Bíblia,
a mitologia caldeia e outras mais antigas e acha o Leviatã. Falta agora o principal passo:
transformá-lo em máquina e introduzi-lo no século XVII, mas antes tentaremos ir mais fundo
neste estado de natureza.
Precisamos fazer uma consideração importante, para não ficar ambígua nossa linha de
raciocínio. Ao seguirmos comentadores, principalmente Zarka, percebemos que existe uma
tendência em colocar a violência como relacional. O homem entra na ordem da linguagem, da
razão calculativa, produz conhecimento, cultura, complexifica suas relações. Existem paixões
relacionais, como vimos: a vaidade, a inveja, o orgulho, a crueldade, que é inerente ao homem
55
e ao acúmulo de poder. Concomitantemente, localizamos, em Hobbes, uma formação de
biotipologias, tipos temperados e ígneos, e, no Leviatã, as diferenças de constituição
respondem por desejos e paixões diferentes. Agora podemos fazer um link entre genes e
fenótipo. Vamos aprofundar este tema mais adiante, mas a solução não é tão simples.
Utilizando o próprio Hobbes, temos várias possibilidades interpretativas que levam a perceber
que o autor tenta construir uma interação na natureza humana, entre constituição, paixões e
relações sociais.
Fica complicado conjecturar, porque Hobbes não deu sequência a esta biotipologia em
outros escritos, mas, mesmo assim, ele remete a diferentes constituições e tipos de paixões. Só
a título de hipótese, podemos colocar que, com a divisão em homens ígneos e temperados,
ocorre uma inscrição de temperamentos humanos na genética e na neurobiologia. A
agressividade, que faz parte da herança biológica, encontra nesses tipos uma expressão
diferente. Os ígneos são mais agressivos, os temperados usam a agressividade para fins de
defesa, sobrevivência, reprodução, enquanto os ígneos, junto a paixões, como vanglória,
vontade de poder, inveja, competição, formam a base para uma sociedade violenta. Sendo
assim, a violência é componente de relações sociais instauradas por homens ígneos. São
conjecturas, Hobbes não expressou este pensamento, mas podemos tentar extrair de sua
leitura esta linha de raciocínio.
Entraremos agora no estado de natureza, em que Hobbes tece o teatro de horrores. A
crueldade que leva ao medo da morte violenta. Seguiremos esses passos.
56
1.6 O ESTADO DE NATUREZA
Olá, vovó. Estou trazendo um pão e uma garrafa de leite.
Ponha na despensa, minha filha.
E traga um pouco de carne que há lá com a garrafa de vinho que está na prateleira.
Havia um gatinho na sala que espiou comer e disse:
”Eca! É preciso ser uma porca para comer a carne e beber o sangue da vovó”
“Tire a roupa, minha filha”, disse o lobo, ”e venha para a cama comigo”
(ANÔNIMO, apud TATAR, 2004, Chapeuzinho Vermelho, p. 334).
A ideia do direito natural, iniciada na época clássica, continuou na Idade Média e, a
partir de Hugo Grócio (1588-1625), foi consolidada, principalmente, a partir do livro De Iure
Belli ac pacis, de 1625. Hobbes, assim como Spinoza, Locke, Rousseau e Kant que talvez seja
um dos mais importantes jusnaturalistas, antes do questionamento desta doutrina por Hegel,
fazem parte da escola do direito natural moderno, apesar das concepções filosóficas
diferentes. O direito natural moderno pode ser considerado uma unidade caracterizada por
razão e método sendo não metafísico, ontológico e ideológico.
Para Bobbio (1991, p. 78), historicamente, o direito natural é uma tentativa de dar uma
resposta tranquilizadora às consequências corrosivas que os libertinos tinham retirado da crise
do universalismo religioso, sendo assim uma reação ao pirronismo moral e ao relativismo
ético.
Hobbes utilizou o novo direito natural que remonta a Grócio, para deduzir sua teoria do
homem no estado de natureza e Estado social, criando um modelo dicotômico: ou o homem
vive no estado de natureza, ou vive no Estado civil. Bobbio diz:
A contraposição entre os dois estados consistente no fato de serem os elementos
constitutivos do primeiro indivíduo singulares, isolados, não associados, embora
associáveis, que atuam de fato seguindo não a razão (que permanece oculta ou
impotente), mas as paixões, os instintos ou os interesses […] (BOBBIO, 1991, p.
39).
Para Bobbio (1991), o Leviatã (1651), descreve o estado de natureza em três
circunstâncias: 1) nas sociedades ditas primitivas, incluindo os povos bárbaros da Antiguidade
e os indígenas da contemporaneidade, cuja existência Hobbes conheceu através dos relatos
dos grandes navegadores; 2) na guerra civil, quando impera, dentro de um Estado constituído,
a anarquia; 3) nas guerras e nos conflitos entre Estados. Essas três situações Bobbio denomina
de sociedade pré-estatal, antiestatal e inter-estatal, respectivamente. No Leviatã (1651),
Hobbes refere-se a essas três situações, tendo, inclusive, vivenciado a segunda antiestatal na
Inglaterra.
57
Poderá porventura pensar-se que nunca existiu um tal tempo, nem uma condição de
guerra como esta, e acredito que jamais tenha sido geralmente assim. Porque os
povos selvagens de muitos lugares da América, com exceção do governo de
pequenas famílias, cuja concórdia depende da concupiscência natural, não possuem
nenhuma espécie de governo, e vivem em nossos dias daquela maneira embrutecida
que acima referi. Seja como for, é fácil conceber qual seria o gênero de vida quando
não havia poder comum a recear, através do gênero de vida em que os homens que
anteriormente viveram sob um governo pacífico costumavam deixar-se cair, numa
guerra civil (HOBBES, 2000, p. 110).
Segundo Bobbio (1991, p. 98-99), existem variações sobre os temas fundamentais, no
que se refere ao estado de natureza hobbesiano: na primeira variação, o estado de natureza
seria um fato historicamente determinado ou socialmente imaginado, na segunda, pontua-se a
belicosidade ou harmonia deste estado, e, na terceira variação, refere-se ao indivíduo isolado
ou em sociedade, ainda que seja primitiva.
Na primeira versão, o estado de natureza, em Hobbes, é parcial, não universal e
circunscrito a certas relações entre os homens ou grupos. Nesse aspecto, diferentemente de
Rousseau, para o qual esse estado nunca existiu, para Hobbes, é uma hipótese baseada em
fatos empíricos de certos momentos específicos da História, em que não existe, um Estado
jurídico forte. Em todas as situações descritas, o estado de natureza é caracterizado pelo
egoísmo individualista, acarretando uma agressividade contínua entre os homens.
Bobbio, em relação à belicosidade ou harmonia do estado de natureza, afirma que:
Na figuração Hobbesiana do estado de natureza, confluem três inspirações diversas:
a representação do estado ferino da sociedade humana, segundo a concepção
epicuriana transmitida por Lucrecio no quinto livre do De Rerum Natura; as
descrições dos viajantes ao Novo Mundo, que foram documentadas, de modo amplo
e admirável por Landucci; e as vivas impressões da guerra civil inglesa (BOBBIO,
1991, p. 50).13
Em relação ao fato de o estado de natureza ser individual ou social, as teorias
jusnaturalistas se inspiram em princípios individualistas. A criação da sociedade política seria,
portanto, uma criação dos indivíduos. Ao contrário da teoria aristotélica, em que há uma
continuidade, passando por indivíduo, famílias e grupos (ARISTÓTELES), neste modelo, a
sociedade política é diversa da natural, sendo um corte ou uma criação artificial, advindo,
assim, a dicotomização entre estado de natureza e social.
13
Bobbio se refere aqui ao livro de Sergio LANDUCCI, I filosofi e i Selvaggi, 1580-1780. Torino:
Einaudi, 1970.
58
Para Bobbio (1991, p. 3-8), alguns autores, principalmente depois de Hegel e Marx,
consideram o estado de natureza como um constructo da formação da burguesia,
principalmente sob o aspecto econômico. Já citamos Macpherson (1970), que constrói uma
teoria do individualismo possessivo em cima do estado de natureza. No modelo Hegelianomarxista, citando Bobbio (1991, p. 5), artifícios, como contrato, pactos, dicotomia, estado de
natureza e estado civil não têm significado. Na realidade, o movimento da história, da luta de
classes e da economia é o que deve ser analisado. A relação homem-natureza é de
transformação e criação. Não existe uma dicotomia entre natureza-cultura, mas uma relação
mediada pelo homem, que transforma a natureza e modifica-se. Bobbio (1991, p. 15) pontua
que o homines oeconomici tem relações entre si iguais e independentes. Com a dissolução dos
laços feudais de clientela e do modelo familiar, tanto o greco-romano, quanto o feudal, a
família tende a deixar de ser instituição econômica para tornar-se lugar de “afeto e educação”
(ÁRIES, 1987, p. 98). Bobbio (1991, p. 14) vê, neste movimento histórico, um terreno fértil
para o modelo jusnaturalista, que passa a expressar as relações econômicas e o individualismo
da classe burguesa em ascensão. Mas Hobbes não pode ser reduzido a uma crítica histórica
parcial, que não leva em consideração a complexidade do seu pensamento.
Hobbes, segundo Bobbio, pode ser considerado o pai do jusnaturalismo moderno, já que
Grócio ainda utiliza referências do jusnaturalismo medieval. É fundamental que, para marcar
bem o homem natural de Hobbes, possamos recapitular alguns conceitos básicos no que se
refere às faculdades corporais: passionalidade, liberdade, movimento, poder e guerra de todos
contra todos. A conservação da vida humana é o alicerce deste arcabouço teórico. Pela
conservação, o poder conquista, invade, orgulha-se, vangloria-se e torna o estado de natureza
o espaço de uma luta sem trégua, sendo que, até o tempo em que não existe luta seja um
tempo de preparação para ela. O medo, unido a uma tênue esperança de uma vida mais
confortável, impele o homem natural a pôr fim à guerra, para dar um basta a sua própria
insegurança e destruição. Segundo Ribeiro:
O medo é das principais experiências que temos de nossa condição. Revela ao
homem, no estado natural, que este é insustentável: por natureza cada indivíduo quer
expandir-se; mas fazendo-o, entra em guerra com os outros. A morte violenta,
resultado da própria natureza humana, limita-a brutalmente: vivemos a temê-la; até
novo estado, o medo é a paixão que melhor nos define. “Depois, porém, contêm-se o
temor à morte bruta, ao qual não se compara o novo medo, ao soberano: com ser
discricionário, este é discreto e se levarmos uma vida retirada” estaremos tranquilos
(RIBEIRO, 2004b, p. 295).
Para Bobbio (1991, p. 98), o homem, na antropologia Hobbesiana, não é um valor
absoluto. Não existe propriamente uma moral no estado de natureza, e esta é um produto da
59
invenção da linguagem e da razão e, principalmente, do Estado social. O realismo Hobbesiano
coloca o homem como um ser passional e mesquinho no estado de natureza, não cabendo a
essa antropologia a problemática da maldade, já que bem e mal são nomes ou marcas postas
pela criação da linguagem14. Para Bobbio, no Leviathan:
O homem é um ser da natureza, determinado por leis mecânicas, dominado por
paixões inatas e prepotentes que configuram de modo irrevogável sua posição no
mundo. A paixão mais característica do homem é, talvez, na antropologia de
Hobbes, a vaidade: mais a vaidade do que o interesse, ou seja, mais o prazer de ser
estimados e honrados pelos outros do que de tirar vantagens deles, sendo que a
vaidade é o prazer da alma, enquanto o interesse é o prazer dos sentidos […]
(BOBBIO, 1991, p. 85).
Autores como Bobbio e Skinner consideram que Hobbes absorveu uma antropologia
humanística que deve muito aos autores clássicos. Sendo que aponta não apenas para o
trágico, mas, sobretudo, para o ridículo ou satírico da condição humana.
Nessa passagem sutil entre o estado de natureza para o Estado social, ou do homem
natural para o artificial, encontramos dois aspectos de nossas paixões que podem ser
considerados como propulsores do movimento de passagem da nossa passionalidade para
nossa racionalidade: a busca e a curiosidade.
O que se pode dizer da moralidade no estado de natureza, não podemos falar de moral.
Na luta de todos contra todos, não existem valores morais. Hobbes fala de preço ou valor que
uma atitude tem em relação a outra. Todo homem tem seu preço, dependendo do valor que
outros dão a determinada ação, sendo assim matar, trair, competir, ser generoso ou altruísta só
pode ser valorizado sob o prisma do interesse do outro, que observa e coloca um preço na
ação. Sem leis naturais e jurídicas e uma força maior que as façam cumprir, não se pode falar
de moral, que, no Leviatã, não é apriorística, não nasce com o homem nem muito menos é
corolário dele em estado de natureza, mas depende da sociedade política. O homem passional
é, portanto, um ser amoral. Mesmo utilizando-se do recurso das leis naturais provenientes de
Deus, no estado de natureza, o homem não é capaz de, em foro externo, cumpri-las. Essas
leis, que são preceitos morais, mesmo funcionando em foro interno, não garantem sua
execução, não sendo suficiente para fazer cumprir os pactos.
14
A leitura teológica de Hobbes coloca Deus como criador das leis da natureza, estas leis são morais e
prescrevem in foro interno, normas de conduta para o homem. Como a natureza vem de Deus, assim como as
leis, estas seriam transcendentes. Sobre isso ver o clássico: SCHMITT, C. Teologia Política, Belo Horizonte:
Del Rey, 2006.
60
Para Hobbes, no estado de natureza, “as noções de bem e de mal, de justiça e injustiça,
não podem aí ter lugar. Onde não há poder comum, não há lei, e onde não há lei, não há
injustiça” (HOBBES, 2000, p. 110).
Sendo assim, o homem natural, apesar de leis ou normas, necessita do poder da espada
para cumpri-las, pois sua passionalidade não garante a obediência às leis da natureza. O
homem as vislumbra, mas as paixões as obscurecem.
Nesse ponto, o artífice se faz presente. Para corrigir uma natureza defeituosa e palco das
paixões mais baixas, segundo Bobbio (1991, p. 28), o homem torna-se um relojoeiro e
arquiteto. Como já citamos, cria-se a grande máquina (Schmitt, 2002, p. 98), para corrigir as
imperfeições da natureza. Sua razão calcula, pede ajuda a Deus e treme: de indivíduo para
indivíduo, ocorre um pacto de submissão. O súdito, que está na máquina, transforma-se no
homem, que é um Deus para o homem, citado no início Do Cidadão. Na realidade, o homem
é o autor de um palco, e o Estado Social é um texto a que os atores devem ser obedientes e
submissos. Se não advém a morte e a esperança, perde-se. O lobo torna-se um súdito
obediente. O sarcasmo de Hobbes evita soluções tão óbvias. O lobo é cínico, assim como os
“recursos de eloquência de Hobbes (SKINNER, 1999, p. 34). E a violência e a agressividade?
O monstro marítimo será capaz de acalmá-las? Neste momento da história, o lobo transformase em súdito. O Leviathan surge com todo esplendor. Concentração total do poder. Mas, eis
que surge Beehemoth. Tentaremos agora concluir essa história e tirar um conceito sobre a
agressividade e a violência na obra de Hobbes. Porém, fica a pergunta. Depois do De Cive,
Hobbes supõe que os temperados apenas reagem aos ígneos, e a desconfiança se espalha. A
competição, motor dos ígneos, é o princípio de tudo. Do lado destes, a vanglória e a
competição. Os temperados desconfiam e se defendem. Essa dialética não está explícita em
Hobbes, mas fornece uma pista. O Estado domestica o homem, pelo medo, transformando-o
em cidadão? Esta transformação ocorre de fato? E a agressividade e a violência, presentes no
homem natural, continuam a existir no Estado social?
61
1.7 AGRESSIVIDADE E VIOLÊNCIA EM HOBBES
Podemos extrair conceitos sobre agressividade e violência em Hobbes?
O modelo Hobbesiano gira ao redor do tema agressividade, violência, morte e poder.
Não existe divisão entre agressividade e violência, a qual ocorrerá, principalmente, a partir do
século XIX, com o advento da teoria da evolução. Ao falar sobre Hobbes, utilizaremos
agressão e violência como um conceito único, já que nele não se encontra distinção, mas esse
fato não impede que tentemos criar conjecturas e extrair do referido autor um eixo para a
questão.
Como vimos, Hobbes desde Os Elementos (2002), constrói uma psicofisiologia do
homem, que parte das sensações até chegar a apetites, como desejo e aversão. Uma mistura da
teoria das paixões de Aristóteles e das descobertas da ciência dos séculos XVI e XVII,
principalmente de Harvey, na fisiologia de Vesálio, na anatomia e de Galileu, na física. A
base de sua psicofisiologia é o movimento dos corpos. No De Corpore, faz toda uma análise,
ao estudar o homem a partir de princípios geométricos, e seu constructo, até o De Homine,
segue esta lógica, com poucas variações.
No De Cive, segundo Bobbio (1991, p. 35), uma das obras políticas mais importantes de
Hobbes, ele introduz diretamente o homem no estado de natureza, falando sobre
insociabilidade natural, disputa, desejo mútuo em ferir-se, competição e uma tendência inata
para a agressividade (HOBBES, 1998, p. 109-119). Na mesma obra, Hobbes (1998, p. 114)
fala sobre temperad man e fiery spirit, tentando descrever duas biotipologias para o homem,
sendo a segunda a causa da agressividade e violência, já que o temperad man apenas defendese. No De Cive, Hobbes (1998, p. 113) chega, inclusive, a supor que homens violentos podem
existir em quantidade menor que temperados, mas a competição e a discórdia que eles
provocam acarretam uma guerra generalizada. No Leviathan, capítulo XI, Hobbes assume a
famosa posição “hiperbólica” (MARTINICH, 2005, p. 58), em que “todos os homens no
estado de natureza têm uma tendência geral para a guerra, que é decorrente do desejo de poder
generalizado”. Mas, no próprio Leviathan, (capítulo VIII, p. 74), Hobbes cita homens com
pouco desejo e com muito desejo. Essas inclinações dependem da constituição e da disposição
dos órgãos dos sentidos, que faz os homens desejarem objetos diferentes (Hobbes, 2000, p.
74). No De Corpore, Hobbes chega a esboçar uma localização anatômica para as sensações,
inclusive para a “produção de fantasmas” (Hobbes, 2000, p. 216), que é a impressão causada
pela sensação, quando o objeto encontra-se ausente. Podemos arriscar que Hobbes tenta
62
antecipar as neurociências e as ciências do comportamento, inclusive a Psiquiatria, quando
remete tendências de personalidade à constituição cerebral e à loucura, principalmente a
vanglória - decorrente do excesso de loucura - causas da agressividade e violência? É um
risco, com certeza. Hobbes não tinha esses elementos em mente quando escreveu.
A liberdade natural ou ausência de um Estado forte é um artifício utilizado por Hobbes
para argumentar que a passionalidade do homem é destrutiva, e, por consequência, quando
nada impede o exercício da liberdade, ela tende a tornar o homem violento, competitivo e
querelante. Martinich (2005, p. 98) coloca que o argumento da liberdade e do direito natural é
o ponto de partida para Hobbes tecer os fios de nossa passionalidade violenta e competitiva,
mas podemos tentar imaginar que todos não são iguais, existem diferenças de constituição,
educação, objetos de desejo.
Liberdade e igualdade naturais são responsáveis pela competição, desconfiança e glória.
Em obras, como De Cive, Hobbes enfatiza a vanglória, que é um exagero fantasioso de
avaliação do poder de um individuo por outros, e este indivíduo age como se fosse e tivesse
mais poder que possui na realidade. Nos Elementos, Hobbes cita o exemplo da fábula da
mosca “que se senta sobre um eixo da roda e diz para si mesma: Quanta poeira eu faço
levantar!” (HOBBES, 2002, p. 58).
A glória, nos Elementos, é descrita como glorificação ou triunfo interior da mente. É
aquela paixão que procede da imaginação ou concepção do nosso próprio poder (Power)
sobre o poder daquele que está em disputa conosco (HOBBES, 2002, p. 58). O Orgulho é o
resultado de desagradar às atitudes de glória por parte de um terceiro.
No De Cive, o temperamento ígneo está associado à vanglória, e, no Leviathan, da
vanglória à loucura, cabendo à glória ser uma das três causas da guerra de todos contra todos
no estado de natureza. Voltando a Zarka (1999, p. 294), toda essa dinâmica passional é
relacional. O desejo de poder, que visa ao domínio do outro, é quem opera essa transformação
e dinâmica nas relações, levando ao estado de guerra. O ponto de partida é a liberdade e a
igualdade naturais. Para Zarka (1999, p. 297), “Le désir de puissance se revele donc comme
libido dominandi”. Glória, vanglória, orgulho, inveja, ciúme, crueldade e disputa decorrem do
desejo de poder, que, para Zarka (1999, p. 79), é um dos pilares da metafísica Hobbesiana,
que também será desenvolvida por Espinosa, que parte do mesmo princípio: o conatus. Na
realidade, a autopreservação é a força e o movimento primordial, que leva o homem
hobbesiano ao desejo de poder. Coloque-se a hipótese de uma liberdade e direitos naturais
irrestritos, em uma natureza passional, e teremos, então, conflitos permanentes.
63
Mas, temos a constituição, os temperados e ígneos, que levam a diferentes caminhos
para os desejos. Um temperado se contenta em viver em paz, não deseja uma escalada de
poder e mais poder, tem virtudes, como cooperação e altruísmo, compaixão. Ocorre, na
realidade, uma dinâmica não desenvolvida em Hobbes. Entre grupos, a causa dos ígneos
deterem o poder e partirem para o ataque não se encontra explicada, só sugerida no De Cive.
E esses temperamentos ígneos têm influência genética? Podemos aproximá-los dos atuais
psicopatas? Por que a sociedade reforça esse tipo de comportamento predador?
Independente das respostas, para sair deste estado, só o artifício, o pacto, ou melhor, a
espada ou “a figura de um poder soberano forte e decisionista” (SCHMITT, 1992, p. 26-40).
O Estado-máquina converte lobos em súditos, transformando o homem-lobo-do-homem em
homem-Deus-para-o-homem (HOBBES, 2004, p. 11). Carl Schmitt (1992, p. 88-89) coloca
que o Estado-máquina não transforma os lobos; o Deus-Máquina continua sendo composto
por lobos, medrosos e obedientes diante da ameaça de morte, mas lobos traiçoeiros,
travestidos de súditos. A máquina estatal, com suas leis e espada do rei podem adoecer. O
próprio rei pode corromper-se. Hobbes (2000, p. 271) ironiza o Leviathan, quando coloca que
tem esperança de que a obra venha cair nas mãos de um soberano, e este transforme “esta
verdade especulativa na utilidade da prática” (2000, p. 271). Esse estilo irônico e sarcástico é
uma das marcas de Hobbes, segundo Skinner (1999, p. 145)15.
Podemos, ainda, seguindo Schmitt (1992, p. 51-62), interpretar a política, em Hobbes,
como a formação da polaridade amigo-inimigo, que funda o político, que, para Schmitt (1994,
p. 55), é a essência da luta e das disputas. Nesse aspecto, modificando o individualismo de
Hobbes e substituindo-o pela divisão de grupos dentro da política, a guerra de todos contra
todos se transforma, em Schmitt (1992, p. 56-58), no antagonismo amigo-inimigo. O político
precede o Estado e é responsável pela formação da sociedade. O núcleo da formação política
gira em torno do antagonismo amigo-inimigo. Assim como Hobbes, Schmitt (1992, p. 59) é
um realista. A criação da visão antropológica realista, que coloca o homem como uma espécie
passional, querelante, agressiva e violenta, sem intermediação de uma visão teológica do
pecado original, remonta, para Schmitt (1992, p. 88-89), a Maquiavel, passando por Hobbes,
Bossuet, Fichte, de Maistre, Donoso Cortes, Taine e Hegel, o que Schmitt considera
‘Bifronte’, por utilizar a dialética para mostrar a polaridade negativa e positiva do homem.
15
Para Skinner (1999), no Leviathan, Hobbes retoma elementos da retórica clássica, principalmente de
Cícero e Tertuliano, deixando um pouco de lado a linguagem cientifica presente nos Elementos e no De Cive,
Hobbes retoma no Leviathan argumentos da retórica clássica, como o sarcasmo e a ironia, por exemplo, para
tornar a obra mais acessível ao leitor.
64
Podemos concluir, provisoriamente, que extrair de Hobbes que papel desempenha a
agressividade e a violência na sua obra, não é uma tarefa simples, principalmente se
utilizarmos alguns comentadores.
Primeiro como já vimos, não há distinção entre agressividade e violência em Hobbes.
Apesar de comentadores, como Zarka, colocarem o aspecto relacional, a criação da linguagem
e a intersubjetividade como espaço para o desenvolvimento da agressividade e violência, não
podemos concluir que Hobbes não remeta estas a um fator inato, genético. Existe, em sua
obra, ao menos, um esboço de tipologias de naturezas humanas, como o temperado e o ígneo,
o que parece remeter a um componente inato, ou, para trazer o debate para hoje, genético.
Em Hobbes, apesar de a linguagem nos diferenciar de outras espécies, as paixões,
inclusive a deliberação, une-nos a nossa herança animal. Existe um substrato comum
passional, e vale lembrar que a paixão do medo é a que nos tenta retirar dessa herança animal,
mas podemos concordar com Zarka, em parte, quando ele coloca que a linguagem introduz
um elemento novo, relacional, no homem, e, através da linguagem, as paixões modificam-se.
A invenção da machina machinarum de Schmitt é a grande prova do poder de criação do
homem frente a outras espécies, porém o próprio Schmitt coloca que o lobo continua
existindo dentro da máquina, então, Schmitt transforma a guerra de todos contra todos no
antagonismo amigo-inimigo. A violência é política e entre grupos; este modelo, de outra
maneira, será retomado pela etologia, sociobiologia, psicologia evolutiva, e Clastres (2003, p.
37) o usará para caracterizar a luta da “Sociedade contra o Estado”. O poder do Estado exerce
uma violência que coloca limites e freios á paixão humana. Seja a sociedade contra o Estado,
de Clastres, ou a violência simbólica contra o real do estado de natureza, podemos conjecturar
que a violência, em Hobbes possui uma negatividade e positividade. Encontra-se disseminada
no estado de natureza, precisa do Estado e do poder da espada para ter limites. O medo, em
Hobbes, faz esta ponte entre a violência e guerra de todos contra todos e a violência do
Estado.
Fechando provisoriamente o tema, em Hobbes, podemos colocar que são paixões como
desejo de poder, vanglória, disputa, inveja, ambição, principalmente, que se desenvolvem
através das relações interpessoais e serão responsáveis pela violência, que é um produto do
desejo e da criação da linguagem. E esta diz respeito à socialização do homem. Em relação à
agressividade, podemos arriscar que ele tenta esboçar alguns componentes inatos, quando fala
de constituição do corpo, poder natural, ígneos e temperados. Com um pouco de esforço,
tentamos delimitar, em Hobbes, que ele parte de uma construção da agressividade, como
65
biológica e da violência, como social. O estado de natureza remete a indivíduos, mas estes se
unem por interesse; instala-se a violência nesta passagem.
Que o homem desenhado por Hobbes é violento, disso não temos dúvida, mas os seus
constructos remetem a uma época: ao século XVII. A ciência, como diz Schmitt (2004, p. 37),
começa a substituir a teologia com explicação do mundo. Hobbes “fundou a ciência política”
(BOBBIO, 1991, p. 87). Viu a liberdade como um mal, a necessidade como sombra da
liberdade, direitos como motivações para desejar as mesmas coisas com igualdade. Estamos
no século XVII, Behemoth assombra a Europa, cujo sistema feudal está em dissolução. O rei
e a soberania são necessários para organizar esse caos. O ethos aristocrático começa a ser
transformado. Destes escombros surge o ethos burguês. Como diz Magalhães (2008, p. 4),
duas éticas se superpõem: uma antiga e outra em formação. A violência é uma realidade para
Hobbes, no século XVII. A sociedade do século XVII é violenta, o homem tem uma
agressividade inata, mas esta não é apenas negativa nem leva necessariamente à violência
destrutiva e transgressora. No momento, fiquemos com estas considerações.
Hobbes, o lobo, o medo, Leviatã e Beheemoth agora cedem lugar ao selvagem, à
criança e à vontade geral. Em breve, esses personagens voltarão a encontrar-se.
Passaremos agora a analisar Rousseau.
66
CAP. 2
ROUSSEAU: Do Bom Selvagem ao Contrato Social
“Farejo o sangue de um inglês.
Esteja vivo ou morto, doente ou são,
vou raspar-lhe os ossos e comer com pão”
(JACOBS, apud TATAR, 2004, João e o pé de feijão, p. 143).
Em Rousseau, existe uma antropologia que se desdobra em três etapas: na primeira, o
homem no estado de natureza encontra-se nos primórdios da História, sendo concebido com
restritas necessidades; a linguagem dos gestos predominando sobre a linguagem oral
articulada; relação com a natureza baseada no aproveitamento dos dons oferecidos por esta;
piedade e amor a si. Em um segundo momento, que tem como marco a propriedade, instaurase o processo de desigualdade entre os homens, daí origina-se a formação dos magistrados e
das leis. O despotismo seria o derradeiro passo no aprofundamento da desigualdade na
sociedade civil. No terceiro momento, através do contrato social e da educação, tenta-se
corrigir os desvios produzidos pela sociedade civil.
Deste modo, como observa Bobbio:
A posição de Rousseau é complexa, porque sua concepção do desenvolvimento
histórico não é diádica – estado de natureza ou sociedade civil – como no caso dos
escritores precedentes (Hobbes, Locke, Puffendorf), sendo que o primeiro momento
é negativo e o segundo positivo, mas triádica – estado de natureza, sociedade civil,
república (fundada no contrato social), em que o momento negativo, que é o
segundo, aparece colocado entre dois momentos positivos (BOBBIO; BOVERO,
1996, p. 55).
A vontade geral é a instância reguladora do homem que, através do contrato, passa a ser
configurado como um ser moral e racional que pode, enfim, usufruir os benefícios da
socialização. Para viabilizar esse projeto, Rousseau prepara um processo pedagógico que se
encontra desenvolvido em O Emílio. Em Rousseau, existe, portanto, um desdobramento do
homem que passa por três estágios: estado de natureza, sociedade civil, e, através do contrato
social e da educação, o Estado.
Segundo Bobbio, o estado de natureza é representado como estado a-histórico por
Rousseau, que, na primeira parte do Discurso sobre a origem das desigualdades entre os
homens de 1753, identificando o estado de natureza como o estado primitivo da humanidade,
inspira-se, como se sabe, na literatura sobre o “bom selvagem”, mas trata-se de uma hipótese
teórica que tem uma função exemplar, na medida em que deve servir para, comparativamente,
67
apontar a decadência da humanidade, a partir do momento em que esta saiu desse estado para
entrar na “sociedade civil, bem como a necessidade de uma renovação das instituições que
não pode andar separada de uma revolução moral” (BOBBIO, 1991, p. 52).
Para Rousseau, os primeiros progressos nasceram das dificuldades que se apresentam
no meio natural, particularmente, em função dos animais que competiam com os homens,
obrigando-os a desenvolver armas naturais, aperfeiçoando, assim, a disputa pela subsistência.
No Discurso sobre a origem das desigualdades entre os homens, na primeira parte,
Rousseau desenvolve o que poderia ser o homem em estado de natureza, colocando em relevo
as capacidades corporais, a linguagem de gestos, a habilidade de conseguir alimentos, a força
física para superar intempéries, o amor a si e a piedade. Neste momento, o que caracteriza
esse homem é o corpo e suas faculdades.
Sendo o corpo o único instrumento que o homem selvagem conhece, é por ele
empregado de diversos modos, de que são capazes dada a falta de exercício, nossos
corpos, e foi nossa indústria que nos privou da força e da agilidade que a
necessidade obrigou o selvagem a adquirir (ROUSSEAU, 2000, p. 238).
No estado de natureza, o homem nasce livre; esta liberdade se constituirá, para
Rousseau, o valor mais inalienável para o homem. Da origem inicial, hipoteticamente
solitária, o homem, levado pela necessidade de conservação, forma os primeiros
compromissos mútuos. O interesse comum, mais frequente que a concorrência, ensina o
homem a contar com a assistência de seus semelhantes. Nesta fase, para Rousseau, predomina
a linguagem dos gestos e dos gritos. A teoria da linguagem é um desenvolvimento das ideias
de Condillac no Tratado das Sensações (2000), que considera a linguagem dos gestos ou
linguagem prática, fundamental para o posterior desenvolvimento da linguagem oral.
A passagem para a sociedade civil é decorrente da divisão entre o “meu” e o “teu”, das
divisões que nascem nas relações humanas, principalmente, quando aparece a necessidade do
outro e a formação dos primeiros vínculos sociais. Para Rousseau, “o verdadeiro fundador da
sociedade civil foi o primeiro que, tendo cercado um terreno, lembrou-se de dizer: isto é meu,
e encontrou pessoas suficientemente simples para acreditá-lo” (ROUSSEAU, 2000, p. 259).
Partindo de um estágio em que, inicialmente, o homem se limitava à sensação pura e
aos instintos, na medida em que foram surgindo dificuldades, o ele precisou avançar em
desafio, criatividade e superação. A conservação pura e simples no estado de natureza foi
tornando-se complexa, fazendo com que houvesse a necessidade de criar vínculos sociais e
caminhar rumo ao progresso, que, com o advento da propriedade, marca o início da
desigualdade, da necessidade e da construção da sociedade civil, cujo contrato inicial
68
privilegia ricos e poderosos, em detrimento dos pobres. Leis e magistrados são, assim,
instrumentos de exploração dos pobres. Ocorre uma apropriação de recursos materiais, por
uma parte da sociedade, que passa a explorar os que não têm, usando, para isso, as instâncias
sociais dos tipos magistratura e leis, para garantir o domínio dos ricos sobre os pobres.
Do Contrato Social, uma das principais obras de Rousseau, tem como principal objetivo
reconduzir o homem a sua verdadeira essência de liberdade e igualdade, a qual é perdida na
passagem do estado de natureza à sociedade civil. Para Chevallier:
Onde se acha, pois, nessa obra célebre, a invenção? No seguinte: a liberdade e a
igualdade cuja existência no estado de natureza é tradicionalmente afirmada
Rousseau pretende reencontrá-las no estado de sociedade, mas transformadas, tendo
sofrido uma espécie de modificação química, ‘desnaturadas’ (CHEVALLIER, 1980,
p. 161).
A passagem: estado de natureza, sociedade civil e República, revela no pensamento de
Rousseau, uma antropologia, em que se ressalta a capacidade do homem para a
transformação, sendo considerado por Bobbio e Bovero (1996) um processo triádico
precursor da dialética hegeliana, que, em Rousseau, corresponde ao estado de natureza como
tese, sociedade civil como antítese, e República como síntese.
Ao contrário de Hobbes, em que não existe ruptura e transformação, mas um
prolongamento do homem natural para o artificial, em Rousseau, a sua modificação é
possível. Partindo do selvagem piedoso, com amor a si e livre, passando para a sociedade
degenerada, corrupta e desigual, chega-se ao terceiro momento, que é o Estado republicano,
fruto do contrato feito por homens racionais, morais e livres, que resolvem criar um Estado
igualitário e justo, que possa reconduzir o homem ao mais próximo possível da liberdade
natural perdida.
Para Cassirer (1954), a vontade geral torna o homem um ser verdadeiramente moral. Do
selvagem, que é instinto e sensação, ao sujeito moral do contrato, existem rupturas e
transformações, que demonstram a capacidade de criação e superação do homem.
Em Rousseau, diversamente de Hobbes, não é tanto pelo entendimento e pela
linguagem que os homens se distinguem dos animais, senão pela capacidade de se aperfeiçoar
tanto individualmente quanto como espécie. A linguagem e a razão não são, a rigor, o que
separa o homem de outras espécies, mas a capacidade de se aperfeiçoar. Esta capacidade é
que faz o homem criar a linguagem sair do estado de natureza, desenvolver cultura, Rousseau
acredita que é inerente a nossa espécie a capacidade de tentar chegar a perfectibilidade.com o
69
pressuposto de uma empatia, piedade e amor-de-si naturais, o homem traz a potencialidade de
fazer o bem.
A linguagem falada, como aperfeiçoamento do homem, é um dos fatores responsáveis
pela passagem do homem isolado em estado de natureza para o homem agregado em
sociedade. O desenvolvimento da linguagem cria necessidades que fazem parte das relações
que os homens estabelecem entre si em sociedade.
Para Rousseau, “a fim de explicar o fato, precisamos reportar-nos a algum motivo que
se prenda ao lugar e seja anterior aos próprios costumes, pois, sendo a palavra a primeira
instituição social, só a causas naturais deve a sua forma” (ROUSSEAU, 2000, p. 259). Ainda
segundo Rousseau, a mais antiga de todas as sociedades e a única natural é a família, uma vez
que se trata do primeiro modelo das sociedades políticas. Diferente de Aristóteles, Rousseau
não vê uma evolução da família para a polis, como se a segunda fosse, naturalmente, a
extensão da primeira. A instauração da sociedade civil se dá através de convenções, fazendo
parte do progresso das necessidades e faculdades humanas.
Eis, pois, todas as nossas faculdades desenvolvidas, a memória e a imaginação em
ação, o amor-próprio interessado, a razão em atividade, alcançando o espírito quase
que no termo da perfectibilidade de que é suscetível. Aí estão todas as qualidades
naturais postas em ação, estabelecidos a posição e o destino de cada homem, não
somente quanto à quantidade dos bens e poder de servir ou ofender, mas também
quanto ao espírito, à beleza, à força e à habilidade, quanto ao momento e os talentos
e, sendo tais qualidades as únicas que poderiam merecer consideração, precisou-se
desde logo tê-las ou aparentar possuí-las. Para proveito próprio, foi preciso mostrarse diferente do que na realidade se era. Ser e parecer tornaram-se duas coisas
totalmente diferentes. A esta distinção resultaram o fausto majestoso, a astúcia
enganadora e todos os vícios que lhe formam o cortejo (ROUSSEAU, 2000, p. 97).
Como foi citado anteriormente, é com a competição entre os homens, uns querendo
sobressair-se, de que decorre o advento da apropriação de riquezas e a origem e o
desenvolvimento das desigualdades, que faz com que o homem saia do estado de natureza e
passe para a sociedade civil. Em Rousseau, o artifício do contrato social é quem cria o Estado.
Junto à política, Rousseau desenvolveu uma pedagogia. O Emilio é publicado
concomitantemente ao Do contrato social (1762). O projeto político e o educativo visam a
modificar o homem degenerado da sociedade civil, criando o homem moral, cuja gênese
encontra-se na obra, O Emílio. Nesse texto, Rousseau desenvolve o que vem a ser uma
educação natural, partindo inicialmente de uma educação negativa, em que o fundamental é
deixar a natureza seguir seu curso, até o pleno desenvolvimento da razão e da moral na
adolescência, quando ocorre a formação do cidadão ou sujeito moral coletivo. Partindo do
homem até chegar ao cidadão, O Emílio traça a gênese desse desenvolvimento e o papel
70
central da educação nesse processo. Para Barros (2006), o processo de mudança do homem
passa pela desnaturação: “Não é possível conservar em sociedade a mesma condição do
estado natural. A desnaturação gesta um novo homem, que passa a viver com os outros e,
nesta nova condição sofrerá mudanças virtualmente impossíveis em seu estado natural”
(BARROS, 2006, p. 2).
Podemos resumir, assim, a antropologia em Rousseau: partindo do homem em estado de
natureza, que é livre, piedoso, com restritas necessidades, chega-se ao homem em sociedade
civil, que, pelos progressos das faculdades corporais, emocionais e intelectuais, torna-se
insuflado pelo amor próprio e, com o advento da propriedade, torna-se corruptível, querelante,
ávido pelo poder. A divisão, tão importante em Rousseau, entre o ser e o parecer. Este é o
homem artificial, produto de convenção, que tem como esteio a exploração dos pobres pelos
ricos; que institui as leis e a sociedade civil. Nele, a violência encontra-se acentuada, os
homens tendem a querer destruir uns aos outros.
Em um terceiro momento, através do contrato, criam-se as condições de possibilidade
para o aperfeiçoamento moral, incluindo uma vida solidária e menos agressiva entre os
homens. A educação e a política caminham juntas nessa empreitada; fruto da criação e
potencial de modificação do homem.
Carl Schmitt chama a atenção pelo fato de que o importante não é tanto definir o
homem como naturalmente bom ou mau, mas saber se essa natureza pode ou não ser
modificada. Neste ponto, diversamente de Hobbes, Rousseau e os iluministas em geral
acreditavam na educabilidade dos homens:
Para o racionalismo do Iluminismo, a pessoa era, por natureza, tola ou rude, mas
educável. Assim, justificava-se o ideal de um “despotismo legal” por motivos
pedagógicos: a humanidade inculta é educada por um legislador (que, segundo o
Contrat social, de Rousseau, está em condições “de changer la nature de l’homme”)
(SCHMITT, 2006, p.51).
Para começar a definir como Rousseau analisa a agressividade e a violência, podemos
demarcar que, assim como Hobbes, há dificuldades em extrair diferenças nos conceitos, mas
no momento, é importante definir que, quando falamos em agressividade e violência em
Rousseau, os termos não se distinguem de imediato, sendo necessário tentar fazer essa
distinção.
Podemos conjecturar que a agressividade, para Rousseau, faz parte do homem natural,
do selvagem, da criança. Rousseau fornece pistas neste sentido, quando fala de sobrevivência,
uso de força física, desenvolvimento das habilidades físicas para se defender dos ataques das
feras, da relação da criança com os cuidadores, da possibilidade de utilizar birra e
71
manipulações. A violência instaura-se com o advento da sociedade civil. Como já foi
colocado, e citando Peter Gay (2001, p. 7), esta divisão entre agressividade e violência é
produto do século XIX, principalmente com o advento da teoria da evolução. Até hoje,
existem dificuldades semânticas, como podemos perceber no primeiro capítulo, para tornar
clara esta distinção. Mas isso não impede que tentemos seguir uma linha de raciocínio em
nosso trabalho, mesmo considerando que Hobbes e Rousseau não abordaram essa questão
com os olhos da biologia.
Postas essas considerações, podemos resumir que, em Rousseau, a agressividade, tanto
na criança, quanto no selvagem, pode ser considerado um movimento passional e inato, que
serve para a conservação. Inicialmente, enquanto não chega a “idade da razão” (ROUSSEAU,
1999, p. 56), o impulso da agressividade serve para a proteção contra ataques, e encontra-se
ligado ao instinto da piedade, sendo esta outra paixão inata. A piedade, na criança e no
selvagem, ajuda o desenvolvimento do amor de si. Para Dent (1996, p. 35-40), o amor de si é
um instinto natural, que leva o homem a se autopreservar, sem precisar disputar e ser egoísta
com o outro. Pelo contrário, em Rousseau, o amor de si leva não só à preservação, mas a
cuidar da prole, por exemplo, e ter empatia pelo outro.
A grande “virada” ocorre, quando as relações humanas ficam mais complexas, através
do desenvolvimento das faculdades intelectuais e da linguagem. A passagem do amor de si
para o amor próprio, segundo Dent (1996, p. 39-42), marca, para Rousseau, uma ruptura no
homem, fazendo-o sufocar instintos, tais como piedade e amor de si. A paixão amorosa, com
seus ciúmes e contendas, na formação da família, é um dos vetores dessa transformação, que
tem na propriedade seu ápice. Posteriormente, analisaremos, passo a passo, essa
transformação. No momento, interessa definir que a agressividade, que não provoca guerra e
querelas, mas só a defesa para conservação, não é a origem do mal no homem. Com o
desenvolvimento da sociedade civil, podemos falar de violência, que passa a adquirir um
aspecto nocivo e perverso. Essa transformação é fruto da socialização do homem.
Podemos agora introduzir os personagens do selvagem, da criança e da sociedade, que
alegoricamente continua sendo representada pelo lobo. A diferença é que, em Hobbes, este
lobo encontra-se no estado de natureza, no início da história. Agora, ele aparece no decorrer
da história, nas florestas e cidades povoadas de homens e mulheres com amor próprio,
vaidade, orgulho e crueldade.
Passaremos agora a aprofundar a antropologia em Rousseau. Para melhor analisar
didaticamente, usarei, por questões metodológicas, em seqüência, O Discurso Sobre a Origem
72
da Desigualdade entre os homens seguido por Do Contrato Social, detendo-nos mais em O
Emílio, que serve para analisar, em profundidade, nosso tema, por ser a obra mais didática,
por descrever evolutivamente, todas as fases da formação da violência no homem. Usaremos
uma metodologia diferente da utilizada em Hobbes, que tem uma obra coesa, cujos textos são
variações de um mesmo tema. Já Rousseau, como diz Cassirer (1954, p. 34), é mais
complexo, e seus textos requerem um olhar cuidadoso e desprovido de preconceitos, já que
têm um estilo retórico que mistura subjetividade, autobiografia, literatura, ciência e história
pessoal. Hobbes, nesse aspecto, apesar de ser um autor muito profundo, não coloca tantas
armadilhas e labirintos para os comentadores. Espero ter sido compreendido nesta escolha
metodológica e explicado a diferença na análise entre os textos de Hobbes e de Rousseau.
73
2.1 O DISCURSO SOBRE A ORIGEM E O FUNDAMENTO DAS DESIGUALDADES
ENTRE OS HOMENS
“Em casa, a rainha se dirigiu ao espelho e perguntou:
‘Espelho, espelho meu,
existe outra mulher mais bela do que eu?’
O espelho respondeu como de costume:
‘és sempre bela, minha cara rainha,
mas na colina distante, por sete anões cercada,
Branca de Neve ainda vive e floresce,
e sua beleza jamais foi superada’.
Ao ouvir as palavras pronunciadas pelo espelho,
a rainha começou a tremer de raiva.
‘Branca de neve tem de morrer!’
Exclamou, ‘mesmo que isso custe a minha vida. ’”
(JACOB E GRIMM, apud TATAR, 2004, Branca de Neve, p. 94-95).
A obra de Rousseau é complexa, dando margem a múltiplas interpretações. Para
Cassirer (1954, p. 98), não podemos falar de um Rousseau, mais de vários. Bento Prado Jr
(2008, p. 35-70) coloca que existem muitas interpretações de Rousseau, e, no século XX, o
existencialismo e o estruturalismo, principalmente via Levi Strauss, fazem um resgate de
Rousseau, colocando-o no centro das discussões do século XX. Para Bento Prado Jr (2008, p.
70), o pensamento de Rousseau não se presta a nenhuma forma de reducionismo, e deve-se
considerar não apenas as obras filosóficas, mas as literárias, para compor um perfil que
considere a complexidade de Rousseau. Em pleno “Século das luzes”, ele traz à tona uma
realidade cruel, retirando a “luz da razão no centro” e colocando a política e a pedagogia
como pontos fundamentais, inclusive com os primeiros esboços de uma ação política que
transforme a sociedade. Dentro da trilogia que é mais estudada em Rousseau no que
concernem às obras ditas filosóficas, (Discurso, Do Contrato e O Emilio), o Discurso sobre a
origem das desigualdades entre os homens, é referência para o que podemos denominar
pensamento etnológico e antropológico da primeira fase de Rousseau.
Para Arbousse-Bastide e Machado (2000, apud ROUSSEAU, 2000 p. 6 - OS
PENSADORES), as principais fontes de Rousseau no Discurso são: Buffon e sua história
natural, P. Dutertre, autor de uma história natural das Antilhas, de quem Rousseau recebe as
descrições dos nativos do novo mundo, incluindo os Caraíbas, e Montaigne, que também faz
referência aos nativos, através dos relatos de outros navegadores. O mito do “bom selvagem”
não é uma criação de Rousseau, na realidade, outros pensadores, além dos já citados, após a
74
descoberta das Américas, com os relatos que chegam sobre os nativos, desenvolvem o tema
do “Paraíso nas Américas” e dos bons selvagens. Entre eles, o mais importante foi o frade
dominicano Bartolomé de Las Casas que, ao divulgar o massacre de que os nativos foram
vítimas, contribuiu para criar a imagem dos europeus, principalmente dos espanhóis, como
cruéis e vorazes matadores de índios e destes como vítimas inocentes, criando, assim, a
famosa leyenda negra16. Todos esses fatos, decorrentes das grandes navegações, levam alguns
pensadores iluministas a adotarem, em relação aos povos nativos do novo mundo, uma
postura de proteção e idealização (TODOROV, 2003).
Mas a diferença fundamental do bom selvagem de Rousseau para os povos descobertos
é que estes viviam em comunidades e não eram isolados, como imaginava Rousseau; ou seja,
o autor parte do mito do bom selvagem, mas o transforma. Torna-se um artifício para
justificar o homem isolado em estado de natureza, que é projetado nos selvagens.
No Discurso, o foco antropológico é o selvagem, que simboliza o homem em estado de
natureza. O isolamento, o individualismo e a autossuficiência são marcas fundamentais do
homem neste estado de poucas necessidades. Os agrupamentos humanos surgem, por
necessidade de sobrevivência, lutar contra as adversidades do meio e a ameaça de outros
animais. A sociedade, impulsionada pela luta em busca da sobrevivência, é uma convenção,
para Rousseau, distinguindo-se do modelo aristotélico de família como instituição natural.
Em Do Contrato, Rousseau desenvolve mais profundamente a questão da família como
produto das convenções sociais. Nesse aspecto, como jusnaturalista, contrapõe-se, assim
como Hobbes, ao modelo aristotélico.
Este homem em estado de natureza apresenta-se com sentimentos naturais inatos, como
a piedade e o amor de si, a qual torna o homem natural não destrutivo em relação aos outros,
com comportamento bem distante do homem egoísta de Hobbes.
