UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE PROGRAMA INTEGRADO DE DOUTORADO EM FILOSOFIA HERMANO JOSÉ FALCONE DE ALMEIDA AGRESSIVIDADE E VIOLÊNCIA EM HOBBES E ROUSSEAU: ETOLOGIA, GENES E AMBIENTE JOÃO PESSOA/PB 2010 HERMANO JOSÉ FALCONE DE ALMEIDA AGRESSIVIDADE E VIOLÊNCIA EM HOBBES E ROUSSEAU: ETOLOGIA, GENES E AMBIENTE Tese apresentada ao Curso de Doutorado Integrado em Filosofia, na linha de pesquisa Filosofia Prática, como pré-requisito para a obtenção do grau de Doutor. Orientador: Prof.: Dr. Giuseppe Tosi JOÃO PESSOA/PB 2010 HERMANO JOSÉ FALCONE DE ALMEIDA AGRESSIVIDADE E VIOLÊNCIA EM HOBBES E ROUSSEAU: ETOLOGIA, GENES E AMBIENTE Tese aprovado em _____/_____/_____. COMISSÃO EXAMINADORA Prof.: Dr. Giuseppe Tosi/Orientador Prof.: Dr. Castor Bartolomé Ruiz/Membro externo Prof.: Dr. Fernando Magalhães/Membro interno Profª.: Drª. Maria das Graças Souza/Membro externo Prof.: Dr. Artur Perruzi/Membro externo Prof.: Dr. Vincenzo Di Matteo/Membro interno Dedicatória Aos meus pais, in memoriam, a todos que se foram e gostariam de estar aqui, minha mãe principalmente. A minha esposa, sempre presente e me estimulando, e ao meu filho e enteados, que tiveram paciência com ausência. Dedico. AGRADECIMENTOS A minha querida mãe, Yedda Cantalice Falcone de Almeida, in memoriam, que me fez sentir um ser humano eficiente. Ao meu pai, Heraldo de Almeida, in memoriam, que morreu quando eu tinha cinco anos, deixando um vazio que nunca foi preenchido. Aos meus avôs, Dalva Cantalice e Américo Falcone, in memoriam, por terem iniciado com coragem a saga de uma geração de imigrantes italianos que, com dificuldades, estabeleceramse no Brasil. Ao meu irmão, Antônio Américo Falcone, que me estimulou na arte de ensinar. A minha amada esposa, Lenilde Dias Ramalho, que teve tanta paciência com uma pessoa complexa e cheia de feridas existenciais como eu. Ao meu filho, Francisco Giordano Medeiros de Almeida, por ser diferente de mim, e realizar o que não pude, em função das minhas limitações físicas. Aos meus enteados, Mirella Vitória Ramalho e Murilo Valter Ramalho, por terem chegado a minha vida em momento fundamental. Aos meus alunos, todos, sem exceção, que me estimulam a aprender a cada dia. Ao meu orientador, Giuseppe Tosi pela atenção, respeito e paciência dedicados no constructo deste trabalho. Aos professores, Marconi Pequeno e Iraquitam Caminha, por terem me guiado nesta complicada trajetória. Ao professor Fernando Magalhães, que me alertou para aspectos fundamentais no pensamento de Hobbes, principalmente na divisão entre ígneos e temperados. A toda classe docente, que luta por um mundo de luzes. Às crianças e adolescentes vítimas de abuso e maus tratos, que me inspiraram nesta tese. A Aramís Melo, que me ajudou a revisar tantas vezes este trabalho. Aos funcionários da UFPB, principalmente, Francisco e Fátima. À professora Emília Perez, que com sua luta contra o câncer, me ajudou a persistir na vida, mesmo em momentos adversos. Aos Deuses e Santos que evoco na minha fé multifacetada. E, para finalizar, a todas as pessoas anônimas, que foram e são vítimas da violência, principalmente em um país que reina a impunidade, que é nosso Brasil. “Ouvi dizer que a infância é a época mais linda da vida. Eu estava feliz de viver minha infância, mas essa guerra me tomou tudo. Por quê?” Domingo, 5 de abril de 1992 Dear Mimmy, Estou tentando me concentrar nos deveres (um livro para ler), mas simplesmente não consigo. Alguma coisa está acontecendo na cidade. Ouvem-se tiros nas colinas. Grupos de pessoas chegam de Dobrinja. Para tentar interromper alguma coisa - o quê, nem eles mesmos sabem. Digamos simplesmente que se sente que alguma coisa vai acontecer, já está acontecendo, uma terrível desgraça. Na televisão, vêem-se pessoas na frente da Assembléia Nacional. No rádio toca permanentemente a música 'Sarajevo, meu amor'. Tudo isso é muito bonito, mas a todo momento sinto uma espécie de cãibra no estômago e não consigo mais me concentrar nos estudos. Mimmy, estou com medo da GUERRA! Zlata [...] Quinta-feira, 9 de abril de 1992 Dear Mimmy, Não estou indo à escola. Nenhuma escola de Sarajevo está funcionando. O perigo sobrevoa as colinas que nos cercam. Apesar disso, tenho a sensação de que pouco a pouco a calma está voltando. Já não se ouvem as fortes explosões das granadas nem os tiros. Só uma rajada de vez enquanto, depois o silêncio volta bem rápido. Papai e mamãe não estão indo trabalhar. Estão comprando uma grande quantidade de comida. Meu Deus, eu lhe suplico, faça com que não aconteça. A tensão continua grande. Mamãe fica desesperada, papai tenta acalmá-la. Mamãe telefone muito. Ligam para ela ou então é ela que liga. A linha fica o tempo todo ocupada. Zlata. Zlata Filipovic RESUMO ALMEIDA, Hermano José Falcone. VIOLÊNCIA E AGRESSIVIDADE EM HOBBES E ROUSSEAU: ETOLOGIA, GENES E AMBIENTE. 2010. 228 f. Tese (Doutorado Integrado em Filosofia). UFPB - Universidade Federal da Paraíba; UFPE – Universidade Federal de Pernambuco; UFRN - Universidade Federal do Rio Grande do Norte, João Pessoa - PB. O estudo tem como objetivo definir agressividade e violência na espécie humana. Estudar a agressividade e a violência do ponto de vista filosófico é uma tarefa que requer a colaboração de várias disciplinas como a biologia, a sociologia e as neurociências, para alcançar a abrangência e a profundidade que o tema merece, porque são conceitos que transitam do biológico ao social. Ao falar de agressividade, entra-se numa dimensão biológica, corporal, genética e neurobiológica enquanto que, ao falar de violência entra-se numa dimensão exclusivamente humana, que remete à linguagem, à cultura e aos símbolos da sociedade. A pesquisa foi motivada pelo fato do pesquisador ser psiquiatra da infância e adolescência e ter vivido em seu cotidiano profissional situações de violência, bullying, abuso sexual e psicológico que atingem esta faixa etária. Esta sua experiência o motivou para procurar na filosofia e nas ciências a resposta a perguntas tais como: a agressividade e a violência fazem parte da natureza ou da condição humana ou são uma construção histórica e social? Existe uma “natureza humana” determinada biologicamente ou ela é produto da sociogênese humana? Nesse contexto trata-se de uma pesquisa de caráter bibliográfico, que parte do pensamento dos filósofos Thomas Hobbes e Jean-Jacques Rousseau, para dialogar com as ciências biológicas e posteriormente retornar aos dois clássicos da filosofia política e tentar uma nova síntese sobre o assunto que incorpore as contribuições da ciência. O pesquisador buscou fazer uma leitura crítica, analítica e sistemática das ciências biológicas, com relevo para a etologia, a genética e a neuropsiquiatria. A pesquisa pretende definir e separar melhor os conceitos de violência e agressividade, contando com a contribuição das ciências sociais e de algumas correntes da psicanálise. A pesquisa se orientou por uma mediação entre duas tendências opostas: de um lado a tendência à naturalização de ambos os conceitos; do outro, uma negação dos condicionamentos biológicos e o reconhecimento da socialização como único fator que acarreta a violência. Dentro desta perspectiva, não se deixa de transitar entre a filosofia e a ciência, com momentos de empirismo que ressaltam a contribuição da biologia e da neuropsiquiatria para o estudo. O objetivo é apontar caminhos e separar conceitos que não estão bem definidos, pois, assim sendo, pode-se delimitar o que é propriamente humano dentro da esfera da violência e da agressividade. Não pretende-se dar respostas definitivas, porém, acredita-se que o estudo trouxe mais clareza ao tema em questão, ao defender a tese de que a violência faz parte da sociogênese humana, sendo exclusiva de nossa espécie e não sendo totalmente determinada por fatores biológicos, ela pode ser “controlada,” administrada, pela sociedade. A agressividade faz parte de nossa herança biológica e tem como uma das principais funções a sobrevivência das espécies. A violência é produto humano, instaurando a sociedade. Tem seus aspectos positivos, quando coloca limites e faz funcionar a coesão social; ou aspectos negativos, quando instaura a exploração do homem, gera desigualdades e provoca danos físicos, psicológicos e de limitação de liberdade do outro. Como produção humana, a violência pode ser causa de males sociais, assim como a solução para esses males. PALAVRAS CHAVE: Filosofia, Hobbes, Rousseau, Agressividade, Violência, Biologia. ABSTRACT ALMEIDA, Hermano José Falcone - VIOLENCE AND AGGRESSION in Hobbes and Rousseau, GENES AND ENVIRONMENT; 228 f. Thesis (Integrated Doctorate in Philosophy). UFPB - Universidade Federal da Paraíba; UFPE - Universidade Federal de Pernambuco; UFRN - Universidade Federal do Rio Grande do Norte. The primary objective of this study is to define aggression and violence in human beings. Studying aggression and violence philosophically demands a wide range of disciplines such as biology, sociology, and neuroscience as concepts migrating from the biological to the social aspect in order to achieve broad and deep knowledge of the theme. When relating to aggression, we focus on a biological, corporal, genetic and neurobiological dimension; while referring to violence, we address to an exclusively human dimension concerning the language, culture, and society symbols. The study was based on the researcher´s career as a juvenile psychiatrist and his everyday professional experiences with cases involving violence, bullying, psychological and sexual harassment which have affected individuals at that age. Philosophy and other sciences were taken as resources to help to get answers to the following questions: are aggression and violence part of human nature or human condition, or are they historical and social construction? Is there “human nature” biologically determined? Is it product of human sociogenesis? This is a bibliographic research starting with thoughts of philosophers such as Thomas Hobbes and Jean Jacques Rousseau to interact with biological sciences and then return to the two classics of the political philosophy attempting a further synthesis of the theme which incorporates the contributions of sciences. The study consisted of a critical, analytical and systematic reading of biological sciences focusing on etiology, genetics, and neuropsychiatry. The research aims to define and sort out concepts of violence and aggression by counting on the contribution of social sciences as well as some currents of psychoanalysis. It was guided by a mediation between two opposing trends: on the one hand, tending to adopt both concepts; on the other hand, tending to neglect biological conditionings and accept socialization as the only factor leading to violence. According to this perspective, we migrate between philosophy and science with empirical views that highlight the contribution of biology and neuropsychiatry to the study. The purpose of the study is to point out ways and sort out concepts not very well defined in order to determine what is essentially human in the scope of violence and aggression. The study is not expected to give determined answers, but it is believed to have made the topic clear, supporting the thesis that violence is part of human sociogenesis and that it is exclusive to human species and not entirely determined by biological factors, being possibly controlled and administered by the society. Aggression, in turn, is part of our biological inheritance, and its main function is the species survival. Violence is a human product that comprises the society. It has positive aspects as it limits and develops social cohesion; it has negative aspects as it causes human exploitation, generates inequality, and leads to physical and psychological damages restricting freedom. As human production, violence can be both the cause of social problems and their solution. Key words: Philosophy, Hobbes, Rousseau, Aggression, Violence, Biology. LISTA DE ILUSTRAÇÕES Figura 01 - Código Genético..................................................................................................152 SUMÁRIO INTRODUÇÃO.................................................................................................13 CAP. 1 - HOBBES: A Agressividade Humana ..................................................................25 1.1 DO LOBO AO LEVIATÃ ................................................................................................25 1.2 PAIXÃO E PODER: Do Estado de Natureza ao Estado Social ........................................29 1.3 DAS LEIS DA NATUREZA À CRIAÇÃO DO ESTADO: Sobre Pactos e o Poder Soberano ..................................................................................................................................38 1.4 A NATUREZA HUMANA EM HOBBES: Pequeno Interlúdio ......................................45 1.5 O HOMEM NATURAL ....................................................................................................48 1.6 O ESTADO DE NATUREZA ...........................................................................................56 1.7 AGRESSIVIDADE E VIOLÊNCIA EM HOBBES .........................................................61 CAP. 2 - ROUSSEAU: Do Bom Selvagem ao Contrato Social .........................................66 2.1 O DISCURSO SOBRE A ORIGEM DA DESIGUALDADE ENTRE OS HOMENS ..................................................................................................................................................73 2.2 DO CONTRATO SOCIAL ...............................................................................................82 2.3 EMÍLIO .............................................................................................................................86 2.3.1 Emílio e Sofia .................................................................................................................93 2.3.2 Sofia ................................................................................................................................96 2.4 AGRESSIVIDADE E VIOLÊNCIA EM ROUSSEAU.....................................................99 CAP. 3 - ETOLOGIA E SOCIOBIOLOGIA: Dos Instintos Básicos à Agressividade Humana .................................................................................................................................101 3.1 DETERMINISMO, GENE E AGRESSIVIDADE: Behaviorismo e Meio Ambiente ................................................................................................................................................101 3.2 NOSSA HERANÇA PRIMATA E ADAPTAÇÃO HUMANA: Agressão, Pacifismo e Bipolaridade............................................................................................................................106 3.3 KONRAD LORENZ: A Agressividade Humana.............................................................109 3.3.1 A Agressividade, Ritos e Socialização .........................................................................109 3.3.2 A Agressividade na Espécie Humana............................................................................117 3.4 A AGRESSIVIDADE E OS GENES: Wilson e Dawkins................................................121 3.4.1 Wilson: o “Gene Egoísta” .............................................................................................124 