Sem recorrer aos testamentos incertos da história, quem não verá que tudo parece
afastar do homem selvagem a tentação e os meios de deixar de ser selvagem? Sua
imaginação nada lhe descreve, o coração nada lhe pede. Sua módica necessidade
encontra-se com tanta facilidade ao alcance da mão e encontra-se ele tão longe do
grau de conhecimento necessário para desejar alcançar outras maiores que não pode
ter nem previdência, nem curiosidade (ROUSSEAU, 2000, p. 66).
16
Remetemos o leitor a: Frei Bartolomé, Las Casas: O paraíso destruído. A sangrenta história da
conquista da América Espanhola. OP. C. JOSAPHAT, Las Casas: Todos os direitos para todos. Giuseppe TOSI,
Bartolomé de Las Casas. Primeiro filósofo latino-americano da libertação. In: Cecília PIRES (org.), Vozes
Silenciada, pp.157-176.
75
Podemos pontuar que a agressividade é utilizada para a autopreservação neste hipotético
estado de natureza de Rousseau. O homem nasce com instintos inatos, tais como piedade e
amor de si, mas o autor não fala de um “instinto natural para a violência”. Coloca que o
homem defende-se de outros animais que o atacam e das intempéries do meio utilizando a
agressividade. Podemos tentar conjecturar que a agressividade é um instinto para Rousseau, e
serve para a autopreservação, não é negativa, faz parte da natureza humana e é necessária.
Continuando a avaliar Rousseau no Discurso, a contingência fará do homem um ser
egoísta, competitivo e destrutivo. Inicia-se, assim, a corrupção da espécie. Rousseau coloca
como a passagem do homem do estado de natureza para o homem em sociedade, de “bom
selvagem” para um ser egoísta e violento, que pouco se interessa pelo outro, modifica e
transforma as relações humanas, que passam a ser competitivas, com disputas e relações de
força. Nesse aspecto, o amor de si transforma-se em amor próprio. É o advento do “meu e
teu”, da comparação entre os homens, que resulta na modificação definitiva para a corrupção,
a qual parece ser obra do acaso, em Rousseau. Até então, com limitadas necessidades, o
homem passa a desejar muito e a disputar e competir com os outros por honra, poder e
riquezas. A violência passa a ser um componente fundamental nesta fase. Anteriormente, a
agressividade aparece apenas como componente de luta pela sobrevivência, um instinto de
agregação que se associava à piedade. O homem natural não se interessava em destruir o
outro por prazer, competição, poder. Como coloca Rousseau (2000, p. 67), “este homem tinha
limitadas necessidades”.
É importante seguir, nesse trecho, a contribuição de Rousseau sobre a linguagem, que,
em Hobbes, é de fundamental importância para a relação eu e outro e a irrupção do poder e da
violência. Para Rousseau (2000, p. 264), a linguagem é um dos fatores fundamentais da
passagem do homem de relações sociais simples para relações complexas. Outras espécies
animais utilizam a linguagem dos gestos e vocalizações para comunicar-se. “Aqueles animais
que trabalham e vivem em comum, como os castores, as formigas e as abelhas, possuem - não
duvido - alguma língua natural para se comunicar” (ROUSSEAU, 2000, p. 264).
No homem, a linguagem da convenção, ou artifício, feita por significantes, significados
e regras gramaticais, faz progredir a ordem social “para o bem ou para o mal” (ROUSSEAU,
2000, p. 264).
Necessidade e paixão estão na origem da linguagem, principalmente as paixões de
amor, ódio, piedade e cólera. Para Rousseau (2000, p. 266), a linguagem, no homem, é um
produto das paixões. Nos relacionamentos entre os homens, o grito, o gesto, a melodia, os
76
tropos e a linguagem figurativa são as linguagens originais. Para Rousseau (2000, p. 267), a
princípio, só se falou por poesia, só muito tempo depois, tratou-se de raciocinar. A linguagem
metódica, e, principalmente, a escrita, provoca uma cisão no homem.
Rousseau (2000, p. 267) demarca o que é propriamente humano do que pertence a
outras espécies. Principalmente a chamada linguagem e a escrita. Os animais usam a
linguagem dos gestos, vocalizações, e também as crianças a utilizam. Estas, antes de
artificializar a linguagem, conseguem comunicar verdadeiramente as emoções através da
“poesia das paixões, dos símbolos e mitos” (ROUSSEAU, 2000, p. 267).
Para Bento Prado Jr (2008, p. 41), em Rousseau, existe a prioridade do vivido em
relação ao conhecido. O que ele faz aparecer é uma dialética da consciência da
intersubjetividade, antes de Hegel. Para Burgelon (apud PRADO JR., 2008, p. 32), Rousseau
transita entre dois pólos: o da ordem e o da existência. Existe um abismo entre esses dois
termos. A linguagem pode ser verdadeira e aparência, transparência e obstáculo.
Rousseau, na interpretação de Levi-Strauss (apud PRADO JR., 2008, p. 89), reconduz
o homem a uma camada esquecida e primitiva da linguagem, que é a metáfora. Através da
valorização da metáfora, Rousseau, para Levi-Strauss, produz uma fratura na metafísica, na
ilusão do pensamento e da consciência.
Derrida (2002, p. 11) chama Rousseau de pensador da metafísica, que vai até as últimas
conseqüências, na tentativa de pensar a radical idade da escrita. Em função desse aspecto,
suas obras literárias e, principalmente, suas confissões, são singulares, espelhando o projeto
de desnaturação do homem na busca pela verdade e transparência. A retirada do véu encontrase nos escritos autobiográficos.
O que nos interessa, no entanto, é que a linguagem, que, para Rousseau, não é a “maior
invenção de todas” como diz Hobbes, mas um processo de socialização, que tem como base
as paixões, passando por etapas evolutivas, em que podemos encontrar uma linguagem
original, e outra, fruto do artifício. Os animais, e, principalmente, as crianças, têm acesso a
“essa verdade” através de gestos, símbolos, tropos, figuração.
Para ilustrar o abismo gerado entre linguagem natural, poesia, figuração e artifício, no
Estado social, por contingência, com advento da posse, comparação, vaidade e piedade, como
componente básico de nossos instintos, ela fica relegada ao segundo plano. Essa paixão cede
lugar ao egoísmo e à vaidade; o reino da razão sufoca o dos sentimentos, e o homem cria
máscaras passando, cada vez mais, a se artificializar.
77
A linguagem da convenção, que traz o desejo de posse, a divisão do meu e seu, é quem
instaura essa divisão. Este é o inicio do processo de socialização que instaurará a violência na
espécie humana.
Seguindo Rousseau, no Discurso sobre a origem das desigualdades entre os homens, o
homem, em estado de natureza, pode ser classificado em homem físico, psicológico e moral.
O homem físico possui todos os instintos dos animais, e o seu temperamento é robusto,
reforçado pela seleção natural; o corpo é o único instrumento, não necessitando da utilização
de armas. Nesse estado, o homem se faz temer por outros animais e sofre apenas as
intempéries e doenças provocadas por acidentes na luta pela sobrevivência.
O homem psicológico possui, em comum, alguns pontos com outros animais, sendo o
principal os sentidos, porém, é nesse aspecto que começa a diferenciar-se de outros animais.
Essas diferenças são, principalmente, a liberdade de querer e de não querer, de desejar e de
temer. Em segundo lugar, encontra-se a capacidade de aperfeiçoamento que faz seguir em
frente ou retroceder.
Em relação à capacidade de aperfeiçoamento, Rousseau coloca, no homem, a
capacidade de superar os movimentos instintivos e a herança animal, e essa capacidade lhe dá
as ferramentas necessárias para desenvolver a razão. Nesse ponto, Rousseau nos remete ao
início do progresso e do desenvolvimento da linguagem, que solidifica a entrada do homem
no estado de sociedade.
A necessidade é o motor principal deste desenvolvimento, mas essa não produz uma
“guerra de todos contra todos”, no estilo Hobbesiano, mas a agregação que é responsável pela
entrada do homem em sociedade. Para Rousseau, a sociabilidade não está inscrita na natureza
humana original. O homem não tem, naturalmente, necessidade de outrem. Esta visão é
reavaliada a partir de O Emilio e Do Contrato Social.
Finalmente, Rousseau nos apresenta o homem moral, cujo primeiro princípio é o
instinto de conservação, através do qual o homem não é bom ou mal por natureza, utilizando a
agressividade apenas para sobreviver e satisfazer poucas necessidades, tais como alimentação
e sexo. O estado de natureza não é uma luta contínua de uns contra outros. Os homens não se
agridem e não disputam entre si: esta talvez seja a diferença mais radical comparada à
antropologia hobbesiana e com as descobertas da moderna antropologia cultural17.
17
Segundo Starobinski (1991, p. 89), a visão de Rousseau sobre os relatos dos nativos do Novo Mundo encontrase contaminada por uma visão ingênua das relações entre estes. Os caraíbas, por exemplo, apesar de formarem
uma sociedade com aspectos igualitários, são uma “máquina de guerra”, segundo Clastres (2004, p. 23). Para
Clastres (2004, p. 34-78), o que caracteriza as comunidades indígenas é a instituição da guerra voltada para
78
A piedade é o segundo princípio. Este sentimento é o que torna o homem solícito com o
outro. Tomando como base o instinto materno, a piedade gera sentimentos altruístas no
homem, freando a agressividade e fazendo-o interagir com outros. É a base fundamental da
agregação familiar, que, em Rousseau, é uma convenção social, produto do artifício, não
sendo uma evolução da natureza, como no modelo aristotélico.
Até então, para Rousseau, a desigualdade é quase nula no estado de natureza. O homem
natural não conhece o orgulho, a vaidade, a vanglória, estando bem distante do teatro bélico e
agressivo de Hobbes. Piedoso e com poucas necessidades, o Homem, no Discurso sobre as
origens da desigualdade entre os homens, vai tornar-se o arauto da discórdia, da disputa e da
agressividade, quando, por contingência, através do advento da propriedade, institui a
sociedade civil. Instaura-se a desigualdade e a guerra entre os homens.
A família nasce por convenção, decorrente das necessidades de sobrevivência. Não é,
em Rousseau, uma instituição natural. Esta passagem do homem solitário no estado de
natureza para a agregação social se faz, a princípio, através da cooperação. Sentimentos como
piedade e amor de si contribuem para formação da sociedade. Para analisar mais
profundamente a raiz da divisão entre os homens, dentro do processo de socialização,
Rousseau fala que:
Aquele que cantava ou dançava melhor, o mais forte, o mais astuto ou o mais
eloqüente, passou a ser o mais considerado, e foi esse o primeiro passo tanto para
desigualdade quanto para o vício; dessas primeiras preferências nasceram, de um
lado, a vaidade e o desprezo, e, de outro, a vergonha e a inveja. A fermentação
determinada por esses novos germes produziu, por fim, compostos funestos a
felicidade e a inocência (ROUSSEAU, 2000, p. 92).
A desigualdade nasce dentro da relação entre os homens, no Estado social. O
fundamental, nessa hipótese de Rousseau, é delimitar que o homem sai da vida solitária para a
tribos diferentes. A relação amigo-inimigo opera nessas sociedades, embora não exista uma formação do Estado.
O cacique, ou chefe, para Clastres (2004, p. 89), é controlado pela comunidade. Existe uma união orgânica
destas comunidades que se estruturam internamente através da guerra contra tribos inimigas. Escravidão,
canibalismo, extermínio e outras maneiras de violência contra tribos inimigas, estruturam a coesão social das
tribos. Esta violência, de acordo com Clastres (2004, p. 78), é um produto da organização social, que opera
dentro dessa dinâmica de nós e os outros, para produzir a diferença, a identidade. As tribos e suas máquinas de
guerra operam, para Clastres (2004, p. 98), contra a máquina totalizante e homogenizadora do Estado. Sobre
Rousseau, Clastres (2004, p. 199) reconhece a importância de ter aberto os horizontes para etnologia e
antropologia, mesmo com uma visão idílica e indireta (através de relatos) dos nativos. Rousseau, para Clastres
(2004, p. 188), no momento do confronto e dos grandes massacres dos europeus, em relação às populações
indígenas, abre a condição de possibilidade para respeitar a alteridade dos nativos do novo mundo não só como
diferentes de nós, mas como fazendo parte de nossa história, estando neles uma das chaves para a compreensão
da nossa natureza. Isto exercerá grande influência, por exemplo, em Levi-Strauss. Ver também: TODOROV,
Tzvetan. Nós e os outros: a reflexão francesa sobre a diversidade humana, v.1. Rio de Janeiro, Jorge Zahar
Editor, 1993.
79
agregação social movido por necessidades, e essa passagem, inicialmente, não produz a
transformação que leva nossa espécie à competição, à luta entre os homens, e à desigualdade.
Essa virada é fruto do acaso, podendo existir sociedades que não se enquadram nessa ruptura
para degenerescência. Essa marcha, em Rousseau, não é instintiva e inexorável, podendo ser
modificada pela capacidade de aperfeiçoamento do homem. De um lado, temos os laços de
cooperação entre famílias, e, de outro, as primeiras divisões entre os homens, movidas pelo
desenvolvimento das faculdades intelectuais.
Essa passagem do estado de natureza para o Estado social não é pontuada pela
decrepitude da espécie, pois, para Rousseau:
Assim, embora os homens se tornassem menos tolerantes e a piedade natural já
sofresse certa alteração, esse período de desenvolvimento das faculdades humanas,
ocupando uma posição média exata entre a indolência do estado primitivo e a
atividade petulante do nosso amor próprio, deve ter sido a época mais feliz e
duradoura (ROUSSEAU, 2000, p. 93).
A necessidade do outro, ou do “socorro do outro”, fez com que o homem introduzisse a
desigualdade. Este paradoxo, que conduz Rousseau, do estado de natureza ao Estado social,
marcará toda sua obra. Como o homem solitário, transformou-se no homem social, através da
necessidade de ajuda, e, a partir de então, vai-se instaurando a discórdia, a disputa, a
desigualdade e a violência entre os homens. Essa piedade natural, instinto inato, para
Rousseau, sufocou no amor próprio, que é egoísta. Mas, ao mesmo tempo, temos
possibilidades de laços de cooperação e empatia, como é o cuidado com a prole, o sentimento
de pertencer a uma família, um clã e uma tribo. A socialização e a necessidade do outro
conduzem a esse duplo caminho. Rousseau dá o nome de contingência, a esse processo.
Poderia ser de outra forma? Sim. O destino humano não está fechado, para Rousseau.
Nesse ponto, temos a divisão da “transparência e do obstáculo” (STAROBINSKI,
1991). A exploração, a criação de leis e dos magistrados contribuirá para a formação de uma
máquina de exploração do homem pelo homem. A violência humana, na sua forma destrutiva,
tal qual Hobbes a descreve, é, em Rousseau, produto do desenvolvimento social, sendo,
portanto, relacional e produto da necessidade do outro, que Rousseau coloca como
contingência, criando um paradoxo complexo de se resolver. A vontade de poder, básica, em
Hobbes, com relação à lei do desejo, é decorrente do progresso das faculdades e do
desenvolvimento social.
No Discurso sobre as origens da desigualdade entre os homens, para Rousseau:
80
Os corpos políticos, deste modo permanecendo si, entre si, em estado de natureza,
logo se ressentiram dos inconvenientes que haviam forçado os particulares a sair
dele, e tal estado tornou-se ainda mais funesto entre esses grandes corpos do que
fora, antes, entre os indivíduos dos quais se compunha. Daí nasceu as guerras
nacionais, as batalhas, os assassinatos e as represálias que levam a natureza a agitarse e chocam a razão (ROUSSEAU, 2000, p. 101).
A origem dos corpos políticos funda-se na violência, na desigualdade e na exploração.
No Discurso sobre as origens da desigualdade entre os homens, Rousseau parece delimitar
naturezas diferentes no homem. O artefato social modifica instintos naturais, como a piedade
e o amor de si, pervertendo-os. Originalmente, somos piedosos, mas, com o desenvolvimento
de nossas faculdades e da sociedade civil, tornamo-nos egoístas e lascivos.
Cassirer (1954, p. 100) analisa que, mesmo em escritos como a Desigualdade, um dos
pontos fundamentais em Rousseau são a liberdade e a vontade, decorrente da primeira, o que
leva o homem a tentar a perfectibilidade, que nada mais é que a moralidade verdadeira.
Cassirer (1954, p. 80-230), como kantiano, minimiza a função dos instintos de piedade e amor
de si, e passa a colocar na vontade e em normas da razão, que visa à perfectibilidade, motivos
essenciais para a transformação do homem e a criação de uma sociedade justa. O paradoxo é
que, justamente a liberdade e a vontade faz com que a perfectibilidade bifurque-se e conduza
o homem a dois caminhos: o aperfeiçoamento e a decrepitude, o aperfeiçoamento moral ou a
corrupção, a violência como autodefesa e a sobrevivência ou a violência como crueldade,
perversão e subjugação do outro. Para Cassirer (1954, p. 101), é o caminho que leva às leis, à
moral, ao aperfeiçoamento da razão, que resgata a “bondade natural”, no homem.
Para Dent (1996, p. 48-49), devemos partir, ao contrário, da dualidade das paixões e de
sua dinâmica. Piedade e amor de si são instintos naturais, mas podem transformar-se em amor
próprio, crueldade, violência desmedida e perversidade. No Discurso sobre as origens da
desigualdade entre os homens, essa dinâmica encontra-se nas primeiras relações sociais,
principalmente na relação amorosa, que se transforma em ódio, ciúme e crueldade. A partir
dessas primeiras relações, ocorre a comparação entre o eu e o outro, surgindo o sentimento
comparativo do melhor, do pior, do mais inteligente, do mais habilidoso entre outros. Nessa
dinâmica, os instintos naturais vão transformando-se, e a violência destrutiva instaura-se,
culminando com o processo da propriedade. A dinâmica das paixões, para Dent (1996, p. 34),
é relacional, tendo, na origem, uma bifurcação que pode levar a dois caminhos.
Cassirer (1954) fala da bifurcação de vontade e perfectibilidade, Dent (1996), da
bifurcação das paixões inatas. No momento, ficamos com essas duas ideias, que serão
desenvolvidas e aprofundadas, principalmente em O Emílio.
81
Vamos agora aprofundar esses pontos nos aspectos antropológicos Do Contrato Social.
Ao entrar no processo de desnaturação, que é o retorno às virtudes naturais da piedade e do
amor-de-si do estado natural, dentro da superação da sociedade civil e criação do Estado do
contrato social.
82
2.2 DO CONTRATO SOCIAL
“Era uma vez um moleiro.
Era muito pobre, mas tinha uma linda filha.
Um dia, o moleiro teve uma audiência com o rei.
E, para ostentar alguma importância, declarou:
‘tenho uma filha que é capaz de fiar ouro com palha’.
‘Ah, esse é um talento que vale a pena ter’, disse o rei ao moleiro.
‘Se sua filha é assim tão hábil, quanto diz, traga-a até meu palácio amanhã.
Vou pô-la à prova’”
Quando a menina chegou ao palácio, o rei a enfiou num quarto cheio de palha,
Deu-lhe uma roda de fiar e um fuso, e disse:
“Comece a trabalhar agora mesmo.” Se não conseguir transformar essa palha em ouro até amanhã
de manhã, morrerá”. E o rei saiu e trancou a porta atrás de si, deixando-a completamente sozinha lá dentro.
(JACOB E GRIMM, apud TATAR, 2004, Rumpelstiltskin, p. 129).
Em 1757, Rousseau escreve O Emilio e Do contrato social. Os dois livros compõem o
seu projeto de aprofundar e aprimorar o que havia escrito nos textos anteriores. Em Do
Contrato Social, Rousseau faz algumas revisões em relação à visão do homem que havia
formulado no Discurso sobre as origens da desigualdade entre os homens, principalmente,
quando postula que: “A passagem do estado de natureza para o estado civil determina no
homem uma mudança muito notável, substituindo na sua conduta o instinto pela justiça e
dando às suas ações a moralidade que antes faltava”. (ROUSSEAU, 2000, p. 77).
Nessa passagem, Rousseau já não percebe o selvagem, como ser humano, por
excelência, provido de atributos, tais como a piedade e o amor de si. Essa condição tem que
ser ultrapassada para atingirmos o que ele considera a verdadeira moralidade. O impulso é
substituído pelo dever, o apetite pelo direito e a razão, como meta a ser alcançada, pelo ser
moral, passa a substituir o amor próprio instintivo. O selvagem já não é tão nobre assim, já
que o homem, em Do Contrato, fruto do desenvolvimento da razão e moral humanas, passa a
“bendizer o instante feliz que dela (a condição anterior), arrancou-o para sempre e fez de um
animal estúpido e limitado, um ser inteligente e um homem” (Rousseau, 2000, p. 77).
O grande e inalienável bem que o homem deve buscar é a liberdade. Este é o maior
resgate do homem em estado de natureza que o contrato social visa a resgatar. Se a
necessidade constitui a família, a manutenção e o desenvolvimento dessas é obra do artifício
social. Diferentemente de Hobbes, que coloca a vida como o bem supremo a ser preservado,
sendo o medo da morte violenta o que motiva a saída do estado de natureza para o Estado
social, em Rousseau, é a liberdade e o aperfeiçoamento das faculdades e da moralidade, que
83
faz com que o homem tente redefinir a sociedade civil, mudando a marcha de exploração,
agressividade, egoísmo e degenerescência.
A sociedade civil e o Estado, que representam o poder de exploração dos ricos sobre os
pobres, são a verdadeira “máquina de guerra”.
A guerra não representa, pois, de modo algum, uma relação de homem para homem,
mas uma relação de Estado para Estado, na qual os particulares só acidentalmente se
tornam inimigos, não o sendo nem como homens, nem como cidadãos, mas como
soldados, e não como membros da pátria, mas defensores (ROUSSEAU, 2000, p.
63-64).
A guerra e a violência entre os homens são um produto da sociedade civil, mais
especificamente da sociedade que protege os ricos e dá privilégios a poucos, explorando os
demais. Para Dent (1996, p. 42), a violência é um produto do artifício, não da natureza. O
autor divide, em Rousseau, o artificial como produto da criação e invenção do homem. Como
exemplo maior, temos o Contrato. Artifício dos artifícios, obra da perfectibilidade humana.
Modificação, desnaturação, o caminho para o verdadeiro homem moral. O que o Contrato
social visa a corrigir é esse tipo de sociedade. Nesse artifício, o homem e a natureza
apresentam uma relação de parceria e transformação positiva. O supremo bem e a liberdade
são a finalidade última.
Para Dent (1996, p. 43-44), porém, o artificial em Rousseau, é também o conflito com a
natureza, a relação de exploração, a corrupção, a violência desmedida. Nesse caso, o homem
se coloca em conflito com a natureza e suas paixões, tais como amor de si e piedade. O amor
próprio toma o lugar do instinto para a cooperação, e a sociedade civil degenera. Temos, para
Dent (1996, p. 49), uma série complexa de possibilidades, em Rousseau, e um paradoxo: se o
homem tem instintos que predispõem à compaixão e cooperação, como pode desvirtuar-se por
esses mesmos homens? Dent (1996, p. 49) remonta a Aristóteles esse dilema. Na realidade, a
paixão é de dupla face, está ligada, em “pares antagônicos” (HUME, 2000, p. 98) tipo amoródio, orgulho-humildade. O próprio Rousseau (2000, p. 78) descreve que, com o
desenvolvimento do amor, surge a inveja, o ódio e o ciúme. As relações sociais e o espaço
intersubjetivo são o espaço da “comparação entre os homens” (DENT, 1996, p. 69-70). O
orgulho cresce da comparação entre o meu e o seu. Essa inclinação, para Rousseau, é
intersubjetiva. Poderíamos arriscar que é uma modificação dos instintos naturais para
artificiais, o que Dent (1996, p. 49) denomina paixões exóticas e naturais. Sendo aquelas,
fruto das relações sociais sobre instintos naturais.
84
Do contrato social é a tentativa de corrigir os erros da sociedade civil. O homem
preserva a liberdade e a capacidade de aperfeiçoamentos naturais, modificando sua trajetória.
Sendo assim, Do Contrato social é obra da invenção, artifício do desenvolvimento da moral e
da liberdade humana.
A vontade geral é a verdadeira moralidade do ser social; só através dela, a piedade
natural e o amor de si reaparecem e asseguram uma sociabilidade baseada na moral e na
razão, produtos da perfectibilidade humana, para Rousseau.
Suponhamos os homens chegando aquele ponto em que os obstáculos prejudiciais à
sua conservação no estado de natureza sobrepujam, pela sua resistência, as forças
que cada indivíduo dispõe para manter-se nesse estado. Então, esse estado primitivo
já não pode subsistir, e o gênero humano, se não mudasse de modo de vida,
pereceria (ROUSSEAU, 2000, p. 101).
Para Rousseau, a necessidade de sair do estado de natureza é fundamental para a espécie
humana. Diversamente do que pensava nos Discursos, Rousseau em Do Contrato social
coloca a necessidade imperiosa da humanidade de sair desse estado, para um estado de
eticidade, liberdade e justiça, de tal modo que a moralidade e a razão determinarão um novo
homem, como diz Gilda Barros (2006, p. 50), “desnaturado”. Entendendo-se por desnaturação
um processo que parte do homem em estado de natureza, com necessidades limitadas, depois
passa para a sociedade civil e corrompe-se, instaurando a violência e a exploração dos pobres
pelos ricos, até chegar a um terceiro estágio, que se afasta do estado de natureza inicial,
supera os vícios da sociedade civil e atinge a sociedade do contrato, onde passa a predominar
o indivíduo moral, racional, que constrói uma ética coletiva representada pela vontade geral.
Recuperando a liberdade natural, agora, na sociedade civil, o homem desnatura-se para
reencontrar a natureza perdida e aperfeiçoá-la em uma nova e justa sociedade.
O homem, em Do Contrato social, já passou pelas duas fases que descrevem Bobbio e
Bovero. Encontra-se, assim, na terceira, em que, através do contrato, passa a ser um
“verdadeiro homem”. Para Mészáros (2006, p. 57), Rousseau foi um dos precursores de Marx,
no que se refere à análise da alienação em sociedade, porém não o fez do ponto de vista
econômico, mas das relações sociais18.
A obra Do Contrato social, para autores, como Mészáros, aponta soluções “idealistas”.
Rousseau ainda se move dentro das relações burguesas de produção. Avança no
18
Este é um ponto delicado de Rousseau em relação a Marx. Rousseau tem razão porque a alienação não
é um fenômeno meramente econômico, mas mais amplo, está em todas as relações sociais; por isso, a mera
superação da propriedade privada não vai produzir uma sociedade melhor como pensava Marx, porque os
conflitos sociais permanecem.
85
aprofundamento da alienação nessa sociedade, mas as soluções não movem a apropriação do
capital pela burguesia, que, para Mészáros, é a verdadeira causa da alienação. De qualquer
maneira, segundo Prado Jr. (2008, p. 67), Rousseau pode ser considerado um precursor da
ação política para a transformação da ordem social.
Para Bobbio (1996, p. 89), temos, em Hobbes, a defesa da vida como vetor de
transformação, e, em Rousseau, a liberdade e a igualdade, principalmente política, e, após
Marx, a economia e o direito aos meios de produção, a quebra da hegemonia da burguesia
pela apropriação do capital.
Essas considerações ajudam a situar a importância Do Contrato na filosofia política
moderna. A violência da ação política tenta acabar com a violência de uma sociedade corrupta
e não igualitária. Se quisermos analisar Rousseau sobre a ótica marxista, a violência humana é
produto do desenvolvimento social e atinge o ápice sob o sistema capitalista.
Voltando ao Do Contrato, a República, a vontade geral e a democracia radical são
tentativas de construir outro homem, “desnaturado” e “desalienado”, pois pressupõe um pacto
que instaura um sujeito coletivo da eticidade, a democracia radical, a submissão à vontade
geral, que é uma instância reguladora da eticidade coletiva e a manutenção da liberdade,
dentro da coletividade. O homem assume seu destino, atinge a maioridade da razão e passa a
agir de acordo com uma moral coletiva.
Passaremos agora a aprofundar a visão antropológica em O Emilio, onde Rousseau vai
desenvolver uma antropologia baseada na criança e na educação.
86
2.3 O EMÍLIO
Era uma vez uma pobre viúva que tinha apenas um filho,
chamado João, e uma vaca chamada Branca Leitosa.
A única coisa que garantia o seu sustento era o leite que a vaca dava toda manhã
e que eles levavam ao mercado e vendiam.
Uma manhã, porém, Branca Leitosa não deu leite nenhum,
e os dois não sabiam o que fazer.
“O que vamos fazer? O que vamos fazer?” Perguntava a viúva, torcendo as mãos.
“Coragem mãe. Vou arranjar trabalho em algum lugar”, respondeu João.
(JACOBS, apud TATAR, 2004, p. 134).
Atenhamo-nos, agora, em O Emilio, um texto denso, que apresenta a formação de uma
criança até a idade adulta. Para o nosso tema, o que podemos pontuar em O Emilio? Dentro
dos aspectos anteriormente abordados, temos uma complexificação dos temas. Rousseau não
abandona o selvagem, mas este, que, em Do Contrato, já havia sido considerado uma etapa da
evolução social do homem que deveria ser abandonada, em prol do homem moral e racional,
em O Emílio, passa a ser um aspecto da natureza humana, que passa a ser objeto de
modificação através da desnaturação. A marcha do homem em sociedade é irreversível,
mesmo com a degeneração e a perversão, a redenção encontra-se na sociedade; é impossível
olhar para trás. É no homem social que reside a condição de possibilidade do surgimento do
homem moral e livre. O processo educativo faz esta ponte entre natureza e sociedade:
“Nascemos fracos, precisamos de força; nascemos carentes de tudo, precisamos de
assistência; nascemos estúpidos, precisamos de juízo. Tudo o que não temos ao nascer e de
que precisamos quando grandes nos é dado pela educação” (ROUSSEAU, 1999, p. 8).
Essa educação, coloca Rousseau (1999, p. 8-10), vem da natureza, dos homens e das
coisas. A educação da natureza diz respeito ao desenvolvimento das faculdades, dos órgãos,
das paixões: é a parte inata da educação. Os sentidos, as paixões a disposição para o amor de
si, a piedade, a manipulação pelo choro (ataques de birra), fazem parte da educação natural. O
sentimento moral não está incluído nessas disposições inatas: é uma potencialidade. A criança
não sabe, até atingir a idade da razão, o que é bem ou mal. Não podemos inferir uma bondade
natural ao ser humano, no máximo, uma potencialidade que a educação dos homens ajuda a
desenvolver ou a transformar em mal.
No capítulo V de O Emílio, o instinto social passa a ser considerado, por Rousseau,
como componente inato, contrastando com escritos anteriores, principalmente com O
Discurso: O primeiro sentimento de uma criança é amar a si mesma, e o segundo, que deriva
87
do primeiro, é amar os que lhe são próximos, pois, no estado de fraqueza em que se encontra,
não conhece ninguém a não ser pela assistência e pela atenção que recebe (ROUSSEAU,
1999).
Rousseau (1999, p. 274-275) coloca que o amor por si próprio faz com que amemos
outra pessoa, para nossa própria conservação. Nesse aspecto, teríamos um instinto social que
nos liga ao outro. A visão do selvagem solitário e auto-suficiente é reavaliada pelo próprio
Rousseau. O Emílio chega a conter, para Cassirer, por exemplo, vários paradoxos, sendo um
dos principais a educação isolada de Emílio dos homens, mas, ao mesmo tempo, o preparo,
passo a passo, para o convívio, como ser livre e moral, em sociedade. Independentemente
desses paradoxos, para Cassirer:
Em O Emílio, Rousseau visa o homem moral e livre para conviver numa sociedade
justa e igualitária. Sendo a sociedade a causa dos males, é nesta que a solução deve
advir. O instinto social é necessário para o homem resolver este paradoxo, pois ele é,
por instinto, um ser que precisa da ligação com o outro (CASSIRER, 1954, p. 56).
A educação das coisas é a educação do contato entre o homem e o mundo, a maneira
como as faculdades, a experiência, os sentidos e a razão interagem com as coisas. A relação
entre o homem e os objetos, ou o que se passa no mundo interno entre o homem e as coisas,
sem mediação da natureza e de outros homens.
E a mais relevante de todas: a educação dos homens. Esta é o grande objeto da educação
de O Emílio. Na realidade, para completar a educação da natureza e das coisas, o Emílio deve
ser mediado pelos homens. É desta interação que irá surgir o cidadão. Para Rousseau (1999,
p. 4), começamos a nos instruir, quando começamos a viver; nossa educação consiste menos
em preceitos que em exercícios. Começamos a nos instruir, quando começamos a viver; nossa
educação começa junto conosco; nosso primeiro preceptor é nossa ama-de-leite. Em seguida,
Rousseau coloca que a mãe e o pai são os grandes educadores, na fase inicial da criança. Essa
é a gênese da socialização do homem. Em O Emílio, a raiz do mal e da violência humana
encontra-se aí. Vamos detalhar passo a passo este processo.
Analisando a relação entre a criança e os cuidadores, Rousseau (1999, p. 50) coloca que
é o choro que introduz o vínculo do ser humano com o mundo circunjacente. É o primeiro
sinal que ativa uma relação, fonte de inserção da relação criança-adulto. A importância do
choro em O Emilio é significativa, a ponto de Rousseau colocar que “aqui se forja o primeiro
elo da longa cadeia de que é formada a ordem social” (ROUSSEAU, 1999, p. 50).
88
O choro introduz a criança na ordem da necessidade, e a resposta do adulto a essa
necessidade é o primeiro passo para a socialização da criança. Logo em seguida, Rousseau
avalia outro componente inato que o choro produz: o desejo de domínio e controle, colocando
a relação criança-adulto dentro de uma dialética ordem-obediência. O paradoxo é que a
criança começa chorando, para pedir ajuda às necessidades básicas (fome, sono), mas logo
passa a usar o choro para tiranizar e controlar o adulto. Podemos conjecturar que é nesta
interação que ocorre a passagem da agressividade natural para a violência social. Nesse
contacto com a sociedade representada pelo cuidador, a criança perverte instintos naturais,
como piedade, amor-de-si e agressividade, e passa a se tornar egoísta, tirânica, vaidosa e
violenta.
Os primeiros choros são pedidos; se não tomarmos cuidado, logo se tornam ordens.
Começam por se fazer ajudar e acabam por se fazer servir. Assim, de sua fraqueza, de onde
provém, inicialmente, o sentimento de dependência, nasce, a seguir, a ideia de império e
dominação (ROUSSEAU, 1999, p. 52).
Na sequência desse trecho, encontramos um elo importante entre a necessidade natural e
a criação de necessidades artificiais pelo vínculo social. No momento em que Rousseau
parece encontrar um princípio na criança, que a torna instintivamente propensa a manipular e
a tiranizar os adultos, que tem analogia com a vontade de poder, em Hobbes, Rousseau recua
e foca no adulto socializado o gesto que perverte a necessidade da criança. Rousseau (1999, p.
5) conclui, então, que, sendo a ideia de dominação excitada menos pelas necessidades que por
nossos serviços, começamos aqui a perceber os efeitos morais, cuja causa imediata não está
na natureza, e já vemos, porque, desde a primeira idade, é importante distinguir a intenção
secreta que dita o gesto e o grito. Nessa relação, existe um desejo na criança que vai além das
necessidades, e é o adulto que deve impor limite. Rousseau chega a dizer que toda criança “é
má porque é fraca. Posteriormente a razão ensina a conhecer o bem e o mal” (ROUSSEAU,
1999, p. 67).
Outro progresso torna a queixa menos necessária às crianças: é o de suas forças.
Podendo mais por si mesmas, precisam com menos frequência recorrer aos outros.
Junto com a força, desenvolve-se o conhecimento, que as põe em condições de
dirigi-la. É nesse segundo grau que propriamente começa a vida do indivíduo,
quando, então, ele toma consciência de si mesmo. A memória amplia o sentimento
de identidade para todos os momentos de sua existência; ele se torna
verdadeiramente uno, o mesmo e, por conseguinte, já capaz de felicidade e miséria.
Portanto, é importante começar a considerá-lo agora como um ser moral
(ROUSSEAU, 1999, p. 67).
Para Rousseau (1999, p. 55), antes da idade da razão, fazemos o bem e o mal sem sabêlo, e não há moralidade em nossas ações, embora, às vezes, ela exista no sentimento das ações
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de outrem que se relacionam conosco. A criança depende dos adultos para modular seus
instintos que, tendem se deixados livres, à falta de limites e à tiranização da relação. O adulto,
para Rousseau (1999, p. 178), diferentemente da criança, é um ser moral, e só este pode
modular e redirecionar, através da educação, o movimento sem limites da criança. Para
Rousseau (1999, p. 54), a criança tem uma tendência maior para destruir, porém a natureza
coloca, nesse princípio ativo, uma quantidade pequena de força. As pessoas que entram em
contacto com a criança são responsáveis pelo desenvolvimento deste princípio, e ela, sendo
fraca, necessita dos adultos para manipular, e são justamente eles que potencializam
artificialmente o poder das crianças, principalmente, quando criam necessidades não naturais,
que são alimentadas pela fantasia. É justamente na satisfação dessas necessidades fantasiosas
e artificiais, que o adulto desvia a criança das necessidades naturais. Em função desse
importante aspecto, Rousseau coloca que a educação dos homens deve ser inicialmente
negativa, trabalhando apenas com o favorecimento das necessidades naturais, sem
interferência.
“Limitar seu desejo a suas forças”, para Rousseau (1999, p. 55), é a chave para evitar
que a criança torne-se um pequeno tirano. Não criar necessidades artificiais é o corolário
dessa sequência. Mais uma vez podemos achar um elo de passagem da agressividade natural
para a violência social.
A criança, instintivamente, traz a possibilidade para o bem e para o mal; é o adulto
socializado que possibilita a direção desses instintos para um lado ou para o outro. A
formação do hábito é um dos elementos mais importantes nesta sequência, visto que estes são
difíceis de modificação. Se a criança, por exemplo, aprende a manipular o meio através de
chantagens e birras, vai formando o hábito que a transforma em uma verdadeira tirânica
agressiva. A raiz da agressividade encontra-se nessa interação criança-adulto, sendo o adulto
socializado o fator de criação de necessidades artificiais e fantasias na criança.
Para Cassirer (1954, p. 67), O Emilio é fruto de um planejamento que tenta evitar o
homem socializado corrompido, através do isolamento da criança desta sociedade. A
desnaturação significa partir da natureza, sair da corrupção da sociedade e construir um
homem moral. Cassirer vê, neste aspecto, o dever da perfectibilidade em Rousseau. O homem
natural, com seus instintos, suas faculdades e suas potencialidades, necessita da relação com o
outro para tornar-se moral; esta ligação é instintiva, porém o outro faz parte de uma sociedade
violenta, corrompida e desigual. A educação, em O Emilio, é um produto da tentativa de
Rousseau, em “criar um outro homem, do dever ser moral e coletivo dentro de uma nova
90
sociedade” (Cassirer, 1954, p. 87). Passaremos agora a analisar, dentro dessa dialética da
relação criança-adulto, a formação do instinto do amor em si e da piedade.
Para Rousseau (1999, p. 273), as paixões são o principal instrumento de nossa
conservação. Os instintos são naturais, mas “mil riachos estranhos somaram suas águas à dela
[...], nossas paixões são muito limitadas”. Nessa frase, encontra-se um princípio que associa
fatores sociais às paixões, modificando-as. Na realidade, as paixões naturais são poucas, e a
sociedade transforma e multiplica, através da fantasia, ela cria novas necessidades, artificiais.
Em relação às paixões inatas, uma é considerada o antecedente de todas as outras. É
justamente a modificação desta paixão que gera os transtornos que serão responsáveis pela
corrupção do homem. Para Rousseau (1999, p. 740), o amor de si é sempre bom e estando
cada qual encarregado da sua própria conservação, o primeiro cuidado e o mais importante é e
deve ser zelar por ela continuamente. O amor de si faz com que a criança apegue-se à sua
ama. Para Rousseau (1999, p. 275), o que torna o homem essencialmente bom é ter poucas
necessidades e pouco se comparar com os outros; o que torna essencialmente mal é ter muitas
necessidades e dar muita atenção à opinião de outros, neste caso dos membros de uma
sociedade corrompida e escrava de preconceitos. A partir desses princípios, poderemos
dirigir, para o bem ou para o mal, as paixões da criança.
Dent (1996, p. 38) desenvolve a dialética que vai, em Rousseau, do amor de si para o
amor próprio. O amor de si é instintivo, trabalha para a autopreservação, o bem-estar e a
criatividade do indivíduo. O amor de si é fundamental para ter simpatia pelo outro,
estabelecendo vínculos sociais saudáveis. Associa-se ao livre-arbítrio, nesse caso, sendo
responsável pela busca da perfectibilidade e superação do homem. A liberdade, bem
fundamental, é fruto do amor de si. Dent (1996, p. 38) coloca que Rousseau, após descrever o
amor de si, coloca a liberdade e a perfectibilidade como instintos do ser humano. Este termo –
instinto - é importante, pois leva a crer que Rousseau concebe uma base biológica - e, por que
não arriscar, genética? -, para o altruísmo. No mínimo, uma propensão, uma tendência, que,
se desenvolvida, faz do homem um ser cooperativo e moral.
Mas a situação começa a complicar com o amor próprio. Como diz Starobinski (1991,
p. 98), o obstáculo, a mentira e a corrupção começam nessa dialética, que transforma o amor
de si em amor próprio. Mas, como isso é possível? Se seguirmos Dent:
Logo após formar uma associação estável com outros seres humanos, é suscitado um
desejo que se torna dominante e absorvente, de estabelecer-se como superior ao
outro, de adquirir um poder arbitrário e despótico, de impor submissão e ignomínia
ao outro. As relações humanas são desfiguradas por um desejo insaciável de
91
dominação e prestígio que exige e impõe deferência e subordinação (DENT, 1996,
p. 40).
O capricho, esta ponte que é descrita em O Emílio, é o que faz a transmutação de
“instintos benéficos” para “maléficos”. O capricho, para Rousseau, é uma paixão artificial,
alimentada pelos cuidadores, na criança. Tem origem na sua frustração em face de um desejo
não atendido. A criança “sente medo e raiva e passa a hostilizar o adulto” (Dent, 1996, p. 52).
Uma vez alimentado, este capricho transmuta o amor de si em amor próprio, e o poder, o
desejo de domínio, o orgulho e a violência passam a comandar a vida da criança.
Em resumo, estamos falando de Emílio, um bebê sem caprichos, ou com estes sendo
cortados pela educação da natureza. A natureza não é a causa da violência: não podemos
naturalizá-la, como vai ocorrer a partir de Darwin, com o darwinismo social, principalmente.
É o homem e a estrutura social formada por ele que introduzem a violência em nossa espécie,
e, junto a ela, suas máscaras, como a crueldade, a perversidade, os genocídios, a corrupção, o
racismo, o bullying, o terrorismo, as guerras.
Continuando a falar sobre Emílio, a educação que o perpassa, de negativa torna-se
positiva, principalmente na idade da razão. A partir daí, podemos falar de moral e liberdade.
A capacidade de perfectibilidade é atingida plenamente na idade da razão. Toda a educação
do Emílio é voltada para evitar os males do amor próprio que, para Rousseau (1999, p. 358),
não raro fere a mão que dele se serve e raramente faz o bem sem o mal19.
Para Starobinsnki (1991, p. 89), a experiência infantil é o solo e o húmus do
pensamento: na infância perdemos a ilusão do bem, o véu que encobre a verdade perde-se. O
véu agora dá passagem para a crueldade e a violência do mundo adulto. A cisão ser e
aparência instaura-se na criança. Bem vindo ao mundo adulto!
É a vaidade, produto do amor próprio, uma das paixões mais danosas que o véu expõe a
que “nada pode curar” (ROUSSEAU, 1999, p. 375), e que será o grande rito de iniciação da
criança ao mundo do parecer do adulto. A aparência é a mascara, o artifício e a vaidade.
Impedi-la de crescer é a tarefa da educação. Cassirer (1954, p. 97) coloca que, para Rousseau,
o impulso para espoliar e dominar, com violência, é algo estranho ao homem natural, e, como
tal, esse só pode surgir e criar raízes, depois que o homem passa a viver em sociedade e
conhece todos os desejos artificiais. Entre o homem natural, o homem em sociedade, e, o
19
Estes processos que vão da educação negativa a positiva fazem parte do processo de desnaturação, que
na realidade significa uma ultrapassagem do “bom selvagem” e do homem em sociedade civil, e a criação do ser
moral e livre em uma nova sociedade. Neste caso, a infância é o palco para este processo e criação do novo
cidadão, matriz de uma sociedade justa, ética, livre e igualitária.
92
homem resultado da educação em O Emílio, existe um processo de desnaturação. Este
processo educativo, que inicia com o Renascimento, com Comenius, Erasmo, Morus, passa
por Locke, enraíza-se com o Iluminismo e, em Rousseau, torna-se o dever-ser da criança.
Partir da natureza, entrar na sociedade, modificá-la e aperfeiçoá-la, para Cassirer (1954,
p. 78) é um processo que corrobora a tese de Rousseau de que o homem traz a potencialidade
moral dentro de si; do contrário, o homem natural não seria capaz de tornar-se ético. Só o
homem desnaturado, que passa pelo estado de natureza, sociedade civil e Contrato Social é
capaz de atingir essa meta, porém a criança tem, à frente, “o obstáculo”, que é o véu dos
preconceitos, das regras do falso moralismo, que fazem do homem, um projeto de aparência,
falso, que mente para conseguir explorar o outro. O palco de aparências infla o orgulho da
criança real e a transforma em um pequeno tirano.
Handel (apud DENT 1996, p. 99) acredita que o homem só se torna moral, quando sai
do estado de natureza, passa pela socialização e reconstrói, sob bases éticas, essa mesma
sociedade. Para esse projeto, a educação é a principal estratégia. Educar a criança e
acompanhá-la nas diversas idades até transformá-la em cidadã.
Para Rousseau (1996, p. 392), é do sistema moral formado por essa dupla relação,
consigo mesmo e com seus semelhantes, que nasce o impulso da consciência. Conhecer o
bem é amá-lo; o homem não tem um conhecimento inato do bem, mas, assim que sua razão
faz com que o conheça, sua consciência leva-o a amá-lo. É este sentimento que é inato. O
homem moral nasce com a idade da razão, o bom selvagem não é moral, assim como a
criança até a idade da razão. Cassirer e Handel percebem um Rousseau que aposta na
transformação do homem, inclusive, dos seus componentes instintivos. Esta interação entre o
biológico e o social faz o homem tornar-se moral. O caminho é a liberdade e a
perfectibilidade. Vamos acompanhar, um pouco, a adolescência de Emílio e o surgimento de
Sofia.
93
2.3.1 Emílio e Sofia
O termo adolescência não estava em voga quando Rousseau escreveu O Emílio. No
início do livro, Rousseau (1999, p. 13) divide o final da infância como puberdade, que se
inicia entre os 12 e os 15 anos: é a idade da força. Deixando de lado a dependência e a
fraqueza de criança, o púbere começa a ganhar força e a ficar mais independente.
Essa transição, para Rousseau (1999, p. 272), é uma tempestuosa revolução, anunciada
pelo murmúrio das paixões nascentes; uma fermentação muda, que anuncia a aproximação do
perigo; uma mudança do humor; arroubos frequentes e uma contínua agitação, que torna a
criança quase indisciplinável. Torna surda, a voz que a fazia ficar dócil. Como um leão em
sua pele, desconhece seus guias, já não quer ser governada.
Essa fase, para Rousseau (1999, p. 278), é um “segundo nascimento”. Na criança, o
amor de si, por influência social, já se transforma em capricho, tirania, inveja, ciúme, disputa;
na idade da força, soma-se a vaidade, o orgulho e a crueldade. A comparação com o outro, as
preferências, os preconceitos, a opinião e, principalmente, a imaginação criam necessidades
artificiais, que, somando-se à agressividade e ao egoísmo, fazem do púbere um lobo em
potencial.
Para Rousseau (1999, p. 275), eis como paixões doces e afetuosas nascem do amor de
si, e como as paixões odiosas e irascíveis nascem do amor próprio, assim, o que torna o
homem essencialmente bom é ter poucas necessidades e pouco se comparar com os outros; o
que torna o homem mau é ter muitas necessidades, dando muita atenção à opinião. A partir
desse princípio, é fácil ver como podemos dirigir para o bem e para o mal todas as paixões
das crianças e dos homens.
Esse é o ponto de Arquimedes em O Emílio. A dialética natureza-sociedade, instintosrelação com o outro (intersubjetividade), representa uma estrada com vários caminhos. Se
existe uma tendência para a bondade, esta é apenas uma possibilidade. Na interação criança e
cuidadores, existem inúmeras possibilidades: crueldade, tirania, doçura, maldade. Jogamos
com interação, instintos e meio, ou, em uma linguagem atual, genes e sociedade. A violência
é um produto dessa interação. Podemos até admitir, em Rousseau, tendências naturais, como
o amor de si e a piedade, mas são possibilidades, que podem transformar-se em crueldade e
violência. Até a idade da razão, para Rousseau (1999, p. 377), não podemos falar em moral.
Até então, o jogo das paixões interagindo com os outros vai tecendo suas teias, tais como as
parcas.
94
Na Profissão de fé do vigário Saboiano, que se encontra no capítulo IV do EMÍLIO,
Rousseau fala de um instinto social. “O homem é social por natureza, ou pelo menos, é feito
para tornar-se tal” (ROUSSEAU, 1999, p. 39).
Este trecho contradiz textos anteriores, inclusive algumas passagens em O Emílio.
Colocar a socialização como instinto, dentro da natureza, é reconhecer que não existem
indivíduos isolados, como no Discurso. Este é um paradoxo, entre tantos, na obra de
Rousseau. Para Starobinski (1991, p. 78), transparência e obstáculo, ser e parecer, verdade e
mentira, indivíduo e sociedade, são pares que se opõem e complementam-se em Rousseau.