3.4.2 O Macho Demoníaco ....................................................................................................127 CAP. 4 - BIOLOGIA E BIPOLARIDADE EM FRANS DE WAAL ............................136 4.1 O PODER ........................................................................................................................138 4.2 BIPOLARIDADE ............................................................................................................142 4.3 CONFLICTS RESOLUTION ...........................................................................................144 4.4 AS PARCAS E OS GENES ............................................................................................150 CAP. 5 - AS NEUROCIÊNCIAS E O ANTISSOCIAL ENTRAM EM CENA.............160 5.1 DAMÁSIO, AS EMOÇÕES E OS NEURÔNIOS ESPELHO .......................................160 5.2 TRANSTORNO MENTAL E COMPORTAMENTO VIOLENTO ...............................165 5.3 TRANSTORNO DE CONDUTA E COMPORTAMENTO DISRUPTIVO: Características Diagnósticas ...........................................................................................................................167 5.4 O ANTISSOCIAL ENTRA EM CENA...........................................................................177 5.5 OUTSIDERS E INTEGRADOS: O Diferencial de Poder em Norbert Elias....................181 5.6 SOBRE ABUSO, BULLYING E NEGLIGÊNCIA .........................................................188 CAP. 6 - DE VOLTA A HOBBES E ROUSSEAU ............................................................196 6.1 O LOBO É O LOBO DO HOMEM, OU O CIDADÃO É UM DEUS PARA O HOMEM? ................................................................................................................................................196 6.2 ROUSSEAU E A CRIANÇA COMO PARADIGMA DA AGRESSIVIDADE E VIOLÊNCIA ..........................................................................................................................200 6.3 BIOLOGIA, AGRESSIVIDADE E VIOLÊNCIA: Hobbes e Rousseau...................... ...203 CONCLUSÃO..................................................................................................209 REFERÊNCIAS..............................................................................................219 13 INTRODUÇÃO Estudar a agressividade e a violência, do ponto de vista filosófico, não é uma tarefa simples. Podemos inicialmente tentar definir o que é cada um desses conceitos, ressaltando que as definições são instrumentos de trabalho, servindo apenas, para delimitar o termo, visando a melhor instrumentalizar os conceitos. Utilizando a obra, On Agression de Lorenz (1982, p. 23), poderíamos definir agressão como uma conduta inata a espécies animais, a qual existe na face da terra, antes mesmo do aparecimento do homem. Não é condição exclusiva do ser humano. É a violência, não a agressividade, que é própria do ser humano. Nesses termos, a agressão é inerente a todo ser vivo, tendo componentes biológicos, e a violência é característica da espécie humana. Toda agressão pode levar à violência, que não é idêntica à agressão, mas sua expressão manifesta, viva e física. Segundo algumas correntes da etologia, a agressão serve para sobrevivência, é necessária à espécie: ideia compartilhada na obra On Agression de Konrard Lorenz (1982) e na obra Sociobiologia de Edward O. Wilson (1975), por exemplo. A agressividade, partindo do pressuposto de que é biológica, faz parte das estratégias dos indivíduos das espécies animais, para sobreviver. A busca por alimentos, reprodução, a luta ao ataque de predadores, a defesa do território, são apenas alguns exemplos da função biológica da agressividade, que depende da constituição dos genes, de traços de temperamento, da neurofisiologia, para se expressar. Não pode ser pontuada como uma característica universal, pois dependerá da constituição de cada organismo, da espécie e de suas estratégias para sobrevivência, dos recursos de alimento disponíveis, da população e da organização social. Visto sob esse aspecto, não podemos simplesmente fazer analogias entre o homo sapiens e as outras espécies, pois, como estudaremos, existe um corte entre o homem e as outras espécies, demarcando, assim, uma dimensão diversa para o estudo da agressividade. A confusão semântica estabelece-se entre os conceitos de agressividade e violência, em função de usarmos marcos conceitual da biologia, teoria da evolução, etologia, as quais não se aplicam à nossa espécie. Pretendemos, neste trabalho, utilizar a agressividade como uma dimensão biológica, que depende de genes, de neurotransmissores, da estrutura do cérebro, de recursos alimentares, da reprodução. Parafraseando Lorenz (1982, p.98), a agressividade seria um 14 componente de uma cadeia de instintos que se inter-relacionam na interação organismo e meio ambiente. A violência, por sua vez, é um fenômeno que diz respeito à nossa espécie. É nossa marca diferencial, em relação a outras espécies animais. O homem possui linguagem, utiliza ferramentas complexas, símbolos, cria culturas diversas, com costumes, interações sociais e maneira de relacionar-se que se distingue de outras espécies animais. Ao falar de violência, entramos na dimensão humana, na linguagem, no desejo e nos símbolos. A consciência da violência encontra-se somente no homem. Girard (2008) levanta a hipótese de o desejo humano ser responsável pela violência. Onde existe desejo muitas pessoas desejam, gerando a formação de rivais. A violência tem uma dimensão que se instaura a partir do desejo e da apropriação mimética de objetos de desejos. Esta apropriação é decorrente do processo de socialização humana. Quem apresenta os objetos de desejo é o outro. No caso das crianças, os adultos, geralmente, instauram os objetos culturalmente desejáveis. Desenvolveremos mais detalhadamente esta hipótese no capítulo 5. Podemos segundo Cléo Fante (2005, p. 67), classificar a violência de diversas maneiras; por exemplo, quanto ao grau: violência simples ou pontual, que é aquela em que um ou mais agressores atacam esporadicamente uma vítima, motivados por desentendimento que acaba por gerar conflito, e a violência complexa ou frequente, que ocorre, quando um ou mais agressores atacam habitualmente uma mesma vítima, sem motivação evidente. Quanto a forma, seguindo a autora, podemos ter 1) violência direta contra uma pessoa, interpessoal; 2) violência indireta contra utensílios, bens e patrimônios individuais e públicos, em que se incluem vandalismo e furtos; 3) Violência implícita ou velada, que pode ser chamada metaforicamente de “violência silenciosa”, incluindo negligência, abandono, constrangimentos psicológicos; 4) violência explícita, identificada, em que são identificados autores e vítimas, inclusive no que se refere ao suicídio. Quanto ao tipo, Cléo Fante (2005) classifica em violência física e sexual; violência verbal; violência psicológica e violência fatal. A violência física, como o termo define, é caracterizada por danos causados ao corpo de alguém, por exemplo, socos, pontapés, utilização de instrumentos, como faca, revólver etc. Podemos incluir o suicídio, que é a violência contra si mesmo, assim como tipos intermediários dessa espécie de violência, como autoflagelação, comportamento masoquista. 15 A violência sexual ocorre, quando se obriga alguém a manter relações sexuais, que são contra a sua vontade. A violência verbal e psicológica é, talvez, a mais sutil e danosa das formas de violência. Podemos citar negligências, trapaças psicológicas, desvalorização do outro, humilhações e outros tipos de violência psicológica e verbal. Mais uma vez, segundo a OMS (2008), as crianças são as principais vítimas desse tipo de violência. A fatal caracteriza-se pela eliminação de outros ou de si mesmo, o homicídio, que assume grandes proporções em todo o mundo, ligando-se principalmente a guerras, a atentados terroristas, ao tráfico humano e de drogas ilícitas, à fome e a genocídios étnicos, e o suicídio, podendo citar exemplos, como homens-bomba, e suicídios de adolescentes e idosos, que ocorrem com frequência. Toda essa classificação serve para operacionalizar o estudo da violência, que pode ser focada em determinados ambientes (doméstico, escola, trabalho), categorias sociais (mulheres, crianças, imigrantes, negros, índios, idosos). Esta visão privilegia o aspecto negativo da violência, não conseguindo explicar sua dupla face: se destrói e subjuga arbitrariamente, mata e instaura o caos, a violência também instaura a ordem, a cultura e canais úteis para sua utilização. Como exemplo de uma das máscaras da violência no século XXI, o fenômeno bullying, hoje, muito estudado, é sinônimo da violência de todos os tipos (física, sexual, psicológica, verbal e fatal), tendo sua origem no termo inglês, que significa “o desejo consciente e deliberado de maltratar outra pessoa e colocá-la sob tensão” (Fante, 2005, p. 34), termo que conceitua comportamentos agressivos e antissociais para a autora. O bullying caracteriza-se pela violência imposta por agressores às vitimas, em que existem condutas violentas repetitivas e constantes que acabam gerando desequilíbrio psicológico em todas as partes envolvidas, principalmente nas vítimas, que, em alguns casos, segundo Cléo Fante (2005, p. 47), chegam a cometer suicídio. Para Jeane Middelton-Moz e Mary Lee Zawadski (2008, p. 11-16), o bullying não pode ser estudado apenas no ambiente escolar, apesar de ser nessa instituição onde se realiza a maior parte dos estudos, principalmente após os massacres norte-americanos na década de 90. Para as autoras, o bullying ocorre no interior da família, no trabalho, nas relações amorosas e em outras instâncias. Para compreender melhor a violência, é fundamental aprofundar o fenômeno bullying, principalmente, em função de delimitar o tecido das relações humanas como local de ocorrência de violência, dentro, inclusive, de uma época em que o “processo civilizador”, segundo Norbert Elias, vem diminuir a violência (1993, p. 189). Sendo uma das 16 faces da violência mais estudadas no século XXI, não podemos deixar de analisar esse fenômeno, correndo o risco de não analisar nosso século. Dando continuidade às definições, para a Psicologia, violência é definida, em termos gerais, como “um desequilíbrio psíquico que se traduz pela hostilidade constante contra terceiros e si próprio”. Para a Psiquiatria, é “um movimento contínuo e persistente, que viola o direito das vítimas, além de ser um ato de autoagressão, que pode colocar em risco a vida do próprio sujeito. A Psiquiatria coloca o estudo da agressividade e da violência dentro do campo dos transtornos mentais, começando na infância, com os transtornos disruptivos (transtorno do déficit de atenção com hiperatividade, transtorno de conduta e oposicional-desafiador), até chegar ao adulto, aos transtornos de personalidade, principalmente o antissocial. “O uso de substâncias psicoativas é também um fator fundamental para o aumento da agressividade e violência, para a psiquiatria” (SADOCK & SADOCK, 2007, p. 278). A Psicanálise vem se ocupando da agressividade como um instinto básico, que faz parte da natureza humana1. Freud, em livros, como Além do Princípio do Prazer, O Futuro de uma Ilusão e O Mal-estar na Civilização, estuda a categoria da pulsão de morte (thánatos), que coexiste com Eros, pulsão de vida. Os efeitos de thánatos são devastadores sobre a civilização, chegando a relegar Eros a segundo plano. Essa dialética pulsional, que lembra e remete a Empédocles, acaba gerando um ciclo de violência e destruição que só existe no homem. Utilizando argumentos psicanalíticos, autores, como Jean-Pierrre Lebrun (2008), Elizabeth Roudinesco (2008) e André Glucksmann (2007) remetem-nos à urgência de estudar o ódio e as perversões. Segundo Elizabeth Roudinesco (2008, p. 84), o debate sobre a violência remonta ao Iluminismo, e, com a entrada em cena de Darwin, ganha contornos que, até hoje, continuam a perpassar as discussões. Roudinesco (2008) descreve no seu livro A Parte obscura de nós mesmos, um verdadeiro bestiário de atrocidades cometidas pelo homem na História da civilização. Para a autora, “seja o gozo do mal ou paixão pelo soberano bem, a perversão é uma circunstância da espécie humana: o mundo animal está excluído da perversão, assim como do crime, a qual não somente é uma circunstância humana, presente em todas as culturas, como supõe a preexistência da fala, da linguagem, da arte, e até mesmo de um discurso sobre a arte e sobre o sexo” (ROUDINESCO, 2008, p. 11). André Glucksmann (2007) reinventa a frase de Descartes e coloca: odeio, logo existo. 1 Não temos uma distinção entre agressividade e violência em Freud, sendo a agressividade um instinto que é confundido com a violência. O mal-estar na civilização (1969). 17 O ódio existe, todos nós já nos deparamos com ele, tanto na escala microscópica dos indivíduos como no cerne de coletividades gigantescas. A paixão por agredir e aniquilar não se deixa iludir pelas magias das palavras. As razões atribuídas ao ódio nada mais são do que circunstâncias favoráveis, simples ocasiões, raramente ausentes, de liberar a vontade de destruir simplesmente (Glucksmann, 2007, p. 11). Para Glucksmann (2007, p. 78), o terrorismo é o paradigma da violência no século XXI. Podemos acrescentar, além do terrorismo, o narcotráfico, o tráfico humano, o Bullying, as guerras étnicas, religiosas, os maus tratos domésticos, como demonstração da persistência da violência no referido século. Remetendo a Homero, a Sêneca, à religião judaica, aos mitos babilônicos e a fontes mais remotas, Glucksmann (2007, p. 89) coloca, assim como Roudinesco, que o ódio sempre acompanha a espécie humana. Essa ânsia por destruição é característica de nossa espécie (Glucksmann, 2007; Roudinesco, 2008; Lebrun, 2008). O livro de André Glucksmann, O discurso do ódio, abre justamente com a fábula de La Fontaine sobre o lobo e o cordeiro, onde a natureza assassina do lobo é irreversível. Mais uma vez, o lobo mitológico aparece, para nos remeter à parte maldita de nós mesmos. Seguindo os passos de Jacques Lacan (1988) e corroborando com Roudinesco e Glucksmann, Lebrun coloca que só o homem é capaz de ser um assassino profissional, matando pelo simples prazer de matar. A Psicanálise, após Freud, desenvolveu diversas teorias sobre agressividade e violência. Existe, por exemplo, a corrente lacaniana, que coloca que a violência é uma produção humana, pois só o homem opera na dimensão do imaginário, do simbólico, tentando alcançar o real. A linguagem, sendo exclusiva do homem, faz com que só possamos falar de perversão, crueldade, assassinato, abuso e outras faces da violência, na espécie humana. Jacques Derrida (2002, p. 89), por exemplo, diz que é impossível que o animal seja cruel e perverso, pois ele está vivendo em uma dimensão não simbólica, pré-linguística, em que esses conceitos não têm significado algum. Dominique Lestel (2006, p. 178) tenta diferenciar o que é humano do que não é. Segundo o autor, não podemos comparar, por analogia, a agressividade animal e a humana. A linguagem, a cultura, a criação de mitos, as relações entre os homens são distintas das relações entre animais, inclusive entre os primatas, que mais se aproximam, por estrutura genética, da espécie humana. Para Andrade Filho (2008, p. 2), o comportamento violento da sociedade humana tem inspirado pesquisas em várias áreas, inclusive a biologia. Para o autor, o homem é a espécie mais violenta do Planeta, e imputa o fato à sua neurobiologia. Segundo o mesmo autor (2008, 18 p. 108-110), os estudos neurobiológicos avançaram de maneira significativa, nos últimos anos, para tentar responder a essa pergunta, concentrando-se na genética e sua interação com os fatores ambientais como componentes essenciais, variáveis necessários, mas não suficientes no desencadeamento dos comportamentos agressivos e antissociais. Essa tendência de colocar, no biológico, a causa da agressividade, gera uma falsa dicotomia entre biológico e social, pouco ajudando a compreender a questão. Devemos como diz Morin (1980, p. 98), estudar o homem como uma espécie bio-psico-social, ou, parafraseando Deleuze (2002, p. 78), criar conceitos e ferramentas de trabalho que abranjam os conceptos, afectos e perceptos. O homem é bios, psyché e socius. Estudar a agressividade e a violência requer ter em mente todas essas dimensões. Neste trabalho, a agressividade aparece como componente biológico, inato, porque não dizer, necessário à sobrevivência de qualquer ser. A violência introduz a dimensão social, de relação e de agregação. Ser agressivo é, digamos, a condição necessária para o desenvolvimento da violência, mas não suficiente, pois ela se instaura como diz Clastres (2004, p. 89), em uma dimensão social, ou ainda, como coloca De Waal (2007, p. 98), em uma estrutura relacional. A dicotomia, para o homem, natureza-cultura, não é fundamental para De Waal, já que, por exemplo, os chimpanzés formam sociedades políticas com estrutura de poder parecida com a humana. Para Ruiz (2009, p. 54, 55), a agressividade é da ordem do biológico e não apresenta a intencionalidade da violência, que é humana e depende da consciência do eu e da negação da alteridade do outro. A agressividade remete a uma dimensão biológica, de que fazem parte a genética, a neurobiologia, os traços de temperamento, a constituição do corpo, como componentes biológicos que fazem um ser vivo exteriorizar a agressão, que não pode ser pontuada pelo aspecto negativo, pois serve para a sobrevivência, a procriação, a sexualidade, a busca por alimentos, a defesa, o ataque por sexo e alimentos. A não intencionalidade faz da agressividade um componente natural e necessário à sobrevivência de todo ser vivo. A violência busca um fim e tem estratégias. Nessa linha de raciocínio, não podemos falar de violência em espécies não humanas, só de agressividade. Seguindo o autor, “a intenção significativa transforma a agressividade em violência ao utilizá-la como meio estratégico para um fim” (RUIZ, 2009, p. 55). Percebemos, então, uma definição qualitativamente diferente entre agressividade e violência. Na realidade, para Ruiz (2009, p. 56), só podemos chamar de violência o ato cometido contra outro ser humano de maneira intencional e deliberado. A destruição de objetos, o ato de matar um animal, pode ser considerado agressivo e ser questionado como 19 cruel, mas pode servir para a sobrevivência. Já a ação de coagir, humilhar, matar outro ser humano, depreciar seu patrimônio, cercear sua liberdade é pura violência. A agressão pode ser um impulso de sobrevivência, um excesso de instinto que precisa descarregar em objetos, em outras espécies animais e humanos, mas não visa a destruir, a anular e a negar a alteridade do outro. Uma tapa, um empurrão, uma briga, uma disputa podem ser considerados atos agressivos, mas um linchamento, uma surra humilhante, com ação deliberada de quebrar os ossos de outro ser humano, a coação moral são violências praticadas contra o outro, de maneira intencional e visando a destruir sua alteridade. Nesse aspecto, a violência não visa só a destruir e a negar a alteridade de outro, mas de si mesmo. Seguindo este raciocínio, a agressividade é da ordem do biológico e do natural, e a violência é da ordem do social, da dimensão da linguagem, do simbólico. A não naturalização da violência remete a fatores ligados à nossa humanização, à história e à constituição social, mas não podemos menosprezar a dimensão biológica da agressividade, que faz parte de nossa herança animal. Entre agressividade e violência existe uma ponte. O homem, através da linguagem, do desejo e da criação de símbolos, introduz a consciência do eu na agressão, transformando-a em violência, que é nossa marca como espécie. Em suma, falaremos, ao longo deste trabalho, sobre agressividade e violência, como conceitos, que vão do biológico ao social. Ao falar de agressividade, adentraremos uma dimensão biológica, corporal, genética, neurobiológica; e, ao falar de violência, entramos em uma dimensão exclusivamente humana, que remete à linguagem, à cultura, aos símbolos e à sociedade humana2. Hobbes, no século XVII, cria uma filosofia política voltada para a tese de uma natureza humana egoísta, agressiva, querelante. Usa referências dicotômicas entre natureza e cultura, mas considera que o homem é passional por natureza. Esboça, no De Cive, uma biotipologia, em que os homens podem ser agressivos e egoístas e temperados, sendo que, os primeiros exercem o poder, dominam, convencem. Se nossa passionalidade é destrutiva, e é inata, e 2 Lembremos que a noção de sujeito é problemática, remetendo à subjetividade. Existe subjetividade entre os chimpanzés? (TOMASELLO, 2003, p. 33). Portanto, esta pesquisa trata sobre a capacidade de compreender atos intencionais ou o “outro” como agente intencional diferente, que não se encontra desenvolvimento entre chimpanzés, sendo característica da socialização humana. O ódio aparece como uma paixão que propicia a expressão da violência, que parece ser exclusiva da espécie humana. Mas se a violência é exclusiva da espécie humana, tal exclusividade ocorre a partir de suas características biológicas, logo “naturais”, ou de suas características sócio-culturais, logo, instaurando uma diferença. 20 quem traz a marca da “maldade” nos genes, prevalece socialmente, é porque nossas estruturas políticas são formadas por grupos, no jargão de Hobbes, ígneos. Este debate é atual. Entre os objetivos deste trabalho está a realização de uma análise sobre o homem, partindo de Hobbes e Rousseau, principalmente no que se refere ao tema da agressividade e da violência, que assume nos dois autores posições notoriamente paradigmáticas : em Hobbes o homem é naturalmente agressivo, egoísta e passional; em Rousseau, o homem, ou melhor, dizendo, a criança, é naturalmente piedosa e usa a agressividade apenas para defesa contra as dificuldades do meio físico e maturação de estratégias de sobrevivência, sendo a violência um produto do desenvolvimento social. Nos postulados hobbesianos, observamos uma antropologia em que o homem é refém da sua passionalidade, o que faz com que predomine a desconfiança na convivência em estado de natureza. A herança animal, que acompanha o homem, prolonga-se na formação do Estado. O homem artificial, em Hobbes, é um produto da passionalidade que só é dobrada através do medo, forçando à obediência a um Estado forte e centralizador. Para Renato Janine Ribeiro, “o medo e Hobbes caminham juntos: medo deste ser passional e destrutivo que somos nós, seja em estado de natureza, seja no Estado social” (RIBEIRO, 2004, p. 8). Em Rousseau, encontra-se uma antropologia em que o homem nasce com limitadas necessidades, propensão à piedade e ao amor de si. O mito do bom selvagem e, principalmente, a criação do Emílio remete-nos a uma natureza humana original que, apesar dos desvios e da degradação na sociedade civil, deve ser reencontrada através do Contrato social e da educação. Rousseau acredita no desenvolvimento da razão e da moral no homem, partindo da passionalidade e da socialização. A piedade, o amor de si e a sensibilidade, que é a faculdade inicial de que decorrem razão e moral, fornece-nos a oportunidade de nos livrar do determinismo biológico, fazendo-nos ascender a uma dimensão eminentemente humana. É o tema da perfectibilidade humana muito presente em Rousseau. A sociedade civil decorre do desenvolvimento das faculdades mentais e emocionais do homem. A propriedade privada instaura a desigualdade, e a sociedade corrompe-se; o contrato social e a educação conduzem o homem à condição original de liberdade, que, neste momento, é baseada na vontade geral e nos limites que a moral coloca à degeneração do homem na sociedade civil. 21 Rousseau acredita que o homem é um ser racional e moral, cujas raízes encontram-se na infância. Do estado de natureza à formação do Estado Civil, a passionalidade humana é depurada, seguindo um percurso que culmina com o desenvolvimento da razão e o aperfeiçoamento da moral. O que está em discussão, portanto, não é somente o confronto entre duas antropologias, uma negativa a e a outra positiva, mas a tese da possibilidade de que a natureza humana possa ser transformada, modificada, pela ação consciente do homem e da sociedade sobre si mesmo Estudar o tema da agressividade e violência, em Hobbes e Rousseau, é uma tarefa complexa, que requer, antes de tudo, fidelidade aos pensadores. Mas, esta fidelidade não impede que se possa e deva trazer a contribuição dos filósofos para o debate contemporâneo no campo das ciências que estudam a agressividade e violência. Desta maneira, poderemos compreender melhor o nosso tempo e, acima de tudo, compreender melhor a agressividade e a violência, que tanto nos inquietam nos tempos atuais, e que constitui um grave problema para a Filosofia Prática, e para o respeito dos direitos humanos. Acreditamos que, para a Filosofia, o diálogo entre pensadores de áreas diversas do conhecimento é fundamental. Utilizaremos, neste trabalho, Hobbes e Rousseau, remetendo aos seus personagens: O LOBO E A CRIANÇA. Não propomos soluções simples e óbvias. Vamos apresentar o resultado de diversas pesquisas e textos, e longe de qualquer retórica, traçar uma linha de investigação tentando fugir às facilidades dos modismos que tanto obstruem o avançar do conhecimento É neste sentido que colocamos a questão norteadora: existe uma “natureza humana”? Se existir, esta natureza é produto da história ou algo fixo, determinado, que não muda? Neste aspecto, sendo a violência uma produção humana, caso nossa natureza seja fixa, implica que temos que conviver com a violência como nossa herança sociocultural. Dentro desta questão temos uma segunda: A violência pode ser analisada apenas por seus aspectos negativos? Podemos falar de uma positividade da violência? Para Clastres, por exemplo, a violência intra-grupo instaura uma ordem e uma convivência dentro deste, sendo um aspecto positivo. Em relação a outros grupos, a violência instaura a diferença, o outro como inimigo, tentando eliminar a alteridade. Schmitt faz girar o conceito do político em torno da relação amigo-inimigo. Os amigos instauram uma violência de coesão entre si, através de códigos de ética, normas de conduta e ajuda, cabendo ao inimigo a violência que nega a alteridade, subjuga, fere. 22 Não podemos aceitar esta dimensão grupal apenas. A violência encontra-se também na dimensão individual, sendo o suicídio um exemplo. Seguem-se as duas principais questões que iremos defender neste trabalho: agressividade e violência são conceitos diferentes? A violência faz parte de natureza biológica humana, ou é um resultado da sua socialização? A partir destas duas questões desdobraremos nossa tese. A questão central é se a violência faz parte da socialização ou da biologia e pode ser modificada ou não pela ação do homem. A violência determina nossa natureza, ou pode ser modificada por ela? Trazendo Hobbes e Rousseau para o século XXI, vamos encontrar na etologia, na genética, nas neurociências e na psiquiatria as mesmas questões, colocadas sob o prisma científico. Hobbes descreve o lado sombrio do homem, recompondo a alegoria do lobo, Rousseau traz a criança para o cenário da filosofia. Faz desta criança uma alegoria do cidadão; agressivo, ás vezes, mas nunca perverso, cruel, gozando com o mal. Seguiremos, nos capítulo 1 e 2, a antropologia de Hobbes e Rousseau, tentando, com ajuda de alguns comentadores, extrair um conceito que defina agressividade e violência nos dois autores. A natureza humana e sua relação com a agressividade e violência serão aprofundadas nestes autores. Tentaremos extrair, apesar de não estar presente explicitamente na obras de Hobbes e Rousseau, os conceitos de agressividade e violência. Na realidade, faremos um esforço teórico para retirar estes conceitos dos dois autores. Em seguida, nos capítulos 3 e 4, aprofundaremos uma discussão com a etologia (principalmente o conceito de agressão em Lorenz), a psicologia evolutiva, fazendo curtas referências à teoria comportamental. Nestes capítulos, entraremos na discussão do tema que, na realidade, vai surgir a partir de Darwin. Lorenz, através da etologia, vai deter-se no tema da agressividade, sob o aspecto biológico. Wilson e Dawkins continuam os estudos, que em Wilson assume uma posição biologicizante, tornando as ciências humanas debitaria da biologia. Em seguida, nos deteremos na primatologia, utilizando principalmente Frans De Waal, Wranghan e Peterson. Para os primatologistas, nossa proximidade genética com primatas não humanos, reforça a importância do estudo destes. Em Wranghan e Peterson, a agressividade e a violência fazem parte de nossa herança primata, principalmente no que refere-se ao gênero masculino. Para De Waal, temos duas heranças: a dos chimpanzés e bonobos, cada uma diferente, o que gera uma bipolaridade na espécie humana: de um lado, a parte agressiva e violenta dos chimpanzés, do outro, o pacifismo e a cooperação dos bonobos. 