Existe um movimento circular que inicia na criança e suas tendências inatas de amor de
si, conservação, fome, temor da morte, necessidade de bem-estar, passando pelo outro, que
cuida dela. Desse encontro, paixões inatas, como capricho, ciúme, inveja, crueldade, podem
desenvolver-se. Alguns instintos, como o choro, a manipulação, o capricho e o amor próprio,
dependendo dessa relação com os cuidadores, podem possibilitar à criança transformar-se em
um violento e cruel tirano. Mas, por não ter ainda forças físicas suficientes, a criança espera a
idade da força e da razão para transformar-se de vez em lobo. É na puberdade que a violência
instala-se com toda intensidade.
Na Profissão de Fé, Rousseau (1999 p. 379) declara que Deus não é o autor do mal,
uma vez que Ele é justo e bom e em nada se relaciona com a maldade humana. O autor do mal
é o próprio homem, que é livre, e é essa liberdade que o coloca frente a frente com o bem e
com o mal. A sociedade é feita por homens. Sendo o homem um ser com instinto social, a
sociedade pode ser o produto da perfectibilidade ou da corrupção humana.
Queremos obter a preferência que concedemos; o amor deve ser recíproco. Para ser
amado, é preciso tornar-se amável. Para ser preferido, é preciso tornar-se mais
amável do que os outros, mais amável do que qualquer outro, pelo menos aos olhos
do objeto amado. Daí os primeiros olhares para os semelhantes; daí as primeiras
comparações com eles; daí a emulação, as rivalidades, os ciúmes (ROUSSEAU,
1999, p. 277).
Esse trecho nos fornece pistas sobre o duplo caminho das paixões, no contato com o
outro. Verdade e aparência, transparência e obstáculo. Para Starobinski (1991, p. 98), essa
dialética perpassa o indivíduo, chega ao outro e retorna ao indivíduo. No caso de O Emílio,
esse jogo de espelhos ocorre entre a criança e os cuidadores. Um jogo de rivalidades, ciúmes,
inveja, disputas.
Emílio, na idade da força, deve trabalhar principalmente, em ofícios manuais e estudar,
principalmente história, controlar as paixões, cooperar e trabalhar junto a outros, aprender a
95
socializar-se, cooperando. Segundo Rousseau (1999, p. 356), a troca e a reciprocidade são
valores que devem ser adquiridos por Emilio. Na idade da razão, é “preciso estudar a
sociedade pelos homens e os homens pela sociedade; quem quiser tratar separadamente a
política e a moral nada entende de nenhuma das duas” (ROUSSEAU, 1999, p. 309).
Não é o desejo de ser o primeiro, mas o de superar-se e contribuir para a coletividade,
que faz da idade da razão a fase apropriada para o desenvolvimento da moral. A piedade
desenvolve-se plenamente nesta idade, mas temos o “outro lado”, do amor próprio, do
orgulho, da vaidade e da crueldade. Nesse momento, temos Emilio e o lobo púbere frente a
frente.
Emílio desnaturou-se e tenta contribuir para o contrato social, mas os lobos encontramse soltos, em plena idade da razão, movidos pela vaidade, violentos e cruéis. Emílio,
desnaturado versus lobos, frutos da socialização, que o preceptor tentou evitar em Emílio.
Podemos agora resumir que, dos 12 aos 15 anos, Emílio deve aprender educação social,
ofício manual, hierarquia dos ofícios, escolha de uma profissão e acúmulo de experiências
úteis. Deve lutar contra a opinião e os preconceitos.
Na idade da razão, dos 15 aos 20 anos, vem a educação sexual, estudo da história das
paixões para aprender melhor sobre o homem, o desenvolvimento da piedade levando a uma
verdadeira sociabilidade e a uma educação religiosa. O preceptor forma, assim, o púbere
moral e o racional. Da natureza para a sociedade e da sociedade para a natureza modificada.
Do outro lado, muitos lobos na idade da razão, inflados pela vaidade, são verdadeiros
tiranos. Este confronto ainda passa por Sofia. Vamos agora contar um pouco dessa história.
96
2.3.2 Sofia
“Enfim o grande dia chegou.
Elas partiram, e Cinderela seguia com os olhos até onde pôde.
Quando sumiram de vista, começou a chorar.
Sua madrinha, que a viu em prantos, lhe perguntou o que tinha:
‘eu gostaria tanto de... eu gostaria tanto de...’
Cinderela soluçava tanto que não conseguia terminar a frase.
A madrinha, que era fada, disse a ela:
‘você gostaria muito de ir ao baile, não é?’ ”
(PERRAULT, apud TATAR, 2004, Cinderela ou O sapatinho de vidro, p. 42).
Para concluir seu intento, o preceptor precisa casar Emilio. A sociedade é formada por
lobos, como evitar que a educação das crianças fique sob a responsabilidade de lobos? O
gênio literário de Rousseau cria uma nobre personagem: Sofia.
Diferentemente de Emilio, Sofia não tem preceptor. Aprendeu os trabalhos próprios do
seu sexo, mesmo aqueles de que não damos conta, como cortar e coser seus vestidos.
Aprendeu canto e dança com a mãe e o pai; criada para ser mulher, Sofia não passou pelo
processo de desnaturação de Emilio. Tal como uma personagem virtual, estava pronta, “dócil
e meiga, nem feia, nem bonita, apenas delicada” (Rousseau, 1999, p. 504).
Da boa constituição das mães depende em primeiro lugar a boa constituição das
crianças, do cuidado das mulheres depende também seus costumes, paixões e gestos,
seus prazeres, sua própria felicidade (ROUSSEAU, 1999, p. 502).
Sofia deve seu aprendizado, em boa parte, às lições da mãe, que, como preceptora, faz
introjetar a máxima: “A mulher foi feita para ceder ao homem e para suportar até sua
injustiça” (ROUSSEAU, 1999, p. 554).
Sofia é bondosa, enrubesce fácil, é discreta e tímida, mas é esperta para conhecer os
desejos do homem. Amadureceu rapidamente. Canta e dança, é sensível e pudica. É a perfeita
costela de Emílio, apta a formar filhos, para se submeterem à vontade geral.
Sofia compõe um perfil feminino da época dominada por homens. A submissão da
mulher, a função de mãe e de dona de casa, as diferenças de criação e socialização são
relevantes, no Emilio, que segue uma sociedade formada por homens, em que as mulheres são
meras coadjuvantes. Tanto é que Sofia aparece no final do livro, é pouco aprofundada como
personagem e reproduz a mulher submissa da família nuclear burguesa.
97
Longe do gozo sentido pelas surras da Srta. Lambercier, dos encontros com a Srta
Vurson e a Srta. Goton, que davam tanto prazer e estimulavam a sua luxúria, aos 11 anos20,
Sofia era uma personagem ideal, fruto de uma família que deve ser a base para criação do
sujeito real.
Longe da fundamental e real Srta Warrens, que tem grande importância na formação da
personalidade de Rousseau - já que este perdeu a mãe, ao nascer, e da companheira Thérése,
que lhe deu quatro filhos, que por necessidade, fatalidade e contingência, foram parar no
orfanato -, Sofia é a mulher idealizada por excelência. Uma tentativa de construção de uma
“Família Saudável”, que forma a base da nova sociedade do contrato.
Como uma sequência do processo educativo o preceptor intercepta a mãe e Sofia para o
encontro com Emílio. No final, Emílio diz ao preceptor: “Cumpriste tuas tarefas, guia-me
para imitar-te, e descansa que é tempo” (ROUSSEAU, 1999, p. 680). Sofia, socializada para
ser mulher.
Para extrair um eixo para nosso problema sobre a agressividade e a violência em
Rousseau, é a infância que fornece nossa chave. Não apenas em O Emílio, mas também nas
Confissões, podemos colocar que a criança não é boa nem má, nasce com predisposições. O
meio, os cuidadores, a sociedade como um todo direcionam as tendências naturais.
Locke (2000, p. 78), na sua pedagogia, já antecipa como deve ser a educação das
crianças. Locke quer formar o bom cidadão. Acredita, que a educação, os pais, o preceptor,
podem dobrar tendências naturais e transformar a criança em uma boa cidadã.
O importante é seguir Rousseau, em O Emilio, e ver que a solução final encontra-se na
formação do casal, ou seja, na família. Esse processo passa por uma educação negativa,
monitorizada pelo preceptor, tendo a natureza e os instintos como função fundamental. A
criança deve ser afastada da sociedade, de sua contaminação, para, depois, retornar, sem os
vícios e os desvios, para possibilitar a formação de um sujeito moral. Instintos naturais, como
piedade, empatia, cooperação, vão surgindo naturalmente, sem a intervenção da sociedade
civil, com seus males e sua degeneração.
Sofia fecha o ciclo, em O Emilio, e o preceptor cumpre sua tarefa de educar em favor da
natureza, culminando com o surgimento do amor entre homem e mulher e a formação do
20
Estas mulheres participaram da vida de Rousseau, estimulando a sua sexualidade, seus desejos
masoquistas e um misto de culpa e prazer. São mulheres reais que contribuíram para formação de Rousseau,
segundo o depoimento do próprio escritor contido nas Confissões Livro I, 2008.
98
casal. Essa é a utopia de Rousseau, mas assim, ele tenta fornecer subsídios para diminuir a
violência entre os homens. O contrato faz parte de um processo que passa pela educação, que
não é a educação formal. A natureza ensina ao homem a se tornar um sujeito moral e racional.
Longe de naturalizar a violência, temos a natureza como resposta a ela. É na família, no amor
natural, no casal Emilio e Sofia, que Rousseau tenta encontrar a resposta.
Instintos, genes, temperamento, caprichos, todos esses caminhos, digamos, naturais,
podem ser corrigidos pela educação. Preceptores, professores, pais, sociedade em geral,
podem tornar a criança e o adolescente menos violentos? A agressividade é uma tendência
inata, mas em nada se relaciona com destruição e violência?
99
2.4 AGRESSIVIDADE E VIOLÊNCIA EM ROUSSEAU
Em Rousseau, temos, interpretando seus textos, a agressividade como componente
natural da espécie, que serve para a sobrevivência, a superação, o aperfeiçoamento, a defesa.
Não pode ser considerada um instinto negativo. Detalhamos esse aspecto na relação força e
capacidades naturais em O Emílio. O marco divisor ocorre com a introdução da criança nas
relações sociais. Os instintos naturais trazem o potencial para a piedade, o amor de si e a
cooperação. Não nascemos ávidos por tiranizar e dominar; não somos egoístas por natureza. É
na interação com o cuidador, que representa a sociedade, com suas normas e valores, que
instintos inicialmente positivos se transformarão em tirania, violência, disputa, falta de
consideração pelo outro. Fazer crescer a imaginação na criança, atender a ela e dar força a
caprichos, torná-la rei ou rainha, criar necessidades artificiais, como luxo, riqueza, vaidade
desmedida, faz do homem um ser violento.
A violência é social. Não nasce com o homem, mas se faz nele através dos outros. A
naturalização da violência encontra, em Rousseau, um dos principais opositores. Isso não quer
dizer que somos anjos e bonzinhos, naturalmente, mas que não é na natureza que devemos
tentar encontrar a raiz da violência. A linguagem, assim como em Hobbes, tem um importante
papel na socialização do homem. Fornece chaves do tipo de educação, de desenvolvimento do
sujeito moral e criação de laços de solidariedade e empatia.
A resposta está no coração, na verdadeira natureza do homem, que é piedosa e
cooperativa. Rousseau, nas Confissões21, define que o homem não “é” um lobo para o
homem, apenas “está” um lobo.
A criança é a chave para acompanharmos o processo de socialização. Não precisamos
produzir lobos, mas crianças que se tornarão sujeitos morais, para isso temos que reformar a
sociedade civil tornando-a uma República de cidadãos “virtuosos”. Esta que Rousseau tentou
superar, mas ainda encontra-se presente em nossas vidas. Aqui entramos numa situação
complexa: se a violência é produto social, então o Estado, dominado pela vontade geral, tem
que ser produto da violência. Temos agora uma questão importante a ser colocada: para
Rousseau a violência é criada pelo homem e é através dela que podemos tentar uma
alternativa para uma sociedade mais justa e ética. Esta dupla face da violência é fundamental
para continuarmos o aprofundamento de nossa tese. O processo educativo, por si só, já requer
uma violência simbólica, como refere Bourdieu (2009). Um freio e um limite para reparar a
21
Starobinski (1991, p. 98) remete as Confissões como exercício de desnudamento do véu em Rousseau.
100
violência que instaura a exploração e a formação de pequenos tiranos da sociedade civil.
Neste ponto, através de caminhos diferentes, extraímos de Rousseau este duplo da violência,
que por questão de método denominamos de negatividade e positividade. Este tema será
aprofundado à medida que começarmos a estudar os próximos tópicos.
Vamos agora começar uma jornada pela etologia, psicologia evolucionista,
neurociência, Psiquiatria, para adentrarmos nos séculos XX e XXI, tendo, como proposta,
dialogar com Hobbes e com Rousseau, observar pontos de interseção, divergências e
contribuir para o debate sobre agressividade e violência, trazendo-os para a ciência.
Recorro a Hume (2000), como sombra, presença oculta, fio que une a filosofia, a
ciência e a arte. Para Hume:
Embora não haja tal coisa como o acaso no mundo, nossa ignorância da causa real
de qualquer evento tem igual influência sobre o entendimento gerando equivalente
tipo de crença e opinião. A probabilidade aparece como a superioridade de
possibilidades a favor de uma das partes e, à medida que esta superioridade aumenta
excedendo as possibilidades opostas, a probabilidade recebe um aumento
proporcional gerando maior grau de crença ou assentimento à parte que descobrimos
a superioridade (HUME, 2000, p. 71).
A partir de agora, continuaremos apostando nos sentimentos humanos, na capacidade de
empatia e cooperação: joguemos os dados. Para onde vai pender a violência?
101
CAP. 3
ETOLOGIA E SOCIOBIOLOGIA:
Dos Instintos Básicos à Agressividade Humana
3.1 DETERMINISMO, GENE E AGRESSIVIDADE: Behaviorismo e Meio Ambiente
Coraline observou o gato andar lentamente pelo gramado.
Passou por trás de uma árvore e não reapareceu do outro lado.
Coraline foi até a árvore e olhou por detrás. O gato havia sumido.
(GAIMAN, Coraline, 2003, p. 41).
Para Lestel (2006, p. 15-29), uma autêntica ciência do comportamento animal surgiu
apenas há dois séculos. Citando Descartes, que tem como precursor Gomes Pereira (século
XVI), Lestel (2006, p. 16) coloca que a visão do animal como máquina sem alma influenciou
filósofos e cientistas, incluindo Malebranche (1638-1715), segundo o qual animais e relógios
são regidos pelo mesmo princípio. Buffon (1707-1788) segue os passos do animal-máquina,
colocando que a vida dos animais é monótona, e eles nada criam. Faz uma exceção para os
chimpanzés, mas, mesmo assim, considera-os animais desprovidos de interioridade e de
criatividade e, utilizando uma metáfora, afirma que são “um aborto retardado do homem”.
Lestel (2006, p. 20-21) cita Charles-George Le Roy (1723-1789), como um dos
primeiros cientistas a tentar analisar o comportamento animal, fazendo analogias com o
comportamento humano. Locke (1632-1704), Leibniz (1646-1716) e, principalmente,
Condillac (1715-1780) aprofundarão estudos sobre o comportamento animal, abrindo o
campo epistemológico que nutrirá Darwin (1809-1882), Huxley (1825-1895), Haeckel (18341919) e Lamarck (1744-1829).
Le Roy, com o livro Lettres sur les animaux (1710), torna-se, para Lestel (2006, p. 20),
o precursor da etologia. Faz estudos de campo e começa a tentar pesquisar o que diferencia e
o que assemelha o homem a outras espécies animais. Para Le Roy e Condillac, o estudo sobre
os animais lança luzes sobre o homem, uma vez que a sensibilidade ou a emoção une homens
e outras espécies. Essa é a grande revolução que se afasta do animal-máquina e abre caminho
para o reconhecimento da existência de uma sensibilidade comum entre homens e animais. Le
Roy, segundo Lestel (2006, p. 21), apresenta uma ideia audaciosa para sua época: a de que os
animais possuem uma linguagem artificial.
102
Podemos citar ainda Hobbes, Rousseau e Hume como pensadores que já apontam para
um caminho de analogias entre homens e animais, na época moderna. Estava dado o passo
para Lamarck, Darwin e outros, finalmente, sistematizarem a teoria da evolução das espécies.
A etologia, que dá seus primeiros passos com Le Roy, no final do século XIX e no início do
XX, ganha consistência, principalmente com estudos de Spalding, Haldane, Lloyd Morgan, os
quais utilizam o conceito de “condicionamento”, dando um passo importante para a
fundamentação e o desenvolvimento do Behaviorismo.
Em 1931 e em 1941, finalmente, Lorenz publica oito artigos que definem e cria a
etologia como estudo do comportamento animal.
Dos homens-máquinas a Lorenz, as
hipóteses científicas modificam-se. A filosofia também muda e é obrigada a mudar, uma vez
que se tornava complicado, a partir de Darwin, ignorar a Biologia. Com o século XX, a
Química, a Física, a Biologia molecular e a genética adquiririam o estatuto de ciências que
detêm as respostas significativas sobre a natureza humana.
Wilson (1975) chega ao exagero hiperbólico de pedir para esquecer a filosofia, a
sociologia, a antropologia e a psicologia, já que a Sociobiologia, que utiliza os estudos sobre o
comportamento animal, a genética, as neurociências e a Biologia molecular respondem a tudo.
O homem destronado ou “morto”, como diz Foucault (1982, p. 89), ocupa, agora,
apenas um determinado lugar no interior da cadeia dos seres vivos e recebe um nome: “homo
sapiens”. Para Trigg (1988) e Perugini (2004), as ciências sociais e a filosofia são debitárias
da Biologia, desde a revolução de Darwin, e não podemos realizar pesquisas importantes sem
trazer a contribuição dessa ciência.
A revolução produzida por Darwin na Biologia foi e continua sendo profunda. No
século XX, dentro do marco conceitual darwinista, surge a Etologia, a Biologia molecular, o
Behaviorismo, a Físico-química, a Biossociologia e a Genética. Com Watson e Crick (1953),
precedidos por Mendel (1820-1884), as Parcas da mitologia vão finalmente assumir um
estatuto cientifico22. Todas estas transformações acarretam um deslocamento no conceito de
animal, aproximando o homem, cada vez mais, das outras espécies aparentadas.
Para Lorenz (1982, p. 76), o comportamento do homem é fundamentalmente
semelhante ao dos outros animais, e os homens estão sujeitos às mesmas leis causais da
natureza. Ainda de acordo com Lorenz, o critério para determinar que certo padrão de
comportamento seja inato é que ele seja mostrado por todos os indivíduos normais da espécie,
22
As parcas são aqui utilizadas como metáfora dos genes que tecem a cadeia da vida.
103
de determinada idade e sexo, sem nenhum aprendizado anterior e sem tentativas e erros,
tendo, como maior exemplo, o comportamento agressivo (LORENZ, 1982).
Lorenz (1994, p. 98) ainda postula que o homem tem o padrão inato do comportamento
agressivo. Esse impulso, no homem, não é ilimitado em função de armas e artifícios que
multiplicam o poder ofensivo. Além desse fator, o não respeito aos gestos de submissão feitos
pelo perdedor, presente em outras espécies, encontra-se diminuído no homem, contribuindo
para o aumento da agressividade intra-espécie.
Para Lorenz, a “agressão intra-espécie é o mais grave de todos os perigos da
humanidade” (LORENZ, 1994, p. 45). A agressão é inata, mas a cultura humana e,
principalmente, a situação atual da sociedade tecnológica propicia um aumento sem
precedentes da agressividade entre os homens.
Ao considerar a agressividade como um componente inato da natureza humana, Lorenz
aproxima-se de Hobbes; porém, para Lorenz (1994, p. 121), a guerra de todos contra todos,
nos seres vivos não humanos, não redunda em uma agressão contra a mesma espécie, estando
ligada à sobrevivência, demarcação de território e hierarquia. Já no homem, com o advento
dos fatores sócio-culturais e simbólicos, esse instinto acentua-se a ponto de pôr em risco a
própria espécie.
Lorenz representa apenas uma vertente do debate natureza-cultura, que para Matt Ridley
(2008, p. 34), começa a se esboçar no século XVIII, com o Iluminismo e a partir do século
XX até hoje provoca querelas entre corretes de pensamento que defendem que o homem é
determinado pelo meio ou pela genética. Inato e adquirido são cara e coroa de uma mesma
moeda, para Ridley (2008, p. 89), mas o dogmatismo persiste gerando falsas dicotomias.
Diferentemente de Lorenz, por exemplo, Skinner e Watson, criadores da corrente
Behaviorista, partindo de Pavlov e seus reflexos condicionados, delegam ao meio ambiente
um papel determinante na formação da natureza humana.
Neste aspecto, podemos interferir e mudar a natureza humana. Ridley (2008, p. 234)
chega a colocar que nas fantasias de Watson (apud RIDLEY, 2008, p. 126) o homem poderia
criar qualquer tipo de sociedade se conseguisse condicionar as crianças desde o nascimento
para serem boas, más, artistas, cientistas. Foge ao escopo deste estudo fazer uma análise
epistemológica deste tipo de psicologia, mas o Behaviorismo contrapõe-se, por exemplo, a
toda interioridade e subjetividade da psicanálise, que parte de uma base instintiva e inata, pelo
104
menos em Freud e Piaget23, que cria o construtivismo a partir de uma base genética que
determina as etapas do desenvolvimento da criança24.
Dentro destas querelas, em 1975, aparecia um livro de E. O. Wilson, intitulado
Sociobiologia, que tinha a pretensão de “codificar a sociologia dentro de um ramo da biologia
evolutiva, abarcando todas as sociedades humanas, antigas e modernas, pré e pós industriais”
(WILSON, 1975, p. 8).
Para Wilson (1975, p. 102), “a existência de indivíduos poderosos e dominantes, que
governam despoticamente o resto do grupo, é um fenômeno que tem correlato nos primatas
superiores; a agressão faz parte do ser vivo e serve para sobrevivência, sendo positiva. Ainda
segundo Wilson o gene determina o comportamento egoísta no homem, e isto aproxima a sua
teoria à de Hobbes. O altruísmo e as cooperações são estratégias do egoísmo genético em prol
da sobrevivência do gene. Aproximando esta visão do pensamento de Hobbes, poderemos
reinterpretar as “leis da natureza” hobbesianas como uma estratégia adaptativa presente no
código genético.
Dentro desta corrente de pensamento, temos Richard Dawkins (2001), que com o livro
O Gene Egoísta de 1976, expõe a tese que todas as nossas condutas são estratégias de genes
para reproduzir-se e perpetuar-se. O mundo criado por esta máquina de genes é egoísta,
competitivo, feito de exploração impiedosa, onde o altruísmo seria apenas uma estratégia para
perpetuar o gene. Dawkins cria metáforas, pois ao falar de humanos recorre aos “memes”,
como veremos adiante. Está dado um passo importante na eterna luta natureza/cultura. A
psicologia evolucionista, a partir da década de 80, penetra de vez nos debates sobre a natureza
humana: genes, neurociências, etnólogos, sociobiólogos, psicólogos evolucionistas,
comportamentalistas, psicanalistas, todos querem uma fatia do bolo. Sonho (ou pesadelo) da
biopolítica25, segundo Agamben (2007, p. 89), a Biologia foi a grande estratégia para controle
23
Piaget desenvolveu seus trabalhos no século XX, partindo do desenvolvimento da criança e da
interação desta com o meio ambiente. A criança parte de um estágio sensório motor, passa pelo estágio préoperacional, depois de operações concretas e abstratas. Através da interação com o meio ambiente vai se
construindo, modificando-se e modificando o meio. Freud parte do inconsciente, dos instintos que não são
reconhecidos pelo ego consciente, criando uma meta-psicologia, onde segundo o qual, o homem é refém do
inconsciente.
24
O construtivismo parte de um pressuposto que a crianças, ao interagir com o mundo, vai construindose e modificando o que está ao redor. Com os conceitos de estágios (sensório-motor, pré-operacional, operações
concretas e abstratas), a criança vai seguindo uma sequência de interação biologia e meio ambiente, onde ambos
influenciam-se. PIAGET (1994) é um dos principais pensadores do construtivismo.
25
Temos que nos reportar ao conceito de biopolítica e de governabilidade de Foucault. A biopolítica é
uma estratégia de controle dos corpos e das populações. A biologia é assim usada politicamente, em função de
fazer parte de jogos de verdade e da relação saber-poder do Estado, que servem para controle dos corpos de um
dado território. Foucault desenvolve o tema ligando-o à governabilidade que vai controlar as populações através
105
da população e dos indivíduos por parte do nazismo e do stalinismo e continuaria sendo, para
Agamben, a estratégia das modernas democracias, principalmente em época de
globalização26. Gene e ambiente compõem um jogo de dados, parodiando Hume, e os cálculos
da aposta são políticos.
Esta redução dos comportamentos sociais ao gene ou ambiente é perigosa para Ridley
(2008), Gould (1981) e Rüffiê (1980), pois “grande parte da conduta humana é uma adaptação
entre o gene e o meio. Nós somos capazes de dar outra direção ao determinismo genético
através da cultura” (GOULD, 1981, p. 177). A política entra neste cálculo, pois ela determina
que uma versão ou outra prevaleça em determinado momento.
De Lorenz a Dawkins, passando por Wilson, temos uma visão biológica ou biologicista,
que procura reduzir o comportamento humano aos seus condicionantes “naturais” ou
genéticos e é ideologicamente comprometida com uma visão autoritária e conservadora da
política, cuja solução para a agressividade é, como diz Hobbes, “a espada” (HOBBES,
2000, p. 108).
Esta visão é determinista e trabalha com a idéia central de que a agressividade é um
instinto que é evolutivamente adaptativo, sendo o homem geneticamente egoísta e
competitivo. Por outro lado, comportamentalistas, como Watson e Skinner, localizam a
agressão e a violência na sociedade e propõem uma revolução política, que mude o homem
através do condicionamento social.
Nosso foco é a agressividade e a violência; no entanto, apesar das diferenças,
permanece uma certa confusão semântica, na Biologia, que não distingue claramente
agressividade de violência e tende a naturalizar as duas.
Passaremos agora para estudos de primatologistas, que, principalmente, a partir da
década de 90, vem trazendo importantes contribuições ao debate sobre a natureza humana.
de práticas higienistas que se centram na saúde. Uma população sadia e corpos dóceis é o ideal da biopolítica
para tornar o corpo rentável e produtivo para o sistema capitalista. Esta ideia vai servir de parâmetro para a
crítica da biologia como discurso hegemônico sobre o saber e criador de estratégias de poder.
26
Esta tese é questionável porque aplica indiscriminadamente o conceito de “estado de exceção” tanto
aos regimes democráticos como às ditaduras, assimilando assim dois sistemas radicalmente diversos com
relação, por exemplo, ao respeito aos direitos humanos.
106
3.2 NOSSA HERANÇA PRIMATA E ADAPTAÇÃO HUMANA: Agressão, Pacifismo e
Bipolaridade
“Os diamantes e as pistolas
muito podem sobre os espíritos;
não obstante as palavras doces
têm ainda mais força,
sendo muito mais valiosas”
(PERRAULT, 2008, p. 252).
Wranghan e Peterson (1998) situam nossa agressividade na herança primata,
principalmente os chimpanzés, seguindo os estudos de Morris (1969), que foi um dos
primeiros autores a investigar nossa herança primata na década de 1960. “É verdade que
chimpanzés e humanos regularmente matam adultos da própria espécie. Os chimpanzés e os
humanos também compartilham outros males; assassinatos políticos, espancamento e
estupros” (WRANGHAN e PETERSON, 1998, p. 164).
No livro O Macho Demoníaco (1998), os autores defendem a tese de que a
agressividade humana é produto de nossa herança primata, que partilhamos principalmente
com os chimpanzés, que possuem 99% do material genético semelhante ao dos humanos. Para
Wranghan e Peterson (1998, p. 167), “nos chimpanzés o gênero masculino responde por
quase a totalidade dos atos agressivos”. Sendo assim, além de nossa herança comum aos
chimpanzés, para os autores, a agressividade estaria relacionada com o sexo masculino.
Ao comparar os chimpanzés com os bonobos27, outros tipos de primatas, os autores
analisam a formação social, na segunda espécie de primatas, como matriarcal, constatando
que os bonobos conseguem viver com pouca agressividade, em função da diminuição do
poder dos machos.
Por exemplo, no âmbito desta linha de pesquisa, Frans De Waal (2007) desenvolve
importantes estudos sobre a estrutura social e política de chimpanzés e bonobos, uma espécie
de primata, cuja estrutura social é menos hierárquica, e o poder concentra-se mais em fêmeas,
encontrando pouca agressividade intra e extraespécie.
No livro Chimpanzee politcs (1989), De Waal estuda o poder e a distribuição deste
entre chimpanzés que possuem uma estrutura de hierarquia rígida e fronteiras intragrupais
27
O bonobo foi descoberto em 1928, pelo anatomista estadunidense Harold Coolidge, representado por
um crânio que está no museu de Tervuren, na Bélgica, o qual se acredita ter pertencido a um chimpanzé juvenil.
A descoberta foi publicada em 1929. A espécie distingue-se por uma postura ereta, uma cultura matriarcal e
igualitária, e o papel proeminente da atividade sexual em sua sociedade. Estudos genéticos apontam que os
bonobos são os animais mais próximos dos humanos. Os bonobos é uma espécie de primata que se encontra em
diversos locais da África. O estudo sobre eles tem avançado, principalmente a partir da década de 1990.
107
estreitas, em que a agressividade e a luta pelo poder são a norma. Nossa herança primata é
gregária e, mesmo com a agressividade dos chimpanzés, quando passamos a analisar os
bonobos, que também apresentam 99% do material genético semelhante ao nosso, entre essa
espécie de primatas, a agressividade encontra-se diminuída. Entre os bonobos, a estrutura
hierárquica é frouxa, o poder do macho é restrito, e o ambiente apresenta recursos mais
abundantes para possibilitar a sobrevivência. Os bonobos apresentam também traços de
temperamento que os torna mais pacíficos e dóceis.
Entre esses dois espectros, teríamos duas possibilidades de heranças primatas: uma que
reforça a agressividade natural, e outra que relativiza a agressividade, como um fator de
interação entre Biologia, meio ambiente e traços de temperamento, sendo a sociedade dos
chimpanzés a primeira, e a dos bonobos a segunda possibilidade.
Não temos, em De Waal, uma separação entre agressividade e violência, mas uma
inscrição do biológico em duas tendências, uma agressiva e hierárquica, com lutas pelo topo
do comando, e outra com estrutura mais pacífica e menos agressiva.
Nos bonobos, segundo De Waal, a estrutura pouco competitiva, a maior tolerância intra
e inter-espécie faz com que a resolução de conflitos seja mais eficaz. A paz entre essa espécie
de primatas nos remete ao mito do “bom selvagem” de Rousseau. Os bonobos são produto de
traços de temperamento herdados, menos agressivos, com estrutura social menos hierárquica,
menos lutas pelo poder e ambiente ecologicamente favorável, o que faz com que se questione
o determinismo genético, já que são capazes, para De Waal (2007, p. 78), de criar outra
estrutura social, em que a colaboração e o altruísmo fazem desta sociedade um contraponto à
sociedade dos chimpanzés.
Para De Waal, partindo dessas duas heranças de primatas, chimpanzés e bonobos, a
natureza humana carrega uma bipolaridade que é reforçada, ora para o lado sombrio e
agressivo, ora para o lado pacífico e apaziguador; esse reforço é sócio-político. Visão também
compartilhada por autores, como Gould (1981) e Rüffiê (1980), na Paleontologia e Biologia.
Segundo De Waal:
Somos afortunados porque em nosso íntimo habita não um, mas dois grandes
primatas. E os dois, juntos, nos permitem construir uma imagem de nós mesmos
consideravelmente mais complexa do que a que a biologia nos tem apresentado
nos últimos vinte e cinco anos. A ideia de nós, humanos, como criaturas
puramente egoístas e perversas, com uma moralidade ilusória, carece de revisão
(DE WAAL, 2007, p.291).
Baseando-nos nesses estudos, podemos tentar responder às seguintes questões: o ser
humano é violento por natureza e necessita do poder da espada para coibir esta violência? Ou
108
a natureza humana é mais complexa, trazendo a propensão tanto para a agressividade
desenfreada, como para a paz, estando, assim, inscrita em uma bipolaridade? A questão pode
ser recolocada: até que ponto a herança primata fornece pistas para a violência humana, já que
a agressividade é biológica? Nesse caso, podemos falar de chimpanzés mais agressivos e
bonobos menos, mas a bipolaridade não serve para explicar a violência humana; no máximo,
para apontar tendências biológicas agressivas, que, sob o efeito da estrutura social, propiciam
uma maior violência entre os homens.
Passaremos a analisar agora o pensamento de Lorenz, que naturaliza a agressividade,
porém não separa esta da violência. Diferente de De Waal, Lorenz não aprofunda nossa
herança primata e estuda a agressão como instinto que, no homem, assume uma dimensão
patológica28.
28
Um tipo de agressão emocional e geralmente impulsiva. É um comportamento que visa a causar danos
ao outro, independentemente de qualquer vantagem que se possa obter. Estamos face a face com uma agressão
hostil, quando, por exemplo, um condutor bate propositadamente na traseira do automóvel que o ultrapassou.
Esse comportamento só trouxe desvantagens para o próprio: tem de pagar os danos do seu carro, do carro do
outro condutor, podendo ainda vir a ter problemas com a justiça. O termo raiva pode designar esse sentimento
em oposição à agressão premeditada.
109
3.3. KONRAD LORENZ: A Agressividade Humana
3.3.1 A Agressividade, Ritos e Socialização
“Ela bateu a tampa com tanta força
que a cabeça do menino caiu dentro da arca com as maçãs”
(RUNGE, apud TATAR, 2004, O pé de Zimbro, p. 163).
Lorenz (1982, p. 47) coloca que “tem bons motivos para considerar a agressão intraespécie, na situação cultural histórica e tecnológica atual da humanidade, como o mais grave
de todos os perigos.” Segundo Lorenz, a agressão é um instinto herdado geneticamente, que
faz parte de nossas respostas reflexas a situações que ameaçam a vida. A conservação da
espécie é a motivação primordial para o instinto agressivo ocorrer. Por instinto compreendese um sistema espontaneamente ativo de mecanismos comportamentais, suficientemente
conectados por uma função comum, justificando sua denominação. Temos, para Lorenz,
vários instintos inatos, como fome, sexualidade, fuga e a agressividade. Na realidade, eles se
interrelacionam. Ao estudar a agressividade, devemos fazer um enquadramento didático,
considerando a interdependência desses instintos. A esses quatro instintos e à relação entre
eles, Lorenz denomina “assembléia dos instintos”, que é outra denominação para hierarquia
dos instintos de Tinbergen (apud LORENZ 1982, p. 67). Para este autor, quando um instinto
se sobressai, por exemplo, a fuga, os outros são momentaneamente inibidos ou atenuados. A
proximidade de duas motivações dentro de um sistema hierárquico encontra sua expressão no
tempo de que necessita para transcorrer, antes de o organismo estar apto a mudar de um
padrão para o outro. A unidade de um instinto não pode ser realizada mudando de um padrão
para outro. Um instinto pode vir de um nível elevado de hierarquia e se interrelacionar com
padrões motivacionais de outros menos intensos para aquela resposta.
Ao estudar a agressão, Lorenz coloca que não devemos isolar o instinto, mas
didaticamente, enfatizar que, em determinada resposta motivacional, ele predomina dentro da
assembleia dos instintos, porém sem deixar de relacionar-se com os outros. A observação da
agressividade é empírica. Para a Etologia, é fonte de experimentos de laboratórios, através do
método indutivo-dedutivo.
Em todas as espécies, Lorenz coloca, como componente da agressão, os combates,
como a principal maneira de observação destes. “Em todos os combates entre espécies
diferentes, a função conservadora da espécie é muito mais evidente que no combate entre as
mesmas espécies” (LORENZ, 1982, p. 42). Dentre esses combates, os principais são a luta
110
entre presa e predador e o mobbing, que é o reconhecimento da presa do ataque do predador,
dando oportunidades de escapar. O terceiro tipo de combate é a reação crítica, em que a
presa encontra-se cercada e vai para o tudo ou nada: ou luta desesperadamente, ou morre.
Para Lorenz (1982, p. 47): “Todos estes casos de combate entre espécies animais
diferentes que acabamos de descrever tem em comum o seguinte: cada um dos antagonistas
adquire pelo seu comportamento, ou deve adquirir uma vantagem no interesse da conservação
da espécie”.
Para compreendermos melhor esses combates, a Etologia trabalha com categorias
importantes, principalmente o território e a hierarquia. O território ou nicho ecológico é o
espaço onde uma determinada espécie ou grupo, dentro da espécie, agrega-se. As lutas são
geralmente travadas em referência aos territórios.
Este mecanismo da luta territorial - mecanismo muito simples sob o aspecto da
fisiologia do comportamento – resolve quase de forma ideal o problema de saber de
que modo repartir, num território restrito, animais semelhantes de um modo
equitativo, ou seja, de molde a que a totalidade da espécie aproveite isso (LORENZ,
1982, p. 55).
A função da hierarquia é determinar quem manda, e quem obedece, quem protege ou
vai ser protegido, a qual mantém a coesão social dos grupos animais e serve para a
conservação da espécie, além de ligar-se ao estabelecimento de um território.
Podemos diferenciar a agressão interespecífica (entre espécies diferentes) e a agressão
intra-específica (no interior de uma mesma espécie). A primeira relaciona-se com a lógica
presa-predador, e a segunda tem como função garantir a repartição regular de animais da
mesma espécie em um território, mas não é a única; já Charles Darwin notara, com razão, que
os combates entre rivais, sobretudo entre machos, favorecem a seleção natural, ou seja, a
seleção dos melhores e mais fortes (LORENZ, 1982).
É nessa forma de agressão, a intra-específica, que se encontra, para Lorenz, a raiz do
‘mal’, principalmente, no homem. Esse tipo de agressão, instintiva e funcional em outras
espécies animais, assume, no homem, proporções devastadoras. Lorenz chama essa
degradação de um mecanismo inato, fora de qualquer controle, de “agressão patológica”.
Lorenz considera o instinto da agressão um dos mais úteis para a conservação da
espécie, porém, se descontrolado, um dos mais perigosos. O homem possui essa herança, que
não pode ser modificada pelo meio. Discordando de autores behavioristas, como Pavlov,
Skinner e Watson, Lorenz coloca que o papel do meio ambiente, das condições sócioculturais, pode, no máximo, canalizar o instinto para uma direção útil à preservação da
111
espécie. A preocupação de Lorenz é com a agressão intra-espécie, que, para ele, atinge o ápice
da patologia na espécie humana.
De acordo com uma definição psiquiátrica antiga, e sempre útil, um psicopata é
um homem que ou sofre das exigências da sociedade ou a faz sofrer. Assim, em
determinado sentido, somos todos psicopatas, porque cada um de nós sofre da
necessidade de impor a si próprio um controle para o bem da comunidade. A
definição que acabamos de mencionar era, no entanto, destinada às pessoas que,
sem sofrer em segredo, fraquejam abertamente sob a pressão que lhes é imposta,
tornando-se neuróticas ou delinquentes (LORENZ, 1994, p. 284).
Lorenz (1982) coloca que, em outras espécies, algum mecanismo, como a ritualização,
contribui para diminuir a agressão intra-espécie. Através dela, a agressão é redirecionada para
objetivos de agregação social. A ritualização, em outras espécies que não a humana, dá-se
através de uma propriedade hereditária recém-formada, que copia modos de comportamento,
cujo fenótipo era anteriormente causado pelo concurso de vários fatores, muito diferentes do
meio externo. Cerimônias de acasalamento, danças entre outros servem a esse propósito,
tendo sua origem em um material instintivo, que se modificando, produz um efeito de
apaziguamento e diminuição da agressividade.
Em relação aos ritos, podemos estabelecer fronteiras entre o homem e outros animais, já
que no homem os ritos não são incorporados no patrimônio hereditário. São transmitidos pela
tradição, e cada indivíduo tem de aprendê-lo de novo (LORENZ, 1994, p. 89).
No homem, a formação dos ritos tradicionais começou certamente na aurora da cultura
humana. Esta formação, para Lorenz, é análoga à formação de ritos em outras espécies
animais. O hábito é o que aproxima o homem e outras espécies. A repetição dos hábitos nos
ritos estabelece a propagação e o desenvolvimento destes.
As duas principais funções dos ritos, para Lorenz, são: a canalização da agressão para
fins inofensivos e a criação de laços entre dois ou mais indivíduos. Sejam filogenéticos ou
culturais, os ritos contribuem para diminuir a agressividade intra-espécie.
A esse mecanismo de formação dos ritos, em outras espécies, Lorenz denomina
“especificação”, que é totalmente dependente dos instintos. No homem, tomando o termo
emprestado a Eric Erikson (apud LORENZ, 1982, p. 124), Lorenz denomina “pseudo
especificação” 29. A família e a escola compõem instituições em que a pseudo-especificação30
desenvolve-se.
29
A pseudo-especificação apresenta componentes aprendidos e culturais, que transformam os instintos.
112
No entanto, essa pseudo-especificação tende a produzir ritos rígidos e de difícil
modificação, e, por outro lado, contribui para a coesão grupal, tendo como desvantagem a
discriminação de grupos diferentes como inimigos e rivais.
Para Lorenz (1982, p, 103), “esse é o lado triste da pseudo-especificação. Ela faz-nos
considerar os membros das pseudo-espécies diferentes dos nossos como não humanos; muita
tribo primitiva tem essa tendência”.
Essa situação coloca-nos diante de uma dificuldade: se, por um lado, a pseudoespecificação produz ritos que fazem diminuir e canalizar a agressividade, ela também produz
a agressividade, talvez mais nefasta e devastadora que a inibida intraespécie pelos ritos.
Neste caso, podemos citar diferenças religiosas, por exemplo, como causa de violência e
perseguições, diferenças de ideias e padrões culturais, produzidas pela pseudo-especificação,
que levam a guerras e à destruição da alteridade.
Partindo da ritualização, que tem componentes inatos e culturais, principalmente no
homem, até chegar à agressividade entre grupos com pseudo-especificações diferentes, temos,
diante de nós, uma agressividade de difícil controle. Para Lorenz, assim como para Hobbes, a
agressividade é natural e faz parte de nossa herança animal. Mas a agressão confundindo-se
com violência, não produzem um corte entre o homem e as outras espécies. Além de
naturalizar agressão e violência de maneira confusa, Lorenz confunde violência com agressão
patológica, biologicizando um componente social.
Como vimos até agora, a agressão em Lorenz, é um instinto que, no homem, pode sair
do controle e assumir a hierarquia na “assembléia dos instintos”, levando à destruição e ao
desequilíbrio. Essa agressividade assume grandes proporções no homem, sendo denominada
por Lorenz de “agressão patológica”. Esta é uma falácia de Lorenz que serve para naturalizar
a violência através de outra roupagem.
Para Lorenz (1982, p. 70), “Freud foi o primeiro a sublinhar a autonomia fundamental
dos instintos em geral, embora só muito mais tarde tenha reconhecido o instinto da agressão
no homem”.
Para Freud (1969), esta agressão, ligada ao instinto de morte, pode levar ao “mal-estar
na civilização”. Este instinto agressivo, como qualquer outro instinto, não necessita de um
30
A pseudo-especificação serve para criar instituições sociais para canalizar instintos agressivos, por
exemplo, para finalidades sociais úteis. Exemplificando: a hierarquia, na família, e a obediência aos mais
velhos, fazem com que a criança atenue a agressividade para fins sociais construtivos, como estudar, cooperar. A
pseudo-especificação é um mecanismo cultural, criado pelo homem, para canalizar o instinto agressivo para fins
socialmente úteis.
113
gatilho ou estímulo externo para ser desencadeado, depende de um limiar de excitação que o
instinto produz no sistema nervoso central.
Segundo Lorenz (1982, p. 72), todo o movimento instintivo a que se recusa a
possibilidade de ab-reação (descarga, extravasamento), pode ter como efeito pôr o animal em
um estado de agitação e fazê-lo procurar os estímulos aptos a provocá-lo. Essa busca consiste,
no caso mais simples, em comer, voar ou nadar, mas pode, nos casos mais complicados,
iniciar todos os comportamentos de aprendizagem ou insight.
Tal movimento de agressão atinge seu limiar maior de excitação na agressão intraespecífica. Todo movimento agressivo tem que ser ab-reagido, ou seja, efetivado e
descarregado. Caso haja um “recalcamento”
31
da agressão, esta passa a diminuir seu limiar
para descarga, tornando-se incontrolável e buscando alvos diversos daqueles para os quais foi
direcionado na agressão intraespecífica, esse mecanismo torna-se bastante perigoso e
destrutivo, já que há uma tendência, após o recalque da agressão descarregada intragrupo,
provocando inclusive o filicídio.
No homem, esse recalque gera uma diminuição do limiar de agressão, que, para ser
descarregado, em muitas ocasiões, volta-se contra membros do próprio grupo ou família.
Enfim, para Lorenz, a agressão é um instinto que, fisiologicamente, tem seu
correspondente em um limiar de excitação que se descarrega no sistema nervoso central. Cada
organismo tem um limiar biológico. O meio ambiente pode recanalizar, reorientar, mas nunca
suprimir a agressividade.
Vimos que, nos ritos, nos hábitos e nas cerimônias, filogeneticamente ou culturalmente
herdados, encontra-se um mecanismo eficaz para reorientar e diminuir a agressão intragrupo.
Uma das funções dos ritos e das cerimônias é aumentar os laços afetivos dentro do grupo. No
homem, esse processo foi denominado pseudoespecificação, que tem forte influência cultural.
No entanto, se a agressão, dentro dos grupos, encontra-se diminuída, a coesão e as afinidades
estão aumentadas, temos essa agressão voltada para pseudo-especificações diferentes. Temos
novamente a confusão entre agressividade e violência, que é também comum a Freud. A
agressão é um instinto, mas nada leva a deduzir que foge do controle no homem, produzindo
uma desmedida de agressividade, nesse aspecto estamos aquém de outras espécies, que têm
meios naturais para controle da agressividade.
31
Lorentz utiliza muitos conceitos freudianos para corroborar seu pensamento, sendo “ab-reação” e
“recalcamento” dois deles.
114
Porém, o que, em Lorenz, é instinto e está inscrito na biologia, para Clastres, é um
produto da formação social, um artifício. Para aquele, a agressão perpassa todas as espécies
animais e independe dos mecanismos de controle ou reorganização serem filogenéticos ou
culturais, pois é um instinto inscrito no corpo.
Aprofundando agora a agressão para os grupos, dentro destes, ocorre o reconhecimento
dos membros que o compõem como “amigos” ou componentes, cujo reconhecimento, em
muitas espécies, pode dar-se através do olfato, da audição, da visão ou de qualquer outro dado
sensorial. Os membros que não se reconhecem como “amigos” são identificados como
“inimigos” e, assim, destruídos32.
Lorenz (1982, p. 170) descreve o desenvolvimento da socialização nas espécies, que se
inicia com os bandos anônimos, cujo principal exemplo é o cardume de peixes. Nesses bandos
anônimos, a amizade pessoal ainda não se encontra desenvolvida, é uma associação pacífica,
em que a coletividade anônima se sobressai aos laços pessoais. Lorenz coloca que:
A forma mais primitiva de ‘sociedade’, no sentido mais lato do termo, é certamente
o bando anônimo e os peixes, ao largo do oceano, dão-nos o melhor exemplo disso:
No interior de tal grupo, não existe nenhuma espécie de estrutura, de chefe, de
companheiro, mas um amontoado formidável de indivíduos similares (LORENZ,
1982, p. 171).
O bando anônimo é a indiferenciação total. Não existem ainda laços pessoais, ritos ou
estruturas mais complexas de socialização. Nos bandos anônimos, não ocorre a agressão, mas
a socialização mais rudimentar já foi posta em prática pela evolução e é suficiente para inibir
a agressão.
A socialização complexifica-se, e o próximo passo se dá através da habituação a
estímulos que um congênere emite. Esse mecanismo de reconhecimento de congêneres,
através da habituação, inibe o comportamento agressivo com membros intragrupo. Habituarse a todos os estímulos que um congênere conhecido emite é, provavelmente, a condição
necessária, para que se possa formar qualquer vínculo, estabelecendo a filogênese do
comportamento social.
O próximo passo, em Lorenz, é analisar a sociogênese entre espécies que agridem e
necessitam destruir outras especificações diferentes. Analisando a sociedade de ratos, Lorenz
coloca que o reconhecimento entre eles se dá através do cheiro, e o rato que não possuir um
cheiro reconhecido pelos outros é alvo de ódio e destruição, acabando geralmente em atos de
32
Não sabemos, ao certo, se Lorenz leu Schmitt, mas existem correspondências entre estes conceitos,
uma vez que ambos viveram o mesmo período histórico e aderiram ao nazismo.
115
crueldade. Nesse aspecto, a agressividade já não tem um valor evolutivo específico, como
conservar a espécie. Lorenz (1982, p. 177) fala, nesses casos, da “função do mal’, para
caracterizar essa forma de agressividade33.
Essa formação social, que tem como modelo a sociedade de ratos, é ainda impessoal,
tendo como uma de suas características a substituição de um membro por qualquer outro.
Esse tipo de formação social move-se através de lutas extra grupos, onde a agressão assume
níveis de ódio intenso e de destruição sem limites.
Temos, ainda, as formações sociais formadas por laços, que introduzirão um elemento
novo no processo de socialização: a individualização das relações. O laço, para Lorenz (1982,
p. 207), é “o que individualiza uma relação”.
Chamaremos a uma comunidade unida pelo laço, um grupo. Tal como o bando
anônimo, o grupo é, portanto, caracterizado por uma coesão geral. Devido a reações
provocadas por seus membros uns sobre os outros. Mas, ao contrário dessa ordem
social impessoal, as reações estão aqui estritamente ligadas à individualidade dos
membros do grupo (LORENZ, 1982, p. 197).
A formação desses laços é fundamental para o desenvolvimento de uma socialização
rica e complexa, em que os membros do grupo passam a discriminar uns aos outros. Laços de
parentesco, amizade, inimizade, passam a surgir através desses mecanismos.
Para Lorenz (1982, p. 244), “o laço pessoal, a amizade individual, encontram-se
unicamente em animais, cuja agressividade intraespecífica é muito desenvolvida, [...]”. A
solidariedade de dois ou de vários indivíduos se tornou necessária para cumprir a tarefa útil à
conservação de espécie, e, na maioria das vezes, à proteção dos filhos.
Nessa fase de evolução social, a agressividade e o amor passam a ser correlatos, já que,
em espécies muito agressivas, o laço que produz o amor desenvolve-se. Derivado do amor,
Lorenz (1982, p. 243) fala do “irmão mais novo do amor, o ódio”.
Assim como o amor, o ódio necessita de laços para se exteriorizar. Em ratos, como
vimos anteriormente, é através do odor, não de laços, que ocorre uma diferenciação dentro da
comunidade, e quem não é reconhecido pelo cheiro, passa a ser destruído.
Nas espécies com laços definidos, esse ódio é voltado para o outro, o inimigo, o que não
comunga das afinidades grupais, o outsider que não entra no sistema de ritos, cerimônias e
não reconhecimento de hierarquia e território do grupo.
33
Mas esta parece ser uma tese metafísica! O que é esta “função do mal”? É uma versão científica do
pecado original? Como pode existir uma função que não tem uma “função” específica para a sobrevivência da
espécie?
116
Para Lorenz, assim como para Schmitt (1992), no livro, O conceito do político, o
inimigo do grupo é o que dá coesão e diminui a agressividade entre os amigos, que são
objetos de proteção, cuidados, zelo e carinho, enquanto o inimigo, de ódio e de agressividade
desmedida.
Lorenz, ao chegar a essa conclusão, analisa que, em gansos, através do ritual do triunfo,
ocorre uma diminuição da agressão contra os inimigos. Nessa espécie, um ritual específico
faz com que reine a paz entre grupos diferentes.
Para Lorenz (1982, p. 267), se é possível a natureza achar soluções para a agressividade
entre grupos diferentes, o homem não pode resignar-se a aceitar o que ele chama de
“agressividade patológica” como elemento fixo para nossa espécie. Somos bem mais
complexos que gansos.
Um conceito fundamental, em Lorenz, é o de imprinting, que é um instinto que faz com
que o animal se fixe ao primeiro objeto que se mova diante dele, ao nascer. O imprinting
comporta um aspecto temporal entre tempo de nascimento e fixação da imagem, que, em
gansos, é de mais de 15 horas após o nascimento e menos de três dias. A formação de laços
sociais depende do imprinting, que é instintivo, mas, como observa Ridley (2008, p. 196), a
apresentação da imagem que o fixa é ambiental. Por exemplo, um ganso pode-se fixar a um
bode, um homem, um boneco, se eles estiverem no ambiente e no período de suscetibilidade
de fixação da imagem. O imprinting é inato, mas a imagem é ambiental.
No homem, apesar dos instintos, existe a cultura, a tradição, a criatividade, que
produzem um corte entre agressividade e violência. É o que analisaremos agora. Tendo como
padrão a interação instinto-ambiente no Imprinting, podemos fazer algumas conjecturas sobre
a agressividade e a violência, delimitando pontos de ruptura e possíveis interseções.
Este é um ponto de ligação entre a agressividade biológica e a violência social. Se no
imprinting observam-se fenômenos que socializam, tipo imitação, atuando e modificando
algumas configurações cerebrais, como ativação do sistema de memória, é neste aspecto que
biologia e ambiente interagem. Deixamos a dimensão biológica como humanos e adentramos
na dimensão social com interação do social no biológico.
Esta é uma hipótese que, segundo Ridley (2008), esta sendo testada em pesquisas que
estão em andamento. Em breve poderemos ter resultados que comprovem ou não esta tese.
117
3.3.2 A Agressividade na Espécie Humana
“Minha mãe me matou, meu pai me comeu,
Minha irmã, Marlene, meus ossos recolheu
Em seda os envolveu, e sob o zimbro os depositou,
Bela ave canora agora eu sou ”
(RUNGE, apud TATAR, 2004, O pé de zimbro, p. 165).
O homem, para Lorenz (1982, p. 27), é provido de instinto social, e um desses instintos
de ligação social é o imprinting. A base da moral humana é instintiva, sendo a racionalidade
um adorno do desenvolvimento sócio-cultural.
Já a primeira função compensadora da moral responsável, aquela que impediu os
austrolopitecos de destruírem a si próprios com seus primeiros utensílios de pedra,
não teria sido possível sem uma apreciação instintiva da vida e da morte (LORENZ,
1994, p. 79).
Diferentemente de Hobbes e de Rousseau (com exceção do capítulo IV, em O Emilio),
Lorenz inscreve o homem no social. Essa socialização interage com nosso corpo e com seus
instintos, moldando padrões de conduta, que, no homem, solidificam-se na cultura. Esta é a
mescla de instintos e invenção social. Nesse aspecto, Lorenz aproxima-se de Rousseau, pois a
origem “do mal”, no homem, encontra-se na perversão da organização social. Não são os
instintos a origem do mal, e a agressividade serve à conservação das espécies, mas daí não
decorre um estado de guerra, como descreve Hobbes. O imprinting nos liga a outros seres,
construindo uma afinidade emocional.
O homem é um animal social, e a socialização já é um fator que pode inibir os instintos
agressivos. Quais seriam, então, as causas principais da degenerescência da agressividade no
homem?
Conjecturando com uma evolução histórica, Lorenz (1994 p. 40), coloca, à semelhança
de Rousseau, que a posse individual, a divisão meu e teu, foi o início da divisão entre os
homens. A agricultura e a passagem do nomadismo para o sedentarismo marcam uma
mudança, na conduta humana, acarretada pela posse e pela sedentarização, então, ocorre o
surgimento de castas e classes sociais e a institucionalização da propriedade privada. A partir
de então, para Lorenz (1994, p. 140), ocorrem duas consequências: em primeiro lugar, os
agricultores tornam-se muito mais agressivos na defesa dos seus territórios, que no tempo em
que eram caçadores e viviam livremente dos frutos da natureza, não sendo, logo, decisiva, a
agressão territorial [...]. Uma segunda consequência perigosa da agricultura foi o aumento
explosivo da população que ela possibilitou.
118
Nesse trecho, Lorenz aparentemente caminha com Rousseau, mas, na segunda
conseqüência, deixa claro que há um “malthusonismo social” nessa conjectura34. O aumento
da população, para Lorenz (1994), alterou a relação entre dominantes e dominados com
decorrente aumento da agressividade entre os homens. A industrialização e o avanço
tecnológico, aliados à superpopulação, provocam uma “psicopatia generalizada na sociedade”
(LORENZ, 1994, p. 277).
“A psicopatia social é aquela na qual o homem fraqueja abertamente, sob a pressão que
lhe é imposta, tornando-se neurótico ou delinqüente” (LORENZ, 1994, p. 289). O “homem
domesticado é o psicopata social”
35
. A pulsão agressiva, que, nos primórdios da evolução
humana, volta-se para grupos rivais, diminuindo dentro dos laços familiares, na sociedade
industrial, generaliza-se. Essa situação assemelha-se ao “estado de natureza Hobbesiano”,
que, para Lorenz, é formado por neuróticos e psicopatas sociais. O ódio entre pseudoespecificações diferentes passa agora a disseminar-se no tecido social.
Para Lorenz (1994), a falta de coesão grupal e o abismo entre gerações dificultam a
transmissão de ritos, normas e tradições. A geração mais nova não introjeta valores, além de
não respeitar a hierarquia que a relação mestre-aluno favorece em sociedades tradicionais.
Esses fatores acarretam um profundo tédio que contribui para a formação de delinquentes
juvenis: a “sociedade industrial produz delinquentes juvenis” (LORENZ, 1994, p. 89) 36.
Alterando uma homeostase biológica e social, que redireciona a agressão através de
ritos, cerimônias e laços, temos agora uma alteração desse equilíbrio, levando a uma falta de
mecanismos compensatórios, para diminuir a agressividade, generalizando-a no tecido social.
O “mal”, na realidade, não é a agressão, mas a inexistência de mecanismos eficazes nos níveis
cultural e filogenético que possam lidar com essa agressividade.
A diminuição da criatividade humana com a superespecialização, a competição
desmedida e destrutiva, que é diferente, para Lorenz, da competição pela preservação da
34
O termo diz respeito aos efeitos negativos da superpopulação, que leva à pobreza e a uma seleção que
favorece os mais ricos, que são mais aptos a sobreviver e se refere à obra de Malthus, exemplo: Princípios de
economia política (1820) e Definições em economia política (1827). Para o autor, a diferença entre as classes
sociais era uma conseqüência inevitável. A pobreza e o sofrimento eram o destino para a grande maioria das
pessoas.
35
Esta afirmação serve para naturalizar a violência, confundindo-a com agressividade. O psicopata social
é uma metáfora perigosa, que faz do homem um animal que não controla os instintos, transformando-se em
psicopata.
36
Uma falácia perigosa, pois não considera a construção de laços empáticos e de uma nova sociedade,
com ideais de justiça, por parte dos jovens.
119
espécie, culmina com a cobiça do dinheiro, provocando uma “neurose epidêmica” (LORENZ,
1994, p. 145).
Para Lorenz (1994), essa neurose caracteriza-se pela competição desregulada, a cobiça
pelo dinheiro e a hierarquia desmedida, com aumento do desejo de poder: esses são os males
do homem moderno. A agressividade humana patológica é produto desses fatores. Estamos
utilizando o imprinting, para fixar modelos de pessoas perversas e gananciosas. O lobo é o
objeto preferido para o imprinting da criança.
Ridley (2008, p. 221) coloca que o conceito de imprinting foi uma ponte genial para
associar natureza e criação. Imaginar um instinto, com todo seu aparato genético, que se ligue
a um fator ambiental e retroalimente-se, é uma cartada poderosa que liga gene e ambiente.
Um passo importante é dado, mas isso é apenas o começo, como aprofundaremos adiante.
Para Lorenz (1994, p. 294), a nossa época oferece numerosas ocasiões desagradáveis de
observar, no comportamento social, as consequências de uma falta, mesmo parcial, de
tradição cultural. Os seres humanos, em causa vã, desde uma juventude que exige a abolição
necessária, embora perigosa, de costumes que se tornaram anacrônicos, até os jovens em fúria
e os bandos de adolescentes rebeldes, e, por fim, a certos tipos dessas características de
delinquente juvenil que é igual em toda parte e cego a todos os valores. Todos esses infelizes
são vítimas de um profundo tédio.
A violência faz parte do continuum biológico-cultural. Não existe uma ruptura entre
agressão/biologia e violência/cultura, neste ponto Lorenz estaria de acordo com Hobbes, para
o qual, na passagem do estado de natureza para o estado civil, a natureza humana não muda.
Lorenz fala em agressão patológica, que é característica do homem. O Imprinting é a ponte,
mas Lorenz não aprofunda como de que modo genes são alterados pelo Imprinting. A
agressão pode ser redirecionada para esportes, por exemplo, mas como o social penetra no
gene, interage e o modifica não foi adequadamente explicado. A violência, excesso de
agressividade, existe no homem, que, degenerado por laços sociais inadequados, transformase em psicopata social. Ridley (2008, p. 223), com lucidez, enxergou que Lorenz acertou em
um ponto: ao colocar a agressão e a violência como uma interação de genes e ambiente, deu
um importante passo, mas o que está errado é o continumm, a não diferenciação entre
agressividade e violência, isto é, o que pertence à espécie humana e nos diferencia das outras
espécies. O instinto agressivo descontrolado, no homem, não é a resposta. Faltou aprofundar
que o impriting já coloca uma dimensão de socialização no processo, e, no ser humano, com a
linguagem e a cultura, temos diferenças fundamentais em relação a outras espécies.
120
Passaremos agora para Wilson e Dawkins, que radicalizam, ainda mais, as posições de
Lorenz, para os quais a biologia assume, através dos genes, uma posição de proeminência, e
tenta deslocar de vez a questão da agressividade e violência para a dimensão biológica.
121
3.4 A AGRESSIVIDADE E OS GENES: Wilson e Dawkins
Era uma vez um homem e uma mulher
que tinham filhos demais e não conseguiam comida para eles.
Pegaram então os três menores e os abandonaram na mata
(JACOBS, apud TATAR, 2004, O Pequeno Polegar, p. 201).
Para Wilson (1975, p. 118), não podemos reduzir o conceito de agressividade a termos
restritos, já que é um fenômeno complexo que envolve diversas finalidades. Dentre as muitas
funções da agressividade, Wilson (1975, p. 118-119) coloca principalmente as seguintes:
defesa territorial, luta por dominância, competição sexual, disciplina de filhotes, incluindo
agressão para defesa e colocação de regras, desenvolvimento de um código moral que leve a
espécie à coesão e a atitudes altruísticas para preservação do grupo e, finalmente, a agressão
predatória e a defesa a esse tipo de agressão, que não é um apenas um instinto, mas uma
“misture of very diferent functions” (WILSON, 1975, p. 118). A competição sexual e por
recursos, principalmente alimentos e territórios, é uma das formas mais comuns encontradas
nas espécies para expressar a agressividade.
A competição sexual leva à agressão intraespecífica, por exemplo, e, associada à luta
por dominância, pode acarretar combates violentos e, às vezes, mortais, dentro do mesmo
grupo. Filicídio, fratricídio, assassinato de membros do grupo, são consequências dessa “luta
pelo poder”, como refere De Waal (2007, p. 56). A competição sexual e por hierarquia faz a
agressão intraespecífica ser, em muitos casos, acirrada e fatal: um “teatro edipiano” no mundo
animal, para utilizar uma metáfora que expresse a luta por sexo e poder em Wilson.
Já a agressão por alimentos e território pode gerar combates, em larga escala, entre
espécies diferentes. Para Wilson (1975, p. 127), a qualidade da agressão intra e
interespecífica, pouco difere, divergindo, nesse ponto, de Lorenz. Citando, por exemplo, a
prática do canibalismo, a agressão intraespécie não pode ser considerada mais suave, com
mecanismo filogenético e cultural para limitá-la, como coloca Lorenz: pais matam filhotes,
tios degolam sobrinhos, e algumas mães chegam a comer os próprios filhotes.
São muitas as variáveis que podem produzir uma conduta agressiva e variam de uma
espécie para outra. As estratégias dependem de um complexo jogo de hierarquia, território,
competição por sexo e alimentos. Em espécies territoriais, por exemplo, passa a ser acirrada a
demanda durante boa parte do tempo do grupo. Em espécies em que a hierarquia e a
competição sexual exercem uma função competitiva constante, os combates podem ser
122
contínuos. Estratégias de agressão podem mudar evolutivamente. Wilson denomina ambiente
externo. Alguns fatores que contribuem para desencadear a agressão e mudar sua estratégia.
Dentre essas contingências, as principais são o encontro com animais estranhos ao grupo,
sendo este o vetor principal da xenofobia. Agredir o outsider the group é um fator que pode
tornar-se importante e predominante, a ponto de instalar verdadeiras guerras territoriais. Esse
comportamento é observado principalmente em primatas.
A falta de alimento pode gerar também um aumento das estratégias agressivas, assim
como a “space-agression curves” (WILSON, 1975, p. 267). Quando muitos animais ficam
próximos, dentro de um espaço limitado, existe um aumento da agressividade entre eles.
Quando se associa falta de recursos alimentares a uma densidade populacional elevada,
convivendo em território de pouco espaço, podemos observar, para Wilson (1975, p. 358),
batalhas intermináveis e diárias. Esse é um dos principais aspectos que exacerbam a agressão
entre as espécies e, principalmente, entre os humanos. Ecos de um malthusionismo social que
vem do século XIX.
Outro fator que está relacionado à competição por sexo, é o que Wilson denomina
“Season Chance”. Na estação de acasalamento, há uma exacerbação dos combates agressivos;
quando termina a estação, ocorre uma diminuição acentuada da agressividade.
Podemos, seguindo Wilson, considerar a agressividade como uma conduta que
apresenta diversos graus de complexidade, estratégias, fatores biológicos, sociais e
contingências diversas para cada espécie. A agressividade é adaptativa, independente de
mecanismos cruéis, e faz parte da tentativa do organismo de sobreviver e se adaptar a um
determinado meio. Não existe diferença entre agressividade e violência. Wilson (1975, p. 78)
considera que, no máximo, podemos falar de uma agressividade não adaptativa, ou que
excede o limite que serve para a sobrevivência.
Analisando as bases biológicas da agressividade, Wilson (1975 p. 345) coloca a
influência dos genes que se expressa principalmente no sistema endócrino e no nervoso
central. A participação dos hormônios em situação de estresse, como o cortisol, é fundamental
para superar o perigo. Este é um exemplo de comportamento agressivo mediado por
hormônios totalmente adaptativos.
A testosterona, que é o hormônio masculino, é outro fator que se associa à
agressividade, inclusive no gênero masculino. Wilson (1975) fala de diversos experimentos
de laboratório em que se manipula a testosterona em ratos, observando aumento ou
diminuição da agressividade. Na fêmea, a relação entre estrógenos e progesterona pode
123
determinar, em algumas fases do ciclo menstrual, um aumento da agressividade,
principalmente antes da menstruação. Excesso de estrógeno, em alguns experimentos, pode
produzir, em fêmeas de chimpanzés, uma exacerbação do comportamento agressivo.
No corpo humano, com sua fisiopatologia, inscrevem-se os desequilíbrios e as
distorções. O que Cesare Lombroso (1835-1909) e Galton (1822-1911), no século XIX,
ensaiaram, a sociobiologia realizou. Do gene de Galton, ao cérebro de Lombroso, Wilson vai
fixando a biologia como a ciência por excelência que explica a natureza humana. O cérebro
tomou de vez o lugar da psique e da alma. A química desse cérebro responde pelos estados
emocionais, inclusive a agressão: Dopamina, norepinefrina, serotonina, gaba37.
Entre um neurônio e outro, os neurotransmissores. O cérebro, que, para Damasio (1996,
p. 89), é o fundamento das emoções e de nossas ações - voltaremos ao tema mais adiante -,
responde a tudo o que a metafísica não conseguiu responder.
Sonho das neurociências e da Psiquiatria, o controle do comportamento pela química
(hormônios, neurotransmissores, fisiopatologia cerebral e genes) tenta dar respostas à
violência humana. De tanto olhar outras espécies, tornamo-nos mais uma entre várias. Essa
máxima é o grande triunfo e perigo da sociobiologia.
Com Wilson, definitivamente, a agressividade é naturalizada, e, diferentemente de
Lorenz, não existe “patologia” nesta, ela faz parte do ser vivo, depende de fatores biológicos.
O excesso e a utilização, para fins de não conservação da espécie, fazem da agressão um
problema. No rastro da sociobiologia, teremos a psicologia evolutiva e os estudos sobre
genes.
Vamos agora analisar esses aspectos em Dawkins, que, com o livro O GENE EGOÍSTA
(2001), tenta lançar luzes sobre a agressividade e a violência, criando metáforas, como genes
egoístas e memes.
37
Neurotransmissores que respondem pela modulação das emoções, atuando em humor, atenção,
agressividade, prazer. A ausência ou presença destes provocam alterações comportamentais e transtornos
mentais.
124
3.4.1 Wilson: o “Gene Egoísta”
‘Porquinho, porquinho, deixe-me entrar’,
Ao que o porquinho respondeu:
‘não, não, pelos fios da minha barba aqui você não vai pisar’
A isto o lobo respondeu:
‘Então vou soprar, e vou bufar, e sua casa rebentar’
E assim ele soprou, e bufou, e fez a casa ir pelos ares e comeu o porquinho
(JACOBS, apud TATAR, 2004, A história dos três porquinhos, p. 209).
Dawkins (2001, p. 139) expande o conflito entre pais, filhos e sexos para todas as
espécies animais. Na realidade, já foi colocado que atitudes altruístas, para Dawkins, não
passam de estratégias de genes egoístas. A tendência à socialização e a viver em bandos,
inclusive, não passa de uma estratégia para replicação de genes. O gene ou as máquinas de
sobrevivência formam a raiz das espécies, inclusive, da humana. O gregarismo é uma
consequência do cálculo egoísta para replicação do gene. Formamos grupos para potencializar
a sobrevivência dos genes, mas, como veremos adiante, Dawkins sairá desse aparente
determinismo genético, fazendo uma ponte entre natureza e cultura.
Para Dawkins (2001, p. 22), “este egoísmo do gene geralmente originará egoísmo no
comportamento individual”. No entanto, como veremos, existem circunstâncias especiais, em
que um gene pode atingir melhor seus próprios objetivos egoístas, cultivando uma forma
limitada de altruísmo no nível dos animais individuais. Especiais e limitadas são palavras
importantes na última sentença, pois, por mais que desejemos acreditar diferentemente, o
amor e o bem-estar universais da espécie como um todo são conceitos que simplesmente não
têm sentido na evolução, mas o homem pode mudar o seu destino, como um belo Prometeu.
Dawkins (2001, p. 78) frisa que a palavra egoísmo é apenas uma metáfora. O gene é, na
realidade, o arcabouço básico que forma todo o ser vivo na terra, e tem como principal
objetivo a replicação. É a esta realidade “cega e inconsciente” que Dawkins (2001, p. 98)
chama de “egoísmo”.
Em uma das passagens do Gene Egoísta, falando sobre a agressividade, Dawkins (2001,
p. 89) reforça a tese de Wilson de que a agressão é adaptativa, é uma estratégia dos genes
egoístas, e remete a Maynard Smith (2001, apud Dawkins, p. 45), que faz o cálculo da
estratégia dos gaviões e dos pombos. Os gaviões são agressivos, avançam e ganham sempre
dos pombos, que usam estratégias mais defensivas e pouco audaciosas relativas a ataque, mas
chegará um ponto em que os gaviões, exterminando os pombos, terão que enfrentar a si,
então, autoaniquilando-se. Essa metáfora é estendida para mais dois estrategistas: o Fanfarrão,
125
que é um gavião que, ao ser atacado, foge imediatamente, e o Retaliador-Testador que, ao
contrário do Fanfarrão, ao ser atacado, não foge e revida. O que importa, nesse modelo, é
mostrar que existe uma equação na agressividade que Dawkins denomina EEE (Estratégia
Evolutivamente Estável), a qual é “definida como uma estratégia que se adota pela maioria
dos membros de uma população, não poderá ser sobrepujada por estratégia alternativa”
(DAWKINS, 2001, p. 94). Esse modelo matemático, que é quase um pacto entre indivíduos,
Dawkins (2001, p. 121) define como de custo-benefício. Mas não há entrega a um poder
soberano nem à vontade geral. É o gene que faz com que indivíduos se associem para formar
uma EEE, que pune, inclusive, quem sai das regras38.
Gaviões, pombos e fanfarrões retaliam testador, tendo que chegar a uma EEE para
evitar a morte de todos. Tudo isso lembra o estado de natureza Hobbesiano, mas o medo não
entra como vetor da EEE. O gene quer replicar-se, e é esse o motivo para formar a EEE;
assim, a agressão é controlada.
Apesar de todo o aparente determinismo, Dawkins deixa margens para o ser vivo
“rebelar-se contra a natureza egoísta”. Fatores de sociogênese podem influenciar padrões de
cooperação, por exemplo, lobos cooperam e transmitem esse padrão de geração a geração,
dando um rumo diferente para as “máquinas de sobrevivência egoístas”. No homem, além dos
genes, Dawkins (2001, p. 215) nos reporta aos memes que não existem apenas no homem,
mas também em primatas e em orcas, por exemplo, porém, no homem, atingem o grau maior
de refinação, sendo a linguagem um dos fatores para potencializá-los, ou melhor, dizendo,
potencializar o cérebro.
O meme é a memória formada pelo conjunto de padrões culturais adquiridos, a qual é
transmitida de uma geração para outra. Apesar da “natureza egoísta”, temos a oportunidade de
mudar artificialmente nosso destino, através dos memes. A cultura não é específica da espécie
humana, mas a memória e a capacidade de previsão, sim. Segundo Dawkins, podemos,
metaforicamente, representarmo-nos como anjos caídos que querem elevar-se, através da
meme, rebelando-se contra a natureza dos genes egoístas. A capacidade de previsão pode,
hipoteticamente, criar formas de altruísmo que “consertem” a cegueira e a trapaça das
máquinas de sobrevivência. Para Dawkins (2001, p. 222), “somos construídos como máquinas
gênicas e cultivados como máquinas mêmicas, mas temos o poder de nos revoltarmos contra
38
Podemos perceber que os genes passam a ser uma entidade metafísica, que assumem o controle do ser
vivo e determina suas ações, parecendo inclusive ter intencionalidade. Não existe uma explicação plausível, de
como moléculas interferem no comportamento, só conjecturas.
126
nossos criadores. Somente nós, na terra, podemo-nos rebelar contra a tirania dos replicadores
egoístas”.
A implicação dessa teoria é que nossa natureza é programada para trapacear, mentir,
burlar, agredir, assim como o homem em estado de natureza hobbesiano. Para mudar esse
destino, temos que nos recriar, ou melhor, jogar memes contra genes, possibilitando, assim,
uma mudança de rumo de uma natureza egoísta. Com a metáfora dos memes39, Dawkins
(2001, p. 221) cria uma ponte entre genes e meio ambiente, entre natureza e criação, entre
instinto e cultura. Chega, inclusive, a descrever, que os genes podem ser esquecidos em três
gerações, enquanto os memes sobrevivem muito mais tempo. O Meme Sócrates, por exemplo,
continua vivo nas salas de aula e em livros, enquanto os genes de Sócrates desapareceram há
muito tempo. Quanto à agressividade, os memes, no homem, formam culturas diversas,
religiões, xenofobia, ódios raciais e religiosos. Em suma: o que, no gene, é agressão
adaptativa, nos memes, é crueldade pura, mas podemos tomar outro caminho.
Podemos arriscar a hipótese de que os memes são os responsáveis pela violência na
espécie humana, ainda que, em Dawkins, não temos a expressão desse pensamento. Existe
também uma confusão entre agressividade e violência. A criação da metáfora dos memes
remete à possibilidade de introduzir uma diferença entre a espécie humana e as outras. Essa
distinção é esboçada com os memes. A agressividade, porém, continua a ser naturalizada
junto com a violência, mas há espaço para mudança, para transformação em nossa espécie.
Com a metáfora dos memes, Dawkins joga para a cultura e o social o que divide o
homem de outras espécies, mas não separa agressividade de violência. Esta é um produto dos
memes? Nesse caso, entramos em Rousseau, e a sociedade civil transforma-se em meme. Por
ora, ficaremos com os conceitos de Dawkins, Wilson e Lorenz.
Vamos agora aprofundar nossa herança especificamente primata, utilizando os trabalhos
de Wranghan e Peterson e de De Waal. Trabalhando especificamente nosso pertencimento aos
primatas. Questões tais, como gênero e formas de organização sociais diferentes, assim como
naturezas diversas, apontam caminhos para a questão da agressividade e violência humanas.
39
Dawkins usa o meme com o mesmo significado de cultura humana, que seria uma unidade de imitação
aprendida na cultura. Dawkins faz uma abreviação de mimeme para meme, que relaciona-se à memória ou á
palavra francesa méme (o mesmo).
127
3.4.2. O Macho Demoníaco
E o lobo pensou com seus botões:
“Esta coisinha nova e tenra vai dar um petisco e tanto!
Vai ser ainda mais suculenta que a velha.
Se tu fores realmente matreiro, vais papar as duas”
(JACOB e GRIMM, apud TATAR, 2004, Chapeuzinho Vermelho, p. 31).
Para De Waal (2007, p. 67), temos em comum com o chimpanzé a busca por poder e
sexo e a xenofobia, os quais são fatores fundamentais no desencadeamento da agressão.
Nossa herança comportamental com os primatas vem sendo, aos poucos, revelada,
principalmente, a partir da década de 60, com os estudos de Jane Godwal40.
Wranghan e Peterson, no livro O Macho Demoníaco (1998), associam nossa
agressividade à herança que temos em comum com os chimpanzés, principalmente com os
machos. Relatando cenas de intensa crueldade entre essa espécie de primatas, Wranghan e
Peterson chegam à conclusão de que herdamos essa agressividade e a violência, em todas as
suas dimensões, dos chimpanzés41.
Para Wranghan e Peterson (1997, p. 164), só chimpanzés e humanos apresentam a
busca deliberada de vítimas, em que a mutilação e a morte de um vizinho impotente, apesar
dos seus apelos por clemência, são inevitáveis. Somente para essas duas espécies, a morte do
perdedor faz parte dos planos.
Os outros grupos de primatas, incluindo orangotangos, gorilas e saguis, por exemplo,
fogem a esse padrão de violência e crueldade, típico dos chimpanzés. Os orangotangos
praticam o estupro, porém, a conduta violenta não se expande além desse ato. Entre os
gorilas, encontramos a prática do infanticídio, que também é um ato circunscrito a situações
sociais específicas, não se observando uma luta generalizada pelo poder como entre os
chimpanzés.
Neles, a luta por poder e sexo, a hierarquia e o domínio fazem desses animais,
verdadeiros herdeiros do Príncipe de Maquiavel, para De Waal. A ligação entre
40
Uma das primeiras pesquisadoras a desenvolver trabalho de campo com primatas não humanos,
especificamente com gorilas.
41
Mais uma vez a confusão entre a agressividade e violência faz com que os primatologistas naturalizem
a violência. Nossa aproximação genética com primatas não humanos fornecem o álibi para os primatologistas
fazerem esta aproximação.
128
agressividade, poder e sexo predomina entre machos, o que faz levantar a hipótese de que esse
tipo de agressão está ligado ao gênero42.
Outra associação importante, para Wranghan e Peterson, é entre inteligência e
agressividade. Formas de violência exacerbadas correlacionam-se ao desenvolvimento da
inteligência, aplicando-se a chimpanzés, cujo desenvolvimento cerebral é comparado ao de
uma criança com três anos de idade da espécie humana. Com a complexificação da
inteligência, as interações sociais ficam mais diferenciadas, favorecendo códigos que
reforçam a luta pelo poder, pelo sexo e pela exacerbação da agressão para manter o status.
Utilizando os estudos de Damásio (1996), Wranghan e Peterson tentam responder à
questão: por que a estrutura emocional e cognitiva dos primatas favorece a agressividade
acentuada?
Para Damásio (1996, p. 99), são as emoções ligadas a determinadas áreas do cérebro
que regem a conduta humana. Toda emoção tem um substrato fisiológico no cérebro, que foi
moldada através do processo evolutivo. Dentre as emoções, Wranghan e Peterson destacam o
orgulho como a principal fonte da luta por poder e sexo, nos primatas, e, principalmente, no
homem. Como os chipanzés lutam por sexo, poder, status e hierarquia, o orgulho é a principal
emoção que leva à agressividade nessa espécie.
Para Wranghan e Peterson (1998, p. 237), o orgulho pode explicar a guerra. As causas
imediatas das guerras são tão variadas quanto os interesses e as políticas que as
desencadeiam, mas uma análise mais profunda leva a uma mesma conclusão: as guerras
tendem a ter suas raízes na competição por status.
Em relação, ainda, ao orgulho, seguindo Wranghan e Peterson (1998, p. 238), essa
emoção evoluiu ao longo de inúmeras gerações, em que os machos que atingiam status
elevado conseguiam transformar seu êxito social em reprodução adicional. É razoável ver o
orgulho masculino, fonte de muitos conflitos, como o equivalente mental de ter ombros
largos. O orgulho é outra herança da seleção sexual.
A luta por status é decorrente do orgulho. Essa é a origem da agressividade, que não
tem como função conservar a espécie, mas lutar pelo poder. A diferença entre agressividade
42
humana.
Acredito que esta tese de WRANGHAN E PETERSON não pode servir de analogia para espécie
129
biológica, agressividade não adaptada (Wilson), patológica (Lorenz), violência e crueldade é
de grau: o poder é o diferencial entre os graus43.
A vontade de poder, tão importante em Hobbes e depois em Nietzsche, faz parte da
nossa herança animal, principalmente dos chimpanzés machos, o que Wranghan e Peterson
denominam “o macho demoníaco”.
Porém, o problema está longe de se encerrar, pois o orgulho é apenas uma emoção que
se traduz em traços comportamentais que são responsáveis pela conduta agressiva, associados
ao gênero. Os estudos foram realizados em primatas não humanos.
Machos possuem, fisicamente, principalmente sob influência da testosterona, uma
arquitetura anátomo-fisiológica que impele à agressão. Para Wranghan e Peterson (1998, p.
176), em chimpanzés, boa parte do tempo útil dos machos é dedicado à luta pelo poder e à
ascensão social.
Para os autores, “os ombros e os braços dos machos humanos - como os músculos do
pescoço de um cervo novo, as mãos que agarram de um sapo xenopos ou os dentes caninos de
muitos outros primatas -, parecem ser o resultado da seleção sexual para a luta”
(WRANGHAN; PETERSON, 1998, p. 225).
Vejamos, então, o que produz, para Wranghan e Peterson, o macho demoníaco: a
herança genética, principalmente dos primatas e, entre estes, dos chimpanzés, o gênero que
favorece uma estrutura física e emocional, em machos, para um aumento da agressividade, o
desenvolvimento do cérebro, a emoção do orgulho, responsável pelo desejo de poder e status
e a xenofobia.
Sendo os primatas uma espécie social, a divisão em bandos (equipes bando e bandos
estáveis) faz com que ocorra a divisão entre intragrupo e extragrupo. Todos aqueles que não
pertencem ao “nós” são considerados inimigos e objeto de violência e crueldade.
Assim como em Lorenz, a agressão extragrupo tem um papel predominante na
sociogênese da evolução das espécies, principalmente em primatas. Encontramos aqui uma
justificativa biológica para o conceito do “político” de Schmitt, principalmente a divisão
amigo-inimigo. Na obra O Conceito do político (1992), Schmitt discorre sobre a divisão
amigo e inimigo, que funda o político. Esse conceito será utilizado por boa parte dos autores
da etologia, inclusive, por primatologistas.
43
Mais uma vez, observamos que os primatologistas fazem inferências reducionistas. Será possível falar
de orgulho e poder em primatas não humanos como se fala em humanos? Esta é a pergunta que faz Lestel
(2006).
130
A moral está associada aos endogrupos. Os membros dos exogrupos são os outros, que
devem ser destruídos. Este é um processo inconsciente para Wranghan e Peterson. A razão,
quando aparece, é para calcular, justificar, prever a maneira da razão calculativa de Hobbes. É
um instrumento para as emoções, principalmente para o orgulho, que traça a rota do desejo de
poder44.
Da luta pelo poder movido pelo orgulho, até a violência contra os membros do
extragrupo, entramos nos limites do fundamento biológico da agressividade e da violência,
que, no ser humano, em função da complexidade do cérebro e das organizações sociais, chega
a um nível de destruição sem precedentes em relação a outras espécies.
Para Wranghan e Peterson (1998, p. 278), essa é apenas uma hipótese que deve ser
testada, não uma conclusão definitiva sobre as fontes da agressividade e da violência no
homem. Existem outras maneiras de configuração social e outras espécies de primatas, com
temperamento diferente dos chimpanzés. É esse o aspecto a ser analisado agora, através dos
estudos sobre os bonobos, que já foram citados anteriormente, mas sem aprofundamento.
Os bonobos foram descobertos e começaram a despertar interesse científico em 1927. O
fato de serem parecidos com chimpanzés dificultou a sua separação como espécie distinta e
com características de conduta individual e social bastante distante dos chimpanzés.
Para Wranghan e Peterson (1998, p. 251), ao entrarmos no mundo social dos bonobos,
podemos pensar neles como chimpanzés, que desenvolveram tríplice caminho para a paz: eles
reduziram o nível de violência nas relações entre os sexos, entre os machos e nas entre as
comunidades. Quais os principais fatores que respondem por essa convivência pacífica? O
temperamento mais dócil, menos agressivo e a estrutura social caracterizada por codominância entre machos e fêmeas, com igualdade social, que são fatores que levam a
sociedade dos bonobos a encontrar um caminho para a diminuição da agressividade e da
violência. A sexualidade é utilizada abundantemente entre bonobos, o que faz aumentar a
coesão social. Para diminuir conflitos, fazem sexo com intensidade. A ausência de ciúmes e
disputas em relação à sexualidade é um dado muito importante. Uma fêmea copula com
muitos machos, ao mesmo tempo, por exemplo, sem provocar disputas e rivalidades, ao
contrário dos chimpanzés, onde existe um macho dominante que exerce a hegemonia em
44
Podemos conjecturar se esses autores leram Hobbes e se o poder do qual falam é o mesmo de Hobbes.
Teriam os primatas esta capacidade da consciência de si e do outro a ponto de lutar por poder, da forma como os
humanos fazem? Tomasello (2003) não concorda com a tese de que a intencionalidade dos atos em primatas não
humanos seja equiparada à intencionalidade em humanos, já “que [os primatas] não entendem o mundo em
termos causais e intencionais” (TOMASELLO, 2003, p. 25).
131
relação à copulação de fêmeas. Wranghan e Peterson (1998, p. 176) citam também os
Muriquis, como espécies de primatas que convivem pacificamente e têm, a diminuição dos
laços de hierarquia e a sexualidade em grande quantidade, um dos principais fatores para a
resolução e diminuição da agressividade.
A coesão das fêmeas é um fator fundamental para apaziguar o “demonismo” dos
machos. Através da união, as fêmeas estabelecem laços fortes e evitam que machos dominem
e formem grupos demasiadamente hierárquicos, como os chimpanzés.
Um dos principais fatores da hegemonia das fêmeas entre bonobos e muriquis, para
Wranghan e Peterson (1998, p. 189), é a cooperação entre si.
O efeito da ação em grupo avassalador. O poder feminino vence os machos, que, ao
contrário das fêmeas, não cooperam entre si, seja para se defenderem, seja para
atacarem. Desse modo, até mesmo o macho da mais alta hierarquia pode ser
derrotado se as fêmeas se juntarem contra ele (WRANGHAN; PETERSON, 1998, p.
54).
Além do “matriarcado”, que diminui e quebra o poder dos machos, impera certo
“comunismo” entre os bonobos.
Através da hegemonia das fêmeas, estabelece-se, como vimos, estratégias de
diminuição da agressão por meio da sexualidade. Uma considerável parte dos conflitos
resolve-se com o sexo, que é chamado de “hoka-hoka”, termo criado pela tribo dos
Mongandos45
Para Wranghan e Peterson (1998, p. 261), os bonobos empregam o sexo para muitos
objetivos, além do reprodutivo: como meio de fazer amigos, para acalmar um membro do
grupo que esteja com tensão e para reconciliação e resolução de conflitos, em que a
agressividade encontra-se envolvida.
A menor agressividade entre os machos e a ausência do “demonismo deve-se,
principalmente, ao fato de que os bonobos machos, através da evolução, perderam a avidez
predatória, hierarquia, luta pelo poder e orgulho. A coalização das fêmeas é um fator
fundamental. Todos esses fatores facilitam a coesão de uma espécie em que a agressividade e
a violência encontram-se diminuídas, contribuindo, assim, para abalar os alicerces do
determinismo biológico. Apesar dos estudos sobre bonobos serem em maior quantidade, não
45
O termo refere-se ao atrito dos genitais para diminuir as tensões entre primatas não humanos.
132
podemos deixar de citar os muriquis como outro modelo de convivência pacífica entre
primatas não humanos46.
Essa contraposição entre chimpanzés e bonobos é retomada por De Waal (2007). Por
ora, é suficiente acompanhar Wranghan e Peterson na construção do conceito do “macho
demoníaco”, que não é universal e determinístico, já que espécies, como os bonobos e os
muriquis, não apresentam o demonismo.
Porém, Wranghan e Peterson (1998, p. 238) acreditam que herdamos o demonismo dos
chimpanzés: o “macho demoníaco” está em nossa herança genética e contribui para estruturar
nossas formações sociais. Conceitos, como hierarquia, poder, orgulho e violência fazem parte
de nossa herança comum aos chimpanzés. A estrutura patriarcal, que também ocorre em
gorilas, por exemplo, é outro fator importante para analisar a violência em primatas não
humanos e humanos.
A estrutura do cérebro em humanos é o fator que nos torna extremamente violentos. O
artefato da cultura, a criação de armas, a exploração social e econômica são requintes de uma
estrutura cerebral humana, que potencializa a demonização. Para Wranghan e Peterson (1998,
p. 278), não existe a diferença entre agressividade e violência. Podemos falar de violência em
chipanzés e humanos. O que diferencia é a nossa estrutura cerebral. O córtex, a complexidade
de sinapses e a maior interação de neurotransmissores fazem do homem um “macho
demoníaco mais letal que os chimpanzés.” Nossa estrutura é patriarcal, lutamos por hierarquia
e poder, somos orgulhosos e vaidosos, xenófobos e preconceituosos. Nossas sociedades
apresentam estruturas políticas onde a luta pelo poder é o fator principal (WRANGHAN E
PETERSON, 1998, p. 315).
Não podemos concordar com essa tese que naturaliza a agressão e a violência e nos faz
primatas com algumas diferenças de outras espécies, mas com maior potencialidade de
destruição. Nessa perspectiva, a espécie humana estaria naturalmente condenada a destruir e a
ser violenta. Mesmo a questão do gênero não pode ser extrapolada para a espécie humana:
não somos bonobos ou chimpanzés, mas humanos. O “macho demoníaco” é uma metáfora
sugestiva, mas perigosa, que deve ser questionada.
Podemos até concordar que homens sejam mais violentos que mulheres, mas esta
condição pode ser explicada recorrendo a teorias sociológicas, como, por exemplo, a
46
O muriqui-do-sul ou mono-carvoeiro é um primata cujo nome científico é Brachyteles arachnoides.
Considerado o maior entre os primatas do continente americano, encontrado originariamente na Mata Atlântica
brasileira, consta da Lista Vermelha da UICN na categoria, em perigo crítico. É um dos primatas mais
ameaçados do mundo.
133
subjugação da mulher e da propriedade privada, defendida por (ENGELS, 2004). Nesta
teoria, que não endossamos, mas citamos a título de exemplo, a violência contra a mulher
parte do uso do poder econômico e político entre os homens, que detém a propriedade, os
meios de produção. A sociedade patriarcal seria assim um produto da história, assim como a
violência do homem contra a mulher.
Podemos recorrer também à Biologia, que pesquisa diferenças na estrutura cerebral,
hormônios, como testosterona, que predominam no sexo masculino. Para Wranghan e
Peterson (1998), é nossa herança com chimpanzés machos que faz com que o gênero
masculino seja mais violento.
Este é um tema que não está concluído. Podemos dizer que existem fatores biológicos,
como hormônios, por exemplo, que predispõe a maior agressividade no gênero masculino,
mas são conjecturas. A disposição de algumas áreas do cérebro responsáveis por condutas
agressivas no homem pode ser um fator que, na melhor das hipóteses, predispõe a
agressividade. Mas, sendo a violência um produto social, podemos nos reportar a Bourdieu
para tentar explicar que o gênero masculino produz socialmente uma violência simbólica
maior, baseada na acumulação do poder econômico e na circulação do capital simbólico que
produz, na socialização, o fator masculino como sinônimo de força, vitalidade, coragem e
violência. O homem é assim socializado para ser mais violento. Neste caso a tese de Marx e
Engels apenas reforçam este tipo de socialização. O demonismo é uma hipótese biológica que
não nos fornece respostas para violência no homem. Vamos encontrar melhores explicações
em fatores históricos e sociais.
Citando Nolasco (2001), o homem é socializado para competir e mostrar força. Fatores
como a posse sobre a mulher, a utilização da violência para resolução de conflitos faz parte da
socialização do homem. Homens se envolvem em comportamentos de risco em função da
competição e da demonstração da virilidade. Temos, para Nolasco (2001), uma perpetuação
da violência entre homens e entre homens e mulheres. Outra questão importante refere-se ao
conceito de honra, que subjetiviza o universo masculino. Segundo Nolasco:
Sobre a palavra ‘masculinidade’ encontramos em sua raiz as denominações ‘viril’,
‘enérgico', ‘forte’ e ‘ativo’. Esta aproximação vai além de uma pertinência
semântica: masculinidade e violência guardam entre si relações que vão do modo
como os meninos são socializados, até a maneira de compreender seus sentimentos
como sendo de homem, ou seja, o que ele sente passa a se corresponder diretamente
com a imagem que definiu para si mesmo (NOLASCO, 2001, p. 64).
134
Uma história de modelos de subjetivação masculinos pela sociedade patriarcal pode
apontar algumas respostas sobre violência em gênero, mas deixa-se de lado a violência do
gênero feminino, que pode ser subestimada. Para Nolasco (2001), a violência contra crianças
é mais praticada por mulheres, por exemplo. Pode ter relação com a maneira de subjetivação
feminina, o papel de dona de casa, posse do marido, e hoje, tendo que encarar uma dupla
jornada, no trabalho e no lar.
Estas discussões só corroboram a tese de que a violência de gênero é social. Faz parte
do processo de socialização do homem e da mulher. Não podemos reduzir ao biológico. A
ideia de macho demoníaco pode servir para estudos de primatologistas, mas não concordamos
na sua extrapolação para espécie humana.
Retomando a questão da nossa herança primata, poderíamos agora focar, um pouco, o
filme “O planeta dos macacos”, do Diretor Frank Schnaffer, para tentar compreender essa
metáfora. No final do primeiro episódio, o astronauta Taylor descobre o segredo que o Dr.
Zairus tenta esconder: é a espécie humana a mais violenta que surgiu no Planeta, responsável
pela destruição e devastação do planeta, por isso os macacos lobotomizam, cortam a língua e
escravizam os humanos remanescentes. Cérebro e linguagem são os alvos dos macacos do
filme. Extirpando o cérebro e a linguagem do homem, o problema da violência resolve-se,
mas os macacos do filme são igualmente violentos, e o ciclo da violência não acaba
extirpando a linguagem e o cérebro humano, mas continua. Descendemos de primatas não
humanos. O demonismo está nos genes? Ficção à parte, a violência continua. Apesar de
existirem os bonobos e os muriquis, a ficção esquece-se deles; confunde chimpanzés,
orangotangos e gorilas com o homem, sem falar em espécies de primatas pacíficos. O homem
é a espécie mais violenta do planeta. O poder, esse buraco negro, associado a um cérebro e à
linguagem desenvolvida, faz-nos perversos e cruéis47. Damos bananas aos macacos e bombas
aos inimigos. A agressividade e a violência são cara e coroa de uma moeda que nos une a
primatas não humanos e a chipanzés, principalmente.
Nesse aspecto, percebe-se como uma falácia pode gerar, segundo Tomasello (2003),
catracas culturais e fazer passar o erro como verdade. Percebe-se a intenção da primatologia
em dar continuidade à naturalização da violência. Ela usa a genética, a neuroquímica, para
corroborar a tese de que “somos macacos um pouco diferentes”, apenas. A não compreensão
do que é o poder associa-o apenas à dominação e à repressão.
47
Uma hipérbole dos primatologistas que leva a erros, uma vez que em nossa opinião, nossa herança
primata não é tão determinante assim.
135
Vamos passar agora para De Waal: a bipolaridade como metáfora.
136
CAP. 4
BIOLOGIA E BIPOLARIDADE EM FRANS DE WAAL
“A honestidade custa cuidados,
ela requer um pouco de complacência,
mas, cedo ou tarde, tem sua recompensa,
e amiúde quando menos se espera”
(PERRAULT, 2005, p. 252).
Para De Waal (2007), longe de qualquer determinismo biológico, devemos analisar a
interação genes, cultura, economia e principalmente política. Primatas são, acima de tudo,
animais políticos, que formam alianças, manipulam, lutam por poder e formam grupos de
amigos e inimigos, à maneira de Schmitt. Por afinidade genética e evolução, principalmente
relativas ao cérebro, nossa herança mais forte é com os primatas, mas longe de enfatizar,
como Wranghan e Peterson, o lado demoníaco do macho, De Waal analisa nossa bipolaridade
como o dado mais significativo de nossa herança primata.
Bipolaridade significa propensão para a agressividade desmedida, luta pelo poder
desenfreada, xenofobismo, “demonismo” e o estado de natureza hobbesiano, convivendo com
o lado pacífico, terno, conciliador, bondoso, com menos tensão e luta por poder e soluções
mais igualitárias, seguindo o “bom selvagem de Rousseau”. Essa convivência de um lado
obscuro e perverso com um lado moral, caridoso e apaziguador forma a natureza humana.
De Waal (2007, p. 267) tenta partir de duas heranças primatas que considera as mais
significativas para o homem: a dos chimpanzés e a dos bonobos. Para De Waal, herdamos
uma mistura dessas duas naturezas. Os chimpanzés seriam o protótipo do “demonismo”
descrito por Wranghan e Peterson, enquanto os bonobos formariam uma estrutura social
distinta. Wranghan e Peterson (1998) analisam esta diferença no aspecto de gênero,
argumentando que a sociedade dos bonobos é matriarcal, por isso é mais pacífica, menos
hierárquica e mais igualitária.