23 Falaremos também a respeito da resolução de conflitos dentro da temática abordada por De Waal, por compreender que o tema traz algumas luzes à tentativa de contribuir para diminuição da chamada violência transgressora. A resolução de conflitos está presente em primatas não humanos e humanos, e é uma resposta para o controle da violência, no seu aspecto negativo. A passagem pela genética, neurociências e psiquiatria, no capítulo 4, se faz necessária, pois nossa pesquisa une filosofia e ciência, e esta discussão não pode deixar de lado estas contribuições, mesmo que seja para questioná-las. A genética, hoje, vem se constituindo num ramo da biologia que tenta responder pelos comportamentos humanos, incluindo agressão e violência. O estudo do cérebro abre fronteiras sobre a conduta humana, agressividade e violência. Autores como Matt Ridley e Antonio Damásio, analisam a interação genes, cérebro e ambiente. A psiquiatria, apesar do reducionismo, analisa o fenômeno da agressividade e da violência empiricamente, remetendo ao estudo dos transtornos mentais, principalmente os que mais se relacionam com agressividade e violência, que são os transtornos de conduta na infância e anti-social, no adulto. No capítulo 6 introduziremos Norbert Elias, principalmente para discorrer sobre a sociogenêse da violência. Recorremos também a Pierre Clastres, René Girard, Pierre Bourdieu e Joel Birman. Neste fase do trabalho, iremos analisar a sociogênese da agressividade e da violência, a formação de grupos, e tentaremos delimitar a agressividade e a violência, inclusive aprofundando este nos aspectos negativos e positivos. Após todas estas análises, no capítulo 6, vamos mostrar um pouco as máscaras da violência na sociedade humana. A negatividade da violência como negação da alteridade. Por ter formação em psiquiatria infantil, optamos por falar de abuso, negligência, maus-tratos e bullying. É apenas uma pequena amostra da violência transgressora entre seres humanos. Poderia ter escolhido falar sobre terrorismo e guerra, fenômenos típicos da violência política, mas acredito que nossa tentativa é definir conceitos, e as máscaras da violência são sociais, existindo apenas diferença de grau. Um abuso infantil praticado com freqüência não pode ser considerado menos violento de que um massacre. Existe uma diferença de grau e intensidade, mas são todas formas de violência. Logo após, faremos um retorno a Hobbes e Rousseau, fazendo uma ponte com a biologia, sociologia e as faces da violência. Finalmente concluiremos nossa pesquisa, tentando apresentar uma síntese de tudo que foi discutido. Na conclusão delimitaremos agressividade e violência, contextualizando no pensamento de Hobbes e Rousseau. A questões para as quais buscamos uma resposta nesta pesquisa são: a natureza humana é 24 determinada e fixa, ou mutável? Agressividade e violência fazem parte da natureza humana ou existem diferenças entre os dois conceitos? O que pertence a nossa herança biológica e a nossa socialização?A violência é sempre o negativo do ser humano, ou tem seus aspectos positivos e construtivos? Uma vez definindo estes aspectos, vamos iniciar o nosso percurso a partir de Hobbes, tentando aprofundar sua visão antropológica, abrindo assim nosso trabalho. 25 CAP. 1 HOBBES: A Agressividade Humana 1.1 DO LOBO AO LEVIATHAN A razão do mais forte é sempre a que vigora: nós vamos mostrar isso agora. Um cordeirinho bebia numa fonte de água pura, veio um lobo em jejum, em busca de aventura, e que a fome a essas plagas conduzia “quem coragem te dá de sujar-me a bebida?” disse-lhe a fera enfurecida. (LA FONTAINE, 2002, p. 42) Extrair, em Hobbes, uma antropologia é uma tarefa relevante, para se tentar compreender os demais aspectos do seu pensamento. No De Cive (1641), segundo tradução própria, reportando-se à literatura clássica, Hobbes coloca que o homem é um Deus para ele mesmo, assim como é um lobo. Essa máxima antiga permanece até hoje, no imaginário, sendo associada à filosofia de Hobbes. Na realidade, ela remonta à Asinaria, de Plauto3, que repete uma versão antiga sobre homens e lobos. Essa visão remete a uma agressividade natural, que, desde os Elementos da Lei Natural (1640), Hobbes desenvolve. No De Cive, aparece, pela primeira e única vez, a máxima do lobo, mas ficou associada ao pensamento de Hobbes, que, segundo Skinner (1999, p. 234), utiliza, apesar da pretensa intenção científica, várias alegorias clássicas, que aparecerão, principalmente, no Leviathan. Pontuar, em Hobbes, a agressividade e a violência não é uma tarefa simples. O conceito de homem é construído, de acordo com minha tradução, desde o De Cive, até o De Homine, corroborando a tese de que o homem, em estado de natureza, é agressivo. A liberdade e a igualdade naturais deixam-no à mercê de suas paixões. O estado de natureza, em Hobbes, é um constructo que serve ao propósito de justificar a construção do Estado e do homem artificial. Podemos seguir Zarka (2001, p. 45-67), que faz uma análise da linguagem em Hobbes, considerada “a maior invenção do homem” (ZARKA, 2001, p. 123), produzindo um ponto de corte na nossa espécie, tornando-nos diferentes de todas as outras espécies animais. Com o advento da linguagem, a socialização, no homem, toma um rumo complexo, e os 3 Titus Maccius Plautus (250 – 184 a.C.) foi um comediógrafo romano que escreveu a Asinaria, ou seja, a comédia dos asnos, na qual está presente a famosa frase: lupus est homo homini, v. 495. 26 desejos encontram objetos que não mais se inserem em uma ordem natural. A relação com o outro passa, para Zarka (2001, p. 98), a ser determinante, após o advento da linguagem, para definir uma socialização. Nesse aspecto, a violência é uma construção da complexidade das relações entre os homens, produzida pela linguagem. Em relação à ciência da época, fisiologistas e anatomistas derrubavam a medicina galeneana; Bacon e depois Descartes alicerçavam a ciência e seus métodos como espaço da verdade; Copérnico, Kepler, Galileu construíam outro universo; o mundo feudal cedia lugar à formação do Estado Moderno; a Reforma Protestante abria o caminho para as sangrentas guerras de religião: guerras civis, sedições, uma “aristocracia que não renunciava facilmente ao poder” (ELIAS, 1993, p. 98), camponeses vitimados pela peste e fome, enfim, um mundo que se abria, outro que se fechava. Hobbes, nesta matriz do século XVII, desde Os Elementos Da Lei Natural e Política (1640), vem tentando dar respostas sobre o que é a natureza humana, desdobrando o homem em natural e artificial. No estado de natureza, predomina a guerra, a disputa, a discórdia e a vontade de poder, o que torna a vida uma ameaça constante. No Estado social, criado através do pacto, são impostos limites à liberdade e ao direito natural, que é a ausência de impedimentos externos ao movimento. Em sua visão antropológica, Hobbes desconfia da possibilidade de o homem se organizar em grupos e por leis da natureza e vai tecendo os fios da possibilidade radical, que é a entrega da liberdade do estado de natureza nas mãos de um Governo forte: única solução possível para a sobrevivência em sociedade. Para Hobbes, o ser humano é egoísta, violento e individualista, e a passionalidade, acionada pelo instinto de preservação, modela sua vida no estado natural. Nesse estado, somos todos regidos pelo egoísmo e pelo desejo de poder. Essa visão, nos Elementos, não chega a radicalizar tanto quanto no Leviathan, com a solução hiperbólica do capítulo XII, em que existe uma tendência geral, em todos os homens, para a busca de poder. No De Cive (capítulo 1), Hobbes divide os homens em “temperados” e “ígneos” e chega, inclusive, a colocar que os ígneos, com propensão para a violência, movidos pela vanglória, podem existir em menor quantidade que os temperados. Escreve Hobbes: Todos os homens no estado de natureza têm o desejo e a vontade de ferir, mas não procedendo da mesma causa, não deve ser condenado com o mesmo rigor. Um, conformado àquela igualdade natural vigente em nós, permite aos demais o mesmo que ele reivindica para si (é o pensamento de um homem temperado, e que avalia seu poder de maneira correta). Outro, supondo sua superioridade frente aos demais, quer ter licença para fazer o que bem entende, exigindo mais respeito e honra do que 27 julga serem devido aos demais (é a exigência de um espírito ígneo). No segundo homem, a vontade de ferir vem da vã glória, e da má avaliação que ele faz da sua própria força; no outro, provém da necessidade de defesa, assim como a sua liberdade e seus bens, da violência daquele (HOBBES, 2004, p. 33) Os temperados entram na escalada de violência, para se defender. Uma guerra entre lobos e ovelhas? As ovelhas apenas se defendendo, utilizando pastores e caçadores, para não ser presa dos lobos. Seguindo seu próprio curso, a competição, a guerra e a luta contínua fazem do ser humano um projeto passional e querelante. No estado natural, todos são iguais, porém incapazes de uma vida pacífica. A luta pela autopreservação e o desejo de poder fazem com que todos os homens, ou os ígneos-lobos, apropriem-se dos meios, para garantir a sobrevivência. Nessa busca, existe a necessidade de acumular bens (recursos naturais e territoriais), gerando excedentes para aqueles que se apropriam de maior quantidade de recursos, o que culmina com a competição; conseqüentemente, estabelece-se uma fonte de guerra contínua. Os temperados têm que reagir, senão são engolidos. No estado natural, todos são iguais, inclusive os mais fracos, que “podem usar da inteligência e habilidade para superar os mais fortes” (HOBBES, 2000, p. 78). Em resumo, o homem é, para Hobbes, quer natural ou artificial, um ser passional, cujo “desejo não cessa de mover-se para alcançar poder e mais poder num movimento incessante que finda com a morte” (HOBBES, 2000, p. 116). As paixões da curiosidade e do medo nos fazem buscar a ciência e a religião. Através da curiosidade, inventamos a linguagem e desenvolvemos a razão. Assim, tornamo-nos homens falantes e racionais, mas nossa natureza move-se pela passionalidade. Existem as leis, a espada e a face de Deus, mas, ainda assim, a nossa passionalidade burla, engana e faz-nos buscar o poder guiado pela vanglória e pelo orgulho. Mas essa passionalidade, com o advento da linguagem (ZARKA, 2001, p. 78), sofre transformações que separam o homem de outras espécies animais, introduzindo um modelo de socialização singular. Analisaremos detalhadamente esses aspectos. Vamos acompanhar Hobbes, depois de delimitarmos alguns aspectos de sua antropologia, a relação com agressividade e violência, situadas em uma época de transformações, que foi o século XVII. O lobo faz agora o início da caminhada pelo bosque. Acorda cedo. Está no século XVII, transitando entre Inglaterra e França, seguindo os passos de Hobbes, como uma sombra. O lobo e Hobbes seguem juntos; e, entre eles, o medo. De mãos dadas, Hobbes e o lobo, o medo começa a fazer sua aparição. 28 Passaremos agora a aprofundar essa história, seguindo os passos de Hobbes, do lobo e do medo. 29 1.2 PAIXÃO E PODER: Do Estado de Natureza ao Estado Social [... ] Pois me mantendes em afãs, tu, os pastores e os cães. Já me disseram; vou vingar tantas maldades. Mata adentro sem demora, o lobo arrasta e o devora, sem mais qualquer formalidades (LA FONTAINE, 2004, p. 42). Hobbes, discorrendo sobre a teoria das paixões, fala sobre dois tipos de movimento: o vital, que diz respeito a funções fisiológicas - respiração, circulação, pulsação; e o voluntário. Neste, existe, a princípio, imaginação e pensamento, e depois um movimento que o faz agir. A origem desses tipos de movimentos voluntários encontra-se na imaginação e no pensamento. Para um corpo se mover, tem que ocupar um espaço. O início do movimento, após a imaginação, chama-se esforço, que tende a caminhar em direção a algo, a causa deste movimento. A este esforço chama-se apetite ou desejo, o apetite é restrito a funções vitais, fome e sede, e o desejo é mais amplo. Além do desejo, que busca algo, existe a aversão, que evita. A esta, liga-se o ódio, e, àquele, o amor. Em relação aos apetites e às aversões, algumas nascem com o homem (excreções, fome, etc.), e outras são produzidas pela observação dos efeitos em nós ou em outros. Para Hobbes: Dado que a constituição do corpo de um homem se encontra em constante modificação, é impossível que as mesmas coisas nele provoquem sempre os mesmos apetites e aversões, e muito menos é possível que todos os homens coincidam no desejo de um só e mesmo objeto (HOBBES, 2000, p. 65). Existe um movimento circular que parte dos objetos externos e provoca outro movimento em nós, chamado sensação. A sensação provoca outro movimento que se prolonga pelos nervos e coração, produzindo um efeito, no corpo, que se chama apetite ou aversão, em relação ao objeto que iniciou o movimento. Este movimento final Hobbes denomina deleite ou perturbação do espírito, afirmando que: Portanto, o prazer ou deleite é a aparência ou sensação do bem, e desprazer ou desagrado é a aparência ou aversão do mal. Consequentemente, todo apetite, desejo e amor é acompanhado por um deleite maior ou menor, e todo ódio e aversão por um desprazer e ofensa maior ou menor (HOBBES, 2000, p. 66). 30 Hobbes enumera diversos tipos de paixões, dentre elas a esperança e o medo, os quais, mais adiante, estarão na origem da passagem do estado de natureza para o Estado social. O medo, na realidade, acompanha o homem em estado de natureza e é um dos principais fatores da tentativa de saída desse estado. Podemos, inicialmente, refletir, que, para Hobbes, o homem em estado de natureza é agressivo. Competição, desconfiança e vanglória movem o teatro hobbesiano do homem em estado de natureza; nesse universo virtual, o medo do homem, que pode prejudicar o outro, enganar, violar, escravizar, abusar e ser cruel, é o único freio. Por medo, cria-se o pacto; por medo, deve-se obedecer ao soberano; por medo, principalmente da morte violenta, saímos do estado de natureza; por medo, tornamo-nos súditos. Acompanhando Leo Strauss (1963, p. 98), o medo é um dos elementos mais importantes na filosofia de Hobbes, que é tão hiperbólico quanto a vontade de poder. Nessa relação, o desejo de poder, que move o instinto de sobrevivência, depara-se com o medo. Para Strauss (1963, p. 89), o medo de nós mesmos, associado ao de não conseguir os meios necessários, para manter as aquisições e as conquistas do estado de natureza, move o homem hobbesiano, possibilitando uma moral. Mesmo a esperança, que Ribeiro (2004b, p. 34) contrapõe ao medo, não é suficiente, para diminuí-lo. Dentro da metáfora do lobo, Hobbes e o medo, o último freia o lobo e faz dele uma sombra trêmula de Hobbes. Continuando a análise das paixões, cobiça, ambição, pusilanimidade, magnanimidade, mesquinhez, luxúria, complacência, ciúme, vingança e vanglória servem para acirrar a guerra e a disputa entre os homens. A crueldade é a exacerbação com vistas a prejudicar alguém sem consideração pelo outro. A inveja provoca competição e desejo de destruir, no outro, algo que não temos. Dessas, no De Cive, a vanglória é o que move o homem de constituição ígnea. Na realidade, o “verdadeiro lobo” é competitivo e gera desconfiança nos de constituição temperada, que apenas defendem-se. No Leviathan, a vanglória é uma das três principais causas da agressividade mútua entre os homens, a qual contribui para a escalada de violência generalizada. Hobbes (2000, p. 103) a compara a um tipo de loucura. O vinho (álcool), a melancolia são outros tipos de loucura, mas a vanglória gera disputa e aumenta a agressividade, pois se passa a avaliar, de maneira distorcida, o grau de poder, atribuindo mais valor do que temos na realidade. A vanglória é relacional, da ordem da linguagem. O medo que se instala é também relacional, por isso, “devemos concluir então, que a origem de todas as sociedades grandes e duradouras não é a boa vontade mútua que os homens têm entre si, mas sim o medo mútuo, que nutriam uns pelos outros”. (HOBBES, 2004b, p. 32). 31 Outras paixões podem ser vistas como altruístas: a confiança, a benevolência, a indignação, a bondade natural, a amabilidade. Hobbes não desenvolve suficientemente essas paixões, mas podemos conjecturar que se encontra em homens temperados. Podemos constatar, para concluir sobre as paixões, que a curiosidade, para Hobbes, é uma paixão especificamente humana e não se encontra em outras espécies animais, assim como a admiração, que desperta o apetite de conhecer a causa. A curiosidade, como paixão humana, conduz à linguagem. Remetendo a Zarka (2001, p. 89), o homem hobbesiano, independentemente dos constructos de estado de natureza e social, começa a ganhar consistência a partir da linguagem. A violência começa a ser escrita, em toda intensidade, a partir desse momento. Como a linguagem é relacional, a violência é um desenvolvimento dessa complexidade das relações entre os homens. Esse fato, seguindo Zarka (2001, p. 98), fala contra as tentativas de analisar a violência, em Hobbes, como um instinto. A violência, em Hobbes, é relacional; a um artifício e a uma invenção, assim como a linguagem. Podemos perceber o componente de socialização que conduz o homem até a violência. Segundo Hobbes, continuando o movimento provocado pelas paixões, podemos pontuar a deliberação e a vontade como movimentos importantes nas atividades ou nos atos voluntários. As ações voluntárias se originam de desejos e de aversões. Não é só o desejo de alcançar ou obter algo, mas o medo de alguma coisa ou a aversão a algo que desencadeia a vontade, antes de deliberar, ou seja, de pôr fim à liberdade de se mover entre desejo e aversão. Hobbes define, na deliberação, “o último apetite ou aversão imediatamente anterior à ação ou omissão desta e o que se chama vontade, o ato, (não a faculdade) de querer.” (HOBBES, 2000, p. 63). O ser humano é um movimento de paixões, ora buscando objetos almejados, ora evitando-os. A deliberação cessa o movimento e põe fim à liberdade de praticar, ou não, a ação. Sobre a deliberação, ainda afirma que: Esta sucessão alternada de apetites, aversões, esperanças e medos não é maior no homem do que nas outras criaturas vivas , consequentemente os animais também deliberam. Diz-se então que toda deliberação chega ao fim quando aquilo sobre o que se deliberou foi feito ou considerado impossível, pois até este momento conserva-se a liberdade de fazê-lo ou evitá-lo, conformemente aos próprios apetites ou aversões (HOBBES, 2000, p. 63). Muitas paixões são comuns ao homem e a outras espécies. Os animais só não possuem a linguagem para expressá-las. É neste ponto que Hobbes, o lobo e o medo se unem. O artifício está criado. Considerando divisões “dicotômicas” (BOBBIO, 1991, p. 9), como natureza e 32 cultura, podemos ver o homem como a espécie que vai transformar e modificar a natureza; reinventá-la. Em relação à religião, para Hobbes (2000, p. 123), só no homem a encontramos, sendo essa uma busca especificamente humana. A curiosidade, a procura de causas e a busca dos consequentes e antecedentes, com ordenação da memória, é o que nos leva até a religião. Os dois primeiros motivos acarretam a ansiedade, que conduz a encontrar, na origem de uma busca, a superstição ou o poder dado a agentes invisíveis. Esses erros de raciocínio aliados à ansiedade levam à crença nos fantasmas, à ignorância das causas segundas, à devoção pelo que só teme, e para a aceitação das coisas acidentais como prognósticos. À soma desses erros de raciocínio denominamos religião. Hobbes chama de religião dos gentios a que tem como origem a ignorância, contrapondo a religião que provém do desejo de conhecer as causas primeiras dos corpos naturais e suas diversas virtudes e operações. Podemos, ao inferir do efeito a causa próxima e passar a investigar profundamente o conjunto de causalidade, até chegar à causa primeira ou ao motor principal que é chamado Deus. “Assim, com princípios do correto raciocínio que leva o homem à ciência, chega-se a Deus. Esta pode ser chamada a verdadeira religião” (HOBBES, 2000, p. 100). A religião geralmente é utilizada pelo Estado, para manter o povo em obediência e paz. Fundadores e legisladores incutem na mente do povo, crenças e preceitos, para melhor obter o objetivo de controlá-los. Atribuem, assim, a um Deus ou a vários, as crenças que ajudam o cumprimento dos seus desígnios. Religião como criação puramente humana4. Citando René Girard (2008, p. 34-37), a violência e o sagrado mantêm uma relação de tentativa de sublimar a violência, canalizando-a para fins menos irracionais. A violência torna-se “menos gratuita”. Para Girard (2008, p. 36), a religião pode ser considerada precursora do sistema jurídico, já que opera com interdições e colocação de limites às ações humanas. Deixando a religião, que, como vimos, é uma criação puramente humana, a antropologia, em Hobbes, no que se refere às virtudes intelectuais, coloca o discernimento, a distinção, o juízo e a prudência como condutores da imaginação correta. Os talentos, que conduzem a um correto uso da imaginação, são de dois tipos: naturais, que dizem respeito à experiência, cujo corolário é a celeridade e a firmeza na direção da cadeia imaginativa; e os adquiridos, que dizem respeito ao uso da razão, pois como já foi visto nada mais é que o uso correto de nomes. Podemos conjecturar que os temperados não possuem também essas 4 A relação de Hobbes com a religião foge ao escopo deste trabalho, mas podemos adiantar que, apesar da ruptura com a escolástica, Hobbes acaba por optar por uma solução que coloca Deus como o motor de todo movimento. 33 virtudes, já que os ígneos são conduzidos pela vanglória, que prejudica o discernimento e faz da imaginação e do desejo um movimento turbulento e ávido por poder. Para Hobbes, as diversas diferenças de talentos consistem na diversidade de paixões, que, associadas aos costumes e à educação, produzem inclinações diferentes na mesma pessoa ou em várias. Podemos encontrar, nesta passagem, uma chave entre a biotipologia de ígneos e temperados, da interação constituição e ambiente. As paixões que provocam de maneira mais decisiva as diferenças de talento são, principalmente, o maior ou menor desejo de poder, de riqueza, de saber e de honra. Todas as quais podem ser reduzidas à primeira, que é o desejo de poder. Porque a riqueza, o saber e a honra não são mais do que diferentes formas de poder (HOBBES, 2000, p. 75). Numa passagem do capítulo VIII do Leviathan, Hobbes se refere aos pensamentos como “batedouros do desejo”, que vão ao exterior buscar a coisa desejada. O movimento agora se encontra completo: inicia-se com um corpo exterior que produz a sensação e termina em um objeto que é buscado pelo desejo. Não desejar, portanto, é morrer. As paixões fracas são debilidades, as indiferentes distrações e leviandade, e paixões fortes e veementes, loucura. Existem, para Hobbes, muitas espécies de loucura, as quais são originadas pelo orgulho e pela vanglória. Esta é um dos vetores passionais que produzem a violência. Remetendo a loucura à origem dos homens-lobos (BARING-GOULD, 2008, p. 34), o núcleo desse lobo encontra-se nesta origem histórica. Das paixões, a mais forte e fonte de todas as outras é o desejo de poder. Este é o alicerce por que todos os movimentos são iniciados e perpetuados, sendo uma força motriz que faz o corpo sair em busca do que for mais adequado para sua autopreservação. Para Hobbes, o desejo de poder é um movimento contínuo, que busca sempre mais poder. Não existe repouso, apenas a passagem de meios, para adquirir mais poder por outros meios. Assinalo assim, em primeiro lugar, como tendência geral de todos os homens, um perpétuo e irrequieto desejo de poder e mais poder que cessa apenas com a morte, e a causa disto não é que se espere um prazer mais intenso do que aquele que já se alcançou, ou que cada um não possa contentar-se com um poder moderado, mas o fato de não poder se garantir o poder e os meios para viver bem que atualmente se possuem sem adquirir mais ainda (HOBBES, 2000, p. 91). O poder natural diz respeito às faculdades do corpo ou do espírito, ou seja, a força, a eloquência, a sagacidade, a beleza e o poder instrumental são os meios utilizados, para adquirir mais poder. Em relação a este, o de vários homens ou muitos constitui o maior tipo, nesse aspecto aparece o poder de grupo, facção ou do Estado, sendo este o maior. 34 Uma vez que o poder é um movimento pela busca de mais poder, Hobbes deduz que passa, então, a ser impossível garantir a paz e a harmonia entre os homens. Quanto maior o poder, maior o esforço para ampliá-lo, seja através do desejo de honra ou glória, ou, então, de cobiça. O desejo de riqueza, honra, manda, obediência leva os homens à luta acirrada e à competição, as quais redundam na subjugação de uns por outros. Mais uma vez especulamos, se esse desejo de poder descreve o homem ígneo, e não o temperado, cujas paixões predispõem à paz e à cooperação. Para Schmitt (2004), Hobbes criou um Deus mortal, formado com partes de Deus, animal, homem e máquina. O poder maior do Estado é uma criação dos símbolos da linguagem. Uma extensão do poder individual do estado de natureza. O pacto é o fundamento dessa relação em proporção maior. O lobo de Hobbes, no entendimento de Schmitt (2004, p. 48), é inteligente, predador, produto mítico da alegoria do estado de natureza. Mas a grande criação de Hobbes é o Leviatã, o monstro marítimo feito com pedaços de Deus, lobos, homens e que para funcionar torna-se uma máquina. Este é, para Schmitt (2004, p. 67), a grande construção do poder, em Hobbes. Em Hobbes, existem movimentos, de um lado, ilimitados, de desejo de poder, de outro, desejos que limitam a busca dos meios, para atingir o acúmulo de poder: o medo, a ciência e as artes, que buscam equilíbrio para atingir a paz, quebrada e violada pela vanglória, ambição, orgulho, competição e honra. Nos capítulos X e XI do Leviatã, Hobbes ainda não discorre sobre pactos, mas já os ensaia implicitamente. Fala sobre um ser humano passional, cuja razão, através da esperança e do medo, aponta-nos um caminho, para sairmos dessa turbulência insaciável de desejos de poder e mais poder. Os costumes já vislumbram a possibilidade de uma tentativa de paz. Antes de deduzir, através das leis e dos direitos naturais, a raiz da formação do homem artificial, Hobbes ainda faz tentativas de equacionar a balança de um mundo aterrorizante que se encontra nas nossas paixões. O medo, a esperança e a razão tentam criar costumes e leis, para harmonizar a vida; a ignorância e a curiosidade criam a religião, para explicar o que não tem explicação e fazer conviver o não convivível. A natureza do poder, para Hobbes, é idêntica à da fama, dado que cresce, à medida que progride, ou à do movimento dos corpos pesados, “que quanto mais longe vão mais rapidamente se movem” (HOBBES, 2000, p. 83). 35 A natureza passional do homem ultrapassa a de todos os outros animais. O movimento inicial do desejo e da aversão é comum a outras espécies, porém, no homem, a imaginação e a linguagem criam um universo complexo de paixões e objetos de desejo que tornam os movimentos iniciais, amplos, complexos e infindos. Paixões, como a vanglória, a riqueza, o orgulho, a cobiça, a ira, a luxúria conferem a nossa natureza uma insaciabilidade acentuada. Tendo, como princípio motor do desejo, o acúmulo de poder e mais poder, Hobbes nos oferece um teatro dos horrores, onde essas paixões são retroalimentadas pela conquista, pela subjugação e pela força. Ao termos um objeto do desejo para três pessoas, este provoca vanglória e cobiça, uma pessoa prepondera sobre as outras duas, subjugando-as e submetendo-as a uma vontade única, porém o movimento não cessa, e, tanto o que conquistou o objeto de desejo quanto os que perderam continuarão lutando. Desse objeto passa-se a outro, e, a outro, com cada vez mais homens disputando. A felicidade é um contínuo progresso do desejo, de um objeto para outro, não sendo a obtenção do primeiro, outra coisa senão para conseguir o segundo. Sendo a causa disso o objeto de desejo do homem, não é gozar apenas uma vez, e só por um momento, mas garantir para sempre os caminhos do seu desejo futuro (HOBBES, 2000, p.91) Nesse universo não existe lugar para valores de bem e mal, de justo e injusto. Bom é o que me faz obter o que desejo, e mal é o que me afasta desse objeto. Justo é o que aumenta minha potência em acumular poder, e injusto é o que enfraquece. Nessa equação de autopreservação, de desejo e de poder, acumulam-se bem mais do que deveria ser acumulado para sobrevivência. Excesso para uns, escassez para outros. Em um mundo onde justo e injusto não existem, as disputas são a regra, e a justiça e a injustiça, um simples detalhe, no entanto existe a esperança e o medo. Essas paixões conduzirão a uma possibilidade de paz. A razão, aos poucos, tenta jogar luzes sobre a passionalidade, mas necessita da ajuda do medo, para melhor guiar nossos destinos. Nesse exato momento em que o desejo de poder nos leva a temer a morte, esta nos lembra que devemo-nos autopreservar, e, por medo de perder a vida, essa paixão, junto à esperança, conduz-nos à razão, que tenta nos tirar do estado de guerra e vai-se disciplinando, criando métodos. Para Schmitt (2004, p. 26-27), Hobbes substitui o Cogito de Descartes, a alma que liga o homem a Deus, por uma máquina. O Estado é produto do homem. É verdade, a primeira decisão foi a metafísica de Descartes, considerando a alma humana como homem-máquina, composto de corpo e alma, como um intelecto em 36 uma máquina. Um simples passo de transportar este homem grande idéia, a medida foi tomada por Estado. Esse passo foi dado por Hobbes. Porque, como vimos, este passo significa que a alma do "grande homem" é transformada de uma máquina 5 (SCHMITT, 2004, p. 32-33). Para Bobbio (1991, p. 30-31), o homem hobbesiano refaz a natureza, que é defeituosa, insuficiente e leva as paixões humanas a expressarem-se de maneira egoísta e violenta. Nesse estado, igualdade e liberdade deixa o homem à mercê de seus próprios desejos, principalmente o de poder. Tendo que reinventar a natureza, transformá-la, dentro do espírito baconiano, a natureza tem que ser “melhorada” (BOBBIO, 1991, p. 37). O artifício, para Bobbio (1991, p. 37), é a solução de Hobbes, o qual é a criação do Estado, que é uma “segunda natureza humana” (BOBBIO, 1991, p. 33), melhorada. Relojoeiro ou arquiteto, o homem - ou melhor, o gênero humano em seu desenvolvimento histórico- construiu, ao instituir o Estado, o mais complicado, talvez o mais delicado, certamente o mais útil dos engenhos, o que lhe permite nada menos do que sobreviver na natureza nem sempre amiga. Se é verdade que o homem é chamado não apenas a imitar, mas a corrigir a natureza, a expressão mais alta e nobre dessa sua qualidade de artifex é a constituição do Estado (BOBBIO, 1991, p. 33) Porém, nada disso seria possível sem a invenção da linguagem: é o corte, o limite entre nossa ligação com outras espécies. A linguagem dá forma, voz e expressão às nossas paixões, tornando-as ou tentando torná-las inteligíveis. Sem a linguagem, as paixões seriam vontade e deliberações sem significante e significado, ou, utilizando o nominalismo hobbesiano, sem marcas e sinais. Linguagem, razão e ciência almejam domesticar nossas paixões e nos fazer humanos, entretanto o medo e a esperança é o que nos impulsionam a uma vida viável em sociedade. Essa natureza passional é um dos principais aspectos da antropologia hobbesiana e devemo-nos deter nela, para tentarmos entender o próximo passo, que é a construção do homem artificial ou social. Movidos por apetites, desejo, aversões, amor e ódio, buscamos a 5 “Cierto que la primera decisión metafísica fue de Cartesio, al considerar el alma humana como una máquina y al hombre, compuesto de cuerpo y de alma, como un intelecto em una máquina. Un simple paso bastaba para trasnportar esta idea al hombre magno, al Estado. El paso fue dado por Hobbes. Pero como ya hemos visto, este paso tuvo como consecuencia que el alma del “hombre magno” se transformase em parte de una máquina” (SCHMITT, 2004, p. 32-33). (Tradução Livre) 37 autopreservação através do poder, que, para Hobbes, até a matemática subjugaria, se esta fosse objeto de disputa6. Portanto, em Hobbes, o homem é uma espécie entre as outras espécies, diferente delas pela linguagem e pela razão. No homem, a passionalidade é complexa (devido à linguagem e à razão, as quais produzem símbolos de desejo e de aversão), tornando a vida em estado de natureza uma eterna competição de todos contra todos. Nesse momento, podemos já compreender que, em Hobbes, não existe uma diferença entre agressividade e violência. O homem, no estado de natureza, é violento, e esta violência é produto da complexidade das relações humanas que decorrem da criação da linguagem. A violência é relacional. Frutos de glória, honra, vanglória, da loucura que acompanha o sapiens na sua jornada pelo mundo. Neste momento, Hobbes já tenta fugir do lobo e correr com o medo, rumo a um universo do artifício. A razão o faz construir uma morada para o medo. Monstro contra monstro: Lobo versus o “Monstro do Mar”. Contaremos esta história, a partir de agora, mas continuando a aprofundar o que o criador de monstros tem a nos dizer. 