Além desses fatores, para De Waal (2007, p. 146), observam-se temperamentos
diferentes entre chimpanzés e bonobos, inclusive, nos machos, que não teriam essa propensão
acentuada dos chimpanzés para a caça predatória e o poder. Além disso, a fartura de recursos
alimentares faz com que os bonobos se distingam dos chimpanzés. Fatores biológicos,
políticos, econômicos são responsáveis, então, pela estruturação de dois modelos de sociedade
de primatas bem diferentes.
Usando a metáfora dos lobos e do bom selvagem, os chimpanzés estão para o universo
hobbesiano, assim como os bonobos estão para Rousseau, mas o problema não é tão simples
137
como parece. Vamos tentar entender alguns conceitos que De Waal utiliza, para delimitarmos
melhor o problema.
138
4.1 O PODER
“Minha avó, por que tendes orelhas tão grandes?
“É para melhor escutar, minha criança.”
“Minha avó, por que tens olhos tão grandes?”
“É para melhor ver, minha filha.”
“Minha avó, por que tens dentes tão grandes?”
“É para te comer”
(PERRAULT, 2005, p. 236).
A estrutura do poder, no reino animal, principalmente em primatas, faz com que De
Waal (2007, p. 56) considere o universo descrito por Maquiavel como algo que também
pertence a sociedades políticas de outras espécies, especialmente a dos chimpanzés.
As manobras de dois contra um são o que trazem tanto refinamento como perigo às
lutas de poder entre os chimpanzés. Nenhum macho pode dominar sozinho, pelo
menos não por muito tempo, pois o grupo como um todo pode derrubar qualquer
um. Os chimpanzés são tão hábeis para coligar-se, que um líder precisa de aliados, a
fim de fortalecer sua posição e aumentar a aceitação da comunidade em geral.
Manter-se no topo é um exercício de equilíbrio entre expressar veementemente a
dominância, manter os aliados satisfeitos e evitar a revolta em massa. Se isso parece
familiar, é porque a política humana funciona exatamente da mesma forma (DE
WAAL, 2007, p. 59).
A luta pelo poder e a manutenção de machos no topo da hierarquia consomem boa parte
da vida de um chimpanzé. Como já analisamos, em se tratando da etologia, dois dos conceitos
mais difundidos entre as espécies é o de território e hierarquia. Geralmente, quem está no topo
luta para manter-se no poder, mas a resistência e a revolta de quem pertence a hierarquias
inferiores é contínua. O ALFA (do topo da hierarquia) tem acesso às fêmeas, reproduz, dita as
regras, comanda o grupo. Essa hierarquia é constantemente questionada, gerando o que De
Waal (2007, p. 63) denomina “machos paranóicos”, que vivem em constante estado de alerta
e luta, sempre prontos a revidar e a refazer coligações. O custo para a saúde dos ALFAS é
grande, manter o poder tem seu preço, para De Waal.
No livro Chimpanzee politcs (1989), De Waal analisa toda a estrutura política em
sociedade de chimpanzés, constatando que, nessa espécie de primatas, a luta pelo poder é
acirrada e consome todo o cotidiano dos machos da espécie. As fêmeas também fazem parte
do complexo jogo de poder e ajudam os machos a manter o status, interferindo em coligações
e, às vezes, contribuindo para traições. Nesse aspecto, De Waal coloca que as fêmeas exercem
uma função de auxílio na manutenção da estrutura de poder pelos machos. São cúmplices e,
por não formarem coligações fortes como as fêmeas dos bonobos, as quais bloqueiam a união
dos machos, acabam sendo participantes ativas dessa estrutura “maquiavélica” dos
chimpanzés.
139
Os chimpanzés são tão hábeis para coligar-se, que um líder precisa de aliados, a fim de
fortalecer sua posição e aumentar a aceitação da comunidade em geral. Manter-se no topo é
um exercício de equilíbrio entre expressar veementemente a dominância, manter os aliados
satisfeitos e evitar a revolta em massa.
Em sociedades matrilineares, como a dos bonobos, existe estrutura de hierarquia e
poder, porém, com a coalização de fêmeas, a agressividade dos machos diminui, e existe uma
maior potencialidade para uma vida pacífica. As fêmeas têm maior capacidade para
reconciliação e atenuação de conflitos, mesmo entre os chimpanzés.
Na espécie humana, De Waal ressalta a diferença no comportamento agressivo entre
meninos e meninas, sendo elas mais competitivas, provocando uma quantidade maior de
conflitos. Os bonobos têm, na matrilinearidade, um dos principais fatores para tentar
compreender a diminuição da agressividade, já que o gênero é um fator importante, neste
caso. Essa estruturação é biológica, mas, no homem, atinge níveis diferentes de
complexidade, em função da criação da linguagem e da cultura.
Assim como Wranghan e Peterson (1998), De Waal coloca que a agressividade é bem
mais destacada no gênero masculino. Outros fatores são também de fundamental importância,
em bonobos, para justificar a diminuição da agressão. O fator ecológico, com um ambiente
que apresenta recursos alimentares, localização geográfica a fontes de alimentos e pouca
competição por estes, faz a sociedade dos bonobos ser distinta da dos chimpanzés. A estrutura
de poder é um elemento importante também entre bonobos, mas existe uma estruturação
hierárquica em torno das fêmeas. Machos, para serem respeitados, por exemplo, precisam
estar próximos das fêmeas dominantes.
Como as fêmeas são coesas e cooperam, entre os bonobos, a estrutura hierárquica é
mais estável, diminuindo a luta pela hierarquia. Como os machos encontram barreiras com a
coalização de fêmeas, eles não passam a maior parte do tempo, como entre os chimpanzés, a
desestabilizar o grupo, na luta pelo lugar de dominante. Os bonobos, nesse aspecto, para De
Waal (2007, p. 90), são mais conservadores.
Os chimpanzés brigam tanto por hierarquia, que a estabilidade do grupo constantemente
encontra-se afetada. É a ‘guerra pelo poder’, não de todos contra todos, como diz Hobbes,
mas de hierarquia e de território, o que fornece mais acesso a alimentos e a sexo para os que
estão no topo da hierarquia. Biologicamente, somos animais gregários, o individualismo, para
De Waal, corroborando Norbert Elias (1994), é um artifício da modernidade. Mas, a guerra
140
existe, visando ao poder de chefiar o grupo. A questão encontra-se situada, para De Waal,
entre a vontade de poder e as emoções48.
Para Duso, o poder tem sua historicidade, e desde a antiguidade é considerado:
A formulação de diretivas para ação de todos os componentes de uma sociedade que
se manifesta na forma de comando - de um comando eficaz, enquanto garantido no
uso de uma força comum preponderante, por outro lado, a atitude à obediência por
parte de todos que se encontram na área deste poder; não uma obediência por
coação, devido ao fato de que se sofre, pura e simplesmente, um ato de força, mas
uma obediência voluntária, que parece característica da vida civil (DUSO, 2005, p.
29).
No limiar da Idade Moderna, principalmente com Bodin, Maquiavel e Hobbes, surgirá a
noção do poder soberano, ligado ao absolutismo. Este é unificador e visa a manter a
constituição da sociedade contra uma pluralidade heterogênea de pensamentos, atitudes e
instituições. Na sequência, esse conceito estende-se a um poder democrático, em que o
homem é caracterizado pela socialitas:
Mas a sociedade civil só é possível através do imperium, que assume agora um
significado novo: deixa de ser condução do governo e torna-se poder, no qual se
exprime o sujeito coletivo, a civitas, cujas ações - as únicas políticas - são
entendidas como separadas e diferentes das ações dos cidadãos, já reduzidas a uma
dimensão privada (DUSO, 2005, p. 34).
Foge ao trabalho aprofundar uma teoria do poder, mas este tem sua historicidade. Com
a revolução francesa e a norte-americana, começaremos a associar o poder à cidadania, à
constituição e ao direito.
Teóricos, como Weber (apud DUSO 2005), dividem o poder em legal-racional, cuja
impessoalidade caracteriza a burocracia moderna; o poder carismático, que é bem diverso do
legal-racional, caracteriza-se pela pessoalidade e extraordinariedade de uma pessoa, sendo
passageiro; e o poder tradicional, que tem como prerrogativa a crença em costumes e
tradições do passado, e sua legitimidade em uma autoridade individual, que assume as
prerrogativas de comando. Em Foucault (1982), o poder não se encontra apenas na soberania,
mas perpassa as relações entre os indivíduos, encontrando-se presente no que se refere ao
microfísico, que é o nível das relações humanas cotidianas. Não é visto apenas na sua
negatividade, mas na criação de saber e formas de subjetivação do indivíduo.
48
De Waal move-se dentro de um conceito de poder que remete à soberania e à vontade de poder, em
Hobbes, remonta a Maquiavel, e faz da “política dos chimpanzés” uma analogia com a política humana. Não
cita, por exemplo, Foucault e seu conceito de poder. Prende-se a um conceito que mistura hierarquia, dominância
e uso de força entre primatas a estrutura de poder em humanos, que está longe de ser reduzida ao aspecto da
soberania e ao uso de força. Na nossa opinião, porém, o poder é construção e capacidade de criar e de mudar,
inclusive, os rumos da violência.
141
Podemos citar também o poder simbólico de que fala Pierre Bourdieu (2009, p. 9), que
é instrumento de conhecimento e de comunicação, só podendo exercer um poder estruturante.
O poder simbólico é um poder de construção da realidade que tende a estabelecer uma ordem
gnoseológica: o sentido imediato do mundo (e, em particular, do mundo social). É
estruturante, porque serve de coesão a uma determinada ordem social.
Temos várias definições de poder, e não há como associar diretamente o poder à
violência. O poder simbólico, inclusive, pode-se contrapor à violência, por exemplo. Essa
breve discussão se fez necessária para tentar não associar a discussão sobre poder com a
violência. Os erros dos primatologistas consistem em confundir conceitos, misturar poder
com violência e naturalizar os dois. Chimpanzés gostam de hierarquia, mas não podemos
inferir uma teoria do poder semelhante à humana para primatas não humanos.
Entraremos agora em outro aspecto fundamental para De Waal, que diz respeito à nossa
natureza bipolar.
142
4.2 BIPOLARIDADE
A espada gasta a bainha, dizem por aí.
Eis o meu caso.
Minhas paixões me fazem viver
e minhas paixões me mataram.
(ROUSSEAU, 2008, Livro V, p. 213).
Como dissemos anteriormente, de Waal trabalha com a metáfora de duas heranças que
são importantes para a espécie humana: a dos chimpanzés e a dos bonobos. São dois modelos
diferentes que produzem duas heranças: uma agressiva, xenófoba, extremamente hierárquica,
que vive lutando pelo poder, com dominância de machos e recursos naturais mais escassos
(chimpanzés), e outra, matrilinear, menos agressiva, com relações hierárquicas mais estáveis,
menos competição pelo poder e dispondo de recursos naturais mais abundantes (bonobos).
Segundo De Waal, somos um “híbrido dessas duas heranças”.
Talvez tenhamos muito em comum com estes híbridos. Somos afortunados porque
em nosso íntimo habita não um, mais dois grandes primatas, e os dois juntos nos
permitem construir uma imagem de nós mesmos consideravelmente mais complexa
do que a Biologia nos tem apresentado nos últimos 25 anos (DE WAAL, 2007, p.
291).
Com um rosto “metade demônio, metade anjo”, somos capazes, para De Waal, de
conviver com as maiores atrocidades e os gestos mais nobres e altruístas. A mesma herança
genética produz Hitler e Gandhi. Talvez essa seja a origem do dualismo entre bem e mal, mas,
na realidade, não existe dualismo, para De Waal, e sim duas tendências convivendo na mesma
natureza. Que pode reforçar nosso lado chimpanzé ou bonobo? A resposta mais simples e
fácil é a que diz respeito à formação do social. Algumas sociedades podem reforçar o lado
chimpanzé (como não pensar em Marx e no capitalismo, assim como descrito por ele, nos
“ressentidos de Nietzsche”, no homo sacer de Agamben, ou, então, produzir sociedades
disciplinadas e hierárquicas, como a japonesa, que, para De Waal, apresentam baixos índices
de agressividade e violência, ou ainda, países, como a Finlândia, que apresentam grau forte de
coesão e cooperação social? Esse é apenas um lado da questão. Se assumirmos nossa parte de
demonismo e capacidade de cooperação, podemos iniciar uma tentativa concreta de resolução
dos problemas.
Essa bipolaridade inscrita geneticamente é apenas uma hipótese de De Waal, que
naturaliza tendências humanas, e a cultura entra como reforçador de tendências cooperativas e
competitivas. De Waal também não diferencia agressividade de violência, traça o constructo
da bipolaridade, inscrito geneticamente no homem e remete ao social apenas o reforço de uma
143
dessas duas heranças. Simplifica bastante nossa natureza e junta os “temperados” e “ígneos”
de Hobbes dentro de um mesmo indivíduo. Em Hobbes, temos dois tipos que se confrontam
com a disputa, pendendo para a vitória dos ígneos: um dualismo entre a espécie humana. Já
em De Waal, as duas tendências encontram-se dentro da mesma pessoa, e a organização
social define qual tendência prevalecerá. Para De Waal, a agressividade, a crueldade, a luta
por hierarquia, estão em um pólo, e a cooperação, a paz, e a convivência com respeito pelo
outro, encontram-se em outro, mas De Waal dá um passo adiante, quando analisa a resolução
de conflitos, o sentimento de empatia e, mesmo entre chipanzés, o papel da reconciliação.
Vamos continuar acompanhando De Waal, no que ele chama de Conflit Resolution:
talvez aqui poderemos, enfim, encontrar uma resposta para a questão que fuja do puro
biologicismo. Observaremos que, neste caso, no que concerne à resolução de conflitos, o
poder pode ajudar a diminuir a violência.
144
4.3 CONFLICTS RESOLUTION
Toda aquela abundância de alimento e de dinheiro,
que estava guardada e escondida pela bruxa avarenta,
pertencia agora àquelas crianças
cheias de vida e de esperança na vida!
João e Maria se abraçaram e tudo acabou bem
(JACOB E GRIMM, apud TATAR, 2004, João e Maria, p. 60).
Aurelli e De Waal (2000, p. 14) constata que o estudo sobre agressividade e violência
centra-se nos dois termos, e pouco se tem estudado sobre resolução de conflitos. A capacidade
para isso é observada em outras espécies, principalmente, em primatas não humanos e
humanos. Os bonobos, segundo Aurelli e De Waal (2000, p. 90), resolvem boa parte dos
conflitos através do sexo. Existe uma estratégia para apaziguamento das tensões, utilizando a
sexualidade.
A capacidade de empatia, que é inata; para Aurelli e De Waal (2000, p. 45), é um dos
fatores responsáveis pela resolução dos conflitos e diminuição da violência. Aurelli e De
Waal (2000, p. 23) fez observações em chimpanzés e constatou que o sentimento de empatia
encontra-se presente e é significativo e primordial na resolução dos conflitos. Carolyn Zahn
Warxel (apud AURELLI E DE WAAL, 2000, p. 26) estudou também crianças, constatando
que o sentimento de empatia é pré-verbal, precedendo o desenvolvimento da linguagem. A
empatia forma a matriz da moral em primatas não humanos e humanos. Para Aurelli e De
Waal (2000, p. 56), condiz com a convicção de Charles Darwin de que a ética nasceu com os
instintos sociais.
Seguindo os passos de Darwin, para Edward Wester Marck (apud AURELLI E DE
WAAL, 2000, p. 65), antropólogo finlandês do início do século XX, é fundamental
compreender quanto é pequeno o controle que exercemos sobre nossas escolhas morais, pois
são produto das emoções.
Aurelli e De Waal (2000, p. 45) citam Mencio (372-89 a.C.), para ressaltar que a moral
tem sua origem em sentimentos e é inata, não sendo esta uma ideia nova. Rousseau (1843)
sistematizou esse conhecimento sobre a origem instintiva de nossa moral, colocando a
piedade e o amor de si como sentimentos inatos ao ser humano. Intervir na criança para esses
instintos, através do contato com uma sociedade corrupta e cheia de vícios, é, para Rousseau
(2000, p. 78), uma tentativa de podar o crescimento da violência, que é um produto do
desenvolvimento da sociedade.
145
Yarn (apud AURELLI E DE WAAL, 2000, p. 78) diz que é necessária uma
comunicação entre juristas e biólogos, para tentar compreender como funcionam os
mecanismos de resolução de conflitos. Nem sempre a lei (que é um artefato humano) resolve
conflitos, sendo necessário observar, na natureza, as soluções. Para Yarn (apud AURELLI E
DE WAAL, 2000, p. 68), como o homo sapiens é complexo, as soluções jurídicas e
institucionais, nem sempre, conseguem resolver problemas ligados a disputas e à violência.
Dentro dessa proposta, os estudos em crianças e adolescentes humanos assumem uma
grande importância, pois é com essa população que podemos trabalhar, de maneira adequada,
a interação genes e ambiente, intervindo nos “gatilhos ambientais” (VERBECK; HARTUP &
COLLINS, apud AURELLI E DE WAAL, 2000, p. 108), que fomentam a violência.
Estudar a agressividade e a violência na infância e na adolescência implica trabalhar
diversas variáveis, que vão desde a família, passam pela condição socioeconômica, pela
escola, pelos fatores culturais e pelos transtornos mentais associados à violência. Todos esses
fatores integrados podem contribuir para aprofundar o estudo da agressividade e da violência,
bem como para resolução de conflitos.
Partindo do pressuposto de Konrad Lorenz (1994) de que a agressividade é um instinto
básico e inato, crianças de todas as condições sócio-culturais vão apresentar agressividade. A
violência, que é um produto da socialização humana, é que apresentará características
diferentes, de acordo com variáveis acima citadas.
Em relação à resolução de conflitos, para Verbeck, Hartup & Collins (apud AURELLI
E DE WAAL, 2000, p. 35-36), crianças menores até a idade pré-escolar dependerão de
modelos parentais para resolução de conflitos.
A violência pode ocorrer entre crianças ou entre crianças e pais. Esses conflitos
envolvem posse de jogos, dificuldade na introjeção de regras, rivalidade entre irmãos, disputa
por amor e poder como os pais. Reportando a Rousseau (1999, p. 79), em O Emílio, “é a
época onde os vícios ou males podem crescer ou ser podados”.
Crianças, principalmente, em idade pré-escolar, estão sujeitas à autoridade e à
subjugação dos pais ou dos cuidadores, sendo esse um fator primordial, para ajudar a
aquisição de modelos para lidar com a violência.
Para autores, como Werbeck, Hartup & Collins (apud Aurelli e De Waal , 2000, p. 39),
crianças em idade escolar ainda dependem da família e também da escola como referenciais
de socialização. A resolução dos conflitos depende de modelos aprendidos principalmente
nessas duas instituições.
146
Para Stemberg e Dobson (apud AURELLI - DE WAAL, 2000, p. 49), a resolução de
conflitos unilaterais é realizada dentro de uma relação de poder assimétrica, terminando com a
subjugação de uma das partes envolvidas. Na resolução bilateral, ocorre o desenvolvimento
da negociação, cooperação e principalmente a empatia. Até a fase pré-escolar, a resolução de
conflitos é unilateral, dependendo dos cuidadores. O desenvolvimento emocional e cognitivo
da criança encontra-se incompleto e depende, nessa faixa etária, do introjeção de modelos de
adultos, precipuamente.
Segundo Aurelli e De Waal (2000, p. 98), em crianças escolares, abre-se uma
possibilidade de negociação bilateral, principalmente com intervenção positiva de adultos.
Stemberg e Dobson (apud, AURELLI - DE WAAL, 2000, p. 57) colocam que, no início da
adolescência, os conflitos terminam através da força e são unilaterais, dependendo de uma
relação de poder assimétrica.
No final da adolescência, entretanto, “as negociações bilaterais são mais comuns”. A
intensificação dos conflitos, no início da adolescência, deve-se a diversos fatores, sendo um
dos principais a transformação hormonal, especialmente a produção de testosterona.
Para Werbeck, Hartup and Collins (apud AURELLI - DE WAAL, 2000, p. 41), a
resolução de conflitos, na infância e na adolescência, aponta para soluções em relação à
violência. Se, por um lado, ocorre, desde a infância, uma propensão aos conflitos e ao uso de
violência nas relações, há, concomitantemente, diversas estratégias de resolução para os
conflitos. Na adolescência, por exemplo, segundo Werbeck, Hartup e Collins (apud
AURELLI E DE WAAL, 2000, p. 58), existe o máximo em exacerbação de violência, porém,
simultaneamente, a maior variedade na resolução bilateral de conflitos.
Para Stemberg e Dobson (apud AURELLI E DE WAAL, 2000, p. 67), o modelo de
negociação dos conflitos ocorre no interior da família, em boa parte da infância, podendo
também incluir a escola como referencial de modelos de negociação. Na escola, o
aprendizado para resolução de conflitos é muito importante, cabendo aos professores e demais
componentes, a escolha de modelos disciplinares que facilitem a negociação e o respeito.
Segundo estudos de Horowitz et al (apud AURELLI E DE WAAL, 2000, p. 78), fatores
socioeconômicos e culturais são fundamentais para a aquisição de modelos de resolução de
conflitos. Para o autor, adolescentes de famílias desorganizadas não conseguem resolvê-los
espontaneamente, gerando, em consequência, um aumento da agressividade e da violência.
Ainda segundo o mesmo autor, adolescentes de classe média norte-americana conseguem
resolver conflitos entre os pares, sem mediação de adultos, contanto que os modelos
147
familiares sejam coesos e estruturados.
Alguns estudos (MADSON & SHAPIRO, 1970; KAGAN & MACEM, 1971;
MCCLINTOCK, 1977, apud AURELLI E DE WAAL, 2000) comparam crianças e
adolescentes de culturas diferentes, verificando padrões mais adaptados de resolução de
conflitos em determinada população. Em comparação a crianças e adolescentes americanas,
por exemplo, observa-se um “padrão mais favorável de resolução de conflitos entre
descendentes de mexicanos, comparados aos anglo-americanos que moram no subúrbio da
Califórnia” (KHORAM, 1994, apud AURELLI E DE WAAL, 2000, p. 34).
Esses estudos apontam para a importância empírica de realizar estudos com diversos
segmentos de uma determinada população, com níveis socioeconômicos e culturas diferentes.
Para maior validade, é necessário que se realize, em diversas partes do mundo, com situações
sócio-políticas distintas. De qualquer maneira,
aponta caminhos que corroboram para a
importância do ambiente no aumento da violência e estratégia de resolução de conflitos.
As pesquisas não são conclusivas e se restringem a localidades específicas, não podendo
ser generalizadas em outras situações e outros contextos. O que podemos concluir é que a
agressividade e a violência são fatos verificáveis desde a infância. É justamente na interface
entre crianças e adultos, que pode ocorrer a exacerbação da violência ou as possibilidades de
resolução de conflitos.
Jean Pierre Lebrun (2008, p. 23-24) coloca que a função paterna, atualmente, encontrase invertida, principalmente nas sociedades ocidentais. Os pais agem como se fossem crianças
desprotegidas e não servem mais de modelo para elas. A estrutura familiar não serve mais de
suporte para conter a agressividade da criança, que, para a psicanálise, é incestuosa, parricida
e perversa, e depende da modulação dos pais, nesse caso, da resolução do conflito edipiano
(LEBRUN, 2008, p. 87), para canalizar construtivamente a agressividade.
A resolução de conflitos passa pela superação, pela canalização e pelo redirecionamento
da violência para funções socialmente construtivas, que é um dos princípios da teoria
psicanalítica freudiana e depende de fatores inatos ou ambientais, dos modelos parentais, da
escola, da rede social como um todo, para ser eficaz. É essa lacuna ou a falta desses modelos,
que Jean Pierre Lebrun (2008, p. 42) denomina “crise da legitimidade”. As funções materna e
paterna instauram uma dispersão social, não possibilitando às crianças terem referências e
modelos positivos, os quais permitam modulação dos afetos e resolução dos conflitos.
Os estudos sobre resolução de conflitos trazem alguma perspectiva para o problema,
pois não focam apenas a violência, mas em como podemos, nós, cientistas, educadores e pais,
148
construir modelos de resolução dos danos causados por ela. Ou ainda: a resolução de conflitos
é o exercício de uma violência positiva, que interdita e coloca limites.
Podemos tentar compreender como os primatas resolvem seus conflitos, e como
crianças e adolescentes chegam a acordos de paz, mas ainda estamos muito distantes de
encontrar respostas para o problema da violência? Estudar a violência apenas sob o prisma do
negativo não ajuda a trazer soluções.
Remetendo a Aurelli e De Waal (2000, p. 90) devemos constatar que a existência da
violência é tão óbvia que não podemos mais nos deter em estatísticas. Hobbes e Rousseau,
cada um no seu período histórico, tentam dar solução a esse problema. O que a Biologia pode
fazer por nós? Apontar, no máximo, caminhos, mas nunca o caminho.
A resolução de conflitos aponta caminhos e longe de ser um tema deslocado do nosso
trabalho, ajuda-nos a pensar que podemos frear a violência, e a solução encontra-se no social.
Em animais de espécies não humanas, temos resolução de conflitos que ajudam a diminuir a
luta por território e hierarquia. Os bonobos e os chimpanzés fornecem exemplos de
conciliação. Nesses casos, não podemos falar de diminuição de violência, pois esta só se
encontra em humanos, mas de controle de agressividade. Já falamos sobre território, posição
na escala social, briga por alimentos, como componentes que geram conflitos em espécies
animais não humanas. O instinto agressivo aparece tanto do lado dos conflitos, como da
resolução destes.
Talvez seja uma pista para os humanos usarem a agressividade a fim de resolver
conflitos. Se a agressividade é um instinto que ajuda a preservação da espécie, pode também
ajudar a frear a violência, colocando limites, por exemplo, afinal, em nossos conflitos, a
violência aparece e traz sua marca humana. O que decorre do social tem sua resolução no
social: pais, famílias, grupos, justiça, lei são todos instâncias sociais que podem combater a
violência no homem.
A chave não é a agressividade, e esta não é um mal e pode servir para abrandar disputas
e chegar à paz, como diz Lestel (2006, p. 234), “devemos aprender como outras espécies
resolvem e encontram soluções para alguns problemas”. Nunca comparando a nossa espécie a
outras, mas tirando exemplos da natureza, para abrir novos horizontes para ela. Nesse ponto, a
natureza não é a imperfeição nem o mal, mas o que deve ser sentido e observado para
aprendermos boas lições. Temos ainda uma vertente que estamos desenvolvendo, aonde a
violência tem aspectos negativos e positivos.
Se pegarmos a origem latina da palavra, vis significa violentia, que é um conceito
149
amplo, que se refere a qualquer comportamento ou conjunto que deriva de vis, força (vigor)
contra qualquer pessoa ou ente. Temos, por este viés, a associação de vis a virtude e força, que
refere-se a energia e firmeza de algo. Violência e força, virtude e ira. A ira estaria ligada a
violência negativa e a virtude, á força da violência positiva. Este é um construto que estamos
tentando articular, para compreender inclusive, resolução de conflitos. A agressividade é
biológica, esta tem componentes genéticos. Proporcionam constituições diferentes e podem
acarretar em indivíduos uma maior propensão para ser agressivo. A passagem da
agressividade para violência depende da socialização humana. O desejo e a consciência do
ato, a falta de empatia, transforma a agressividade em violência negativa. Vamos abordar com
mais profundidade este tema mais adiante.
No momento, é necessário que falemos da agressividade e suas origens biológicas. Para
isso, vamos fazer uma ponte da biologia, com aspectos de pesquisa desta, que são a genética,
as neurociências e a Psiquiatria. Devemos passar e aprofundar o que cada uma tem a dizer,
para fecharmos nossa análise da biologia. É justamente dessas árvores ditas científicas que
hoje se tenta definir o que é agressividade e violência no homem, servindo, na maioria das
vezes, para aumentar a confusão entre os termos. Incluir a Psiquiatria é importante, mesmo se
tratando de um trabalho de filosofia. Podemos questionar, como Foucault, a Psiquiatria como
ciência, mas não podemos esquecer que a biologia molecular, a genética e as neurociências
são discursos que tentam ser hegemônicos e passar como verdades, e a Psiquiatria retira seu
discurso dessas ciências.
150
4.4 AS PARCAS E OS GENES
As parcas, divindades responsáveis pela sorte dos homens,
eram três irmãs, filhas da noite e de Cérbero.
Chamam-se Cloto, Láquesis e Átropos e sua morada é vizinha à das horas.
Possuem um palácio em que o destino dos homens está gravado em ferro e bronze,
de sorte que nada pode apagá-lo.
imutáveis em seus desígnios, tem nas mãos o fio misterioso
que simboliza o decorrer da vida,
nada podendo impedi-las de corta-lhe a trama.
(COMMELIN, 2005, p. 82).
Em 1794, Erasmo Darwin conjecturou que a vida estava ligada por um fio. Para a
época, uma ideia “assombrosa” (RIDLEY, 2001, p. 20). Antes dele, Van Imune, em 1648, e
Wohler, em 1828, levantaram hipóteses de que a vida se resumia a uma estrutura química.
Passando por Darwin, Lamarck, Mendel e tantos outros, a ideia de um fio primordial, à
maneira das parcas, tornava-se, cada vez mais, consistente, até que, em 1943, um cientista
canadense, Oswald Avery, identificou o DNA. Estávamos na Segunda Guerra Mundial e
Mengele fazia experiências com gêmeos. A genética começava a ganhar força. Dez anos
depois, em 1953, James Watson e Francis Crick finalmente decodificam o DNA, chegando ao
gene. Esse fio reduz a vida a um código de 120 letras. Tudo depende de um cálculo
combinatório destas.
Para Ridley (2001, p. 23), o DNA é uma grande fábrica de bolos. As receitas
transformam-se em proteínas, e estas representam a química da vida: respiração,
metabolismo, replicação, comportamento, informação, sexo. Tudo está contido no gene. O
genótipo é o que se passa dentro do organismo; o fenótipo é a interação deste com o ambiente.
Dessa interdependência, genótipo e fenótipo dependem a natureza humana.
Para Ridley (2001, p. 89), faltava uma peça, mas, em 1980, Thomas Cecli e Sidney
Altram decodificaram as importantes propriedades do RNA. O RNA é o Mercúrio, o
mensageiro, o que faz as receitas chegarem até o bolo. Ridley (2001, p. 123) diz que, sem o
RNA, os “dois mundos”, DNA e proteínas, não se ligam. Está desvendado o fio.
Os genes tecem os fios da vida humana, a partir do momento em que o óvulo e o
espermatozóide unem-se. Para Burt Triviers (2008, p. 1-36), os “selfish genetic elements”
entram em ação com a concepção. O gene é uma máquina egoísta, e cada um tende a se
reproduzir e a perpetuar-se. Burt e Triviers (2008, p. 98-120) vêem o gene como uma
fantástica máquina de guerra, mas, paradoxalmente, dessa guerra, surgem acordos e
151
cooperação, caso contrário, nenhuma estrutura viva tornar-se-ia viável.
Em 2001, o projeto genoma anunciou que 30.000.000 de genes respondem pela vida na
terra. O genoma humano - o conjunto completo de genes humanos - vem acondicionado em
23 pares distintos de cromossomos, dos quais 22 são numerados por ordem aproximada de
tamanho, do maior (número 1) ao menor (número 22), enquanto o par remanescente consiste
em cromossomas sexuais X, nas mulheres, e um pequeno Y, nos homens.
Para tentar fazer uma analogia com o código genético, utilizamos uma fábula de La
Fontaine: “o Leão vencido pelo homem”.
Vamos imaginar que, em uma edição, constem 23 fábulas, sendo a do Leão a de número
11. As 23 fábulas representam os cromossomos, os parágrafos das fábulas são chamados
exons, que são interrompidos por introns, que são as gravuras. Os códons são as palavras
compostas em todos os parágrafos, e cada palavra é escrita por letras que se chamam
“bases”49.
Os introns são regiões do DNA que não estão no mRNA de alguma proteína, já os
exons são as regiões do DNA que estão no mRNA de alguma proteína.
As cadeias de RNA recém-sintetizadas de núcleos isolados são muito maiores que as
moléculas de mRNA derivadas delas. De fato, o transcrito primário do gene de globina beta
contém duas regiões não-traduzidas. Essas seqüências intercalares no transcrito primário 15S
são removidas, e as seqüências codificantes são simultaneamente ligadas por um mecanismo
de processamento preciso para formar o mRNA 9S maduro.
As seqüências codificantes dos genes divididos são chamadas éxons (regiões que se
expressam), enquanto as seqüências intercalares não-traduzidas são conhecidas como introns.
Geralmente, os introns são seqüências que são eliminadas na formação das moléculas de RNA
maduro.
Outro gene eucariótico dividido é o da ovalbumina em galinhas, que é composto de oito
éxons separados por sete longos íntrons. Ainda mais marcante é o gene do colágeno, que
contém mais de 40 éxons. Uma característica comum na expressão desses genes é que seus
exons são ordenados na mesma seqüência tanto do mRNA quanto do DNA. Assim, os genes
divididos, como os genes contínuos, colineares com seus polipeptídeos produzidos. Um
código de uma só base pode especificar apenas quatro tipos de aminoácidos, pois existem
somente quatro tipos de bases do DNA. Dezesseis tipos de aminoácidos podem ser
49
Os introns e os exons foram descobertos quando viram uma diferença de tamanho entre o
mRNA da proteína da globina beta e o DNA que o codificava.
152
especificados por um código de duas bases, ao passo que por um código de três bases
determinam 64 tipos de aminoácidos. Por esse cálculo ficou evidente que três ou mais bases
são necessárias para especificar um aminoácido. Experimentos genéticos mostraram que um
aminoácido é de fato codificado por um grupo de três bases, chamado códon.
Figura 1: Cada códon de ARNm liga-se ao respectivo códon de ARN t, que transporta um aminoácido
específico. O ribossomo move-se ao longo do ARN m, ligando-se nos final os aminoácidos na
seqüência exata da proteína codificada.
Figura 01: Código Genético.
Fonte: SADLER, 2001.
Existem 1 bilhão de palavras no livro do genoma. Imaginar esta quantidade é algo
assustador. Vamos agora reproduzir a fábula que corresponde ao cromossomo 11.
Havia exposto um quadro no qual o artista pintou um enorme leão sendo dominado e abatido por um único
homem. As pessoas por ali passavam e admiravam o quadro, se vangloriando da proeza; porém, um leão que por
ali também passou, baixou-lhes o entusiasmo: Posso ver bem que o pintor atribuiu a vitória a vocês, porém ele os
enganou, pintando aquilo que lhes ditou a presunção. Com maior razão seria a nossa vitória, caso os leões
soubessem pintar.
Se trocarmos as letras, em alguns trechos, vamos ver como fica?
“Havia imposto um quadro na qual o arti pintou um enorme loaõ o sendo dominado e abat por um único
horem”.
Dá para compreender? Lemos um trecho sem nexo, aparentemente. Podemos supor que
as letras trocadas são mutações, produzidas por alimentação artificial, uso de drogas, radiação.
153
A fábula passa a ter um significado estranho, e o leitor não vai interagir com ela. Agora vou,
tal como uma parca, reintroduzir o fio em alguns estudos científicos, em que o exemplo ganha
cada vez mais sentido.
Utilizando os estudos de Dilalla e Gottesman (1991), envolvendo genes e
desenvolvimento, os autores dividem os grupos violentos em:
1) Delinquentes transitórios ou comportamentais, que se limitam à adolescência;
2) Antissociais contínuos, que são violentos, ameaçadores e homicidas durante a
adolescência e a vida adulta;
3) Desabrochados tardiamente, que iniciam os atos violentos antissociais na idade
adulta.
Para Dilalla (2008, p. 139), a influência genética específica na violência tem sido
explorada através dos estudos de neurotransmissores. Um dos genes identificados é o DRD4,
situado no cromossomo 11. Esses genes codificam as proteínas que respondem no cérebro ao
neurotransmissor dopamina, que, no sistema límbico, é responsável pelo comportamento de
busca de novidades e agressão. A presença do alelo 4 repetido do gene versus a repetição
deste, potencia a busca por novidades e atos violentos. Para Ridley (2008, p. 98), esse gene
atua, facilitando traços de comportamento relacionados à busca de novidades e atitude
agressiva e podem facilitar a eclosão de transtornos destrutivos na infância, tais como
transtorno de conduta oposicional desafiante, que vão ser responsáveis pela violência da
criança contra outras crianças e adultos, seja em forma de disputa por objetos, agressão física,
desafio a adultos, maus tratos a animais.
Ridley (2001, p. 138) defende que a predisposição genética é apenas um fator. O
importante é a interação com o meio, os adultos, as outras crianças, em suma, a cultura. Nesse
aspecto, não podemos esquecer-nos do Emílio, que aponta para esse caminho.
Vamos supor que a criança tenha uma forte influência do DRD4 e nasça em ambiente
onde existem brigas, não introjeção de modelos parentais, inadequação aos traços de
temperamento da criança. Como diz Lacan (1988, p. 98), falta a função materna e paterna.
Nesse jogo, o gene vai, progressivamente, produzindo dopamina, e a criança fica, cada vez
mais, agressiva e excitada. Resultado: como diz Rousseau, um pequeno tirano é formado.
Utilizando o jargão da Psiquiatria, podemos ter uma criança com transtorno de conduta.
Mas, com os avanços da interação gene e ambiente, essa situação é apenas uma
possibilidade. Um gene sozinho e uma mãe não fazem verão. Quanto mais se estuda genes,
mais percebemos a complexidade da interação dentro do gene e entre genes. Os estudos
154
envolvendo interação entre genótipo e fenótipo estão apenas começando.
Vamos citar outro exemplo, o BNDF (Brian Derived Neurotrophic Factor), que se
encontra também no cromossomo 11, é um gene curto, de 1335 letras. Segundo Ridley (2007,
p. 111), a simples troca de uma letra G por A produz mudanças significativa na expressão de
traços de comportamento. A troca de letras acarreta duas variantes, uma com duas proteínas
de metionina e a outra com duas de valina, o que Ridley (2001, p. 111) denomina MET-MET
e VAL-VAL. O gene que apresenta duas moléculas de valina apresenta traços de ansiedade
acentuados, sendo mais vulneráveis às intempéries do ambiente.
Imaginemos agora uma criança VAL-VAL em um ambiente onde a mãe foi abandonada
pelo pai, este é alcoólatra, ameaça e agride a mãe, esta não apresenta rede de apoio, tipo
parente. Cada vez mais, essa relação com a criança vai ficando complicada e pesada. O VALVAL vai atuando, estimulado pelo ambiente, e, aos poucos, a criança começa a agredir a
todos.
Bem, essa é apenas uma hipótese, um jogo de dados de Hume, em que os dados caem
mais no número 5. Repete várias vezes o mesmo número, e acreditamos que este número
repetido é a realidade, mas é uma hipótese.
A dopamina é apenas uma das inúmeras substâncias neurotransmissoras. Temos a
serotonina, hoje estudada como co-responsável por conduta agressiva e perda no controle dos
impulsos; a noradrenalina, o gaba, a epinefrina, a adrenalina, além dos hormônios, como o
cortisol, responsável pela reação do estresse, os hormônios da tireóide, a testosterona,
incriminada em conduta agressiva, principalmente no gênero masculino. São milhares de
circuitos cerebrais e genes em proporção suficiente, para fazer um livro com muitas e variadas
versões.
Mas, o que interessa, parafraseando Ridley (2008, p. 84), é a interação gene e ambiente.
A sopa que começa a ser feita no DNA, passa por RNA, produz proteínas, interage com o
ambiente, provoca mutações, enfim, faz do ser humano uma mistura de moléculas que
interage com o mundo, em uma relação dialética de retroalimentação contínua.
Tomasello (2003, p. 84) fala de “meio ontogenético”, que é a matriz da criança, em que
esta nasce e começa a desenvolver-se. Esse meio não é escolha mas contingência, é o ponto
de partida da interação com os genes.
A tendência para a agressividade encontra-se nos genes? Podemos dizer,
provisoriamente, que essa é uma parte da questão. Traços de busca de novidades,
agressividade, escassez de dopamina, serotonina ou excesso, em determinadas regiões
155
cerebrais, ajudam a produzir temperamentos agressivos. Aristóteles criou uma biotipologia,
que, na realidade, remonta a Hipócrates, com tipos sanguíneos, fleumáticos, bilios. Thomas
Hobbes, no De Cive, fala sobre o temperamento ígneo e temperado, sobre constituições
diferentes com diversos tipos de desejos, cita os sensuais, os invejosos, o dominado pela
vanglória, cita diversos tipos de loucuras. Rousseau fala da interação criança e adulto.
Todos esses aspectos soam atuais, se analisarmos a genética, a interação genótipos e
fenótipos, pelos relacionamentos: essa é a sopa primordial. Com o advento da linguagem,
temos consciência da violência. Sentir, ou não sentir culpa nos distingue de outras espécies,
pois a culpa requer memória, e esta precisa da linguagem para criar signos. O gene é a receita;
a violência, o bolo, mas a perversão e o mal só estão presentes no homem, pois este possui a
linguagem. Não brigamos apenas por hierarquia e território, mas pela vanglória e por vaidade.
Poder, perversão, paixões, como vanglória, vaidade, inveja são resultados de interações dos
genes com o ambiente. Agora vamos aproximar toda essa discussão de nossa herança primata.
Aos poucos, estamos montando um complexo quebra-cabeça.
Para clarear as ideias, neste ponto, podemos falar que a genética nos fornece uma chave
para a predisposição a sermos mais ou menos agressivos. A agressividade faz parte do ser
vivo, e os genes, principalmente, no homem, podem originar alterações bioquímicas,
anatomofisiológicas que podem levar a uma resposta mais agressiva, porém a violência é de
outra ordem, só se encontra no homem e tem que existir relação deste com outros ou consigo.
A interação de um genótipo, nos circuitos cerebrais, que acarrete um temperamento agressivo,
não leva diretamente à violência, uma vez que existe a mediação do social, da cultura. Nesse
caso, uma pessoa com predisposição para maior agressividade, pode, ou não, tornar-se uma
pessoa violenta.
Levando a discussão para nossa proximidade genética com primatas não humanos,
segundo Katharine S. Pollard (2009, p. 34), temos que considerar que 99% de nossas cópias
de DNA são idênticas às dos chimpanzés e bonobos. Para a autora, apenas 15 milhões ou 1%
de letras formadoras do genoma humano passaram por mudanças em 6 milhões de anos.
O que diferencia humanos de chimpanzés e bonobos neste 1%? A sequência HAR 1,
que ativa o córtex e é especialmente grande em humanos. A sequência FOXP2, que é
fundamental para o desenvolvimento da linguagem humana. Utilizando Hobbes, o FOXP2,
interagindo com o ambiente, foi a responsável pela maior invenção da espécie humana.
A sequência AMY1 facilita a digestão do amido, o que facilita uma maior articulação
para a busca de alimentos, o que significa maior socialização e trocas, o que, para Ridley
156
(2000, p. 145), é a origem da cooperação. A troca de alimentos, a especialização das funções,
a divisão do trabalho é, para Ridley (2000, p. 189), a origem do sentimento de cooperação e
ajuda mútua.
A sequência ASPM, também é responsável pelo desenvolvimento do cérebro. O uso de
ferramentas depende desse crescimento e do desenvolvimento cerebral. Cérebro, linguagem,
uso de ferramentas, alimentação, trocas, especialização e divisão de trabalho diferenciam,
geneticamente, humanos de primatas não humanos, principalmente chimpanzés e bonobos.
Para concluir, entre as sequências gênicas que diferenciam humanos de primatas não
humanos, temos o LCT, que envolve a digestão do açúcar, que, como foi citado por Ridley
(2008, p. 238), é fundamental para a formação de trocas sociais e divisão de trabalho. Enfim,
temos a sequência HAR2, que responde pela habilidade manual e pela destreza, possibilitando
o uso de ferramentas.
Temos uma chave genética neste 1%: cérebro, linguagem, alimentação e uso de
ferramentas respondem pelo surgimento das linhagens de hominídeos que culminam com o
homo sapiens.
Do Sahelanthopus Tchadensis, que é considerado o hominídeo mais antigo, passando
pelo Australopithecus Aferensis, Homo Ergaster e o Neadenrtalensis, que dominaram o Oeste
da Ásia e a Europa glacial por quase 2000 anos. O Homo Sapiens, cujos fósseis foram
encontrados na Etiópia, em 1967, na sequência, foi o único hominídeo a colonizar todos os
continentes, a usar símbolos, a desenvolver linguagem e ferramentas e a realizar trocas sociais
complexas. O Sapiens conviveu com outras espécies, mas não temos como conjecturar como
foi a única espécie que conseguiu se expandir pela terra, criando estruturas sociais e políticas
complexas.
Para Buller (2009, p. 62), a situação é mais complexa e não podemo-nos deter nas
diferenças genéticas e focar o Homo Sapiens por esse aspecto. Para Buller (2009, p. 62), “o
cientista evolutivo Jaak Panilsepp identificou sete sistemas emocionais bem anteriores ao
pleistoceno, época do alvorecer do homo sapiens”.
Emoções, como cuidado, pânico e ação remetem a primatas bem menos evoluídos que
chimpanzés e bonobos (como lêmures, saguis), enquanto reações, como raiva, medo,
perseguição e prazer têm origem em pré-mamíferos. Nesse aspecto, temos emoções
elementares em espécies, que não os primatas próximos ao homem.
O sapiens herdou também essa herança. Um substrato de emoções antigas, que remete a
pré-mamíferos, acompanha nossas emoções. Temos o córtex mais desenvolvido entre as
157
espécies, mas nossas emoções básicas vêm de um passado reptiliano, que não faz parte do 1%
que nos diferencia dos chimpanzés e bonobos; ao contrário, compõe um patrimônio genético
de espécies bem menos complexas e anteriores filogeneticamente ao homo sapiens.
Em relação à agressividade, para Dilalla (2008, p. 131-148), existem fortes indícios de
que a genética influencia traços de temperamento em humanos, inclusive essa herança
reptiliana.
Estudos, como o de Aniskiewycz (1979), demonstram uma hereditariedade de 82% para
agressão em crianças de até 5 anos. Para Dilalla (2008, p. 138), esses estudos são duvidosos e
merecem ser revistos, pois seguem um padrão de gêmeos monozigóticos que estabelecem
uma estimativa de, ao menos, 40% de traços de temperamento agressivos em crianças. Outros
estudos aumentam para 51%. Em dizigóticos, chega a 21%.
Aprofundando mais a questão, alguns estudos delimitam forte componente genético na
agressão física (50%), que se correlaciona com traços de temperamento de busca de
novidades e fraca regulação do autocontrole e tolerância à frustração. A agressão social, que
se relaciona ao abuso psicológico do tipo xingamento, depreciação, humilhação, ofensas,
negligência e racismo, possui uma menor influência genética. Segundo Brendem et al (apud
RIDLEY, 2008), para a agressão social, temos apenas 20% de influência genética, cabendo os
80% restantes ao meio ambiente. Esses estudos são realizados em crianças e podem ser
considerados pouco conclusivos, fornecendo apenas algumas pistas.
Podemos conjecturar que a genética fornece apenas uma hipótese para as agressões
humanas, ou melhor, é apenas um ingrediente da sopa. Um tempero, ou, usando o código
genético, letras a mais ou a menos, que, associados ao ambiente, à cultura, à situação
socioeconômica formam um prato, em que os temperos provocam um gosto apimentado e
diferente. Podemos usar a metáfora da dança da criança e do adulto de Rousseau, que pode
produzir um pequeno tirano. Genes, tipo DRD4 e uma mãe e pai abusadores ou pouco
continentes, produzem uma sopa venenosa e destrutiva. A violência instaura-se nessa relação:
é social. A genética nos fornece faces de um dado. Chamary e Hurst (apud RIDLEY, 2008,
p.4-39) colocam que sabemos ainda muito pouco sobre genes. Termos como “gene egoísta”,
“máquinas de sobrevivência” nada dizem.
As mutações silenciosas, para Chamary e Hurst (apud RIDLEY, 2008 p. 38), só agora
começam a ser investigadas, e cada espécie apresenta sua peculiaridade. Na espécie humana,
temos uma cultura complexa, que, para Lestel (2006, p. 156), não é apanágio de humanos. A
arte, que, em humanos, encontra-se plenamente desenvolvida; a utilização de ferramentas, que
158
para Lestel (2006, p. 98), encontra-se em primatas não humanos, em uma forma mais simples,
mas os chimpanzés, por exemplo, já fazem uso de ferramentas, e a linguagem, essa sim,
específica de humanos, se considerarmos a linguagem verbal, a formação de símbolos, e a
escrita.
Podemos, provisoriamente, resumir que a genética é um componente importante dos
quebra-cabeças do estudo da natureza humana e pode predispor temperamentos com maior
tendência à agressividade. Pode também ser um fator de predisposição para alguns transtornos
mentais na infância, tais como transtornos disruptivos, que são responsáveis por condutas
agressivas. Parodiando Ridley (2008, p. 98), esse é apenas um lado da eterna luta natureza
versus criação. Na realidade, Ridley (2008, p. 145) propõe que essa é uma falsa questão.
Estamos apenas engatinhando nos estudos das influências genéticas, mutações silenciosas,
partes não estudadas do código, interação genótipo e fenótipo, todos esses estudos estão
apenas começando. Só podemos, por enquanto, constatar o óbvio: a espécie humana é a mais
violenta de todas as espécies, e essa violência é diferente da agressividade, que pode, no
máximo, contribuir para gerar pessoas que o processo de socialização torna violentas. Um
exemplo: certo indivíduo nasce com predisposição a ter um comportamento que busca
novidades e respostas agressivas mais acentuadas. Os pais, sendo permissivos, incentivam
essa conduta, mas a violência se instaura nos interstícios dessa socialização, quando pais
incentivam um filho a humilhar outras pessoas, ou eles presenciam os pais sendo
preconceituosos e racistas com terceiros. Poderíamos citar mais exemplos envolvendo outras
situações, como abuso, negligência parental. Nesses temas, vamo-nos deter mais adiante, mas
é o que nos ajudará a ver como a agressividade pode ser utilizada socialmente, para produzir
condutas violentas.
Utilizando uma linguagem mítica, as parcas tecem o destino, mas podem mudá-lo.
Moram perto das horas. O fio das narrativas dos contos de fadas e dos contos maravilhosos, o
fio da Sherazade, o fio do DNA, todos se entrelaçam, mas são apenas fios; nada definem
sobre o destino do homem. Nele, temos a história, produto real e material feito por seres
humanos. Os mitos compõem a história humana, mas, como diz Darnton (1986), fazem parte
de uma materialidade que é histórica, assim como a violência, produto dos homens e da sua
história real e concreta.
O BNDF é o fator genético que faz nosso cérebro crescer e, cada vez mais,
simbolizarmos, criando arte, Estado, economia, religião, história. Os personagens
antropomorfizados falam, usam BNDF, as parcas tecem, o cérebro, 1%, a herança reptiliana,
159
as paixões, o poder. A violência travestida faz sua aparição na história humana.
Átropo corta o fio, uma mutação silenciosa ocorre: o cérebro humano entra em cena.
Este é nosso próximo tema: cérebro e transtornos mentais. Não devemos esquecer que nosso
trabalho é interdisciplinar; é justamente do confronto entre filosofia, artes, ciências, sociologia
que podemos defender uma ideia coesa. Excluir o empirismo das neurociências e da
Psiquiatria é não dar oportunidade de dialogar com a realidade de nosso século. Poderíamos
parar aqui e falar mais sobre Hobbes, Rousseau e fazer uma ponte com o que foi escrito sobre
etologia e genética, mas, empiricamente, são as neurociências e a Psiquiatria, as quais
assumem um discurso de verdade sobre o tema. Escanteá-los e tentar não compreender o que
o empirismo desses campos do saber tem a dizer é jogar com um dado tendencioso.
Certamente, traz mais problemas e complicações, mas esse é o objetivo do nosso trabalho.
160
CAP. 5.
AS NEUROCIÊNCIAS E O ANTISSOCIAL ENTRAM EM CENA
5.1. DAMÁSIO, AS EMOÇÕES E OS NEURÔNIOS ESPELHO
“Finalmente chegou à torre e abriu a porta do quartinho
em que a rosa de urze dormia.
Lá estava a princesa deitada, tão bonita que ele não conseguiu tirar os olhos dela.
Então, curvou-se e beijou-a”
(JACOB e GRIMM, apud TATAR, 2004, A Bela Adormecida, p. 107).
La planéte dês singes, escrito por Pierre Boulle, em 1963, que narra a saga de um
planeta dominado por macacos, onde os humanos são escravos e perseguidos, virou sucesso
em todo o mundo. Nessa obra de ficção, os macacos falam e usam cérebro e ferramentas, e os
humanos são uma ameaça, em função da violência. Quando o astronauta Taylor descobre que
o ser humano provocou a destruição do planeta, desespera-se. O Dr Zairus, literalmente, faz
lobotomia e corta a língua dos humanos, pois é justamente do cérebro e da linguagem que
vem o poder de destruição do homem, porém, quando os macacos adquirem essas habilidades,
passam a ser tão destrutivos quanto os humanos. Por que o cérebro traz esse potencial
destrutivo?
Antonio Damásio (1996, p. 34-76) fala de emoções e sentimentos que são regulados
pela anatomofisiologia cerebral. Neurotransmissores, sinapses, hormônios, áreas cerebrais,
tudo compõe um jogo intrincado, de onde surgem as emoções, que, para Damásio (2001, p.
36), precedem os sentimentos. Esse fato é explicado pela evolução biológica.
Se seguirmos Damásio (1996, p. 38-72), a emoção tem sua origem em processos
metabólicos, que são químicos e físicos, seguidos por sistemas de defesa imunológicos e
reflexos básicos. Esse é o ramo primeiro da árvore das emoções e segue um ramo médio
associado à sensação de prazer e de dor, de punição e de recompensa, o qual provoca
aproximação e afastamento.
Complexificando, Damásio (1996, p. 43-44) coloca que, só ao entrarmos no reino dos
apetites, como fome, sede, curiosidade, sexo, comportamentos de busca e de condutas lúdicas,
é que passamos a atingir o ápice das emoções. No cume, encontram-se a alegria, a mágoa, o
medo, o orgulho, a vergonha e a vaidade. Essas emoções, à medida que se vão
complexificando, tornam-se sociais, ou melhor, relacionais. Em nosso cérebro, ocorrem
161
reações químicas e físicas, das mais básicas às mais complexas, áreas são ativadas, outras
desativadas, e tudo isso depende do gene. Emoções, para Damásio (1996, p. 48), são fontes de
regulação de todo ser vivo.
Damásio divide as emoções em três tipos:
1) Emoções de fundo, que são pré-linguísticas, gestuais, sensório-motoras, que fazem o
ser vivo sobreviver em nível básico;
2) As emoções de base, como medo, raiva, nojo, tristeza, felicidade, surpresa;
3) Finalmente, temos as emoções sociais: simpatia, compaixão, embaraço, vergonha,
culpa, orgulho, ciúme, inveja, gratidão, desprezo, espanto e admiração.
Para Damásio (1996, p. 89), o mecanismo das emoções encontra-se no cérebro e os
níveis de emoção se entrecruzam e influenciam-se reciprocamente (1996, p. 54-58).
Como estamos analisando, o homem tem diferenças que o separam de outras espécies.
O cérebro é uma das principais. Fazendo uma paródia, imaginemos um carrossel: o cérebro.
Vamos colocar um hipotético viajante, para andar por esse carrossel. Para Damásio (1996, p.
65), deve existir um estímulo emocional competente para desencadear a emoção. Digamos
que o desejo de andar no carrossel seja o estímulo. No início da viagem, o personagem entra
nos córtices visuais ou auditivos dos carros. Essa é a fase de apresentação, em que ele percebe
a partida, o início da viagem pelo carrossel e sente as primeiras emoções. Agora ocorre uma
corrente de estímulos, e o carrossel começa a andar por diversas regiões, que são os circuitos
cerebrais, as conexões se formam, e, de súbito, o personagem encontra uma barreira e sente
medo. Entramos na amígdala, “situada nas profundezas do lobo temporal, uma parte do lobo
frontal a que chamamos córtex pré-frontal ventro-medial, e uma outra região frontal no córtex
do cíngulo e na área motora suplementar” (DAMÁSIO, 1996, p. 66).
A amígdala é o centro do carrossel, que intercepta os estímulos, manda sinais para o
córtex, desencadeia emoções como medo e raiva. Na amígdala, fecham-se e abrem-se as
comportas de reações de medo, raiva, que fazem ligação com culpa, ataque, inveja, vaidade.
Da amígdala, parte a execução da ação para o prosencéfalo basal, hipotálamo, tronco cerebral,
nossas vísceras se alteram, assim como nossos músculos, e o viajante grita: pare o carrossel!
Tudo bem, dá para ver que viajante fala, grita, faz-se compreender, mas os circuitos
cerebrais ativados podem ser os mesmos de um chimpanzé, porém o viajante fala, protesta,
usa a lei, processa o dono do parque. Esse exemplo que tomei a liberdade de criar, é ficcional,
mas ilustra como funciona a maquinaria cerebral. A amígdala do viajante é o centro de onde
irradiam-se o medo, a raiva, a fuga, o grito. O mais importante desse mecanismo é que somos
162
um conjunto complexo de órgãos, interagindo através de substâncias químicas e estímulos
físicos. Damásio (1996, p. 210-212) chama de “marcadores somáticos” a essas interações que
ocorrem entre o organismo e o meio. O corpo é o receptáculo de todos os eventos. A amígdala
do viajante interage como obstáculo ao carrossel. Nesse momento, o corpo fala. Em regiões
cerebrais, são ativados neurotransmissores, hormônios são liberados, a musculatura reage, as
cordas vocais entram em ação.
Algo acontece no cérebro: circuitos envolvendo amígdala, córtex, neurotransmissores e
hormônios estão atuando diferentemente. Para Damásio (1996, p. 99), podemos observar esse
aspecto da importância do cérebro em lesionados cerebrais. Quando uma determinada área é
afetada, por exemplo, o cortéx-pré-frontal, o indivíduo passa a ter um comportamento
desinibido, desafiante, agressivo, que antes não tinha. As neurociências, com o estudo de
pessoas que sofrem lesão cerebral, mapeiam as áreas responsáveis por determinado
comportamento. O que Damásio (1996) tenta realçar é que não podemos negar um
componente neuro-anátomo-químico para as condutas perversas, para a crueldade, para o
prazer em fazer o mal ao outro. Existe a psicopatia secundária, que ocorre em lesionados
cerebrais, e a primária, que depende de fatores genéticos, de marcadores-somáticos, da
interação gene e ambiente.
Não existe uma taxionomia ou teoria para as emoções50 que seja geral, ou aceita, de
forma universal. Várias têm sido propostas, entre elas:


Cognitiva' versus 'não cognitiva'
"Emoções intuitivas" (vindas da amígdala) versus "emoções cognitivas" (vindas do cortex
prefrontal)

"Básicas" versus "complexas": em que’ emoções básicas, em conjunto, constituem as mais
complexas.

Categorias baseadas na duração: Algumas emoções ocorrem em segundos (ex. surpresa), e
outras levam anos (ex. amor).
Existe uma distinção entre a emoção e os resultados da emoção, principalmente os
comportamentos gerados e as expressões emocionais. As pessoas frequentemente se
comportam de certo modo, como um resultado direto de seus estados emocionais, a saber:
chorando, lutando ou fugindo. Ainda assim, se podem ter a emoção sem o correspondente
50
Emoção é uma experiência subjetiva, associada ao temperamento, à personalidade e à motivação. A
palavra em inglês 'emotion' deriva do francês émouvoir, que decorre do latim emovere, onde o 'e-‘ (variante de
ex-) significa 'fora' e ‘movere’ significa 'movimento'. O termo relacionado motivação é, assim, derivado de
movere.
163
comportamento, então, nós podemos considerar que a emoção não é apenas o seu
comportamento e muito menos que o comportamento não é a parte essencial da emoção.
Sentimentos, de forma genérica, são informações que seres biológicos são capazes de
sentir nas situações que vivenciam. Por exemplo, o medo é uma informação de que há risco,
ameaça ou perigo direto para o próprio ser ou para interesses correlatos.
A empatia é a informação sobre os sentimentos dos outros, a qual não resulta
necessariamente na mesma reação entre os receptores, mas varia, dependendo da competência
de lidar com a situação, e de como isso se relaciona com experiências passadas e outros
fatores.
O sistema límbico é a parte do cérebro que processa os sentimentos e as emoções. A
Medicina, a Biologia, a Filosofia e a Psicologia estudam o sentimento humano, as quais, para
Damásio (2003, p. 92), são fundamentais. O sentimento engloba percepção sobre
pensamentos, estados do corpo, emoções básicas. O mapeamento, no cérebro, de estados do
corpo, a ativação de regiões cerebrais por estímulos externos que o atingem formam a matriz
dos sentimentos. Um percurso que começa com um estímulo externo, passa por vísceras,
atinge amígdalas, hipotálamo, mexe com pensamento, memória e termina no córtex,
formando o circuito dos sentimentos, o qual, tendo componentes diferentes, com menor
reatividade das amígdalas, por exemplo, ao medo, ou diminuição de serotonina, produz
condutas cruéis, sem culpa nem remorso.
Damásio (2003, p. 138) nos faz perceber que o homem é corpo, utilizando, inclusive,
Espinosa. O cérebro humano é bem mais complexo que o de qualquer primata. Somos
primatas com consciência do eu, intencionalidade nos atos, que reconhecem a alteridade do
outro. Chimpanzés podem ser agressivos, até matar outros, mas lhes falta a consciência do eu,
a percepção daquilo que está fazendo, a culpa; a intencionalidade de que aquele ato é cruel e
deliberado e parte da vontade consciente.
Conhecer a neurociência é importante para situar, no cérebro, a arquitetura das nossas
emoções e sentimentos. Nosso cérebro é diferente do de outros primatas, e esse detalhe é
fundamental, inclusive, não podemos deixar de citar a descoberta dos “neurônios espelho”,
que fazem com que tomemos consciência da atitude e da intenção do outro. Apesar de
encontrar esse mecanismo em primatas não humanos, o desenvolvimento pleno dos neurônios
espelho encontra-se na nossa espécie; eles são a base da imitação, do aprendizado social e da
empatia, os quais foram descobertos pelos pesquisadores Giacomo Rizzolatti, Vittorio
Gallesw e Leonardo Fogasi, no início da década de 90. Para Katja Gaschler (2009, p. 46-51),
164
essa descoberta pode ser a chave para explicar o desenvolvimento da socialização humana,
inclusive, para perceber a intencionalidade e a alteridade nos gestos de outro. Esses neurônios
são responsáveis pela percepção do outro, que facilita a empatia e faz com que reconheçamos
aquele que não faz parte de nós, ajudando o processo de pertencer a um grupo. Os neurônios
espelho estão no início da pesquisa, mas já podem nos fornecer pistas sobre os processos de
imitação, socialização e empatia51.
Nos humanos, pode ser observada atividade cerebral consistente com a presença de
neurônios espelho no córtex pré-motor e no lobo parietal inferior. Alguns cientistas
consideram esse tipo de células uma das descobertas mais importantes da neurociência, na
última década, acreditando que eles possam ser de importância crucial na imitação e na
aquisição da linguagem.
Para concluir, as neurociências fornecem pistas sobre o processo de humanização e o
nosso cérebro. Não podemos negar que o processo de humanização tornou nosso cérebro o
mais complexo entre todas as espécies. Seria tendencioso afirmar que somos violentos, em
função de nossa estrutura cerebral, mas podemos colocar que o cérebro humano, que
apresenta mecanismos responsáveis pelo processo de socialização e nos diferencia de outras
espécies, tem um papel importante que nos singulariza como humanos. Talvez seja a ponte
entre agressividade e violência. Com a apresentação empírica de alguns transtornos mentais,
pretendemos aprofundar essa questão, ressaltando que, longe de biologicizar o homem,
estamos tentando compreender sua natureza, trazendo para o debate a contribuição de outras
áreas do saber.
Como Psiquiatra, com experiência clínica há 17 anos, não posso omitir-me em tocar
nesse tema sob a ótica da Psiquiatria. A psiquiatria estuda os chamados transtornos do
comportamento, podendo trazer contribuições para o estudo da violência. Mesmo sendo
questionada como estratégia de saber-poder da biopolítica e controle social dos
comportamentos, não podemos deixar de fazer um link com o que a psiquiatria tem a dizer
sobre a violência, mesmo que seja para contestar.
51
Um neurônio espelho, também conhecido como célula-espelho, é um neurônio que dispara
tanto quando um animal realiza um determinado ato, como quando observa outro animal (normalmente da
mesma espécie) a fazer o mesmo ato. Dessa forma, o neurônio imita o comportamento de outro animal como se
estivesse ele próprio realizando essa ação. Esses neurônios já foram observados de forma direta em primatas,
acreditando-se que também existam em humanos e em alguns pássaros.
165
5.2 TRANSTORNO MENTAL E COMPORTAMENTO VIOLENTO
Chapeuzinho Vermelho disse consigo:
nunca se desvie do caminho e nunca entre na mata,
quando sua mãe proibir.
(JACOB e GRIMM, apud TATAR, 2004, Chapeuzinho Vermelho, p. 35).
Depois de abordamos, de passagem, a contribuição das neurociências, através de
Damásio, daremos continuidade a nosso recurso às ciências do comportamento, entrando na
Psiquiatria, que estuda a violência do ponto de vista dos transtornos mentais e das alterações
cerebrais. Vamos começar pela infância, em que encontramos os primeiros transtornos que
provocam comportamentos violentos.
Os transtornos disruptivos, tais como o transtorno de conduta, o ‘oposicional desafiante’
e o transtorno de ‘déficit de atenção’ com hiperatividade respondem pela quase totalidade das
condutas violentas na infância. Excluindo transtornos globais do desenvolvimento, os retardos
mentais e os transtornos de humor, podemos afirmar que são principalmente os disruptivos,
que provocam problemas de violência e invasão do direito dos outros52.
O transtorno oposicional desafiante ocorre mais em crianças entre 7 a 10 anos e está
ligado ao confronto de introjeção de autoridade com adultos. O conflito gira em torno de
obedecer, ou não, às normas dos cuidadores, mas não podemos detectar um comportamento
violento que provoque agressão física deliberada, intimidação, roubos, mentiras persistentes.
É um indicador de que algo não vai bem em uma determinada estrutura familiar; tem
substrato genético, segundo a Psiquiatria. Nessa interseção social/família e genes,
encontraremos respostas para os problemas da nossa pesquisa.
O Transtorno de Déficit de Atenção com Hiperatividade - TDAH, que, na realidade,
caracteriza-se por hiperatividade, desatenção, impulsividade, tem bases genéticas e
neuroquímicas, acarreta dificuldade na família, na escola e nas relações interpessoais da
criança. Pode ser um fator facilitador de brigas corporais, desafio à autoridade de pais e
professores, e, se não tratado, pode acarretar problemas maiores, principalmente na
adolescência, como uso de substâncias psicoativas e transtorno de conduta. É um transtorno
crônico, que se pode arrastar durante anos, gerando na criança, na escola e em todos os que
convivem com ela, um mal estar que vai, cada vez mais, perpetuando-se, levando-a a assumir
atitudes, às vezes, violentas, chegando, até mesmo, a tornar-se uma abusadora de outras
52
Disponível em http://www.psiquiatriainfantil.com.br. Acessado em 20 de setembro de 2008.
166
crianças. Há fatores genéticos e neuroquímicos que facilitam a precipitação deste transtorno,
mas não o determinam (ASSUMPÇÃO JR E KUKSINSKI, 2008).
Finalmente temos o “transtorno de conduta”; devido à sua importância para a nossa
tese, citaremos os critérios do DSM-IV E CID 10, utilizados pela Psiquiatria, a fim de
compreendermos melhor esse transtorno.
167
5.3
TRANSTORNO
DE
CONDUTA
E
COMPORTAMENTO
DISRUPTIVO:
Características Diagnósticas
Ladrões se introduziram em uma casa onde nada encontraram, exceto um galo.
Pegaram-no e saíram. O galo, vendo que iria ser morto por eles,
põe-se a suplicar que o deixassem, dizendo-se útil aos homens,
pois os acordava antes do raiar do sol para o trabalho.
Os ladrões, porém responderam: ‘mais um motivo para te matarmos,
pois, acordando os homens, tu nos impedes de roubar’
(ESOPO, 2008, p. 86).
A característica essencial do Transtorno da Conduta é um padrão repetitivo e persistente
de comportamento, em que são violados os direitos básicos dos outros ou as normas ou regras
sociais importantes apropriadas à idade (Critério A).
Esses comportamentos caem em quatro agrupamentos principais: conduta agressiva,
que causa ou ameaça danos físicos a outras pessoas ou a animais (Critérios A1-A7); conduta
não-agressiva, que causa perdas ou danos a propriedades (Critérios A8-A9); defraudação ou
furto (Critérios A10-A12) e sérias violações de regras (Critérios A13-A15).
A perturbação do comportamento causa prejuízo clinicamente significativo, no
funcionamento social, acadêmico ou ocupacional (Critério B). O Transtorno da Conduta pode
ser diagnosticado em indivíduos com mais de 18 anos, mas apenas se os critérios para
Transtorno da Personalidade Antissocial não são satisfeitos (Critério C).
O padrão de comportamento em geral está presente em uma variedade de contextos, tais
como em casa, na escola ou na comunidade. Uma vez que os indivíduos com Transtorno da
Conduta tendem a minimizar seus problemas de conduta, o clínico, com frequência, precisa
recorrer a informantes adicionais, entretanto, o conhecimento do informante sobre os
problemas de conduta da criança pode ser limitado por supervisão inadequada, ou pelo fato de
a criança não tê-los revelado.
As crianças ou os adolescentes com esse transtorno frequentemente iniciam o
comportamento agressivo e reagem agressivamente aos outros. Elas podem exibir um
comportamento de provocação, ameaça ou intimidação (Critério A1); iniciar lutas corporais
frequentes (Critério A2); usar uma arma que possa causar sério dano físico (por ex., um
bastão, um tijolo, uma garrafa quebrada, uma faca ou até uma arma de fogo) (Critério A3); ser
fisicamente cruéis com pessoas (Critério A4) ou com animais (Critério A5); roubar em
confronto com a vítima (por ex., “bater carteira”, arrancar bolsas, extorquir ou assaltar a mão
armada) (Critério A6); ou forçar alguém a manter atividade sexual (Critério A7). A violência
168
física pode assumir a forma de estupro, agressão ou, em casos raros, homicídio.
A destruição deliberada da propriedade alheia é um aspecto característico desse
transtorno, podendo incluir a provocação deliberada de incêndios com a intenção de causar
sérios danos (Critério A8) ou a destruição deliberada da propriedade alheia de outras maneiras
(por ex., quebrar vidros de automóveis, praticarem vandalismo na escola) (Critério A9).
A defraudação ou furto é comum, podendo incluir a invasão de casas, de prédios ou de
automóveis alheios (Critério A10); mentir ou romper promessas, com frequência, para obter
bens ou favores, ou para evitar débitos ou obrigações (por ex., ludibriar outras pessoas)
(Critério A11); ou furtar objetos de valor sem confronto com a vítima (por ex., furtar em
lojas, falsificar documentos) (Critério A12).
Caracteristicamente, os indivíduos com esse transtorno também cometem sérias
violações de regras (por ex., escolares, parentais). As crianças com o transtorno
frequentemente apresentam um padrão, iniciando-se antes dos 13 anos, com a permanência
fora de casa até tarde da noite, apesar das proibições dos pais (Critério A13). Pode haver um
padrão de fuga de casa, durante a noite, (Critério A14). Para ser considerado um sintoma de
Transtorno da Conduta, a fuga deve ter ocorrido, ao menos, duas vezes (ou apenas uma vez,
sem o retorno do indivíduo por um extenso período).
Os episódios de fuga que ocorrem como consequência direta de abuso físico ou sexual
não se qualificam tipicamente nesse critério. As crianças com esse transtorno podem, com
frequência, faltar à escola sem justificativa, iniciando tal comportamento antes dos 13 anos
(Critério A15). Em indivíduos mais velhos, isso se manifesta por constantes ausências do
emprego, sem uma boa razão.
Dois subtipos de Transtorno da Conduta são oferecidos, com base na idade de início do
transtorno, isto é, Tipo com Início na Infância e Tipo com Início na Adolescência. Os subtipos
diferem com relação à natureza característica dos problemas de conduta apresentados: curso,
prognóstico e distribuição entre os gêneros.
Ambos os subtipos podem ocorrer de forma leve, moderada ou severa. Na avaliação da
idade de início do transtorno, as informações devem ser obtidas, preferivelmente, do jovem e
de seus responsáveis. Uma vez que muitos dos comportamentos podem ser ocultados, os pais
ou responsáveis podem não relatar todos os sintomas e superestimar a idade de seu início.
O Tipo com “Início na Infância” é definido pelo início de, ao menos, um critério
característico de Transtorno da Conduta antes dos 10 anos de idade. Os indivíduos com o
Tipo com “Início na Infância”, em geral, são do sexo masculino, e, frequentemente,
169
demonstram agressividade física com outros, têm relacionamentos perturbados com seus
pares, podem ter “Transtorno Desafiador Opositivo” durante um período precoce da infância e
geralmente apresentam sintomas que satisfazem todos os critérios para Transtorno da Conduta
antes da puberdade. Esses indivíduos estão mais propensos a terem Transtorno da Conduta
persistente e a desenvolverem Transtorno da Personalidade Antissocial na idade adulta que
aqueles com o Tipo com Início na Adolescência (ASSUMPÇÃO JR E KUCZYNSKI, 2008).
Já o Tipo com Início na Adolescência é definido pela ausência de quaisquer critérios
característicos do Transtorno da Conduta antes dos 10 anos de idade. Em comparação com o
Tipo com Início na Infância, esses indivíduos estão menos propensos a apresentar
comportamentos agressivos e tendem a ter relacionamentos mais normais com seus pares
(embora frequentemente apresentem problemas de conduta na companhia de outros).
Eles também estão menos propensos a terem um Transtorno da Conduta persistente, ou
a desenvolverem Transtorno da Personalidade Antissocial na idade adulta. A razão de homens
para mulheres com Transtorno da Conduta é menor para o Tipo com Início na Adolescência
que para o Tipo com Início na Infância.
Os indivíduos com Transtorno da Conduta podem ter pouca empatia e pouca
preocupação pelos sentimentos, desejos e bem-estar alheios. Especialmente em situações
ambíguas, os indivíduos agressivos com esse transtorno, em geral, percebem mal as intenções
dos outros, interpretando-as como mais hostis e ameaçadoras do que de fato são, e respondem
com uma agressão que, então, percebem como razoável e justificada.
Eles podem ser grosseiros e não possuir sentimentos apropriados de culpa ou remorso.
Pode ser difícil avaliar a autenticidade do remorso demonstrado, pois esses indivíduos
aprendem que a expressão de culpa pode reduzir ou evitar punições. Os indivíduos com esse
transtorno podem facilmente delatar seus companheiros e tentar culpar outras pessoas por
seus atos. A autoestima, em geral, é baixa, embora o indivíduo possa projetar uma imagem de
“durão”. Fraca tolerância à frustração, à irritabilidade, aos acessos de raiva e à imprudência
são aspectos frequentemente associados. Os índices de acidentes envolvendo homicídios
parecem ser mais altos entre os indivíduos com Transtorno da Conduta que naqueles sem essa
condição.
O Transtorno da Conduta continuamente está associado a um início precoce de
comportamento sexual, consumo de álcool, uso de substâncias ilícitas e atos imprudentes e
arriscados. O uso de drogas ilícitas pode aumentar o risco de persistência do Transtorno da
Conduta. Os comportamentos do Transtorno da Conduta podem levar à suspensão ou à
170
expulsão da escola, problemas de ajustamento no trabalho, dificuldades legais, doenças
sexualmente transmissíveis, gravidez não planejada e ferimentos por acidentes ou lutas
corporais.
O Transtorno da Conduta pode estar associado a uma inteligência inferior à média. O
rendimento escolar, particularmente em leitura e outras habilidades verbais, em geral, está
abaixo do nível esperado com base na idade e na inteligência, podendo justificar o diagnóstico
adicional de Transtorno da Aprendizagem ou Transtorno da Comunicação.
O Transtorno de Déficit de Atenção/Hiperatividade é comum em crianças com
Transtorno da Conduta. O Transtorno da Conduta também pode estar associado a um ou mais
dos seguintes transtornos mentais: Transtornos da Aprendizagem, Transtorno de Ansiedade,
Transtorno do Humor e Transtornos Relacionados a Substâncias psicoativas, principalmente
álcool, e estimulantes tipo crack e cocaína.
Os seguintes fatores podem predispor o indivíduo ao desenvolvimento do Transtorno da
Conduta: rejeição e negligência parental, temperamento difícil no bebê, práticas
inconsistentes de criação dos filhos com disciplina rígida, abuso físico ou sexual, falta de
supervisão, institucionalização, nos primeiros anos de vida, mudanças contínuas dos
responsáveis pela criança, família muito numerosa, associação com um grupo de
companheiros delinquentes e certas espécies de psicopatologia na família
Consoante à definição de transtorno mental do DSM-IV, o diagnóstico de Transtorno da
Conduta aplica-se apenas, quando o comportamento em questão é sintomático de uma
disfunção básica interior ao indivíduo, e não uma mera reação ao contexto social imediato.
Além disso, jovens imigrantes de países assolados pela guerra, com uma história de
comportamento agressivo que pode ter sido fundamental à sua sobrevivência, naquele
contexto, não indicariam, necessariamente, um diagnóstico de Transtorno da Conduta. Nesses
casos, pode ser útil considerar o contexto sócio-econômico em que os comportamentos
indesejáveis ocorreram.
Os sintomas do transtorno variam com a idade, à medida que o indivíduo desenvolve
maior força física, capacidades cognitivas e maturidade sexual. Comportamentos menos
graves, como mentir, furtar em lojas, entrar em lutas corporais, tendem a emergir primeiro,
enquanto outros, como o roubo, tendem a manifestar-se mais tarde, entretanto existem amplas
diferenças entre os indivíduos, sendo que alguns se envolvem em comportamentos mais
prejudiciais em uma idade precoce.
O Transtorno da Conduta, especialmente do Tipo com Início na Infância, é muito mais
171
comum no sexo masculino. As diferenças entre gêneros também são encontradas em tipos
específicos de problemas de conduta. Os homens com um diagnóstico de Transtorno da
Conduta frequentemente apresentam lutas, furtos, vandalismo e problemas de disciplina na
escola. As mulheres com diagnóstico de Transtorno da Conduta tendem a apresentar mais
mentiras, gazeta à escola, fugas, uso de substâncias, principalmente psicoestimulantes como
cocaína, crack e/ou álcool e prostituição. Enquanto a agressão com confronto é mais comum
entre os homens, as mulheres tendem mais a usar comportamentos sem confronto.
A prevalência de Transtorno da Conduta parece ter aumentado nas últimas décadas,
podendo ser superior em contextos urbanos, em comparação à área rural. As taxas variam
amplamente, dependendo na natureza da população amostrada e dos métodos de
determinação: para os homens com menos de 18 anos, as taxas variam de 6 a 16%; para as
mulheres, as taxas vão de 2 a 9% (www.psiquiatriainfantil.com.br). O Transtorno da Conduta
é uma das condições mais continuamente diagnosticadas em instituições de saúde mentais
ambulatoriais e de internação para crianças.
Estimativas obtidas a partir de estudos de gêmeos e de adoções mostram que o
Transtorno da Conduta tem componentes tanto genéticos quanto ambientais, e seu risco é
maior em crianças com um dos pais biológicos ou adotivos com Transtorno da Personalidade
Antissocial ou um irmão com Transtorno da Conduta (ASSUMPÇÃO JR. E KUCSINSKI
2008).
O transtorno também parece ser mais comum em filhos de pais biológicos com
Dependência de Álcool, Transtornos do Humor ou Esquizofrenia ou pais biológicos com
história de Transtorno de Déficit de Atenção/Hiperatividade ou Transtorno da Conduta.
Embora o Transtorno Desafiador Opositivo inclua algumas características observadas
no Transtorno da Conduta, como desobediência e oposição a figuras de autoridade, ele não
inclui o padrão persistente das formas mais sérias de comportamento, em que são violados os
direitos básicos dos outros ou as normas ou regras sociais apropriadas à idade. Quando o
padrão de comportamento do indivíduo satisfaz os critérios para Transtorno da Conduta e
Transtorno Desafiador Opositivo, o diagnóstico de Transtorno da Conduta assume
precedência, e não é diagnosticado o Transtorno Desafiador Opositivo.
Embora as crianças com Transtorno de Déficit de Atenção/Hiperatividade apresentem
um comportamento impulsivo ou hiperativo, que pode ser perturbador, esse comportamento,
em si, não viola as normas sociais apropriadas à idade e, portanto, não satisfaz, habitualmente,
os critérios para o Transtorno da Conduta. Quando são satisfeitos os critérios para Transtorno
172
de Déficit de Atenção/Hiperatividade e Transtorno da Conduta, aplicam-se ambos os
diagnósticos.
Irritabilidade e problemas de conduta frequentemente ocorrem em crianças ou em
adolescentes que passam por um Episódio Maníaco. Esses geralmente podem ser
diferenciados do padrão de problemas de conduta vistos no Transtorno da Conduta, com base
no curso episódico e com sintomas concomitantes característicos de um Episódio Maníaco. Se
os critérios para ambas as condições são satisfeitos, aplicam-se os diagnósticos tanto de
Transtorno da Conduta quanto de Transtorno Bipolar I.
O diagnóstico de Transtorno de Ajustamento (Com Perturbação da Conduta ou Com
Perturbação Mista das Emoções e da Conduta) deve ser considerado, se problemas de conduta
clinicamente significativos que não satisfazem os critérios para outro transtorno específico se
desenvolvem em clara associação com o início de um estressor psicossocial.
Problemas de conduta isolados que não satisfazem os critérios para Transtorno da
Conduta ou Transtorno de Ajustamento podem ser codificados como Comportamento
Antissocial da Criança ou do Adolescente. O Transtorno da Conduta é diagnosticado apenas
se os problemas de conduta representam um padrão repetitivo e persistente associado com
prejuízo no funcionamento social, acadêmico ou ocupacional.
Para indivíduos com mais de 18 anos, um diagnóstico de Transtorno da Conduta aplicase apenas, se não forem satisfeitos os critérios para Transtorno da Personalidade anti-social. O
diagnóstico de Transtorno da Personalidade Antissocial não é utilizado a indivíduos com
menos de 18 anos.
Como já deixei claro, seguirei alguns parâmetros do DSMV E CID 10, para ajudar a
tornar mais objetivo alguns critérios. Os critérios de Diagnósticos para transtorno de conduta
(DSMV E CID 10) são os seguintes:
–
Um padrão repetitivo e persistente de comportamento em que são violados os direitos básicos
dos outros ou normas ou regras sociais importantes apropriadas à idade, manifestado pela
presença de três (ou mais) dos seguintes critérios, nos últimos 12 meses, com, ao menos, um
critério presente nos últimos 6 meses.
–
Agressão a pessoas e a animais.
Outros fatores importantes e fundamentais no transtorno de conduta são os fatores
familiares, sociais e, inclusive, a situação sócio-econômica. Para Bordin e Offord (apud
MATOS; VIEIRA; NOGUEIRA; BOAVIDA E ALCOFORADO 2008, p. 270-273), fatores
importantes são ser do sexo masculino, receber cuidados paternos e maternos inadequados,
173
discórdia conjugal, residir em áreas urbanas e ter nível sócio-econômico baixo. O abuso
físico, sexual, psicológico, a negligência parental, a maternagem insuficiente podem
contribuir para formação do transtorno de conduta. Segundo Bordin e Offord (apud, MATOS;
VIEIRA; NOGUEIRA; BOAVIDA E ALCOFORADO 2008, p. 272), em levantamento
populacional realizado no Canadá (1999), envolvendo 1651 indivíduos entre 14 e 24 anos,
constatou-se que, para homens, o fato de conviver com pais com problemas mentais
(depressão, mania, psicose) é importante para o desenvolvimento do transtorno na infância.
Para meninas, abuso sexual, físico, psicológico, convivência com pais antissociais e usuários
de drogas foram considerados fatores de risco.
A violência física, sexual, ameaças, intimidação física, ameaças de morte são comuns
em meninos com transtorno; já as meninas apresentam mais mentiras, usam mais sexualidade,
trapaceiam, seduzem e fazem jogos psicológicos requintados.
Já falamos antes do bullying, e não podemos deixar de colocar que, para Fante (2008, p.
78), 80%, dos que cometem bullying têm perfil de transtorno de conduta. Geralmente,
conseguem liderar grupos, persuadir e intimidar outros e chefiar gangues.
A velha questão genética e ambiente volta à cena nesses casos. Como vimos, genes
podem facilitar traços de temperamento, como a busca por novidades, a conduta agressiva, a
impulsividade; associando-se ao ambiente, com todos os fatores já citados, temos uma “sopa”,
um caldo de cultura ideal para o transtorno de conduta.
Para explicar melhor este aspecto, vamos enumerar alguns fatores biológicos que
podem ser responsáveis pelo transtorno de conduta. Dolan (apud MATOS, VIEIRA,
BOAVIDA E ALCOFORADO 2008, p. 182) cita:
1.
Alguns estudos apontam que níveis elevados de monoamino oxidase protegem os
indivíduos contra os efeitos adversos dos maus tratos;
2.
O Transtorno de Déficit de Atenção com Hiperatividade- TDAH, e o transtorno
oposicional desafiante, quando não tratados, predispõem para transtorno de conduta;
3.
A função reduzida de 5-HT (serotonina, neurotransmissor cerebral) no cérebro,
pode levar ao aumento da violência, da crueldade, do suicídio e da autoflagelação;
4.
Uma baixa atividade do eixo hipotalâmico-pituitario-adrenal podem estar
envolvidos em níveis de condutas destrutivas, principalmente em meninos;
5.
Uma resposta enfraquecida do sistema nervoso autônomo pode levar à diminuída
interação com o meio ambiente e à aprendizagem com situações de risco;
6.
A capacidade de empatia envolve o sistema da amígdala, e a disfunção, nesse
174
sistema, envolve pobre modulação de emoções, associado com déficit no sistema cortex
órbito-frontal. Em portadores de transtornos de conduta, não ocorre modulação dos impulsos
e controle destes. Existe uma diminuição do circuito cerebral responsável pelo medo e pela
punição e uma ativação maior do centro de recompensa e prazer.
Vale salientar que todas essas pesquisas neurobiológicas são inconclusivas, e devemos
ter o cuidado de não retrocedermos a Lombroso. Mas, apesar de tudo, não podemos deixar de
pontuar esses fatores, embora acreditemos que não se trate somente de pistas a serem
investigadas e não de respostas. Em contrapartida, temos fatores ambientais.
Em contrapartida, temos fatores ambientais. Farrington (apud MATOS; VIEIRA;
NOGUEIRA; BOAVIDA E ALCOFORADO 2008, p. 221-243) faz um estudo sobre a
delinquência, começando na infância e terminando na idade adulta, e descobre que alguns
fatores ambientais, que já foram citados, reforçam o estudo, tais como baixo rendimento
familiar, família numerosa e sem condições financeiras, pais condenados, irmãos
delinquentes, mãe jovem e deprimida, desarmonia familiar, QI familiar baixo. Quanto aos
fatores individuais, enfatiza os seguintes: QI não verbal baixo, QI verbal baixo, baixo
desempenho escolar, alta impulsividade, baixa concentração, desonestidade, conduta
provocativa. Este estudo fala de dados óbvios, que só reforçam a hipótese da interação do
genótipo e fenótipo e aponta soluções políticas públicas de prevenção.
Outro estudo, de Fonseca e Queiroz (apud MATOS; VIEIRA; NOGUEIRA
BOAVIDA; E ALCOFORADO, 2008, p. 194-211), tenta diferenciar a adolescência como
fase propícia para atos de rebeldia, que podem ser confundidos com condutopatia. Os
pesquisadores apontam estudos que remetem ao século XIX, os quais delimitam a
adolescência como o terreno fértil para condutas de transgressão. Rousseau, no Emílio, fala da
adolescência como a idade em que as forças corporais aumentam e propiciam mais força e
destreza. O “lobo obsceno” surge completo na adolescência, seguindo o raciocínio de
Rousseau, mas é uma grande falácia associar a adolescência à condutopatia. Podem existir
condutopatas na adolescência, mas não é regra. A adolescência é uma fase rica, complexa, em
que, na grande maioria dos casos, o senso moral vai desenvolver-se plenamente, inclusive, a
cooperação.
Voltando ao estudo de Fonseca e Queiroz (apud MATOS; VIEIRA; NOGUEIRA;
BOAVIDA; E ALCOFORADO 2008, p. 212), os autores chegam à conclusão de que
realmente a adolescência é a fase mais vulnerável para a formação de atos de delinquência,
mas ressaltam que esses atos, em sua maioria, são transitórios, e, ao atingir-se a idade de 18
175
anos, diminuem, reforçando a ideia anterior e desestigmatizando a adolescência. De acordo
com Moffitt (apud MATOS; VIEIRA; NOGUEIRA; BOAVIDA; E ALCOFORADO, 2008,
p. 210), apenas entre 5% a 6% persistem na idade adulta com comportamentos antissociais.
Este estudo leva em consideração adolescentes normais, com períodos de turbulência.
Do ponto de vista da Psiquiatria, transtorno de conduta não é somente uma teoria, é
baseado em fatos, em evidências. Na minha experiência clínica, já enfrentei o caso de uma
criança de quatro anos degolando irmão de 1 ano! Mas, não podemos generalizar; acredito
que estamos margeando linhas de um tecido que, aos poucos, vai-se formando. Um rizoma,
como diz Deleuze. Temos muitas peças.
Uma criança com transtorno de conduta é o protótipo da crueldade e não podemos
dissociá-la das gangues, do bullying, da delinquência juvenil. Para Diógenes (2008, p. 98), a
cultura da violência é o ambiente adequado para a formação de gangues juvenis. Estas
existem desde o início da história; há relatos na Babilônia, de gangues juvenis. Se, agora, a
Psiquiatria denomina tais fenômenos de transtorno de conduta, é só uma questão semântica e
histórica: os conceitos e maneiras de se dizer a verdade mudam historicamente, como analisa
Foucault (1982, p. 78).
Um grave problema que contribui para a violência é o uso de substâncias psicoativas.
Segundo Marques e Cruz (apud ROMARO E CAPITÃO 2007, p. 320-335), é na passagem
da infância para a adolescência que se observa o aumento do uso de drogas, em que se geram
frustrações, ansiedade, culpa, baixa auto-estima, o que, por si, já ajuda a busca por
substâncias. Mas, nosso foco é o transtorno de conduta. Estudo realizado pelo CEBRID
(Centro de Informações sobre drogas psicotrópicas), em 1977, no Brasil, já apontam aumento
do uso de álcool e tabaco, em estudantes da 5ª série do primeiro grau, iniciando a partir dos 10
anos. Nesse mesmo estudo, o uso do crack já aumenta entre crianças e adolescentes
GIGLIOTTI, 2006).
Estudos recentes, de 2006, do Cebrid, constatam o aumento assustador do uso de crack
entre jovens no Brasil e em algumas partes do mundo. O crack produz um quadro clínico de
aumento de violência, desinibição, ideação de perseguição, e pode ser responsável por crimes
violentos. O álcool também responde por condutas violentas, acidentes de trânsito e mortes
fatais. No Leviatã, Hobbes já associava o álcool à loucura, porque indiretamente fortalece as
condutas do homem ígneo. Levantamos essa questão por ser essencial. Falar sobre
agressividade e violência e não tocar no tema do uso de drogas, do narcotráfico, da geração
química, do investimento, como diz Negri e Hardt (2006, p. 78), do império pela química, é
176
deixar passar ao largo um dos fatores que contribuem para o aumento assustador da violência
social.
A conclusão a que podemos chegar nessa discussão é que a Psiquitaria não distingue
claramente a agressão da violência, e os transtornos de conduta ainda precisam ser
aprofundados. Que eles contribuem para a violência é um fato inegável, mas determinar que o
transtorno de conduta é a causa dela é perigoso. Talvez cheguemos à conclusão que
portadores de transtornos de conduta imitam comportamentos violentos de pais, amigos,
familiares, da mídia, e o cérebro, estando predisposto a produzir comportamentos violentos,
necessita apenas desse fator de imitação, para desencadear comportamentos violentos. Mas
neurônios-espelho, impriting, empatia são interações aprendidas socialmente, reforçadas ou
diminuídas. O foco não está apenas no cérebro, mas na maneira como ele interage com o meio
social onde está inserido. Se algumas pessoas nascem com prejuízos na área cerebral
responsável pela empatia, esse fato não é regra nem determina seu destino. Pode ou não
tornar-se um antissocial, vulgo psicopata. Não devemos esquecer que o que o psicopata
destrói é, principalmente, a alteridade do outro. Ele é o protótipo do homem violento, mas não
é o homem, assim como os ígneos, são apenas uma parcela de nossa espécie.
Passaremos agora a aprofundar sobre o antissocial e ver o que ele tem a contribuir com
nosso tema.
177
5.4 O ANTISSOCIAL ENTRA EM CENA
Nem sempre a cara revela o valor do indivíduo
(FEDRO, 2006, p. 135).
O antissocial, esse personagem tão popular hodiernamente, que dá tanta audiência na
mídia, é geralmente do sexo masculino, na proporção de 7 a 8 homens, para 2 ou 3 mulheres,
em países ocidentais (SADOCK E SADOCK, 2007).
Para Ballone (2006), para estudar o anti-social estamos entrando em território difícil e
temos que ter cautela, já que engloba as pessoas que não se enquadram nas doenças mentais já
bem delineadas e com características bastante específicas, a despeito de se situarem à margem
da normalidade psicoemocional ou, no mínimo, comportamental. As implicações forenses
desses casos reivindicam da Psiquiatria estudos exaustivos, notadamente sobre o grupo de
entidades com Transtornos da Personalidade.
Os transtornos de personalidade, que podem acarretar problemas de violência,
crueldade, homicídios, corrupção e outros atos delinquentes são: o Borderline, o Histriônico,
o Paranóide e, principalmente, o Antissocial. Existe uma característica comum entre eles: a
falta de controle de impulsos, o envolvimento com drogas, a sexualidade promíscua, a
impulsividade, as mentiras.
Excetuando-se o paranóide, que desconfia de tudo e de todos, para quem qualquer um
pode ser um inimigo em potencial, os demais têm características que podem levar a atos de
crueldade. O que é um transtorno de personalidade? Citando BALLONE (2006, p. 35), é
quando a personalidade atinge padrões de condutas repetitivas, fixas, que não mudam com
aprendizagem e terapia. São personalidades imaturas, infantis, envolvem os outros em
confusões e apresentam graves problemas com a lei53.
Como não posso. nesta tese. abordar todos os transtornos de personalidade. focarei o
antissocial, uma vez que interessa e muito ao nosso trabalho.
Seguindo Ballone (2006), estudar o potencial da destrutividade humana é bastante
interessante e poderá esclarecer certos pontos em comum entre grandes manifestações de
53
Podemos conjecturar se Hobbes, quando descreveu o estado de natureza, não vislumbrou essas
personalidades, ou, se Rousseau, ao falar do desvio, da contingência, não quis se referir a indivíduos com
transtornos de personalidade. Neste exato momento, corro o risco de receber críticas destrutivas, por tentar
psiquiatrizar autores clássicos e colocar palavras neles. Não é essa a intenção. Faço pontes, assim como uma
história que se constrói, conjecturo os fios que vou tecer. Sou uma fiandeira. Mas, acredito que o homem do
século XVII e XVIII foi inventado de acordo com sua época e para lidar com problemas da época. O que faço é
pura hipótese. Como diz Foucault (2002, p. 78), jogos de verdade e poder-saber, Rizomas de Deleuze, fio das
parcas, contos das velhas fiandeiras, que, ao redor da clareira, teciam suas histórias.
178
destrutividade, como são as guerras, os genocídios, as torturas, o terrorismo e, talvez,
manifestações incomuns da personalidade humana, baseadas na psicopatologia, na psicologia
e nas neurociências.
A evolução dos conceitos sobre a Personalidade Psicopática transcorreu, durante
mais de um século, oscilando entre a bipolaridade orgânico-psicológica, passando a
transitar também sobre as tendências sociais e parece ter aportado, finalmente, numa
idéia bio-psico-social que, senão a mais verdadeira, ao menos se mostrou a mais
sensata. (Ballone, 2006).
Desde o século XVI, já se tenta descrever essas personalidades “sem alma”. A
psiquiatrização começa com Pinel e a Psiquiatria. Roudinesco (2008, p. 89) nos fala de Gilles
De Rais: um assassino, pedófilo, sem nenhum remorso, que matava crianças em série na
França do século XIII. O Marquês de Sade inaugura a literatura oficial sobre os perversos. No
século XIX, temos Lombroso e seus discípulos que tentam encontrar características no crânio,
para naturalizar o comportamento psicopata. Peter Gay (2001, p. 12) coloca que o século
XIX, finalmente, “cientificaria o mal”. O psicopata atinge, com Lombroso, um estatuto
biológico e tenta ser justificado cientificamente.
Vamos fazer um salto para a década de 80 do século XX. A partir daí, delineia-se o
lugar do transtorno de conduta, na infância, e da personalidade antissocial, no adulto. A
década de 90 solidifica a tendência, e entramos no século XXI falando de transtorno de
conduta e dos anti-sociais. A mídia já havia descoberto, há muito tempo, o potencial de venda
da imagem desse personagem. A indústria cinematográfica, aos poucos, substitui vampiros,
lobisomens, múmias, por antissociais.
Que tem a nos dizer o antissocial com vista aos objetivos da nossa pesquisa?
Para Silva (2008, p. 79-99), condutas como impulsividade, autocontrole deficiente,
necessidade de excitação, falta de responsabilidade, problemas comportamentais precoces,
transgressão, ausência de culpa, sedução, manipulação, mentiras fazem parte do cotidiano do
antissocial. Os antissociais estão espalhados em toda parte; existem em graus, que vão do leve
ao moderado. Os homicidas talvez sejam apenas 5% a 10%. Quando estão em bando, são
mais fortes. Os skinheads, por exemplo, são apenas a ponta de um iceberg. Antissociais
manipulam grupos, criam redes, organizam crimes, estão infiltrados no Estado. Elegem
políticos ou são eles próprios os políticos.
O antissocial não pode ser contrariado: manda matar, ou tirar de circulação; não tem
limites. É o perfeito homem hobbesiano em estado de natureza. Tem a face de bonzinho,
sedutor, mente para conseguir objetivos, frauda, desdenha da lei. Não sente remorso nem
179
culpa. Fraudar milhões e desviar dinheiro de refugiados, tudo isso nada significa para ele. Um
bom almoço com boas companhias vale a morte de mil crianças refugiadas. Sem culpa nem
remorso54.
É a sociedade de Rousseau que produz esses seres? Para a Biologia, existe a genética, o
cérebro, o lobo frontal, as amígdalas, os neurotransmissores. Eles, biologicamente, não
sentem emoção ou culpa, mas o ambiente reforça a crueldade. Não são maioria, tal como os
ígneos de Hobbes, existe os temperados, mas um antissocial pode formar grupos com pessoas
inseguras, frágeis, conseguir o poder do Estado, criar organizações criminosas. É o fator
contingente de Rousseau. Mais uma vez podemos cair no erro de colocar uma lente de
aumento e brincar de diagnosticar psicopatas em muitas pessoas. Uma brincadeira perversa
que pode servir para vender revistas, filmes e livros, mas reduz o fenômeno a um universo
que não corresponde à realidade.