6 Devemos ficar atentos para a influência de Aristóteles na teoria das paixões de Hobbes. Leitor e tradutor da Retórica das Paixões de Aristóteles, Hobbes utiliza conceitos e categorias do filósofo grego para montar seu arcabouço das paixões. Em Aristóteles é construída uma ética para convivência em sociedade cuja política é o mais importante objetivo, já que o homem é um animal político. 38 1.3. DAS LEIS DA NATUREZA À CRIAÇÃO DO ESTADO: Sobre Pactos e o Poder Soberano “Mordido por cães, um lobo estava em estado lastimável, a ponto de não poder sequer buscar alimento. Avistou então um cordeiro, e lhe implorou que lhe desse de beber da água do rio que era próximo: ‘pois se tu me deres de beber, encontrarei por mim mesmo o que comer’. E o cordeiro respondeu: ‘mas se eu te der de beber, eu ainda serei teu alimento’”. (ESOPO, 2008, p. 120) Seguindo Hobbes, a igualdade, no estado de natureza, leva, na sequência, à igualdade de cada um a desejar tudo que contribua para sua preservação ou deleite. Essa é a raiz da competição e luta de todos contra todos. Segundo Hobbes (Leviathan, cap.VI), se um objeto é desejado por mais de uma pessoa, instala-se a rivalidade e briga acirrada por este objeto, sendo a natureza do desejo o poder acumulativo, cada um vai tentar dominar e subjugar o outro e conseguir obter o objeto de desejo sobre sua posse e conquista. Zarka (2001, p. 255309) divide as paixões, segundo Hobbes, em individuais e relacionais. Das individuais, que podemos chamar de inatas, são as duplas, desejo/aversão; amor/ódio; prazer/dor, e partem do espaço sensorial interno para o mundo externo, porém essa relação com o objeto de desejo já introduz uma relação, já que existe a mediação da linguagem. Podemos, seguindo Zarka (2001), conjecturar convergências entre Hobbes e Rousseau, já que, neste ponto, o desejo, com o advento da complexidade das relações humanas, propiciadas pela linguagem, introduzirá o elemento de discórdia e de disputa. Seguindo Zarka (2001, p. 255-309), dentro das paixões complexas, podemos citar concupiscência, luxúria, ciúme, curiosidade, admiração, glória e vanglória, entre outras. Podemos pontuar a importância da linguagem neste ponto. Se o homem não tivesse “inventado a linguagem”, ficaria em uma dimensão bem próxima à dos primatas não humanos. Mas esse é o ponto de corte. Zarka (2001, p. 301) coloca que a curiosidade, como paixão complexa, relacional, é quem dá o movimento dessa passagem. Como Hobbes (Leviathan, 2000, p. 47) coloca, a curiosidade é especificamente humana, e é esta paixão que impulsiona o homem para desenvolver a linguagem, complexificar as relações, e principalmente, instaurar a vontade de poder. Nesse aspecto, Zarka (2001, p. 256) observa outro ponto que pode ser comparado com o conceito de perfectibilidade humana de Rousseau, sendo que Hobbes parte da autopreservação, que não é devir. A curiosidade, em Hobbes, 39 instaura uma dimensão temporal que parte do aqui e agora, para sobrevivência e projeta o futuro. Nessa sequência, o desejo de poder busca meios, para se autopreservar e garantir o que foi adquirido, ampliando o campo de ação. Mais adiante, voltaremos ao conceito de perfectibilidade em Rousseau e faremos novos paralelos. No momento, o fundamental é fixar, utilizando o próprio Hobbes, que, sendo o homem, por natureza, associal e, como diz na obra Do Cidadão (HOBBES 2004b, p. 23): “Assim, não buscamos a sociedade naturalmente e por si própria, mas que, para que possamos dela receber alguma honra ou lucro. Desejamos estes em primeiro lugar e, aquela secundariamente”. Curiosidade e vontade de poder, para Zarka (2001, p. 256), são paixões intersubjetivas, decorrentes da socialização humana. Delas decorrem as demais e, inclusive, a transformação das paixões individuais para um espaço inter-individual. Existe uma tendência de cada um querer atribuir o valor que dá a si mesmo como valor maior, sendo a vanglória uma das paixões que mais proporciona a disputa. Vemos, assim, aparecer o espaço relacional. Os conceitos de valor e de preço, em Hobbes, podem remeter, segundo Bobbio (1991, p. 34), ao início da construção de um ethos da classe, já que a burguesia passa a ocupar uma posição que, aos poucos, torna-se hegemônica em relação à aristocracia. Para Hobbes, as causas principais da discórdia são a competição, a desconfiança e a glória. A competição leva ao uso da violência com o outro; a desconfiança, a criar fortalezas e outros artifícios, para defender a conquista; e o terceiro, a glória ou vanglória, para ressaltar a tendência da natureza humana, a disputar por ninharias e outras migalhas. Nesse estado de guerra perpétua, as noções de justiça, injustiça, bem e mal não existem: “a justiça e a injustiça não fazem parte das faculdades do corpo ou do espírito” (HOBBES, 2000, p. 110). Em relação ao estado de guerra, não é necessário, para Hobbes, a guerra de fato, mas, tal como o clima prediz chuvas e tempestades, o lapso de tempo, em que exista a intenção de lutar e de subjugar, é considerado guerra mesmo não havendo. A pré-condição existe e pode precipitarse a qualquer momento. Nessa condição natural de guerra de todos contra todos, também não existe a distinção entre o que é meu e seu, sendo a propriedade algo que se conquista e preserva através da força e da subjugação. Escreve Hobbes, em uma passagem famosa: “Desta guerra de todos os homens contra todos os homens também isto é consequência que nada pode ser injusto. As noções de bem e de mal, de justiça e de injustiça não podem aí ter lugar. Onde não há poder comum não há Lei e onde não há lei não há injustiça. Na guerra a fraude e a justiça são as duas virtudes cardiais” (HOBBES, 2000, p. 110). 40 A partir deste movimento de luta, no estado de natureza, são criadas as condições de possibilidade para sair dele, que parte também do movimento das paixões. De acordo com Hobbes: “As paixões que fazem os homens pender para a paz são o medo da morte, o desejo daquelas coisas que são necessárias para uma vida confortável, e a esperança de consegui-las através do trabalho” (HOBBES, 2000, p. 111). O medo da morte é o movimento passional inicial que tenta afastar-nos do estado de natureza. O mesmo instinto de autoconservação que nos faz lutar e subjugar, agora, sob os auspícios do medo da morte, faz-nos desejar sair da guerra para o estado de paz, pois é a partir do desejo que tentamos sair do estado de natureza. A razão, então, cria leis, chamadas leis da natureza, que possibilitam a convivência pacífica entre os homens e favorecem a saída deles do estado de natureza. Para Hobbes, “a razão sugere adequadas normas de paz, em torno das quais os homens podem chegar a acordo. Essas normas são aquelas a que por outro lado se chama lei da natureza” (HOBBES, 2000, p. 111). O direito de natureza é a liberdade que cada um tem de usar o poder da maneira como quiser, com a finalidade de preservar a sua vida. Para Hobbes, utilizando um conceito da física, a liberdade é a ausência de impedimentos externos, cujo movimento de um corpo só pode ser parado por outro. No caso do homem, o limite refere-se ao impedimento de utilizar o poder da forma como melhor aprouver. Através dessas definições, segundo Hobbes, pode-se deduzir que, no estado de natureza, o homem usa seu poder da maneira como melhor lhe convier, cuja utilidade é a conservação da própria vida. O que impede esse movimento é o outro, que também pode usar esse poder. Quando duas ou mais pessoas desejam o mesmo objeto, inicia-se uma disputa, em que alguém deve subjugar outrem, ou limitar e cercear o uso do poder como bem entender. Como a natureza do poder é cumulativa, existe uma tendência a obter sempre mais em relação àquilo de que se necessita. Como vimos anteriormente, isso leva à vanglória, que retroalimenta o círculo de poder e mais poder. A este direito de natureza, jus naturae ou jus naturalis, Hobbes contrapõe as leges naturalis ou leis da natureza: Um preceito ou regra geral, estabelecido pela razão, mediante o qual se proíbe a um homem fazer tudo o que possa destruir sua vida ou privá-la dos meios necessários para preservá-la, ou omitir aquilo que pense poder contribuir melhor para preservála (HOBBES, 2000, p. 113). O direito é a liberdade de fazer, ou de omitir, enquanto a lei determina, ou obriga a fazer, ou a omitir. A lei delimita o movimento ininterrupto instaurado pelo direito. No estado 41 de direito ou de natureza, existe a guerra de todos contra todos, porém cada um usa sua passionalidade e razão, para alcançar os objetos que deseja. No estado de natureza, a guerra de todos contra todos pode levar à morte ou à constante ameaça de aniquilação, que, por sua vez, vai de encontro à busca da autopreservação. Nesse momento, intervém a razão, criando leis que buscam a paz e o direcionar do movimento para a limitação da liberdade natural. Esta busca pela paz, na medida em que se tenha esperança de conseguir, e caso não a consiga procurar, a ajuda e vantagem da guerra é a primeira lei da razão. Na segunda lei, Hobbes (2000, p. 114-115) avança e fala sobre renúncia ao direito e à liberdade naturais, desde que o outro renuncie também. Essa reciprocidade é fundamental, pois o cerceamento da liberdade deve ser para todas as partes envolvidas. Na transferência, deve existir a bidirecionalidade, já que, na medida em que eu transfiro o direito, o outro também transfere. A essa transferência mútua de direitos damos o nome de contrato. Quando, no contrato, alguém transfere seu direito a outro, esperando que este cumpra seu compromisso, em um tempo futuro, referimo-nos a pactos. Os únicos direitos que não podem ser transferidos, para Hobbes, são o de resistir ao ataque de alguém que quer tirar nossa vida, ou ainda, o de resistir à cadeia, ao ferimento e ao cárcere, pois vão de encontro à autopreservação da vida. Os contratos e pactos são atos voluntários que visam a um bem para si, o qual é a autopreservação que o estado de natureza não garante. Para Hobbes, a realização do contrato tenta colocar limite no estado de natureza. Os contratos se referem ao futuro. Segundo essa delimitação, pelo contrato, Hobbes remete à possibilidade do não cumprimento do pacto, no que se refere às coisas futuras. Nesse caso, para Hobbes: Quando se faz um pacto em que ninguém cumpre imediatamente sua parte e uns confiam nos outros, na condição de simples natureza que é uma consideração de guerra de todos os homens contra todos os homens, a menor suspeita razoável torna nulo este pacto. Mas se houver um poder comum situado acima dos contratantes com direito e força suficientes para impor seu cumprimento, ele não é nulo (HOBBES, 2000, p. 117). Nesse trecho, Hobbes faz uma distinção crucial entre o homem no estado de natureza e o homem em sociedade civil e, na sequência, faz referência ao modo, para obrigar e normalizar o cumprimento dos pactos, já que o homem em estado de natureza está à mercê de paixões diversas e desejos contínuos, não estando propenso a cumprir os pactos. 42 Todo pacto é um ato da vontade, que, como vimos anteriormente, é o último ato na deliberação, portanto, só se deve prometer o que for possível cumprir, sendo o impossível um não pacto. Dando continuidade às leis da natureza, a terceira e importante lei diz respeito ao cumprimento dos pactos celebrados. Essa definição da terceira lei como obrigação do cumprimento do pacto é fundamental para nortear o conceito de justiça em Hobbes, para quem a injustiça é o não cumprimento dos pactos, e a justiça é o seu cumprimento. Para existir justiça, é necessário o Estado social que, pela força, obriga ao cumprimento dos pactos. Hobbes afirma que: Portanto, para que as palavras “justas” e “injustas” possam ter lugar, é necessária alguma espécie de poder coercitivos, capaz de obrigar igualmente os homens ao cumprimento dos seus pactos, mediante o terror de algum castigo que seja superior ao benefício que esperam tirar do rompimento do pacto, e capaz de fortalecer aquela propriedade que os homens adquirem por contrato mútuo como recompensa do direito universal a que denunciaram (HOBBES, 2000, p. 123). Em seguida, Hobbes completa: “não pode haver tal poder antes de erigir-se um Estado” (HOBBES, 2000, p. 123). Esta passagem é importante, no que tange à dificuldade que os homens possuem de, por si próprios, conseguir a paz. Mesmo a razão não consegue alçar um nível de consciência em que se possa confiar no outro, sendo necessário um poder externo forte. Como vimos, no estado de natureza, não existe justiça e injustiça, nem meu e seu. Esse limite em que termina um conceito e começa outro, é-nos dado pelo Estado social, não fazendo parte da natureza humana no estado de natureza. A justiça é, portanto, uma consequência do Estado social ou artificial. Na quarta lei da natureza, Hobbes fala sobre a gratidão, que é o reconhecimento do benefício ou da graça dada por uma pessoa a outra. A ingratidão mantém, assim, o estado de guerra e perpetua querelas e desavenças. A quinta lei refere-se à complacência, que é a capacidade de acomodação de uns em relação aos outros. A complacência leva à sociabilidade e busca, portanto, o estado de paz; o oposto nos faz insociáveis, contribuindo para o estado de guerra. A sexta lei busca o perdão às ofensas passadas, para garantir a paz no futuro. A sétima nos fala da vingança, em que devemos reparar apenas o bem futuro, nunca o mal passado. A crueldade é o vangloriar-se na vingança relacionada a um ato passado, o que contribui para o estado de guerra. 