Delumeau (2009, p. 355-507), remete ao medo de satã, da demonização da mulher, dos
muçulmanos, todos ligados a ele, a partir do século XVII. A partir do século XIX, a classe
operária, os pobres, os marginais, os loucos eram figuras de medo. Ligados a satã surgem
vampiros, lobisomens, múmias, depois o nazismo, a guerra fria, os comunistas, e, hoje, os
terroristas. O medo, tão presente em Hobbes, funda o Estado. Era o medo do homem ígneo,
do sem limites, do violento, do cruel e do agressivo. Rousseau não fala em medo, mas em
pequenos tiranos, em corrupção, em maldade: não é o estado de natureza, mas a sociedade
civil que é antissocial para Rousseau.
Hoje, temos medo do antissocial. Como adverte Silva (2008, p. 147-148), estão nas
manchetes, na TV, nos jornais. Para a autora, nossa cultura estimula o antissocial. O cinema
faz deles heróis, e os noticiários de TV nutrem-se de notícias sensacionalistas, envolvendo
crimes, corrupção, formação de quadrilhas.
Essa discussão sobre o antissocial não é apenas um recurso da vontade de saber-poder
da Psiquiatria. Como já citei Hipócrates, por exemplo, traça uma biotipologia humana, que é
utilizada por Aristóteles. Santo Agostinho fala, nas confissões, dos males da juventude.
Hobbes usa os conhecimentos da anatomia e da fisiologia da época, para traçar perfis
diversos. Rousseau, no Emílio, descreve o desenvolvimento humano, passo a passo, até a
idade a adulta. Hoje temos a Biologia, a Psiquiatria, o antissocial.
54
Não podemos cair no erro de fantasiar o psicopata e dizer que ele responde por toda violência humana.
Ele é apenas uma parte. Existem psicopatas que se isolam, outros que transtornam a vida de poucas pessoas, não
se envolvem em gangues, por exemplo.
180
A violência negativa e suas máscaras: a crueldade, a perversidade não é universal. Não
se encontram em todos os homens. A violência não faz parte de uma natureza decaída, um
pecado original, um estado de natureza que deve ser superado.
O poder é uma ameaça e uma solução. Temos o poder de mudar; isso nos faz humanos.
Podemos até, com o avanço da ciência, detectar indivíduos que tenham uma arquitetura
cerebral que não estimula a empatia e o sentimento de culpa, e tentar ajudar cuidadores a
estimularem tendências opostas. O destino nunca está fechado. Se o psicopata mete medo, é
porque a estrutura social investe nesse medo. Não são arautos da violência, mas um reflexo da
sociedade em que vivem.
Passaremos agora a analisar fatores sociológicos que podem ajudar em nosso estudo
sobre o tema. Focar no antissocial e em transtornos mentais pode parecer uma atitude
reducionista e biologicizante. Entre constatar que existem indivíduos com a predisposição a
um comportamento violento transgressor e colocar a origem da violência neles, sem passar
pela sociogênese da formação do indivíduo, é não levar em conta a dimensão social do
homem. Antes de existir o “eu”, o nós precede a formação da personalidade. Em função
desses fatos, falaremos um pouco sobre alguns aspectos da sociogênese da violência.
Utilizarei principalmente autores, como Elias, Clastres, Girard e Birman.
181
5.5 OUTSIDERS E INTEGRADOS: O Diferencial de Poder em Norbert Elias
Um dos temas importantes desta pesquisa diz respeito à sociogênese dos conflitos.
Vamos entrar agora no fator grupal.
Elias (2000) fala de “outsiders e estabelecidos”, para descrever que, entre grupos, existe
sempre uma tensão, um clima de guerra, o que ele chama de “Diferencial de Poder”
55
(ELIAS, 2000, p. 32).
Assim, nesta pequena comunidade (Wiston Parva), deparava-se com o que parece
ser uma constante universal em qualquer figuração de estabelecidos e outsiders: o
grupo de estabelecidos atribuía a seus membros características humanas superiores,
excluía todos os membros do outro grupo do contato social não profissional com
seus próprios membros; e o tabu em torno destes contatos era mantido através de
meios de controle social como a fofoca elogiosa (praise gossip), no caso dos que o
observavam, e a ameaça de fofocas depreciativas (bleme gossip), contra os suspeitos
de transgressão (ELIAS, 2000, p. 20).
Os estabelecidos são os que detêm o poder, e os outsiders são os que possuem pouco
poder. Para Elias (2000, p. 33), um dos fatores fundamentais para ser estabelecido é ter
melhores condições materiais. Ter mais dinheiro, ser proprietário de meios de produção, ter
redes econômicas e políticas são fatores que ajudam os estabelecidos a tentar a supremacia
sobre os outsiders. Mas, para Elias (2000, p. 35-36), essa é uma meia verdade. Nesse aspecto,
Marx tem razão, em relação à supremacia dos estabelecidos, que ele chamou de classe
dominante, mas só isso não explica a diferença de poder para Elias.
Um fator considerado fundamental por Elias (2000, p. 35) é a chamada “Fantasia
Coletiva”, que é criada pelo grupo estabelecido e pode ser baseada em fantasmas protohistóricos, que são ‘fantasias coletivas ou individuais, experiências afetivas que moldam
afetos e condutas’. Por exemplo: um grupo pode se achar portador de uma verdade religiosa,
uma pureza racial, uma habilidade artística ou outro fator diferenciador que gere diferenças
entre grupos. Na realidade, funciona na base do: “nós somos melhores que eles”.
É certo que, quando existe predomínio material, esse diferencial de poder torna-se um
fator de grande pressão entre grupos, mas não é a condição necessária. Pessoas da mesma
classe social podem-se digladiar por questões religiosas, rixas de famílias. Nesse ponto, a
crueldade é exercida através de fofocas, difamação, lutas corporais, impedimento do acesso a
55
Este diferencial em Elias diz respeito à estrutura material, poder simbólico, como por exemplo, deter
melhores instituições de educação, ter acesso a arte e lazer. Falar mais corretamente a linguagem, ter mais
coesão social e união.
182
empregos por parte dos estabelecidos em relação aos outsiders. O estudo de Elias (2000) foi
realizado no bairro operário de Winston Parva, em Londres, entre a década de 40 e 50 do
século XX, um fator fundamental para ser estabelecido é a coesão grupal. São famílias e
grupos mais estruturados e organizados, que têm acesso à educação, à rede social, a
empregos, a cuidadores para crianças. Enquanto os outsiders apresentam pouca coesão,
dificuldade de redes sociais são alvos de fofocas e discriminação. Elias (2000, p. 117-124)
coloca que a discriminação e a falta de oportunidades dos outsiders pode ser um fator
importante na formação da delinquência juvenil. Mais uma vez, estamos falando de
adolescentes como idade de risco, e o fato de serem outsiders, pouca coesão grupal, famílias
desestruturadas contribuem para grupos de delinquentes.
Fazendo uma ponte com os estudos da socióloga brasileira, Glória Diógenes (2008), a
formação de gangues, principalmente juvenis, é um fenômeno que vem crescendo na América
latina e do Norte e na Europa. Gangues de skinheads, neonazistas, homofóbicas, ligadas ao
narcotráfico, ao tráfico humano, à cultura hip-hop, ao racismo branco ou negro, ao ódio por
imigrantes. Esse é apenas um lado da violência, que não pode ser resumida ao grupo, pois é
também individual; pode acontecer entre duas pessoas, ou ser silenciosa, como a negligência
e a omissão. Segundo a autora:
Talvez a faceta mais peculiar das práticas da violência seja o seu caráter difuso,
imprevisível, sem “lugar” definido no corpo social. A violência é uma prática que
foge do curso presumivelmente disciplinado e estável da ordem social. Ela emerge
como aquilo que não deveria ocorrer, ela parece resvalar de outra ordem
(DIÓGENES, 2008, p. 55).
O universo hobbesiano é indivíduo contra indivíduo, mas podemos ampliar para grupos
contra grupos e indivíduo contra si próprio. Do ponto de vista da Antropologia, Clastres
(2004, p. 267) mostra que as sociedades ditas primitivas constroem-se para a guerra. A
violência mantém os grupos coesos, as tribos passam a identificar, na outra tribo, o inimigo, a
alteridade, o diferente, e passam a construir uma coesão interna sobre o inimigo da tribo rival.
Existem alianças, pactos, mas a guerra permeia as tribos.
Qual a função da guerra primitiva? Assegurar a permanência da dispersão, da
fragmentação, da atomização dos grupos. A guerra primitiva é o trabalho de uma
lógica centrífuga, de uma lógica da separação, que se exprime de quando em quando
em conflito armado. A guerra serve para manter cada comunidade em sua
independência política. Enquanto houver guerra, há autonomia. É por isso que ela
não pode, não deve cessar, é por isso que ela é permanente. A guerra é o modo de
existência privilegiado da sociedade primitiva enquanto essa se distribui em
unidades sociopolíticas iguais, livres e independentes: se não houvesse inimigos,
seria preciso inventá-los (CLASTRES, 2004, p. 266).
183
Tudo isso se encaixa como uma luva no “Conceito do político” de Carl Schmitt. A
famosa divisão amigo-inimigo, o diferencial de poder, os grupos lutando entre si por
hegemonia compõem a paisagem da violência humana. Só o homem possui linguagem,
cérebro desenvolvido, uso de ferramentas e é violento, tendo consciência do fato e da
intencionalidade.
Aprofundando Elias (2000, p. 140-143), o estigma e o preconceito fazem parte da
estratégia dos estabelecidos para dominar os outsiders. Um aspecto importante é que,
geralmente, outsiders têm menos coesão social, vivem em famílias desestruturadas e têm
menos opção de lazer, educação e emprego. Esse fato contribui para a delinquência juvenil.
Elias (2000, p. 140) alerta para o fato de que a sociogênese da delinquência tem um
forte componente social. Focar em fatores individuais é reduzir, a uma parte, uma questão
complexa. Ser outsider é ser estigmatizado, objeto de chacota, ter menos oportunidades
sociais, menos coesão grupal. Concomitantemente, para Elias (2000, p. 178), podem ocorrer
transformações de grupos, e outsiders podem passar a “estabelecidos”. Na realidade, não é um
jogo de vítima e algoz, mas uma questão de diferencial de poder.
Utilizando René Girard (2008) podemos considerar que é impossível falar em sociedade
sem violência. Todas as religiões funda-se em mitos que remetem à violência e ao sagrado
(GIRARD, 2008, p. 23). Estamos seguindo um caminho que parte do individual ao coletivo e
faz parte de toda a estrutura social humana. A sociedade é organizada em grupos, usando
Elias (2000), de estabelecidos e outsiders. Dentro desses pólos, estabelece-se uma tensão, um
conflito contínuo, onde a difamação, o ódio, o preconceito, o estigma, a guerra fundam a
alteridade. Mas, perpassa o indivíduo e ecoa nele a marca do estigma, do preconceito, da
exclusão. O indivíduo dentro do grupo pode-se desestabilizar e chegar a cometer homicídio e
suicídio.
Ordenando o que foi colocado até aqui, podemos dizer que a sociedade é dividida entre
grupos, que Elias (2000) denomina de estabelecidos e de outsiders; Clastres (2006), de
sociedade contra o Estado, sendo que a violência instaura os grupos dentro de uma coesão que
estabelece amigos e inimigos, o que corrobora, em alguns aspectos, a doutrina de Schmitt
(2006). O indivíduo é parte dessa corrente, ele está no grupo, mas não é o grupo. Tem
consciência, desejos e diferenças de temperamento e constituição que o torna singular em
relação à homogeneização do grupo.
184
Analisando Girard (2008), o homem é governado por um mimetismo instintivo
responsável por comportamentos de apropriação mimética geradores de conflitos e
rivalidades, onde a violência é um componente natural das sociedades humanas. A origem da
violência encontra-se no desejo humano. Aqui é que a situação fica complexa, em função de
este desejo ser mimético e desejar o que o outro deseja. Inaugura-se assim um ciclo de
violência entre os homens que passa a gerar conflitos. A vingança permeia o desejo; se muitos
desejam a mesma coisa, por exemplo, uma caça que vai trazer prestígio, quem não conseguir
o objeto de desejo será possuído por inveja e desejo de vingança. Assim começa um ciclo sem
fim.
A vingança constitui um processo infinito, interminável. Quando a violência surge
em um ponto qualquer da comunidade, tende a alastrar e ganhar a totalidade do
corpo social, ameaçando desencadear uma verdadeira reação em cadeia, com
consequências rapidamente fatais em uma sociedade de dimensões reduzidas. A
multiplicação das represálias coloca em jogo a própria existência da sociedade. Por
esse motivo, onde quer que se encontre, a vingança é estritamente proibida
(GIRARD, 2008, p. 27).
Fundando a violência no desejo, temos, desde que haja mais de uma pessoa envolvida, a
possibilidade de conflito. Podemos conjecturar que a violência estende-se a todo corpo social,
começando pela instituição familiar. Mas, para Girard (2008, p. 34), a sociedade tem
mecanismos reparadores que podem tentar conter e diminuir a violência e a vingança
decorrente desta. Girard (2008) denomina meios preventivos, os artifícios sociais que servem
para conter a sede de vingança e a retroalimentação da violência. Um dos artifícios mais
antigos é o sacrifício ritual que algumas comunidades praticavam, como a maia, por exemplo.
A religião tem, para Girard (2008), uma função importante em agir preventivamente contra a
vingança. Os sacrifícios humanos e animais, ritos de expiação, culpabilização da consciência;
são formas de tentar diminuir a violência, mas são meios preventivos que usam de violência
para conter a violência. Duelos, formação de alianças, reparações, são outras estratégias
preventivas utilizadas para coibir a violência, mas não são tão eficazes, para Girard (2008).
Para o autor é o sistema judiciário o recurso mais eficaz para reparar a vingança e conter a
violência. Criando uma hipotética evolução dos meios preventivos das sociedades ditas
primitivas até a formação judiciária, esta exerce uma função curativa. Dos sacrifícios rituais
das religiões ao sistema judiciário temos diversas maneiras de lidar com a violência.
Temos um problema em Girard (2008): a solução jurídica pode ser a mais eficaz, já
que é o sistema judiciário que exerce o poder de vingança, limitando e punindo as ações dos
algozes. Mas, ao mesmo tempo, oculta da vítima seu objeto de vingança, que vai ficar
185
encarcerado. E a justiça sofre o viés do Estado. Pode ser exercida arbitrariamente, em casos
de ditaduras, por exemplo. Assim, formou-se, entre presos políticos e presos comuns no
Brasil, na década de 70, a raiz do crime organizado no País56. A classe social pode fazer a
justiça não ser aplicada a todos. Existem diferenças entre Países, aonde o sistema jurídico
funciona mais equitativamente. Mas o risco de não ser equitativa, faz a vítima não limitar o
desejo de vingança. Esta é uma questão complexa, que foge a nossos objetivos.
Mas, voltamos a Hobbes e Rousseau. Ambos tentam fornecer soluções jurídicas para
conter a violência. Tanto o Leviatã, quanto a Vontade geral, são soluções jurídicas, que passa,
segundo Girard (2008), por um processo não mais preventivo, mas curativo. A justiça atua
após a consecução do ato de violência transgressora. Esta visão pode ser questionada por
defensores do estado de direito. A justiça tem assim, também, um papel preventivo, de coibir
a violência, mas esta posição merece ser questionada e aprofundada, o que foge do escopo da
tese e das perspectivas que vem sendo desenvolvidas.
Em Girard (2008), temos o conceito da dupla face da violência: “Os homens não
conseguem penetrar no segredo desta dualidade. Eles não conseguem distinguir entre a boa e
a má violência; desejam repetir incessantemente a primeira para eliminar a segunda”
(GIRARD, 2008, p. 53).
Outro aspecto que Girard (2008) fala é da associação entre sexualidade e violência.
Ambas provêm do desejo e seguem a mesma trajetória de disputa, vingança e reparação para
serem aplacadas. A sexualidade produz disputas, rivalidades, homicídios, ciúmes, e está
associada à violência. Mas como a dupla face da violência, pode ser limitada por interdições e
leis. Assim o incesto, longe de ser um dado biológico, é passível de controle social, através de
tabus, leis e interdições.
Percebemos então que autores como Elias, Clastres, Girard, deslocam a questão da
violência do biológico para o social. Visão que também converge com a de Birman, que se
utiliza do conceito de Bourdieu de violência simbólica para estruturar uma relação entre
violência simbólica e real ou transgressora. Todas as soluções encontram-se na sociedade. E é
através da violência, produto do desejo humano, que podemos enfrentar a violência. Cria-se
assim uma solução partindo da violência contra a própria violência. É como se tivéssemos
criado um problema no nosso processo de socialização e, através do problema criado, usando
a própria violência, pudéssemos diminuir os efeitos destrutivos desta.
56
A convivência entre prisioneiros políticos e bandidos comuns deu a estes uma situação de coesão que
acabou redundando em organizações criminosas com estruturas rebuscadas.
186
Dos ritos de sacrifício até as leis jurídicas, todas as soluções passam pela dupla face da
violência: de um lado a violência é destruição, caos, subjugação de outros, homicídios,
abusos, roubos, corrupção. De outro, é lei, ordem, criação de cultura, pactos de convivência,
aplacamento da vingança por uma instância, como o sistema jurídico, por exemplo. O poder,
quando exercido nos limites da lei e do consenso democrático, pode e deve ser um fator
positivo na diminuição da violência individual e social.
A grande confusão, para Girard (2008, p. 54) ocorre quando não sabemos mais
distinguir entre a boa e a má violência. Ou, parodiando Birman (2009, p. 57), quando o jogo
entre violência simbólica e transgressora se confunde. Instaura-se o que Lebrun denomina de
“perversão comum” (2008), ou seja: uma maneira de socialização sem hierarquia, definição
de papéis, perda de identidade pessoal, ética individual em detrimento de uma ética coletiva,
desrespeito as normas que regulam o simbólico do social, possibilitando um viver coletivo.
Chegamos a um ponto onde os resultados de nossa pesquisa começam a se delinear: a
violência é produto da socialização humana, da consciência do eu, da intencionalidade, do
cérebro humano, que apresenta grandes diferenças em relação à de outras espécies.
Podem existir fatores genéticos biológicos, característicos do cérebro, que predispõem a
certos comportamentos, como os dos antissociais, das pessoas que não sentem emoções nem
culpa, mas o que vai amplificar, ou amenizar tais fatores é a “socialização humana”, as
relações interpessoais, sem as quais o eu não existiria como tal. Neste ponto, pode-se instaurar
a violência, o conflito ou a solução pacífica do conflito. Então, temos agora uma chave
importante: independente de fatores biológicos, transtornos mentais, arquitetura do cérebro e
genes, é a estrutura social que vai instaurar, no homem, a violência transgressora. Lebrun
(2008) remete à sociedade de mercado, ao homem como dimensão antropológica do
capitalismo.
A economia de mercado sob sua forma sem rédeas, esse neocapitalismo liberal
triunfa desde a última década do século XX. Com efeito, quando o vazio que habita
tanto o singular quanto o coletivo vê-se desmentido pelo Imaginário Social,
chegamos, como vimos, à suspensão de todo limite, de toda diferenciação dos
lugares, de toda lei á qual temos que recorrer..., exceto a pretensa lei do mercado,
que na verdade é apenas um modo de regulação espontânea da vida em sociedade,e
não apenas da economia no sentido estrito, em função de interesses particulares
(LEBRUN, 2008, p. 104).
A violência é humana, porque pensamos, refletimos e sabemos a direção que vamos
imprimir aos atos. Podemos conscientemente negar a alteridade do outro e destruir a nós
mesmos. É na formação da sociedade civil, na maneira como os grupos detêm o poder,
187
principalmente o econômico, que se instaura a desigualdade, a exploração e a violência
transgressora.
Vamos remeter agora a fatos do cotidiano, a retratos da vida: abuso, negligência,
bullyng, para constatar que é no social que encontramos a violência transgressora, no
cotidiano, na relação entre os homens. Não podemos tornar biológica essa realidade, que é
social. Quanto aos leitores, não se assustem; o quebra-cabeça vai sendo montado. Existem
peças soltas. Viajamos por paisagens diversas. Fomos ao corpo humano, viajamos pelo
cérebro, por grupos, por primatas. Agora vamos apresentar o que denomino máscaras da
violência humana. Falaremos sobre nossa sociedade, o mundo humano, dos desejos, da
cultura, da política e da violência. Como esta se instaura nas redes do social? Apresentemos a
violência em sua negatividade.
188
5.6 SOBRE ABUSO, BULLYING E NEGLIGÊNCIA
A prática do infanticídio é uma das mais antigas da humanidade. Podemos citar a
Suméria, o Egito, Esparta, Herodes, e o próprio Jeová, como civilizações e Deuses
infanticidas.
Roudinesco (2008, p. 36-38), tece detalhes sobre Gilles de Rais, um pedófilo
infanticida, que se comprazia em atrair meninos, usá-los sexualmente e depois esquartejá-los.
O nascimento de Jesus foi acompanhado por um grande infanticídio promovido por Herodes.
Segundo Lippi (apud ASSUMPÇÃO JR. E KUCZYNSK, 2008, p. 128-133), só no século
XX começam a levantar e tentar punir crimes cometidos contra crianças. Qual a importância
deste tema para nosso trabalho? Parodiando Roudinesco (2008, p. 42), a crueldade cometida
contra crianças revela explicitamente a parte obscura de nós mesmos. O gozo do ódio e prazer
funde-se num ato de desproporção de poder, onde uma pessoa mais forte, na pretensa idade da
razão, sente prazer em dilacerar corpos de crianças de um, dois, três anos.
Hodiernamente, para Lippi (apud ASSUMPÇÃO JR. E KUCZYNSK, 2008, p. 132136), a família é o local do rito inicial de todas as formas de crueldade contra crianças. Esta
violência vai desde a negligência e omissão, quando cuidadores não prestam auxílio a
crianças enfermas, omitem-se no processo educacional e de lazer e fazem pressão emocional a
crianças, abusando psicologicamente, com mentiras, difamação de conjugues, humilhações.
Podemos estender esse conceito aos primórdios da humanidade, para concluir que a criança
sempre foi objeto de abuso e de agressão (ROUDINESCO, 2008, p. 89).
A negligência pode ser acompanhada de abuso físico, sexual e psicológico. Para tornar
o assunto mais assustador, segundo Vaz (apud ROMARO E CAPITÃO, 2007, p. 138-140),
em levantamento estatístico realizado no Brasil, em 1998, 80% dos abusados eram do sexo
feminino e 75% dos abusadores eram o pai ou o padrasto. Podemos destilar resultados de
diversas pesquisas, que estão disponíveis em conselhos tutelares, juizados de menores e
Organizações não Governamentais. Segundo, Bouhet e Perardr Zorman (apud ROMARO E
CAPITÃO 2007, p. 141), a violência sexual ocorre entre os 9 e os 12 anos de idade, e existem
relatos omitidos, com crianças de menos de 6 anos de idade. Nossa intenção é mostrar que
mitos, como a casa, a família, os cuidados parentais estão, cada vez mais, caindo por terra.
Esses fatores ligados a abuso sexual, psicológico e à negligência formam a matriz de uma
futura personalidade violenta e cruel. É em casa que começamos aprender a ser cruéis. O jogo
da disputa, da vaidade, das preferências, dos ciúmes, da inveja e da divisão começa em casa.
189
Caim e Abel são paradigmas que persistem através dos tempos. Javé tem seu povo escolhido:
na casa de Deus, só entram os justos. O sagrado e a violência, para Girard (2008), são
realidades familiares. Se o genótipo vem do sexo, e deste a união que forma o casal, o
fenótipo vem dessa família de negligentes, abusadores, homicidas. O Édipo é uma metáfora
freudiana para esse jogo perverso, aliás, a psicanálise fez da criança, um perverso polimorfo, e
da ligação com os pais, uma disputa parricida e matricida.
Elias (2000, p. 135) reforça a tese de que é na família desagregada, desunida, sem rumo
e sem perspectiva que mora a fábrica de delinquentes. Os estudos não param de apontar;
negligência, abuso, homicídios, drogas, como fatores que retroalimentam o ciclo da violência.
Rousseau teve a premonição do mal na família. Se lermos atentamente O Emílio,
perceberemos que a família torna a criança um pequeno tirano, um déspota. Mandar e
obedecer, invejar, medir e comparar. A reforma, em Rousseau, começa na família, com a
criança57.
Que vemos agora? A sociedade civil, tão criticada por Rousseau, é o palco de
negligência, abuso, violência, crueldade. Pequenos e grandes tiranos. O homem é cruel para o
homem, ou melhor, na face de uma criança, jaz o ódio do abuso, da negligência e da floresta
encantada de nossa inércia. Pinker (2008, p. 494-516) fala que a genética fornece
hipoteticamente entre 40% e 50% de traços de temperamento e constituição das crianças, e a
influência da educação dos pais não é significativa, tentando defender o papel da biologia,
que, até agora, tentamos contestar.
Os pais não podem moldar como querem o comportamento dos filhos58. Existe também
a influência do ambiente não compartilhado, que são as experiências individuais de cada
criança, com amigos, escola, preferências de lazer, qualidade de relacionamento com pais e
outros familiares. O ambiente não compartilhado, para Pinker (2008), tem uma influência
maior que o ambiente compartilhado, que é a hipotética estrutura do lar que tenta oferecer as
mesmas oportunidades a todos os filhos. Podemos tentar traduzir essa ideia de Pinker (2008),
no que se refere ao bullying, uma prática que virou uma moda para pesquisadores, a fim de
57
Para Pinker (2008, p. 335-345), apesar de existir, na família, um altruísmo nepotista, o que se observa
é uma guerra generalizada entre pais e filhos, irmãos e irmãs, e assim sucessivamente, ’o que essencialmente é
melhor para uma pessoa não é idêntico ao que essencialmente é melhor para outra. Assim, todo relacionamento
humano, mesmo o mais devotado e intimo, contém a semente do conflito (Pinker, 2008, p. 335). O autor cita
inclusive casos das crianças que foram salvas dos pais abusadores por colegas, vizinhos e professores.
58
Temos que citar de novo Pinker, pois ele tenta continuar a corrente dos etologistas que defendem a
natureza humana determinada pela biologia, com algumas tentativas duvidosas de fazer interação genes e
ambiente, para, no final justificar que é o biológico que predomina.
190
corroborar a disputa e o conflito, principalmente, usando como foco as escolas, tem sua
origem na família; sua matriz encontra-se nas relações entre pais e filhos.
Vamos voltar a analisar o bullying, da casa para a escola. Nossos filhos crescem e dão
continuidade ao ciclo da violência que aprenderam em casa. Abuso, negligência são
praticados verticalmente, entre adultos e crianças, e, horizontalmente, entre crianças. A
criança e o adulto entram em um ciclo de crueldade e de ódio. Vítimas e algozes se revezam.
Ora o mal se esconde no rosto de um adulto, ora em uma criança.
Na Dinamarca, e na Noruega utiliza-se o termo mobbing, na França, harcèlemens
quotidién, na Itália, prepotenza (ou bullismo), no Japão, yjime.
Fante (2005, p. 28-29) coloca que, independentemente do termo, o bullying é um ato de
violência, constrangimento e crueldade praticado entre pares. É um desequilíbrio de poder, em
que existem vítimas e agressores. Em uma divisão mais minuciosa, podemos ter agressores,
vítimas passivas e ativas, que sofrem e praticam, e os indiferentes, que compactuam e se
calam.
Middelton-Moz e Zawadski (2008, p. 95-108) colocam que o bullying tem origem na
família. Como vimos anteriormente, pais e filhos, irmãos, primos, amigos, todos entram na
dança do bullying na família; a escola é uma extensão. Aprendendo a constranger o irmão
mais novo, uma criança vai praticar, na escola, com outras crianças. Para Middelton-Moz e
Zawadski (2007, p. 99), existe uma cumplicidade entre agressor e vítima, ambos passando a
ter uma relação de intimidade e dependência. Quanto mais a vítima se sente impotente, maior
o gozo do agressor.
O bullying encontra-se em todo o tecido social, porém a escola passou a ser visada, em
função dos massacres, mas, na família, no trabalho, nas universidades, na relação conjugal,
onde existir relação de medição de forças, o bullying se instaura. O início do ciclo começa em
casa, passa para a escola e invade as relações. Passamos a acreditar que Foucault tem razão
com sua microfísica do poder: ele está em toda parte, e, nesse aspecto, o bullying é a versão
da moda infanto-juvenil para microfísica do poder.
Fante (2008, p. 71-74) classifica os atores do bullying como:
1) Vítima típica, que é o famoso bode expiatório. Este se encontra em desvantagem de
poder, por ser mais pobre, gordo, feio, baixo, ter estigmas que o diferenciem e distanciem
bastante do grupo. São presas fáceis para agressores;
2) Vítima provocadora, que chama para si, através de provocações, a reação do outro.
Este dá motivo para ser agredido e depois tenta fazer-se de vítima;
191
3) Vítima agressora, que reproduz fielmente a conduta do agressor e passa a ser um.
Passa de um papel para outro e dança a crueldade com gosto. Esses são vingativos e
provocam massacres, tramam mortes;
4) O agressor. Existem componentes antissociais nos agressores, falta de limites
familiares, modelo de agressão aprendido em casa, incentivo por parte dos pais, têm pouca ou
nenhuma empatia pelas vítimas. Encaixa-se, em muitos casos, em transtorno de conduta. Têm
facilidade em liderar e podem ser líderes de gangues. Passa-se, assim, para uma dança grupal
de predadores e de caças.
5) E, por fim, temos os espectadores: Estes podem ser os professores, funcionários do
colégio, amigos, pais, irmãos, eu, você. Os espectadores são os voyers, os que gozam calados,
e nada fazem.
Como colocamos, respaldados por Middelton-Moz e Zawadski (2008), o bullying cria
um terreno fértil para a formação de gangues. Temos agora uma ponte com estabelecidos e
outsiders, com Schmitt e a relação amigo-inimigo. Por motivos de território, respaldado por
relações de poder, em que os estigmas fazem a diferença, as gangues semeiam terror. Há uma
divisão, e quem não for protegido, ou fizer parte do grupo pode sofrer, desde intimidação até
morte. Assim começa a “política verdadeira”. O gozo do ódio espalha-se. Da casa para a
escola, da escola para a rua, depois por cargos de poder, até chegar ao Estado. A microfísica é
dos grupos. As redes se infiltram, controlam tráficos de drogas, corpos, bancos, empresas,
pedaços de favelas, escolas. O Estado a serviço dos grupos. A microfísica do poder transita no
corpo dos indivíduos, dos grupos, forma estabelecida e outsiders, amigos e inimigos e divide
a sociedade em um palco de guerra.
Podemos utilizar Hobbes, já que a criança precisa de lei e de interdição, do outro (neste
caso, do adulto) que impõe normas e regras. Para o estado de natureza infantil, a família, a
escola são os Leviatãs, ou, utilizando Rousseau, a família deve podar o pequeno tirano, mas
discorda de Hobbes em um ponto fundamental: a educação deve afastar a criança da
sociedade, ser negativa, evitar as influências de uma sociedade corrompida, que forma a
matriz do tiranocida, que pode vir ser a criança. Hobbes prega uma instituição Estatal forte,
um leviatã, mas não se preocupa com a criança. Para ele, os infantes são desprovidos de razão
são propriedades dos pais e devem obedecer a eles. Rousseau cria, passo a passo, a educação
de uma criança, para se desnaturalizar. Não reproduzir os males de uma sociedade corrupta e
degenerada.
192
Lebrun (2008, p. 50) usa o conceito de “reparentalização” 59, uma crítica à desagregação
da família como lugar de interdição. A horizontalizarão das relações adultos e crianças, para
Lebrun (2008, p. 66-68), leva a uma dispersão, uma pluralização, que deixa a criança entregue
aos seus impulsos. Fica simples, nesse contexto, compreender o abuso, os maus tratos, a
negligência e o bullying. As guerras são travadas dia-a-dia, da casa para a escola. Nesse
contexto, as gangues, os chefes antissociais ganham poder, território e espaço.
Para preencher o vazio do outro, de que fala Lebrun (2008, p. 23), a estrutura social
aparece como metáfora do chefe carismático, antissocial, que oferece crueldade, drogas e
prazer imediato. Segundo Gigliotti (2006), estatísticas do CEBRID, no âmbito do Brasil, a
imersão no mundo das drogas começa aos 10 anos e atinge ambos os sexos, com
predominância masculina. Nessa sequência, gangues com líderes carismáticos, que podem ser
antissociais, fazem a festa. Drogas aumentam a crueldade, principalmente estimulantes, como
o crack.
Para Birman (2009, p. 61-66), a naturalização da violência “silencia o que há de mais
complexo na experiência da violência”. No homem, temos, para Birman (2009, p. 65), dois
tipos de violência: uma simbólica e outra real. Na simbólica, existe um ato fundador da lei, da
interdição, impondo limites ao caos, criando a história e os laços sociais. Na violência real,
ocorre a transgressão, o desafio à lei, à ordem, à temporalidade. É necessário, pois, a
instauração de uma violência simbólica, para dar sentido à história e à sociedade. A violência
real forma a matriz da negligência, do abuso, do bullying, dos homicídios, dos suicídios, do
terrorismo, do narcotráfico. Apesar de serem fenômenos distintos, operam sobre uma
transgressão às normas sociais. Os mecanismos e as estratégias são diferentes, porém operam
sobre a subversão do real. Vimos em Girard (2008), que o desejo humano instaura a violência
no social, mas esta tem uma dupla face: coloca limites e instaura cultura e pode destruir,
matar, subjugar pelo arbítrio.
Ao apresentar as faces da violência, estamos lidando com a violência real, transgressora,
o negativo de Girard. A simbólica e positiva interdita essa violência, é a lei, o Leviatã, a
vontade geral, a justiça. A culpa e a introjeção da ética fazem parte da violência simbólica de
impor limites à violência real, sem limites. Remete ao mito freudiano do parricídio original,
que necessitou de uma violência simbólica, para criar a cultura, o sentimento de culpa e a
ética” (BIRMAN, 2009, p. 67).
59
Nesta estrutura de família que se afigura no século XXI, a função paterna e materna perde espaço. A
reparentalização é uma estratégia para “reeducar” os pais, fazendo-os assumir a função de cuidadores, e na falta
destes, figuras substitutas, como colocação da criança em outra família, por exemplo.
193
Temos agora uma constatação: a violência é necessária, socialmente, para instaurar uma
ordem, sem a violência simbólica ou positiva (termo debitário de Girard- 2008), a violência
transgressora invade e destrói o social. Para coibir abuso, negligência, homicídios e bulliyng,
a sociedade civil organizada tem que contar com uma violência legítima, que faz a interdição
e coloca limites às ações humanas. Esse foi o princípio do Leviatã e da vontade geral.
Operando sobre dois princípios, um totalitário e outro democrático, esses modelos de Estado e
de organização social instauram uma violência legítima que é uma alternativa para coibir a
violência transgressora.
Depois de Auschwitz, a face do homem torna-se a “de um assassino em potencial, um
universal homicida” (GLUCKSMANN, 2007, p. 19). Para Glucksmann (2007, p. 12), o ódio60
acusa sem saber e sem ouvir. O ódio condena a seu bel-prazer. Em nada acredita e nada
respeita, encontra-se diante de um complô universal. Esgotado, recoberto de ressentimento,
dilacera tudo com seu golpe arbitrário e poderoso. “Odeio, logo existo.” Depois do advento de
Auschwitz, Hiroshima e Nagasaki, genocídios no leste europeu, na África, nas Américas, do
advento do terrorismo em escala universal, da pobreza crescente e dos meios de destruição
como espetáculo, não podemos mais encobrir a face da violência negativa no homem.
Glucksmann (2007) coloca que ser homem é ser cruel e ter o ódio como herança. Cita
Homero, Medeia, La Fontaine, e traz para a atualidade esses mitos e fábulas. O terror, as
guerras, as drogas, o narcotráfico, são estratégias de perpetuação deste ódio pelo tecido
social61. Ele chega a admitir que para obter trégua, só: “um aliança entre inimigos potenciais
diante da adversidade coletiva” (GLUCKSMANN, 2007, p. 239)62.
Em Glucksmann (2007, p. 265-270), existe uma máxima sobre o ódio; o ódio existe, o
ódio se camufla com ternuras, que é a máxima do perverso, do antissocial, o ódio é insaciável,
não pára, não relaxa ou se movimenta, à maneira de Hobbes, sem limites. O ódio promete o
paraíso: o sagrado e o ódio se unem. O ódio deseja ser o Deus criador, através da globalização
passa a ilusão de uma união universal, mas, na realidade, segrega, é sexista, discrimina,
explora, divide, destrói a alteridade. O ódio ama até a morte, cria antinomias, como
mulher/homem, judeus/não judeus, americanos/não americanos. Proclama o amor e pratica a
60
Não concordamos com o autor, que utiliza o ódio como uma emoção que conduz a violência. Não
estabelece uma dinâmica da violência, como faz Girard, e, erroneamente, confunde um sentimento com ações
violentas. Esse ser do ódio parece uma entidade metafísica, e não leva em consideração sentimentos como amor,
piedade, altruísmo.
61
Esta tese é questionável, pois ele confunde sentimento que não são hegemônicos no homem e dá um
estatuto metafísico a este sentimento.
62
Podemos interpretar um certo pessimismo no autor, que exagera a parte da banalidade do mal,
extraindo exemplos negativos da história,principalmente os campos de concentração.
194
morte. Para Glucksmann (2007, p. 268-269), o que o ódio exige de seus objetos de amor? Que
eles se mantenham; se não aceitar o amor do ódio, morte ao amor. E finalmente o ódio se
nutre de sua devoração: homicidas e suicidas chegam ao limite63.
Mas somos humanos, temos 1% de diferença genética com os primatas e criamos laços
sociais complexos e ricos, assumindo várias faces. A crueldade, o ódio, a perversão são
apenas uma fração dessas faces, são características humanas, assim como a bondade, a
empatia, a piedade, o altruísmo, a cooperação.
Retornemos ao ígneo e ao temperado de Hobbes, sendo que hoje a psiquiatria e a
psicologia falam de transtornos de personalidade, e, foca o antissocial, como “a bola da vez”.
O pequeno tirano de Rousseau, hoje, tem o nome de transtorno de conduta. Na prática clínica,
quem já entrou em contacto com crianças com transtornos de conduta e adultos antissociais
sabe que a frieza não é exagero. Existe realmente uma falta de empatia pelo ser humano e por
animais não humanos. Encontram-se casos de crueldade extrema, como a que presenciei no
CEA (Centro de Educação para Adolescentes - Menores Infratores) de João pessoa, Paraíba.
Em 2008 um adolescente de 15 anos arrancou o coração de outro de 14, pelo simples motivo
de não concordar com os gestos banais afeminados apresentados pela vítima. Mas também
encontramos pessoas capazes de sacrificar suas vidas por uma causa coletiva, de agir com
cooperação e altruísmo, sentir empatia pelo próximo e se colocar no lugar dele. Em bonobos,
De Waal (2007) encontra gestos de extrema empatia e altruísmo, por exemplo. Nós, seres
humanos, somos dotados dessa empatia que é inata no ser humano, se seguirmos De Waal,
Damásio, e Rousseau, ao falar da formação natural do Emílio. Sem a contaminação da
sociedade civil, o sentimento de empatia é um instinto que, junto ao amor-de-si e da piedade,
faz o homem se colocar no lugar do outro.
Concordo com De Waal de que a base da moral vem de sentimentos inatos, o que
reforça Rousseau. Ao contrário do que afirma Pinker (2008), não podemos reduzir Rousseau a
uma visão simplista da natureza humana como boa. Trazemos a potencialidade para cooperar,
para empatizar, mas é a socialização que desvia esses instintos inatos.
Não vamos focar a banalização do mal como universal
64
. Para Sémelin (2009, p. 19-
86), os grandes genocídios não podem ser explicados fora de um contexto histórico. Não
63
O autor parece confundir sentimento com violência, operando uma naturalização de ambos. Não chega
a fazer uma analise de outros sentimentos, como a piedade, o altruísmo. Focar no ódio é uma atitude reducionista
do autor, em função de deixar de lado sentimentos diferentes e construtivos.O homem não vive apenas de ódio e
esse é exacerbado pela estrutura social, como coloca Lebrun (2008).A competitividade, a lei do mercado, a
disputa, a desagregação da família e da referência de um Deus transcendente ou numa instituição que interdite e
coloque limites no homem, faz crescer o vazio e o ódio.
195
podemos naturalizar a história dos genocídios, inclusive a de Auschwitz, recorrendo a uma
xenofobia de cunho biológico, que se encontra em outras espécies, como refere, por exemplo,
Lorenz. O outro como negação da alteridade faz parte de componentes históricos tecidos
pelos homens. Como coloca Sémelin (2009), o massacre, a morte em série, os atos de
crueldade fazem parte de um contexto histórico que se formata através do tempo.
Vistos estes fatos, não podemos tornar a violência um espetáculo banal. Naturalizá-la,
banalizá-la. Principalmente a violência real, que nega a alteridade e é intencional. Ela é
produto humano, não de todos os homens, mas de alguns. Se for cantada repetidamente, como
um mantra, corre o risco de se tornar banal.
Hobbes tentou fazer uma classificação, no De Cive, e longe de definir o homem como
egoísta e guiado pelo auto-interesse, formulou a existência de homens temperados, que trazem
sentimentos bons. Rousseau descreveu a gênese da formação de pequenos tiranos como o
resultado da interação social e do jogo de mando e de obediência, mas ofereceu um processo
educacional que pode evitar que a criança transforme-se em tirano. Evitemos clichês.
Vamos agora juntar as peças utilizando Hobbes e Rousseau como interlocutores. Para
quem caminhou até aqui, vale a pena terminar de montar esse quebra-cabeça.
64
Para Hannah Arendt a banalização do mal faz parte de uma estrutura burocrática do nazismo, onde a
técnica se sobrepõe ao humano. Neste aspecto, a morte, passa a ser considerada, apenas, uma obrigação
burocrática relacionada ao desenvolvimento da sociedade industrial.
196
CAP. 6
DE VOLTA A HOBBES E A ROUSSEAU
6.1 O HOMEM É O LOBO DO HOMEM, OU O CIDADÃO É UM DEUS PARA O
HOMEM?
Hobbes introduziu o Leviathan como a solução para a violência negativa, irracional,
transgressora. Hobbes enxergou o indivíduo como se ele fosse sem limites, o banido, o lupus,
o homem e sua vanglória, e, acima de tudo, o desejo de poder. O homem não é social, e, se o
é, é por interesse pessoal. Só o poder do Estado forte, da espada, de uma violência terrificante
pode frear o homem de sua crueldade. Temos em Hobbes uma concepção que tem afinidades
com o conceito de estado de exceção desenvolvido por Schmitt, o qual está acima das leis e
cria decretos provisórios, para sustentar a governabilidade. Nesses dois pensadores, temos
uma visão do homem violento e beligerante, movido por egoísmo e disputas, que necessita da
intervenção de um Estado forte para controlar e impor limites às condutas egoístas ou à
violência real do homem. A violência simbólica ou positiva exerce-se através do Estado de
exceção.
Vamos sintetizar alguns aspetos da teoria de Hobbes, fazendo um paralelo com o século
XXI.
1.
Hobbes acredita que a natureza humana tem uma tendência à violência e a ser
dominada por paixões. Mesmo com a divisão entre temperados e ígneos, estes estabelecem
uma guerra contínua entre si. Os ígneos provocam, espoliam, atacam os temperados,
forçando-os a se defenderem. Formam-se alianças, grupos, e a batalha prossegue: poder,
poder e mais poder. A agressividade está em nossa constituição, mas não existe uma
separação entre ela e a violência, dando margens a naturalizar a violência. Pinker (2008)
procede, utilizando Hobbes para corroborar a tese de uma “violência natural”. E isso tudo leva
à crueldade e à perversidade. Hobbes nos alerta de que o estado de natureza é ainda parte do
nosso dia-a-dia, não está no passado, não é uma mera construção ideal, mas a possibilidade
concreta em que a sociedade civil pode cair, quando o soberano não consegue manter a ordem
e a paz: o estado de natureza está sempre à espreita, no momento em que colapsa a frágil
camada superficial de civilidade que nos protege. O processo civilizador em que Norbert Elias
(2003) acredita, deu apenas uma máscara ao cidadão de Hobbes. Este anteviu, no jogo de
197
autor e ator, esse teatro, essa criação da persona, que é o Estado moderno. Não mais o
homem-lobo, mas o cidadão65.
2.
Homens e animais de outras espécies, para Hobbes, pouco se diferenciam. Se não fosse
a linguagem, o desenvolvimento da razão calculativa e a possibilidade do aprendizado que a
linguagem proporciona, seríamos tão chimpanzés quanto qualquer chimpanzé. Hobbes
prenunciou em que sentido, no aspecto das emoções, o 1% que nos diferencia dos parentes
chipanzés e bonobos. Aliás, Hobbes, com a sua teoria dos temperados e ígneos, aproxima-se
de De Waal e da bipolaridade, com a grande diferença de que Hobbes fala sobre duas
biotipologias de homens distintas, e De Waal, de duas tendências dentro do homem. A
balança pende para os ígneos, pois estes possuem mais vontade de poder, vanglória e
crueldade. O lado chimpanzé predomina sobre o lado bonobo? Estas questões não podem ser
respondidas de maneira simples. No século XVII, Hobbes acreditava que os ígneos
dominavam, naquela
época, nas transformações sociais que estavam ocorrendo,
principalmente focando o grande parlamento que era, segundo ele, o “reino de Beehemoth”. A
guerra civil inglesa que instaurou o Grande Parlamento foi comparada por Hobbes à
instauração do caos, da anarquia: e talvez foi esta realidade histórica que lhe inspirou o
conceito de estado de natureza. Beehemoth associa-se à alegoria do monstro terrestre que
instaura o caos, que vem das antigas religiões mesopotâmicas e é citado no Antigo
Testamento.
3.
Esta era a visão histórica de Hobbes. De Waal constata que atualmente nosso “lado
chimpanzé” prevalece. Assim com Hobbes baseou-se na guerra civil Inglesa e no momento
histórico que estava vivendo, De Waal olha para o século XXI e realça nosso lado mais
sombrio, mesmo deixando brechas para mudanças com nosso lado bonobo. Hobbes acentua a
biotipologia ígnea, que, prevalecia segundo suas observações, na sociedade do Antigo Regime
e no inicio da modernidade. Este ponto é importante, pois converge também com a dupla face
da violência. Temos que concordar que, seja falando sobre ígneos e temperados ou
bipolaridade, estamos entrando na constituição biológica. Trata-se de uma predisposição, uma
possibilidade. Usando metáforas, se admitimos que somos ígneos ou temperados ou ainda
bipolares, estamos partindo do pressuposto que biologicamente herdamos uma tendência para
comportamentos
65
querelantes,
competitivos,
egoístas
ou
conciliadores,
piedosos
e
O homem artificial tem os olhos costurados, vive ligado a uma rede de computadores, e forma
simbiose com a máquina. Esta é uma metáfora para o século XXI, se quisermos arriscar uma fábula para o
Estado hobbesiano.
198
cooperativos. A agressividade, que ajuda na sobrevivência, pode também ser destrutiva, e não
ter finalidade apenas positiva, a nível biológico. A agressividade em um temperamento ígneo,
por exemplo, gera competição, disputa e, socialmente, ajuda a construir uma sociedade
violenta dentro dos aspectos negativos desta.
4.
Em Hobbes, o homem é caracterizado como competitivo, movido pela glória,
desconfiado e não sociável. Este é um artifício para justificar o Estado soberano. A solução é
se dobrar ao estado de exceção, ao poder soberano, à violência do Estado66. Vamos agora
fixar um ponto em Hobbes: é justamente no De Cive, que aparece o homem temperado e o
ígneo. Nesse aspecto, existe uma luz no final do túnel, mas temos que refletir, porque os
ígneos detêm o poder com mais frequência, são movidos por vaidade, inveja, ressentimento,
ira, luxúria e vanglória. A perversão vence sempre? O Leviatã é uma solução artificial. O
estado máquina de Hobbes é a máscara do homem ígneo. Em um mundo dominado por
guerras, feudos, divisões, com uma classe burguesa se firmando, o Estado era fundamental,
não para atingir a paz e garantir a vida, mas para os ígneos acumularem o capital. Leo Strauss
viu uma moral burguesa em Hobbes, mas uma falsa moral. Persona, atores que fazem um
pacto com o soberano, pela vida e contra a morte, que ronda o estado de natureza. O Leviatã
vence? Parodiando Foucault, novas estratégias, novos jogos. A sociedade disciplinar, o
panopticum, a sociedade de controle começa com o Estado moderno. Hobbes tinha o medo,
como diz Janine Ribeiro (2004a, p. 4), que o fez querer que o rei não ficasse nu. Queria o
poder soberano. Como Hobbes nunca quis enfrentar a crueldade humana, a perversão, deu a
hegemonia aos homens ígneos e transformou-os numa hipérbole. Fica a mensagem: o homem
dá medo. O homem artificial engana o medo por instantes. Se a linguagem foi a grande
invenção, para Hobbes, e podemos ensinar alguma coisa é a de não ter medo. Este é nosso
primeiro passo para desvendar o problema. Hobbes, ao abrir a possibilidade para o homem
temperado, criou uma solução que não foi devidamente explorada por ele. Temos também
empatia, piedade, amor e cooperação. O Estado de exceção de Hobbes e Schmitt é um Estado
feito para ígneos. Mas nem todos os homens são ígneos.
5.
Extraímos de Hobbes, seguindo comentadores, principalmente Zarka (2001), uma ponte
entre a agressividade e a violência. A linguagem e o desejo de poder é essa ponte, introduz
elementos novos na socialização humana. Hobbes seguiu fiel ao modelo jusnaturalista, e a
divisão estado da natureza e Estado social. Compreendeu o homem como individuo que só se
66
A violência simbólica é apenas um dos aspectos da violência exercida pelo Estado. Este, exerce o
poder econômico através dos grupos que o controlam, assim como, o poder sobre os corpos. Para Clastres
(2004), o poder do Estado é exercido contra a sociedade civil, principalmente contra os que não detém capital.
199
socializa por interesse. A criação da linguagem é a ponte entre o biológico e o social, faz do
homem um ser que precisa se socializar. Nesse aspecto, a violência se instaura e faz da
agressividade natural uma violência humana. Por não compreender essa passagem, Hobbes
transformou o homem natural em violento. Deu falsas pistas a darwinistas, etologistas,
freudianos, e, até hoje, é utilizado para argumentar uma naturalização da violência humana.
Façamos agora algumas considerações sobre Rousseau:
200
6.2 ROUSSEAU: A CRIANÇA COMO PARADIGMA DE AGRESSIVIDADE E
VIOLÊNCIA
Em O Emilio, Rousseau parte da criança e tenta afastá-la da sociedade civil. Na
sociedade encontra-se pais ocupados, pessoas neuróticas, criança entediada. Rousseau viu, na
criança, a chave do cidadão. Em O Emílio, aponta dois caminhos: a criança pode se tornar um
pequeno tirano ou um indivíduo que, seguindo sua natureza, aos poucos, vai descobrindo suas
possibilidades e a empatia pelo outro, dentro de uma partilha cooperativa. O adulto pode
reforçar, mimar, regar a planta que forma o menor violento e cruel, que usará a linguagem do
mando e da submissão; ou, ao contrário, monitorizar, não contaminar, acompanhar a criança e
ajudá-la a crescer de acordo com a natureza. A crueldade e a perversidade são, uma mistura
dessa interação, adulto e criança. O adulto pode infundir vícios, caprichos, paixões sociais,
como orgulho, vaidade, inveja. A família vista por Rousseau é um misto da aristocrática e da
burguesa. Ele olha para o campo, para Esparta, e, nesse aspecto, segue um ideal renascentista.
Emílio chega à adolescência, torna-se forte e depois vem a idade da razão e chega à
moral. Falta-lhe apenas casar. Temos, assim, a obra completa. A família de Rousseau curva-se
à vontade geral. Sofia é a esposa perfeita, misto de recato e de submissão. Esse ideal de
Rousseau segue o Iluminismo. A educação das crianças é a chave para formar um bom
cidadão. Comenius, Erasmo, Locke e tantos outros reformadores apostam na educação da
criança. O Emílio aponta um caminho que permite que a criança siga a sua natureza,
deixando-a usar suas forças até a idade da razão e da moral. Em textos, como “Cartas sobre o
governo da Polônia”, ele fala da educação como dever do Estado. A escola como paradigma
de disciplina e socialização é o ideal dos estabelecidos burgueses. Desde então, persegue-se
esse ideal: a criança é a chave para o controle da crueldade e da perversidade. O foco é a
infância. Lebrun, Ridley, Watson, Skinner, Piaget, a Psicanálise, a Genética seguem os passos
de Rousseau.
O referido autor parte do selvagem, da sua pouca necessidade, de uma agressividade
natural que serve para autodefesa e localiza o início da desigualdade no desenvolvimento das
capacidades intelectuais, quando os homens passam a se comparar e a dividir o “meu e o teu”.
Nesse processo, ocorre a acumulação de riqueza e instala-se uma sociedade civil que, (como
diria Bourdieu), através da violência simbólica, cria toda uma estrutura para homologar a
dominação dos ricos pelos pobres. Podemos pontuar que a instalação da sociedade civil, para
Rousseau, dá-se pela instalação da violência. O que era uma agressividade natural vai, aos
201
poucos, transformando-se em violência. Falta, porém, uma caracterização desta violência
como negativa e positiva. A sociedade civil que ele descreveu apresenta uma violência que
contribui para exploração, dominação dos pobres pelos ricos, mas também cria cultura,
ciência e modelos de violência simbólica que servem para manter a coesão e união social.
Em O Emilio, esse processo é aprofundado sob a ótica da criança. Nos interstícios da
relação com os cuidadores, o social vai interagindo com a natureza. A criança traz disposições
inatas, como piedade, amor-de-si, agressividade, que, se não for bem conduzidas,
transformam a criança em um pequeno tirano, que passa a operar sob a ótica do mando e da
obediência. Em função desse fato, a criança tem que passar pelo processo de educação
negativa, deixando a natureza seguir seus passos, a fim de evitar a contaminação social.
O foco é a relação cuidadores e crianças. Acredito que seja uma importante chave para
compreender como natureza e a sociedade interagem. Se a criança traz, digamos,
geneticamente67, tendências que são condições de possibilidade para a moralidade, partindo
dos sentimentos, é justamente a sociedade que, interagindo com essas tendências, distorcemna e as transforma em egoísmo, tirania, desejo de posse. A agressividade, instrumento natural,
transforma-se em violência. Esse produto de socialização volta-se para o outro, anulando sua
alteridade e é intencional, tem objetivos socialmente aprendidos. Se uma determinada
sociedade valoriza a disputa, a acumulação do capital e a competição, essa socialização
tenderá a transformar o amor-de-si em amor-próprio, que é a semente do egoísmo.
Simplificando, para Rousseau, as tendências naturais seriam boas, e a sociedade as
estragaria, mas como seria possível isso? Como a sociedade pode poluir uma tendência
natural boa? De onde vêm os instintos, as bases biológicas, os quais transformam a criança
em um pequeno tirano? Como a agressividade natural, que serve somente para a defesa, podese transformar em violência? Em suma, como a sociedade pode colocar, na criança, algo que
não está já nela em potência? Não haveria possibilidade disso, se não houvesse uma dupla
possibilidade, na natureza humana, não só para a moralidade, mas também para a violência.
Nesse caso, temos que concordar com a bipolaridade de De Waal. Só a socialização pode
direcionar, desenvolver e colocar, em atos, instintos de piedade e de amor-de-si, como fala
Rousseau. Se acompanharmos Rousseau, o início dessa transformação do homem ocorre,
quando aparece a divisão entre o meu e o teu, a comparação entre quem é melhor ou pior,
passando pela aquisição da propriedade privada, e, consequentemente, a formação de
sociedades baseadas na exploração de grupos de pessoas por outras, que geralmente detêm o
67
É bom enfatizar que Rousseau não disse isso, até porque ele não conhecia a genética.
202
poder soberano, os meios de produção e formam a estrutura simbólica da sociedade, inclusive,
as leis, que favorecem grupos ligados ao Estado. Essa análise de Rousseau abre caminho para
a sociedade de direito e a democratização das relações sociais.
Concordando com Bourdieu (2009) e Clastres (2004), o que estrutura a socialização
humana é a violência, a criança vai entrar em uma estrutura, inicialmente, de violência
simbólica, depois, de transgressão, utilizando-a para prejudicar o outro, com intencionalidade.
Conforme Castor Ruiz (2009), entra-se dentro de uma violência real e transgressora, que não
é freada pela violência simbólica. As leis, a interdição, a cultura, os costumes podem ajudar a
diminuir a violência transgressora, mas a dinâmica está instaurada. Não podemos fugir da
violência, não porque é determinada pela biologia, mas porque estrutura o social. Não pode
ser considerada apenas em sua negatividade, pois não é o mal, servindo para criar novas
maneiras de relacionamento entre os homens. Rousseau, através da pedagogia, da educação
das crianças, tenta formar a base para um Estado de eticidade. A vontade geral instaura uma
violência simbólica que é necessária para evitar a violência real dos homens transgressores,
corruptos, ávidos por destruição e crueldade. Neste campo entram os direitos humanos. A lei
coíbe os excessos da violência transgressora.
Mas, esse Estado teria as mesmas características de Hobbes, então, seria um estado de
exceção ou um estado de direito? Acreditamos que o fortalecimento do Estado de Direito com
a participação de movimentos sociais articulados com o interesse da comunidade seja uma
possibilidade de solução adequada, para isso é necessário fortalecer a sociedade de direito. A
solução a um Estado de exceção com poderes plenos para gerar a violência pode acabar em
experiências como a Alemanha nazista, as ditaduras latino-americanas das décadas de 60 e 70,
e tantos outros exemplos históricos que culminaram, tornando o Estado de exceção o detentor
da violência simbólica e transgressora.
Podemos conjecturar se, seguindo Rousseau, a solução está realmente na formação de
crianças que não passem por abusos, negligências, maus tratos, ou tenham cuidadores
adequados para colocar limites na agressividade natural, redirecionando para fins úteis? Mas,
para isso ocorrer, acreditamos que seja necessário um Estado de direito organizado e que
funcione.
No momento, ficaremos com as sínteses de Hobbes e Rousseau. Agora, usaremos uma
alegoria, sem prejuízo da pesquisa, apresentando um resumo de tudo o que foi falado até
agora.
203
6.3 BIOLOGIA, AGRESSIVIDADE E VIOLÊNCIA: Hobbes e Rousseau
Podemos começar falando sobre um personagem de 11 anos, que chamarei de Y.
Seguindo Ridley, ele carrega uma genética que o faz buscar novidades e ter mais tendência
para a violência. Nasceu em local muito violento, tendo sido abusado, negligenciado e
sofrendo maus tratos. Fenotipicamente, foi estimulado, ao máximo, pelo ambiente. Temos,
assim, alguém com propensão a desenvolver um transtorno de conduta. O ígneo de Hobbes
faz sua aparição e contribui para a instalação da violência transgressora. Centrar o foco em Y
é fácil, pois tem genótipo e fenótipo; pobreza, miséria e exploração fazem parte de seu
mundo.
Do outro lado, temos uma menina de 12 anos, que chamarei de Z. Faz parte de uma
classe média, tem genes, digamos, parecidos com os de Y, mas não mora em local de pobreza
nem miséria, tem recursos financeiros, usa a Internet, diz-se justiceira, mas tem também
predisposição a transtorno de conduta. É ígnea, pequena tirana, os pais fazem tudo o que ela
quer: é a “princesa do lar”. Aprendeu desde cedo, a ser preconceituosa, a comprar tudo o que
quer, inclusive, amizades. Sabe usar a violência transgressora e vence.
Temos, assim, dois exemplos hipotéticos de como a agressividade natural, os genes e a
estrutura cerebral transformam-se em ato violento, com intencionalidade e negação da
alteridade do outro. Temos a lei, a justiça, que instaura uma violência simbólica e tenta
diminuir a violência real de Y e Z.
Agora, invertendo os exemplos, temos um personagem V, que nasceu em uma
comunidade pobre, tem constituição temperada, sentimentos inatos de empatia e cresceu em
ambiente que valoriza a cooperação e o trabalho. A agressividade natural será transformada
para fins socialmente úteis, e essa criança cresce e não exerce a violência transgressora, pois
sente culpa, remorsos e enxerga o outro.
Como não podemos jogar com hipóteses simples, colocaremos, agora, uma criança R,
do sexo feminino, que nasceu com lesão cerebral, possibilitando, assim, um aumento da
agressividade, mas recebeu dos pais, atenção e cuidados, apego e carinho. A agressividade vai
continuar existindo, mas possivelmente a violência transgressora está diminuída.
Agora, um menino B, que nasceu com estrutura genética para empatia, piedade,
cooperação, mas foi abusado sexualmente pelo pai, aos 3 anos, a mãe se cala, e o ambiente
não fornece suporte para reagir. Mesmo não tendo predisposição, essa criança pode apresentar
204
condutas violentas contra o outro, violência transgressora, crueldade. Mesmo mesclado por
sentimentos de culpa68.
Continuando a usar exemplos alegóricos, dessa vez, referindo-nos a grupos, vamos
seguir por partes. No início, vem o gene: ele não determina, mas fornece os ingredientes para,
por exemplo, uma predisposição a busca de novidades e excesso de violência. Em alguns
casos, afeta, de uma maneira especial, o cérebro, tornando empatia, culpa, remorso,
sentimentos não presentes. Não importa se estamos falando do lobo mau, do bandido, do
homem ígneo, do pequeno tirano, do estado de natureza hobbesiano, da sociedade civil de
Rousseau, dos burgueses. Temos tantas terminologias que não me darei ao trabalho de
enumerá-las. O gene, apesar de ser máquina egoísta, faz parte de um ser vivo que se encontra
em relação com o meio. Damos a isso o nome de fenótipo.
Uma sociedade de decapitadores de cabeças vai reforçar essa tendência nos grupos.
Outra sociedade de amantes do sexo vai reforçar essa tendência. Se uma Sociedade habitar a
Ásia e outra a América, talvez dê para coexistirem, sem tomar conhecimento uma da outra,
mas, se ocupam o mesmo território, lutarão por recursos, hegemonia, poder. Ocorre uma
divisão: a alteridade é o inimigo.
Vamos jogar com a probabilidade de que a sociedade dos decapitadores de cabeça tenha
mais indivíduos com gene que predisponham o transtorno antissocial. A crueldade e a junção
gene e fenótipo propiciará um excedente de crueldade, e os decapitadores subjugarão e
vencerão os amantes de sexo. Podemos pensar que as coisas são simples, assim; induzir o
leitor ao erro, porém os decapitadores podem desejar fazer alianças com os amantes de sexo,
para procriar mais decapitadores, exterminar os que não querem se render e poupar e absorver
os que querem se subjugar. Teremos agora uma sociedade maior, que decapita cabeças e faz
muito sexo.
Agora, chega ao local, uma multinacional, com interesse em alguns minérios dessa
região. Os habitantes da comunidade são hábeis em extrair minérios. Os estrangeiros são
vistos como inimigos, de início, mas logo formam alianças, constroem locais luxuosos para a
68
Podemos continuar mesclando exemplos, são muitas as probabilidades. Hoje estão sendo estudados
fatores de resiliência (CYRULNIK, 2003), que possibilitam a uma criança resistir a um meio adverso, a abusos,
a negligência, a guerras e a catástrofes. A resiliência considera os fatores constitucionais e ambientais. Cyrulnick
(2003, p. 64-65) fala que a chave encontra-se na interação com cuidadores, a formação de um apego seguro, a
sensação genuína de ser cuidada, a formação de redes sociais, que podem ser amigos, escola, instituições. Uma
criança que não tem resiliência pode cometer suicídio, ou reagir às adversidades com violência, mesmo tendo
herdado genes “bons” ou vice-versa: uma criança com lesão cerebral, Cyrulnick (2003, p. 33) cita exemplo de
síndromes genéticas que predispõem a agressividade exacerbada, mas, por ambientes tranquilos, com apego e
cuidado, ocorre uma diminuição das tendências agressivas. Exemplo: Síndrome de Kluver-Buck, síndromes
autísticas.
205
prática de sexo, elegem um exército de decapitadores, com a intenção de pegar os rebeldes,
subornam o Governo do país onde se encontra o território desses híbridos, e constroem belos
edifícios em centros urbanos, ótimos shoppings. Para manter o centro urbano funcionando,
vão pactuar, em algumas favelas, com líderes antissociais para tráfico de drogas e de órgãos
humanos. Injetam dinheiro na política e elegem deputados e senadores. Da América à Ásia,
existem redes, com certeza, para não ter empatia pelos outros. Esses detentores do capital têm
genes que afetam o sentimento de culpa, o remorso, a empatia. Enganam com doses de
cinismo, permitem o florescimento de religiões, tribos urbanas, darks, skinheads, controlam a
mídia: está montado o grande Beehemoth.
Neste jogo, não podemos dicotomizar classe dominante e dominada, estabelecidos e
outsiders, amigos e inimigos. Tudo compõe um todo, uma harmonia de sangue, crueldade e
exploração. O 1% que nos diferencia dos chipanzés e bonobos faz a diferença. Temos uma
violência social baseada no capital. O poder simbólico reforça o valor do dinheiro, da
exploração, do luxo que podemos conseguir como acúmulo do capital. Subjetiva-se o corpo
como mercadoria, e esse se torna um fetiche. O ter passa a valer mais que o ser. Essa é a
grande serpente do capital de que fala Deleuze (2002).
Mas, se é o capitalismo o responsável pela violência transgressora, como explicar a
violência em sociedades pré-capitalistas? Quando Clastres fala da instituição da violência, em
comunidades indígenas, que guerreiam com outras tribos para manter a coesão intragrupo,
estamos remetendo a uma maneira de subjetivação não capitalista. Devemos pontuar quais
fatores, no capitalismo atual, servem para aumentar a violência transgressora. Como pontua
Lebrun (2008), uma subjetivação baseada na falta de hierarquia, na desconstrução de um
modelo de família, onde falta a figura do pai, interdições sociais, o individualismo, o consumo
de mercadorias como objetivo social, a formação de laços sociais frágeis entre as pessoas,
uma diminuição do sentimento de pertencimento ao coletivo, pode levar à formação de
indivíduos que não tenham canais socialmente úteis para canalizar e frear a violência
transgressora. Esta é apenas uma hipótese de Lebrun, precisa ser avaliada historicamente.
Ocorrendo um processo de mudança na socialização dos Países capitalistas, temos que,
delimitar em quais e aprofundar o que esse fato contribui para o aumento da violência
transgressora.
A solução não se resume a esse jogo de probabilidades, a uma construção hipotética.
Onde ficam os temperados? Os que não apresentam alterações cerebrais que predisponham a
crueldades? As crianças que não se transformam em pequenos tiranos? Ao nosso lado
206
bonobo? Já podemos constatar, por tudo que foi argumentado, que estes não desejam
avidamente, em uma sociedade capitalista, ao acúmulo do capital através da exploração do
outro. Têm estratégias para resolução de conflitos. Estão do lado do conflict resolution.
Podem ajudar crianças a ter uma base segura, mesmo com a balança do social instalando uma
violência simbólica baseada no capital econômico. Podem ajudar a amenizar a situação,
podem exercer lideranças construtivas, criar ambientes de cooperação. Todos têm em comum
a empatia pelo outro, o colocar-se no lugar do outro, mas o próprio Hobbes coloca que os
ígneos provocam e competem tanto, que obrigam os temperados a se defenderem.
Vimos, com Elias, que os estabelecidos ferem a autoestima dos outsiders, fazem
fofocas, deturpam a imagem, impedem o acesso ao trabalho, condições de vida adequadas.
Podem fazer alianças, mas de submissão e assimilação. Amigos e inimigos trocam, podem ter
interesses comuns, e nisso, Matt Ridley percebe uma saída para a paz. Temos que cooperar
para conseguir o que, eu não tenho e o outro tem. De Mauss fala sobre dávida, Matt Ridley
sobre troca e cooperação, habilidades diferentes, especialização. Isso move o interesse da
reciprocidade.
Na parte maldita, Bataille (2005, p. 89) coloca que existe um excedente que circula na
terra, mas a apropriação é feita por poucos. Tem para todos, comida, fartura, mas alguns
retêm 90% desse excedente. Nosso 1% nos faz assim: a linguagem, o uso de ferramentas, as
paixões sociais, como vaidade, orgulho, inveja, vanglória fazem do homem uma espécie
diferente, mas a violência está nesta construção social, e não nos genes, nem em uma natureza
humana oriunda de primatas não humanos. A contingência faz o homem construir sociedades
de exploração que fornecem o substrato para violência real, transgressora alastrar-se. Do
indivíduo aos grupos, do solitário anônimo ao bando de fanáticos, do suicida isolado ao grupo
de banqueiros. É a estrutura social que faz a violência real caminhar e circular entre os corpos.
A situação não é tão linear. Existem indivíduos e grupos que resistem a esta realidade.
Temperados, resilientes, piedosos tentam construir uma sociedade, em que a violência
simbólica assuma proporção aceitável para uma convivência de mais respeito, menos
exploração e destruição da alteridade.
E a criança? Longe de utopias e reformas evolutivas, sabemos que é nessa fase que
podemos evitar que o “mal” cresça, parodiando Rousseau. Mas, com quais cuidadores e em
que tipo de sociedade? Vamos tentar fornecer oportunidade de resiliência, resolver conflitos
provocados pelo bullying, diminuir conflitos familiares, respeitar, acima de tudo, os direitos
207
humanos, mas, para isso é necessário que exerçamos uma violência simbólica, que faça
respeitar a justiça.
Devemos contar com nosso lado bonobo e com os temperados? Com os Emílios e
Sofias? Para isso, é necessário coragem, empatia, esperteza, curiosidade, uma genética
favorável e um meio ambiente propício e redes sociais.
Podemos concluir que a agressividade não é o problema, faz parte de nossa biologia. A
violência é produto humano e instaura o social, mas nem toda violência exerce o efeito
destrutivo que tivemos, por exemplo, na Alemanha nazista, nos massacres de Kossovo e
Ruanda. Nossa sociedade tem o crime organizado, o narcotráfico, a corrupção de políticos,
mas têm também os defensores dos direitos humanos, os ecologistas, crianças índigo. 69.
O sistema mundial está dominado pelo capitalismo, tudo bem, mas este não é o nosso
problema, o nosso problema é que, neste sistema mundial há sociedades mais violentas e
outras menos, o que demonstra que é possível, dentro do mesmo sistema, controlar a violência
e viver de forma mais cooperativa e harmoniosa. Existem países, como o Japão, por exemplo,
onde encontramos um controle do social exercido por tradições, disciplina, funcionamento
adequado das leis. A Noruega é outro exemplo de controle e diminuição da violência, com
índice de educação formal elevado e leis que funcionam. No Brasil, estamos em uma fase, em
que o controle da violência transgressora é fraco, aumentando os casos de falta de respeito
pela alteridade e pelo direito do outro. Na realidade, fazer um mapeamento da violência
transgressora, no mundo, foge ao nosso foco, neste momento, mas vale ressaltar que, mesmo
dentro do sistema capitalista, ocorrem gradações e soluções diferentes para diminuição da
violência transgressora.
A etologia, a psicologia evolutiva, a primatologia, as neurociências e a Psiquiatria
podem apontar setas, mas, não constituem sozinhas, a verdade sobre o homem. Este se
constrói em sociedade, como diz Rousseau, e busca a superação e a perfectibilidade. Se a
sociedade facilita o surgimento de psicopatas, por exemplo, é porque ela precisa deles para
reforçar seu status quo. Podemos até concordar com a Psiquiatria quanto à falta de empatia,
ausência de culpa entre outros, mas o psicopata só floresce em meio social propício.
Reforçando que é o homem o arauto da violência transgressora, do uso desta para o bem e o
mal.
Que estamos tentando colocar?
69
Uma metáfora criada para retratar a criança que tem consciência ecológica, preocupação com o outro e
quer construir um mundo melhor.
208
1. Não podemos ser deterministas, principalmente, quando se trata da espécie humana.
Fatores biológicos, no máximo, dão um impulso para comportamentos violentos, mas não
determinam nada;
2. Inscrever o homem em uma ordem natural é algo óbvio, mas reduzi-lo à biologia é
desconhecer que somos humanos. A etologia fornece exemplos de outras espécies, mas não
podemos proceder por analogia. Esta é uma falácia. A primatologia comete também este erro.
Uma coisa é dizer que somos primatas humanos, mas evocar uma herança em função de
semelhanças genéticas é um erro. E as diferenças? E o que nos torna humanos?
3. Devemos fazer uma análise da atual forma de socialização que o capital impõe, assim
como as sociedades que resistem à globalização. Não podemos generalizar o Império de Negri
e Hardt como uma máxima universal. Foge do escopo deste trabalho fazer uma análise
aprofundada do capitalismo e adentrar nas formas de subjetivação produzidas por este
sistema. Teríamos que mapear e comparar muitos países e fazer um mapeamento da violência,
inclusive, em países comunistas e muçulmanos, como China e Irã.
4. Ao invés de olhar para sociedades animais e fazer analogias, vamos olhar e aprofundar
como a espécie humana está se socializando. Este é o caminho de análise mais promissor.
Neste aspecto, entra a destruição do Planeta pelos excessos do capital financeiro, com lucro
desmedido e destruição sem limites da natureza; mas não é só esse aspecto. Como países
comunistas estão lidando com a violência?
5. Chegamos à conclusão que a violência não é o problema, mas o homem. E não existe um
destino, ou algo que determine nossa espécie, porque temos a capacidade de nos construir,
tanto para o bem, como para o mal, utilizando parábolas teológicas. Aceitamos a hipótese que
temos uma constituição ígnea e/ou temperada, somos bipolares, temos a propensão para amar
e odiar, destruir e construir, ser egoísta ou cooperar. Assim como existem psicopatas
desprovidos de moral e empatia, temos muitas pessoas que trazem na constituição a moral e a
empatia.
Vamos agora fazer considerações finais apontando caminhos.
209
CONCLUSÃO
À custa de brigas, pancadas, leituras escondidas
e mal escolhidas, tornei-me taciturno e selvagem.
Começou a minha cabeça a se alterar,
e passei a viver como um lobisomem
(ROUSSEAU, 2008, As confissões, Livro I, p. 58).
Depois desta análise que passou por várias disciplinas, podemos esquematizar da
seguinte maneira o que pesquisamos:
Por questão de método, ao falarmos de agressividade, remetemos a uma estrutura
biológica, individual: o ser vivo, com suas estruturas físico-químicas, seus genes, suas
estratégias de sobrevivência, elementos, digamos, da estrutura genotípica, que podem variar
de espécie para espécie, de organismo para organismo, de indivíduo para indivíduo. Esta
definição tem como referência a etologia, principalmente Lorenz,Wilson e Dawkins.
Ao nos referirmos à violência, entramos em uma esfera propriamente humana. Se
vivemos em uma época violenta, vamos rastrear as probabilidades que a facilitaram. Genes,
família, Estado fazem parte de um jogo que instaura e perpetua a violência, o qual pode ser
micro ou macro estrutural, que começa em casa, entre marido e mulher, pais e filhos, entra
nas instituições, chegar ao Estado, parte para as nações, raças, ideologias, religiões.
Utilizamos como referência os estudos de Ruiz, Girard, Clastres e Lebrun, principalmente
para enfatizar a dimensão humana da violência. A violência aparece com o processo de
socialização humana. A linguagem, específica da espécie humana, faz do pensamento humano
um processo complexo, que amplia as possibilidades de socialização humana e torna o desejo
numa dimensão de multiplicidade de objetos, que são criados pela linguagem e o
desenvolvimento das sociedades humanas. Entramos assim num aspecto importante em
Rousseau, que analisa, principalmente em O Emilío, a evolução deste desejo em sociedade.
O processo de humanização está condicionado por dois fatores ineludíveis: a herança
biológico-genética, fruto de um longo processo evolutivo (processo que o homem
compartilhou, em alguns momentos, com outros animais a ele próximos); e os
condicionamentos sociais, em que o homem é também, desde sempre, inserido. O espaço da
liberdade humana é definido, nos interstícios desses dois condicionamentos. O homem é,
portanto, ao mesmo tempo e de forma indissolúvel, um ser natural e um ser social, e será
sempre difícil definir o que é natural e o que é social ou cultural, no homem, à medida que o
processo de humanização cria, para o homem, uma “segunda natureza”. Esta é resultado da
210
socialização, dos processos da criação da cultura, linguagem. A segunda natureza é uma
metáfora para delimitar esta passagem do homem biológico para o homem que cria a
linguagem e relações que produzem um corte entre nossa espécie e as outras.
Nesse sentido, a relação entre agressividade e violência é qualitativa. O homem, como
ser biológico, traz a agressividade na sua constituição, mas a passagem desta para a violência
depende da intencionalidade para fins da consciência do eu, da negação da alteridade do
outro, ou negação de si, como é o caso do suicídio70.
Segundo Bourdieu (2009), o conceito de violência simbólica é instaurado pela cultura
e pelas estruturas sociais; Birman (2009) utiliza esse conceito, para contrapor violência
simbólica e violência real, que é da ordem da transgressão. Sendo assim, a violência é parte
constitutiva da estrutura social e tem seus aspectos de construção e organização da
temporalidade e sentido, na História. A divisão da violência em simbólica e transgressora é
apenas uma maneira de analisar. A simbólica instaura a coesão grupal, mas geralmente
exerce-se de maneira negativa contra grupos e classes sociais diferentes, os que Elias vai
denominar de “estabelecidos e outsiders”. Já a violência transgressora estabelece-se contra
uma ordem simbólica, podendo ser individual ou grupal. No momento que se instaura uma
violência simbólica, já existe a condição de possibilidade de uma violência transgressora, que
pode ser negativa ou positiva. Quando restringe-se a utilizar da transgressão para ferir,
subjugar, cercear a liberdade, abusar, matar, corromper, a violência transgressora é negativa,
por negar a alteridade. Quando defende direitos, preserva a dignidade do indivíduo, ajuda a
romper com uma violência simbólica opressora para instaurar uma ordem mais justa, a
violência transgressora apresenta-se como condição de possibilidade para uma condição
humana mais adequada. Dentro desta perspectiva, Girard (2008) analisa a violência nos seus
aspectos positivos e negativos, ligando-a à condição do homem como ser do desejo. Damos
um passo a mais em nossa pesquisa, quando colocamos a violência sob a óptica de uma
complexidade maior, não sendo apenas o negativo do homem.
Ao falarmos de crueldade, perversão, ódio, genocídios, da maldade (alegoria mítica),
estaremos entrando na dimensão negativa da violência: são máscaras da violência, segundo
Birman (2009), Girard e Clastres. O homem possui linguagem, cérebro desenvolvido, utiliza
ferramentas, faz trocas sociais complexas, tem capacidade de sentir culpa ou não, elemento
fornecido pela linguagem, que torna nossos pensamentos um software gigante em marcas e
70
Para a etologia, como iremos ver, principalmente em autores como De Waal, Wrangham e Peterson,
existiria intencionalidade e consciência em alguns primatas não humanos. Este tema é controverso, pois não leva
em consideração o processo de hominização e diferenças fundamentais com outras espécies de primatas.
211
sinais. O homem, pelo menos, tem consciência do que é o bem e mal. O chimpanzé, por
exemplo, para De Waal (2007), apresenta uma moral, mas pré-linguística. Bonobos podem
superar humanos em gestos nobres, mas estão além do bem e do mal. Estudos recentes de
alguns etólogos parecem indicar que a moral não é apanágio do homo sapiens, mas a
perversidade e crueldade sim, a consciência da violência sim. Ao comer uma presa, ao
perseguir um opositor, um leão não pensa: é um ato de violência, que aparenta ser cruel e,
perverso, para nós, mas que o leão apenas faz: uma agressão para além do bem e do mal.
Na nossa conclusão, a violência não pode ser interpretada apenas como “o negativo”,
mas como o que constroe e possibilita a criação de cultura, sociedades, e relações entre os
homens. Poder e violência não são sinônimos, embora não possa existir um poder sem
violência, pelo menos a violência legítima do Estado de Direito. Hobbes define o poder
individual como os meios de que presentemente dispõe para obter qualquer visível bem
futuro, podendo ser natural ou instrumental. Não podemos detectar, em Hobbes, apenas uma
relação do poder com dominação, coação, violência; o poder também é reputação, prudência
que pode levar à paz, à eloqüência, à nobreza e à beleza, que contribuem para paz. O poder
soberano, pode inclusive garantir a vida e a paz entre os homens: a solução para a guerra e a
violência em Hobbes passa pela criação do Estado, que precisa exercer um poder efetivo.
Neste caso, quando o poder serve para mudar as relações entre os homens, não é o
negativo, porque acarreta a violência, mas também cria saber e novas maneiras de
subjetivação humana. Neste trabalho, utilizamos o conceito de poder numa dimensão mais
próxima a que Foucault, na Microfísica do Poder (1982), lhe deu, distanciando o tema do
aspecto unicamente repressivo, mostramos também uma conotação mais positiva. O poder
pode destruir, humilhar, negar a alteridade do outro, mas pode também criar, opor-se à
violência e apresentar alternativas de paz e resolução de conflitos. O poder é também criação
de saber, resolução de conflitos, resiliência, que é a capacidade de resistir e se reinventar
diante das adversidades. Seguindo Rousseau, podemos afirmar que a perfectibilidade humana,
este desejo de criação e superação é uma componente do poder humano. Temos ainda o
conceito de poder simbólico de Bourdieu, que remete a estruturas culturais, institucionais, de
crenças e linguagem que servem para constituir o social, como já citamos.
Vamos finalmente tentar desfechar nossas conclusões e responder as questões colocadas
no inicio do trabalho. Para isso, pontuaremos os seguintes aspectos:
Dentro do corpo do ser vivo existem genes que interagem com o ambiente. A nossa
espécie tem um diferencial, podemos chamar metaforicamente de 1% de genes, que nos
212
separam dos chimpanzés e dos bonobos, mas estes 1% significam algo de novo, um corte. A
linguagem, a complexidade do cérebro e consequentemente do desejo, o bipedalismo, que
libera as mãos para atividades manuais e construção de ferramentas: assim nos tornamos
humanos. Somos diferentes, mais complexos, e criamos culturas variadas, temos a capacidade
de inventar e reinventar a nós mesmos, trazemos a tendência para o bem e para o mal. Sendo
mais explícito: o processo de socialização humana trouxe um ingrediente novo: a violência,
fundadora e desconstrutora, simbólica e real. Esta é nossa marca. Ela não opera apenas
negando a alteridade do outro e tendo intencionalidade, princípios, meios e fins; constrói
também cultura, religião, mitos, a política. Pode servir para mudar uma ordem social para
melhor. Não nos deteremos apenas na violência real e transgressora.
Não devemos esquecer-nos do gênero masculino, principalmente da tese do macho
demoníaco de Wranghan e Peterson. Em relação à estatística, o transtorno anti-social é bem
maior em homens, numa proporção de 7 para 3. Em grupos que cometem atos delituosos, há
um predomínio do sexo masculino nas chefias e lideranças. Mas esses dados não são
conclusivos, e a empiria tem suas armadilhas e erros. Faltam estudos para corroborar que, no
gênero masculino, o gene tem importância fundamental, existem as hipóteses hormonais,
inclusive com testosterona, mas, biologicamente, precisa-se de estudos para corroborar esta
tese. Podemos conjecturar um fenótipo favorável para dominação masculina, já que a
sociedade civil é dominada política e economicamente por homens, na maioria dos locais.
Hobbes e Rousseau não tocam no assunto de gênero. Sofia, quando aparece, é para ser
complemento submissa a Emílio. Mas não podemos escorregar na facilidade destes dados. O
gênero feminino pratica também a violência transgressora, pratica atos negligentes, mente,
seduz, trapaceia e é conivente com a violência masculina. Existem diferenças de gênero
inegáveis, mas não podemos demonizar o homem, nem muito menos a mulher. Eva não é a
causa da queda, nem Caim é o protótipo do homem violento.
Continuando, com a biotipologia em Hobbes, dividimos os homens em temperados e
ígneos, depois aproximamos os ígneos dos anti-sociais. Esta é uma divisão dualística.
Precisaria ser aprofundada. Existem traços de temperamentos que seriam responsáveis pela
violência? Acreditamos que exista uma predisposição em fatores biológicos, demonstramos
estes aspectos no capítulo 4. Ao falar de neurociências, transtorno de conduta e anti-social,
percebemos fatores genéticos que predispõe à falta de empatia, por exemplo, como é o caso
do anti-social. Podemos conjecturar, então, que a estrutura social utiliza-se de algumas
pessoas com determinados tipos de traços de personalidade. Os ígneos, por exemplo, seriam
213
mais interessantes numa sociedade competitiva e de pouca cooperação, assim como o antisocial, a criança com transtorno de conduta. Psiquiatrizar é um caminho fácil. Não
enxergamos o todo e a sociedade se aproveita destas predisposições. A agressividade é
biológica, pode ser alterada por estrutura do cérebro, por genes, por acidentes que danifiquem
o cérebro. Torna-se mais intensa, foge ao controle. Existe, porém, um longo caminho para
transformar este quantum de agressividade em violência. Podemos conjecturar que, mesmo
um antissocial precisa de um ambiente que estimule competição, falta de empatia, egoísmo,
individualismo, para manifestar os traços herdados geneticamente.
Demos outro passo, constatamos que o problema não reside apenas no indivíduo, mas
nos grupos. A sociedade pode ser o palco de uma guerra contínua, alianças, disputas, que se
estendem entre as nações. Os grupos aonde a crueldade, o excesso de violência, a falta de
culpa, o desejo desenfreado de poder, a vaidade e a vanglória imperam, tendem a dominar?
Não podemos reduzir tudo, à relação senhor e escravo, como quer Nietzsche. Podemos até
concordar que os escravos, ou os outsiders de Elias, são ressentidos e clamam vingança. Daí
vem a luta contínua, em todas as esferas. O Estado é só o palco, o intermediador destas lutas,
geralmente a favor dos estabelecidos, ou de amigos. Neste tempero, xenofobia, crenças
diferentes, estigmas físicos, acúmulo de capital, tudo faz parte do jogo, onde o poder de
criação humana faz a diferença. Mas a violência passa, inicialmente, por uma dimensão
individual. Não podemos esquecer que tanto em Hobbes, quanto para Girard, o desejo
humano é o princípio condutor da violência. Existem transgressores homicidas e suicidas;
abusadores e praticantes de bullying. Estes se engajam em grupos, mas esta não é condição
necessária. Um franco atirador pode responder pelos atos sem precisar do grupo. Um serial
killer geralmente é um indivíduo isolado.
E a educação, tão propalada em Rousseau? Convivemos hoje com o fenômeno bullying.
Algumas escolas se parecem com o estado de natureza hobbesianos, ou, parodiando
Rousseau, a sociedade civil degenerada. Como diz Lebrun (2008, p. 120), vivemos numa
época de explosão do conceito de hierarquia, principalmente no Ocidente. Pequenos tiranos
florescem. O fenótipo está propício à formação de lobos, ou melhor, ígneos, anti-social,
condutopatas. A sopa da bipolaridade forma temperos fortes com o lado chimpanzé do
homem, utilizando a metáfora de De Waal. Temperados bonobos só assistem? Emílios são
vítimas de bullying? O medo paralisa temperados e Emílios em suas casas, na Internet, de
onde não estão salvos, pois a Internet hoje é um meio para prática da crueldade. Mas cresce
uma consciência ecológica, aliado à preservação dos direitos humanos. Não podemos dizer
214
que nesta parábola, os temperados apenas assistem e se amedrontam. Reagem e tentam
instaurar outra ordem de violência simbólica.
De Waal fala de resolução de conflitos, Matt Ridley de cooperação e trocas, alianças.
Talvez seja o caminho, tentar negociar uma probabilidade menor de danos. Temperados,
Emílios, defensores dos direitos humanos podem construir uma sociedade melhor. Não a paz,
mas, um outro estado de situações, onde, a violência seja limite e lei, cooperação e
distribuição de rendas, diminuição de privilégios e respeito à alteridade do outro. Este é o
caminho. Falamos de resolução de conflitos, de resiliência, de cooperação e empatia. A
violência real pode ser barrada, até porque acreditamos que o homem se reinvente sempre, e
tente se aproximar da perfectibilidade tão propalada por Rousseau.
Rousseau e Hobbes trazem luzes. Cada um no seu momento histórico. O Leviatã tenta
instaurar uma trégua na guerra de todos contra todos, domesticar o homem. Busca preservar a
vida, que no século XVII, valia pouco. Era uma época de mudanças, guerras, formação do
Estado moderno, pestes e outras epidemias, mortalidade alta. Hobbes percebeu que a
violência do Leviatã podia frear a violência transgressora deste estado de coisas. Rousseau viu
na educação da criança um caminho e na vontade geral uma solução para instituir uma ordem
da eticidade, através de um tipo de violência que freiasse o individualismo, o egoísmo e a
crueldade individual. Tudo começa na infância, inclusive a esperança.
Nem bons, nem maus, nem lobos ou bom selvagens. O homo sapiens é um agregado de
crueldade, bondade, perversão, egoísmo, cooperação, uma cadeia de probabilidades. Mas
somos a única espécie que não estagna, aprende, cria, inventa. Rousseau prefigurou este fato.
Hobbes foi mais pessimista. Temos a empatia, um instinto que faz com que percebamos o
outro e nos coloquemos no seu lugar. Esta chave é fundamental para nossa espécie. Rousseau
acredita que instintos como piedade, amor-de-si, cooperação e empatia façam parte da
“verdadeira” natureza humana. A sociedade é quem desvirtua esta natureza, a artificializa,
gerando pequenos tiranos. Mas sociedade e violência são produto humano, e podemos
modificar nosso destino. A perfectibilidade humana, a moralidade e sentimentos de empatia
podem dar um rumo diferente a esta sociedade. Neste aspecto, concordamos com Rousseau.
Em Hobbes temos uma passionalidade humana que só se curva com o poder da espada.
Infelizmente Hobbes não desenvolveu a biotipologia do homem temperado e como estes
podem modificar a sociedade. Acabou criando uma visão dualista, e nesta, os ígneos
prevaleceram.
215
Resumindo: este é nosso mundo. A violência é nossa criação. Mas podemos fazer dela
muitas coisas. Podemos transformá-la, administrá-la, coibi-la, limitá-la. Faz parte da natureza
humana, ser violento e agressivo, mas temos a violência que constrói, coloca limites e ajuda a
estruturar laços sociais, assim como temos a violência que explora, aniquila a alteridade e
instaura o caos. Se, por contingência, como diz Rousseau, nos tornamos violentos sob o
aspecto negativo, podemos mudar o rumo da história. O primeiro passo é reconhecer a nossa
criação, e tal como uma criança aprender a brincar com ela, tornando-a mais inofensiva e
menos ameaçadora.
As questões colocadas neste trabalho tiveram respostas: as respostas de Hobbes e de
Rousseau são diferentes. Este é um ponto central: em Hobbes a natureza humana não pode
ser modificada, apenas escondida atrás de uma máscara. Será que o medo é suficiente para
mudar a natureza humanas, será que o a criação do progresso e da civilização mudam a
natureza humanas ou oferecem uma trégua até que volte o estado de natureza com as guerras
civis, ao menor descuido do soberano? Hobbes, em sua obra, não acredita na possibilidade de
uma modificação profunda da natureza humana, tanto que, para criar o artifício do Estado,
cria um ser metade homem, metade máquina, que só se dobra pelo poder da espada, de um
Estado forte, que impõe sua força pelo medo, o mesmo medo que faz o homem tentar sair do
estado de natureza.
Rousseau acredita na possibilidade de mudança, para isso o homem deve passar por um
processo educativo que modifique os erros produzidos pela sociedade e crie as condições de
possibilidade para uma sociedade pautada na ética e na cooperação. Rousseau acredita numa
natureza humana que tenha a potencialidade para piedade e cooperação. Ao colocar em relevo
a perfectibilidade humana, abre a condição de possibilidade para a formação de um sujeito
ético e coletivo.
Hobbes é mais pessimista, na realidade, desconfia na possibilidade do homem mudar, a
não ser através de um poder externo e coercitivo e movido pelo medo. Rousseau acredita na
educação, na formação do homem desde a infância, onde os abusos da sociedade civil são
corrigidos. Esta capacidade de modificação, da busca pela perfectibilidade, nos faz aproximar
nossas conclusões de Rousseau. A moral, a razão, a piedade, fazem com que o homem tente
modificar a socialização corrupta e injusta, criando um estado ético.
Se analisarmos em detalhes os dois autores, Rousseau tenta fornecer soluções para
mudanças, acreditando na capacidade humana de se aperfeiçoar e partindo do pressuposto que
temos instintos naturais que favorecem a cooperação e a moral. Em Hobbes se nota uma visão
216
mais determinista e conservadora. Mas, mesmo dentro desta perspectiva, o medo faz o
homem tentar a criação do Estado. A violência simbólica instaurada por este, é fruto de um
pacto entre os homens. Hobbes viveu no século XVII, e não podemos esquecer, como diz
Magalhães (2006), tentou dar respostas a questões históricas.
Mesmo com a passionalidade humana, a violência no estado de natureza, Hobbes viu
uma saída no medo. Podemos questionar este medo, mas ele ainda encontra-se presente hoje.
O medo é uma estratégia para justificar uma posição pessimista no homem. Mas não podemos
fechar Hobbes neste aspecto. Acreditamos que a resposta que deu tem seu valor histórico, mas
hoje podemos também ver em Hobbes um pensador cujo determinismo não pode ser
simplificado. Alguns aspectos do seu pensamento não foram devidamente desenvolvidos,
como a esperança, a biotipologia ígnea, a presença de instintos de empatia, que
hipoteticamente pode estar presente nos temperados. De uma maneira geral, sua visão pode
conduzir a um conceito de natureza humana determinístico, aonde o homem é movido por
paixões, principalmente a vontade de poder.
Em relação à violência, Hobbes propõe soluções. E neste aspecto devemos refletir sua
mensagem que é bem atual: como criação do homem, a violência só pode ser modificada pelo
homem. Se tentarmos ver uma dupla face na violência, associando inclusive aspectos
negativos e positivos, é porque temos, como criadores, várias direções para a violência e
Hobbes viu no Estado absolutista uma resposta.
A lição de Hobbes e de todos os realistas pessimistas tem validade para qualquer
momento histórico: ele nos alerta sobre a possibilidade de uma irrupção do estado de
natureza, porque a natureza humana e as suas paixões não mudam radicalmente, mas são
simplesmente controladas pelo Soberano e compatibilizadas através da força com as paixões
dos outros. É verdade, porém, que há sim uma mudança, porque desta maneira se criam as
condições para uma vida civil, para a cultura, o progresso, as artes, mas è algo sempre
precário que pode ruir a qualquer momento, basta que o soberano perca a sua capacidade de
manter a ordem e a paz: o estado de natureza está sempre à espreita!
Em Rousseau, temos, principalmente no Emilio, uma dialética de interação criança
adultos que mostra a gênese da formação da personalidade, na relação com a sociedade,
representada pelos cuidadores (pais, preceptores, amas-de-leite). Desta relação podem surgir
pequenos tiranos ou cidadãos. Em Rousseau, podemos até hipotizar uma agressividade natural
na criança, que deve ser canalizada e direcionada na construção da moral, da empatia e da
217
cooperação. Apesar da complexidade do seu pensamento, podemos extrair um núcleo aonde
não existe determinismo. O homem tem o poder de mudar seu destino e se reinventar. A
sociedade, assim como a violência, são produtos do homem, mas Rousseau acredita que
temos instintos, como a piedade, que pode nos fazer colocar no lugar do outro. A moral é uma
potencialidade que a sociedade pode contribuir para desenvolver ou não. Para Rousseau
temos uma natureza que, a principio, é piedosa e traz a moral como potencial. É um aspecto
que poderíamos dizer biológico.
A “segunda natureza” é criação da sociedade. Nesta segunda natureza temos os
preconceitos, o egoísmo, a disputa, a violência transgressora. Rousseau propõe todo um
processo educativo e mudança na interação criança e cuidadores para modificar os aspectos
negativos da violência humana. Neste caso, concluímos que nossa natureza não é fixa, assim
como a história, apresenta modificações e transformações que vão depender da estrutura
social na qual o homem está inserido em determinado momento.
Quanto à violência, ela é social, produto do homem. A agressividade é um instinto, mas
não um mal, tem a função de sobrevivência. Mas, quando entramos na esfera da socialização
humana, esta agressividade sofre diversas transformações e passa a ser confundida com a
violência. A violência é a agressividade que interage com o social; em outros termos: a
constituição biológica modificada pelo mundo humano. A partir desta premissa, tentamos dar
uma resposta para toda tentativa de naturalizar a violência e confundir agressividade com
violência. O nosso trabalho tentou compreender a violência, sua complexidade, e fazer dela
uma possibilidade construtiva de colocar uma ordem simbólica permeada pela cooperação e
moral coletiva.
Recorremos a Hobbes e Rousseau para fechar o trabalho: que o medo não nos faça
recuar, mas nos dê a coragem de, pelo menos, compartilhar do sorriso de uma criança,
descobrindo o mundo. Um mundo de pequenos construtores e menos de pequenos tiranos.
Como chegar a isso? A resposta está em nossas mãos; com a criatividade de uma criança a
descobrir o mundo e reinventá-lo. Independentemente das adversidades, a criança sorri e
recomeça.
A resposta à questão é que, concordando com Rousseau, devemos reinventar a
sociedade partindo da socialização das crianças. A natureza humana não é fixa, muda e se
transforma através da história. A violência é um produto de nossa socialização. Não podemos
negar esta herança. Qualquer tentativa de construir um novo modelo de sociedade mais
igualitário deve reconhecer que terá que ser através da violência. Esta é nossa marca para
218
construir ou destruir, para criar grandes civilizações ou sociedades corruptas. A agressividade
entra apenas como instinto, não determina nossa natureza. A violência funda a sociedade, mas
nada determina que deva ser exercida para destruição e subjugação dos homens, pois nossa
natureza é mutável.
Após todo este percurso, podemos colocar que as respostas dadas por Rousseau
continuam atuais e válidas. Mesmo reconhecendo todas as dificuldades da violência, o
homem traz dentro de si a condição de possibilidade de tornar esta mais construtiva,
contribuindo assim para modelos de socialização mais igualitários e cooperativos.
O resultado da pesquisa aponta um caminho que é, na realidade, um desafio: não
podemos escapar da violência. Qualquer mudança na natureza humana deve partir de um
processo de criação de limites, instauração da violência para criar uma ordem social mais
coletiva e cooperativa. O resultado é um confronto de forças, entre violência como criadora de
ordem, disciplina, limites, submissão do individuo ao coletivo e violência como destruidora
da ordem, fomentadora da exploração do homem pelo homem, dentro de uma dinâmica social
que privilegia grupos contra grupos, indivíduos contra indivíduos, numa lógica que coloca o
privilegio de grupos acima dos interesses coletivos.
O homem, este sujeito em eterna mutação, pode modificar a história, mas, para isso, tem
que utilizar sua própria criação: a violência. É esta inquietante conclusão que chegamos, ao
final do nosso percurso.
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