43 A oitava lei é sobre evitar ódio, desprezo e ira pelo outro, em gestos ou palavras. Dessas leis, Hobbes deduz outras, que, cada vez mais, vão perfilando a possibilidade da convivência em sociedade. Rompe-se, assim, com o estado de natureza. Todas as leis da natureza remetem sempre à primeira, que diz respeito ao esforço de buscar a paz por todos os meios. As leis da natureza falam sobre reciprocidade entre os homens. Em muitas passagens do Leviathan, Hobbes repete a máxima: “fazes aos outros o que gostarias que fizessem a ti”. Sendo assim, essas leis instauram a “filosofia moral” de Hobbes, que define o que é justo, injusto, bom, mau. Sendo assim, Hobbes expõe que Todas as leis da natureza são imutáveis e eternas, pois a injustiça, a ingratidão, a arrogância, o orgulho, a iniqüidade, a acepção de pessoas e os restantes jamais podem ser tornados legítimos, pois jamais poderá ocorrer que a guerra preserve a vida, e a paz a destrua (HOBBES, 2000, p. 132). As leis da natureza obrigam in foro interno impondo o desejo de que sejam cumpridas, in foro externo ocorre a imposição do desejo de praticá-las. Hobbes faz uma diferenciação entre os ditames da razão, que são apenas teoremas e conclusões sobre o que se deve fazer para a autopreservação, sendo inapropriadamente chamadas leis, e a lei verdadeira que é: A palavra daquilo que tem direito de mando sobre outros. No entanto, se considerarmos os mesmos teoremas como transmitidos pela palavra de Deus, que tem o direito de mando sobre todas as coisas nesse caso serão propriamente chamados Leis (HOBBES, 2000, p. 135). Apesar de as leis da natureza serem feitas para preservar a paz, ainda assim não existe a garantia de que serão cumpridas, devido à turbulência das paixões humanas. Nesse ponto, Hobbes parte para a solução final que é a de erigir um Estado absoluto forte, para controlar nossas paixões e atuar em favor do instinto de preservação ainda não garantido pelas leis da natureza. Segundo Hobbes: As leis da natureza por si mesmas na ausência do temor de algum poder capaz de levá-las a ser respeitadas, são contrárias as nossas paixões naturais, as quais nos fazem tender para parcialidade, o orgulho, a vingança e coisas semelhantes e os pactos sem a espada não passam de palavras, sem força para dar a menor segurança a ninguém (HOBBES, 2000, p. 141). Nessa sequência, Hobbes acaba duvidando da capacidade do homem para se autogerir e, consequentemente, duvida da própria razão para controlar nossas paixões. Vimos que o contrato e o pacto são atos da vontade humana. Assim como estes, a entrega da autonomia a 44 um poder soberano também é obra da vontade, agindo em favor da autopreservação. As leis de natureza são tentativas de nos tirar do estado de guerra. A razão falha, em parte, nesse propósito e, incapaz de alcançar a paz, o homem delibera para entregar sua autonomia ao soberano. Só o poder externo coercitivo pode garantir-nos a paz. Cria-se, assim, o Leviatã ou Estado social artificial. 45 1.4 A NATUREZA HUMANA EM HOBBES: Pequeno Interlúdio. Um lobo perseguia um cordeirinho, e este procurou abrigo em um templo. Como o lobo o chamasse, argumentando que se ele ficasse ali, o sacerdote iria sacrificá-lo ao Deus, ele respondeu: “mas, para mim, é preferível ser sacrificado a um deus a perecer nas tuas garras” (ESOPO, 2008, p. 116) Antes de prosseguir a nossa análise, é oportuno pontuar alguns aspectos importantes da antropologia hobbesiana: 1. O homem comunga, com outras espécies, faculdades semelhantes: sensação, imaginação, recordação, experiência, prudência, paixão e desejos são comuns ao homem e a outras espécies animais. A matéria, o movimento, o bios perpassa, no início, tanto o homem quanto outros animais, significando a imersão inicial do homem na natureza. Hobbes não fala de alma, cogito, transcendência. Existe uma imanência original, que se encontra no corpo. O movimento, como lei física, é o que tudo inicia, e, nesse ponto, temos um Hobbes materialista e mecanicista. O homem tem uma natureza passional, comum a outras espécies, a qual retira de nós a autonomia de nos guiarmos pela razão; esta não nasce com o homem, mas se faz no homem; 2. A linguagem é o marco decisivo que nos torna singulares, a qual aparece na nossa espécie, e, através dela, ascendemos à razão; ela é pragmática, calculativa. Linguagem e razão estão sob o comando do instinto de autopreservação, que é um componente fundamental de nossa natureza passional. Só podemos falar do homem como dado antropológico, a partir da linguagem, portanto, a linguagem é a ponte entre a natureza e o relacional, ou ainda entre o bios e o anthropos; 3. A linguagem, por si só, não é suficiente para nos manter no status antropológico; é necessária a razão, e, mais ainda, a razão como método. A verdade nunca é absoluta quando humana, mas suficientemente consistente e delimitada, para nos fazer conhecer as causas e as consequências dos fenômenos. Nesse ponto, o homem é antropossocial, tentando distanciar-se da natureza; 46 4. A autopreservação é o que, em estado de natureza, faz-nos buscar poder e mais poder para se expandir. A autopreservação, no estado de natureza, tende à expansão e ao acúmulo de poder7; 5. Para assegurar a possibilidade de paz, Hobbes deduz, então, as leis da natureza. Se, sob a base do direito natural, o homem pode, hipoteticamente, mover-se e se expandir a expensas dos outros homens, já que todos nascem livres para buscar poder e mais poder, sob o limite das leis da natureza, que são regras da razão, em favor da busca da paz, o movimento encontra oposição, e somos obrigados a levar em consideração o outro. As leis da natureza criam a condição de possibilidade para convivermos em sociedade sem nos autoagredirmos. Elas dependem da linguagem e da razão para existirem, tentando retirar o homem do estado de natureza para o Estado social, criando, assim, o homem artificial. Para Hobbes, só no Estado social, ou seja, no antropossocial, é que o homem pode domesticar sua natureza sem limites, para buscar, nos atos morais, um convívio pacífico em sociedade. 6. Ao mesmo tempo em que nos fala sobre leis da razão e dos pactos, Hobbes começa a desconfiar desses artifícios, para garantir a paz. Ele nos remete ao poder da espada ou a um poder forte e soberano que pode dobrar nossa vontade, fazendo-nos cumprir contratos e pactos. A não confiança no homem e na sua razão leva, aos poucos, à solução radical, que é a entrega da autonomia e da capacidade de tentar sair do estado de natureza a um soberano com poderes absolutos. 7. Ígneos e temperados são duas biotipologias esboçadas, em De Cive, por Hobbes. Nessa divisão, podemos começar a conjecturar que existem naturezas humanas diferentes, com traços inatos, que predispõem uma maior ou menor agressividade. Consequentemente, a violência, de ordem social, tem relação com os temperamentos ígneos. Essa divisão não significa que estejamos trabalhando com dualismos, valoração tipo bons e maus, mas tentando compreender a complexidade da natureza humana, que não pode ser tomada como homogênea. 7 Segundo a lei da inércia, se um corpo não for parado por outro corpo, este tende a continuar em movimento contínuo. Assim, caso nada pare ou limite o movimento por busca de poder no estado de natureza, este continua até a destruição e subjugação de mais e mais corpos. É hipoteticamente, o estado de liberdade, que é a capacidade que um corpo tem de se mover ao infinito se não for parado por outro corpo. A isto Hobbes denomina estado de natureza onde o homem encontra-se sob o domínio de Bios. Neste estado existe a guerra de todos contra todos. Não existe bem ou mal, justiça e injustiça – só força, poder, paixão e expansão. A linguagem emerge das camadas do Bios, junto com a razão, mas esta não é suficiente para deter este movimento de destruição de uns por outros. 47 Hobbes nos conduz, então, ao monstro Leviatã, que tem, no arcabouço, o homem, com seus pactos e suas leis da razão, os quais vão se complexificando na sua incapacidade de conseguir a paz, até restar a cabeça e o cérebro do Leviatã, último esforço do homem para tentar conseguir a tão difícil paz. Está criado o ser artificial perfeito para Hobbes. Por vontade e deliberação humana, faça-se o Leviatã, nascendo, assim, o Estado que, em Hobbes, é a solução mais viável para alcançar a tão almejada paz no Estado social. Passemos agora a descrever o homem natural, em Hobbes, para melhor aprofundar sua antropologia e a relação desta com a agressividade. 48 1.5 O HOMEM NATURAL O bom sucesso dos malvados incentiva a muitos para a prática do mal (FEDRO, 2006, p. 58). Para construir seu projeto, Hobbes inicia por definir o corpo, o homem e o cidadão: “Do Bios ao Artifício”. Para Hobbes: A natureza do homem é a soma das suas faculdades e potências naturais, tais como as faculdades da nutrição, movimento, geração, sensação, razão, etc. Chamamos estas potências de naturais e elas estão contidas na definição do homem sob estas palavras: animal e racional (HOBBES, 2000, p. 12). O homem animal que nos interessa no momento liga-nos à natureza, e esta nos liga a outras espécies que possuem as mesmas faculdades, tais como: sensação, imaginação, paixão, experiência, prudência e preservação da vida. Em Hobbes, o homem é um animal como outros animais, e os animais de outras espécies não chegam a constituir sociedades políticas complexas, em função de suas paixões serem mais simples e estarem associadas à autopreservação de necessidades básicas, como excreção, alimentação, reprodução e sobrevivência8. Hobbes enumera alguns argumentos que diferenciam o homem de outras espécies: 1) a competição pela honra e pela dignidade não está presente em outras espécies; 2) estas últimas não diferenciam o bem comum do bem individual e, por natureza, tendem para o bem individual, o que acaba promovendo o bem comum. O homem tende a comparar e a tirar prazer do que é eminente; 3) em função de não possuir o uso da razão, não existe, em outras espécies, o julgamento do outro, enquanto o homem sempre se julga mais sábio; 4) os outros animais, que não o homem, não estão sujeitos aos males e aos vícios no uso da linguagem, os quais são inerentes ao homem; 8 O termo biologia (ao grego-bios e logos) foi introduzido por Lamarck em 1802 para designar, dentro do campo das ciências naturais, a ciência da vida animal e vegetal. Até então, era conhecido como “história natural”. Está presente na obra de Aristóteles e no renascimento se desdobrou em ramos distintos: botânica, morfologia, anatomia e fisiologia. Hobbes, através da real society, entrou em contacto com as mais recentes descobertas da anatomia e fisiologia, assim como Descartes, Jassenal, Mersenne. Não podemos delimitar o termo biologia como utilizado na época de Hobbes. Este termo passa a se tornar autônomo e a designar um ramo da ciência a partir de Spencer e Darwin. 49 5) a não distinção entre a injúria e o dano faz com que não exista o sentimento de ofensa em outras espécies; enquanto, na nossa, quanto mais satisfeitos, mais ofensivos somos; “por último, o acordo vigente entre essas criaturas é natural, ao passo que no homem surge apenas através do pacto, isto é, artificialmente”. (HOBBES, 2000, p. 143). Nessa passagem, é fundamental situar o que começa a definir aquilo que é propriamente humano: paixões, como vaidade, orgulho, vanglória, inveja, curiosidade, os quais não servem para garantir nossa sobrevivência, mas para aumentar nosso poder. Linguagem e razão possibilitam nomear conceitos, como justo, injusto, meu, seu, bem e mal, a religião, que nasce da curiosidade e da revelação divina, e, por fim, a necessidade do pacto ou do artifício, para tentarmos viver em paz, o que, para as outras espécies, é uma consequência de sua pertença à natureza. O homem rompe com a natureza e cria o Estado artificial. É no espaço das relações humanas, principalmente com a invenção da linguagem, que o homem definitivamente distancia-se de outras espécies. Longe de perceber Hobbes como defensor de instintos inatos, o que pode criar falsas analogias com o determinismo genético, como analisaremos mais adiante, a agressividade e, principalmente, a violência humana, inscrevem-se em uma ordem social. Podemos arriscar afirmar que existe uma biotipologia da agressividade em Hobbes, entre ígneos e temperados, que pode falar em favor de um componente inato relativo à agressividade. A criação de hábitos, pela socialização, que, em Hume (2000, p. 23), assume um significado fundamental dentro do comportamento humano; em Hobbes, já exerce um papel bastante relevante. Comparando um pouco com Aristóteles – de quem Hobbes tira “boa parte da teoria das paixões”9, apesar de tentar contrapor-se à filosofia aristotélica, principalmente, quando passa da “fisiologia para a ética e política” (MACPHERSON, 1970, p. 89) -, Hobbes não situa na razão, mas nos movimentos passionais do corpo, a causa das ações10. O homem é força corporal, passionalidade e experiência. A autoconservação ou preservação da vida é o fundamento desse corpo, e sua preservação é obtida através do poder natural e instrumental, que aumenta a potência do corpo, para obter possíveis bens futuros; no homem, associa-se às paixões que são complexificadas pela linguagem. Esse poder é o movimento ou a liberdade de mover-se no espaço, até outro corpo impedi-lo (lei da inércia). Glória, reputação, riqueza, 9 A retórica das paixões é uma das principais influências de Aristóteles na teoria das paixões de Hobbes (STRAUSS, 1963, p. 34). 10 Nesta diferença encontramos o determinismo hobbesiano que percebe o homem como um ser da natureza controlado por paixões e necessidades. 50 vanglória, vingança, competição, inveja, todas essas paixões levam ao movimento de poder invadir e, cada vez mais, ocupar o espaço do outro. Essa equação do poder assume uma dimensão geométrica, pois não são apenas a qualidade e a diversidade dos desejos que movem a busca por poder, mas a incerteza quanto a garantir os meios necessários para a sobrevivência que impele o homem a adquirir mais poder. Esse movimento ocorre até o limite em que a causa inicial encontra-se ameaçada pela morte. A preservação da vida e o acúmulo de poder criam, para Hobbes, algumas dificuldades, quais sejam: 1) a vida e sua manutenção são o princípio e a finalidade aos quais todo corpo ou ser vivo almeja; 2) o poder ou a expansão do movimento para a garantia dos meios de sobrevivência do corpo nos faz ameaçar, ou tirar o direito à vida de outros corpos; 3) no estado de natureza, todos são iguais e têm direito a garantir os meios para a manutenção da vida, da maneira como melhor aprouver; 4) o conflito, a guerra, a ameaça à vida do outro são as consequências lógicas desse movimento, inclusive, de quem acumula mais e mais, já que existem outros que serão lesados e tentam, por todos os meios, defenderem-se e reconquistarem o que foi usurpado; 5) nesse exato momento, sentindo a ameaça de morte, ou a iminência da privação do maior bem, a vida, a paixão do medo faz cessar esse movimento. Nesta passagem, o homem começa a deixar o estado passional de natureza e tenta entrar no Estado artificial dos pactos e das leis jurídicas11. Para Renato Janine Ribeiro, é a contradição das paixões que move o homem, que o faz viver. Podem-se reduzir os pares a multiplicidade das paixões: medo e esperança, aversão e desejo ou, em termos físicos, repulsa e atração. “Mas não é possível escutar a filosofia Hobbesiana pela nota só do medo, que não existe sem o contraponto da esperança” (RIBEIRO, 2004a, p. 23). Esperança de conseguir uma vida melhor, com os meios para usufruir um certo conforto e uma possibilidade de trabalho, porém, se seguirmos Strauss (2006, p. 89), o medo vence a esperança, sendo esta apenas um dever. O medo é real, é o hoje se projetando no amanhã. No teatro do estado de natureza, o medo é a grande sombra, sem o qual o lobo não teria freios; a razão é só um adorno para o medo. Para Strauss (2006, p. 98), 11 Para Thamy Pogrebinschi, esta é uma visão secularista. A leitura secularista de Hobbes centra-se no autointeresse, no medo e no direito. As referências bíblicas, abundantes no Leviathan, são descartadas por esta visão. Segundo a autora “o que é preponderante, portanto, nestas interpretações, é a imagem de um soberano absoluto e um conceito de obrigação que nascem do contrato social, ou melhor, do consenso dos homens que participam deste contrato” (POGREBINSCHI, 2003, p. 36). Neste aspecto esvazia-se o conteúdo religioso da obra de Hobbes e não se considera o papel da fé, além do medo, esperança, autopreservacão e razão como movimento que possibilitam a saída do estado de natureza. 51 Hobbes entende que o medo possibilita uma moralidade no homem. Ao ter medo do outro, da morte violenta, ele passa a tentar criar uma moral que preserve sua vida e a do outro. Uma convivência viável, mas, antes, o medo do outro, da agressividade e da violência faz com que o homem use a razão calculativa, pragmática, para tentar um acordo com outros homens. Paradoxalmente, a moral precisa do medo para frear a agressividade e a violência. Temos que sentir, na pele, a iminência da morte, para tentar fazer um acordo. A moral, em Hobbes, não se dá pela empatia, pela piedade, como em Rousseau, mas pelo medo, sendo heterônoma. Em relação a esse aspecto, Macpherson (1970) faz uma leitura equivocada de Hobbes, considerando que ele descreve a “Economia do individualismo possessivo”, quando fala do estado de natureza. Recorta apenas o aspecto do conflito, considerando-o uma característica competitiva da nascente burguesia, sob o aspecto econômico. Não considera o medo e a esperança, muito menos o movimento para sair desse estado, que tenta impor limites à acumulação desmedida de bens. Percebe, então, divisões na teoria Hobbesiana, com incompatibilidade entre o antropológico e o político. Macpherson (1970, p. 57-59) coloca que a psicofisiologia de Hobbes é diferente da ética e política. O homem e sua psicofisiologia são o homem da sociedade “do individualismo possessivo”, da classe burguesa, com sua avidez e competição econômica. Insere Hobbes e seus constructos em uma sociedade e época específicas, criando uma visão retrospectiva que é uma análise arbitrária. Em Strauss (2006, p.78), para Locke, existe uma definição concreta de um compromisso com a nascente sociedade burguesa; principalmente no que se refere à propriedade e à função do Estado; já em Hobbes, a solução política tenta limitar a acumulação do poder pela burguesia, através do poder soberano, para quem o Estado moderno nasce com a fusão de limitar o acúmulo de capital pela burguesia12. Strauss (2006, p. 98) coloca que o homem hobbesiano é uma mistura do ethos aristocrático e do burguês. Não enfatiza tanto os aspectos econômicos da burguesia, mas os morais, que estão longe de formar um “individualismo possessivo”. Vendo a burguesia como uma classe em ascensão, Strauss (2006, p. 78) diminui os efeitos da apropriação do capital, da acumulação primitiva, do ethos predador, para falar de uma nascente moralidade burguesa, que se contrapõe a um ethos aristocrático em decadência, Hobbes teria percebido essas transformações, e o estado de natureza torna-se o constructo desses movimentos históricos. Independentemente das interpretações de Macpherson e Strauss, ele permanece como núcleo 12 Pode-se até conjecturar que este aspecto em Hobbes vai de encontro ao liberalismo e fala a favor de uma maior intervenção do Estado na economia. 52 central do que estamos analisando até o momento em que as relações humanas ou a “criação do social” é um fato fundamental no processo de humanização, desenvolvimento da violência, das relações de poder. Continuando a seguir Hobbes para alicerçar nossos argumentos, o referido autor coloca que as paixões, no homem, são diversas e dependem da diferença da constituição do corpo e da educação. Como existem diferentes constituições do corpo e dos costumes, temos diversos tipos de paixões, e suas gradações vão da debilidade até a loucura, grau mínimo e máximo, a qual é o excesso que provém da vanglória ou do orgulho. Estes são tipos de combustíveis que fazem acender a fogueira da vontade de poder. Mais uma vez remetemos, principalmente, ao De Cive, onde temos a tipologia do homem temperado e ígneo. Podemos tentar construir a hipótese de que existe um fio que conduz Hobbes às neurociências e à Psiquiatria. Biotipologia, diferenças constitucionais, loucura e álcool (que Hobbes coloca como produzindo efeito igual à loucura), estão na raiz da violência? O lobo é um antissocial? Voltaremos a essas questões, aprofundando-as, mais adiante. Sobre a vanglória, que é loucura, Ribeiro (2004b, p. 34) indaga: O que causa a guerra? É a vanglória que nos indispõe a nos admitirmos iguais aos outros, forçando à defesa aqueles homens que são moderados e reconhecem a igualdade [...] No Leviatã, finalmente, a glória recua a terceira das causas beligeras, mas uma glória que é vanglória (RIBEIRO, 2004b, p. 214). Para Ribeiro (2004b. p. 67), no Leviatã, existe a contraposição entre o homem sensual e o generoso, e aqueles que estão dispostos a não cumprir normas e são guiados pelas paixões, principalmente a vanglória e o orgulho. Dentre as causas principais da discórdia, que são a competição, a desconfiança e a glória ou vanglória, os sensuais ou sem limites seriam os arautos da guerra. Mais uma vez reforçando que, apesar de, no Leviatã, Hobbes ter generalizado a guerra de todos contra todos como uma “tendência geral da humanidade” (HOBBES, 2000, p. 156), em outras obras (Elementos e, principalmente, De Cive), Hobbes complexifica o homem, e explora algumas possibilidades para a violência que não seja uma hiperbólica generalização de uma tendência da natureza humana. Retornando a análise do passional, uma visão detalhada das paixões, em Hobbes, revela-nos um movimento que nos arrasta para a guerra, e outro que nos leva a tentar a paz. A vida e sua autopreservação é o elemento que nos impulsiona para a guerra e a busca da paz. O estado de natureza, em que o homem pode usar seu próprio poder, da maneira como quiser, para sua própria preservação, utilizando julgamento e razão individuais, é o espaço de exercício deste poder. No estado de natureza, a liberdade é caracterizada pela ausência de 53 impedimentos externos: liberdade significa, em sentido próprio, a ausência de oposição (entendemos, por oposição, os impedimentos externos ao movimento, a qual não se aplica menos às criaturas irracionais e inanimadas que às racionais). O livre arbítrio é, portanto, a ausência de impedimentos de fazer o que o homem tem vontade, desejo ou inclinação. Assim como a liberdade e a necessidade são compatíveis, não podemos inferir que existe uma liberdade absoluta no homem. O medo e a necessidade nos obrigam a praticar, ou não, determinado ato, e, mesmo em estado de natureza, essa liberdade não é total. A liberdade e a necessidade são compatíveis: tal como as águas não tinham apenas a liberdade, mas também a necessidade de descer pelo canal, assim também as ações que os homens voluntariamente praticam, dado que derivam de sua vontade, derivam da liberdade; ao mesmo tempo em que, dado que os atos da vontade de todo homem, assim como todo desejo e inclinação, derivam de alguma causa, e essa de uma outra causa, numa cadeia contínua (cujo primeiro ela está na mão de Deus, a primeira de todas as causas) elas derivam também da necessidade (HOBBES, 2000, p. 172). Como já foi relatado, no estado de natureza, existe uma guerra generalizada, o que faz com que o uso dessa liberdade, em estado natural, provoque o medo da morte, que vai de encontro à preservação da vida. No Estado social, com a criação do Leviatã, não podemos mais falar da liberdade do homem, mas do súdito. Podemos extrair, então, que o uso inadequado da liberdade leva o homem à guerra, ao medo da morte e à destruição. Hobbes distancia-se da eudemonia aristotélica, cuja razão nos guia para um bom uso da liberdade. O homem, animal político, em Aristóteles, ao fazer uso da razão, atinge o estado de autarquia, tornando-se, assim, um cidadão livre e responsável. O modelo Hobbesiano é totalmente diferente do aristotélico, que parte da família como sociedade natural até chegar ao Estado, como meio de realização maior do homem, sendo uma evolução natural, e não um pacto por medo, a criação do Estado. Para Matos (2007, p. 87), Hobbes procede considerando o homem um artista, capaz de criar o homem artificial como solução para a passionalidade e a agressividade sem limites em estado de natureza, o que o diferencia totalmente da tradição aristotélica. O artifício, em Hobbes, introduz, no homem, uma dimensão de corte e transformação de sua pertença à natureza. O homem refaz a natureza, criação imperfeita, e a si próprio, como natureza imperfeita. No capítulo XVI do Leviatã, Hobbes fala sobre pessoa natural, quando discorre através de suas próprias palavras, e pessoa artificial, quando cita através da palavra de outros. Ator e autor, o homem recria a si e a natureza, para viver em sociedade. Nesse aspecto, a sociedade 54 civil é obra do homem, um artifício para melhorar a natureza, que é imperfeita e faz do homem um ser querelante e movido pela disputa e glória. Existe, assim, um corte entre o homem natural e o artificial. O artificial utiliza o texto criado por ele mesmo (autor) e o executa como súdito. Podemos até conjecturar, se o “processo civilizatório” de Elias não se encontra na formação do homem natural em homem artificial. O Estado Hobbesiano cria um outro homem, artificial. Vamos analisar, seguindo Hobbes, mais um pouco, esse estado de natureza, para pontuar a passagem do homem natural para o artificial. No capítulo XIII do Leviatã, Hobbes tece os fios que consolidarão sua visão antropológica do homem passional e belicoso. Poderá parecer estranho a alguém que não tenha considerado bem estas coisas que a natureza tenha assim dissociado os homens, tornando-os capazes de atacar-se e destruírem-se uns aos outros. E poderá, portanto talvez desejar, não confiando nesta inferência, feita a partir das paixões, que a mesma seja confirmada pela experiência (HOBBES, 2000, p. 109). Nesta passagem, Hobbes nos convida a olhar nossa realidade ou parar um pouco para uma auto-reflexão e diz: Que seja, portanto ele a considerar-se a si mesmo, que quando empreende uma viagem se arma e procura ir bem acompanhado, que quando vai dormir fecha suas portas, que mesmo quando está em casa tranca os seus cofres, isto mesmo sabendo que existem leis e funcionários públicos armados, prontos a vingar qualquer injúria que possa ser feita (Hobbes, 2000, p. 109). Esse homem passional, cujo poder é cumulativo, buscando sempre mais poder, é o homem em estado de natureza. O estado de natureza é povoado por lobos, homens ígneos e temperados, uns desejando somente o necessário, outros, tudo, criando excedentes e gerando a “parte maldita” (BATAILLE, 2005, p. 26). Hobbes busca, no mar, seu monstro: abre a Bíblia, a mitologia caldeia e outras mais antigas e acha o Leviatã. Falta agora o principal passo: transformá-lo em máquina e introduzi-lo no século XVII, mas antes tentaremos ir mais fundo neste estado de natureza. Precisamos fazer uma consideração importante, para não ficar ambígua nossa linha de raciocínio. Ao seguirmos comentadores, principalmente Zarka, percebemos que existe uma tendência em colocar a violência como relacional. O homem entra na ordem da linguagem, da razão calculativa, produz conhecimento, cultura, complexifica suas relações. Existem paixões relacionais, como vimos: a vaidade, a inveja, o orgulho, a crueldade, que é inerente ao homem 55 e ao acúmulo de poder. Concomitantemente, localizamos, em Hobbes, uma formação de biotipologias, tipos temperados e ígneos, e, no Leviatã, as diferenças de constituição respondem por desejos e paixões diferentes. Agora podemos fazer um link entre genes e fenótipo. Vamos aprofundar este tema mais adiante, mas a solução não é tão simples. Utilizando o próprio Hobbes, temos várias possibilidades interpretativas que levam a perceber que o autor tenta construir uma interação na natureza humana, entre constituição, paixões e relações sociais. Fica complicado conjecturar, porque Hobbes não deu sequência a esta biotipologia em outros escritos, mas, mesmo assim, ele remete a diferentes constituições e tipos de paixões. Só a título de hipótese, podemos colocar que, com a divisão em homens ígneos e temperados, ocorre uma inscrição de temperamentos humanos na genética e na neurobiologia. A agressividade, que faz parte da herança biológica, encontra nesses tipos uma expressão diferente. Os ígneos são mais agressivos, os temperados usam a agressividade para fins de defesa, sobrevivência, reprodução, enquanto os ígneos, junto a paixões, como vanglória, vontade de poder, inveja, competição, formam a base para uma sociedade violenta. Sendo assim, a violência é componente de relações sociais instauradas por homens ígneos. São conjecturas, Hobbes não expressou este pensamento, mas podemos tentar extrair de sua leitura esta linha de raciocínio. Entraremos agora no estado de natureza, em que Hobbes tece o teatro de horrores. A crueldade que leva ao medo da morte violenta. Seguiremos esses passos. 56 1.6 O ESTADO DE NATUREZA Olá, vovó. Estou trazendo um pão e uma garrafa de leite. Ponha na despensa, minha filha. E traga um pouco de carne que há lá com a garrafa de vinho que está na prateleira. Havia um gatinho na sala que espiou comer e disse: ”Eca! É preciso ser uma porca para comer a carne e beber o sangue da vovó” “Tire a roupa, minha filha”, disse o lobo, ”e venha para a cama comigo” (ANÔNIMO, apud TATAR, 2004, Chapeuzinho Vermelho, p. 334). A ideia do direito natural, iniciada na época clássica, continuou na Idade Média e, a partir de Hugo Grócio (1588-1625), foi consolidada, principalmente, a partir do livro De Iure Belli ac pacis, de 1625. Hobbes, assim como Spinoza, Locke, Rousseau e Kant que talvez seja um dos mais importantes jusnaturalistas, antes do questionamento desta doutrina por Hegel, fazem parte da escola do direito natural moderno, apesar das concepções filosóficas diferentes. O direito natural moderno pode ser considerado uma unidade caracterizada por razão e método sendo não metafísico, ontológico e ideológico. Para Bobbio (1991, p. 78), historicamente, o direito natural é uma tentativa de dar uma resposta tranquilizadora às consequências corrosivas que os libertinos tinham retirado da crise do universalismo religioso, sendo assim uma reação ao pirronismo moral e ao relativismo ético. Hobbes utilizou o novo direito natural que remonta a Grócio, para deduzir sua teoria do homem no estado de natureza e Estado social, criando um modelo dicotômico: ou o homem vive no estado de natureza, ou vive no Estado civil. Bobbio diz: A contraposição entre os dois estados consistente no fato de serem os elementos constitutivos do primeiro indivíduo singulares, isolados, não associados, embora associáveis, que atuam de fato seguindo não a razão (que permanece oculta ou impotente), mas as paixões, os instintos ou os interesses […] (BOBBIO, 1991, p. 39). Para Bobbio (1991), o Leviatã (1651), descreve o estado de natureza em três circunstâncias: 1) nas sociedades ditas primitivas, incluindo os povos bárbaros da Antiguidade e os indígenas da contemporaneidade, cuja existência Hobbes conheceu através dos relatos dos grandes navegadores; 2) na guerra civil, quando impera, dentro de um Estado constituído, a anarquia; 3) nas guerras e nos conflitos entre Estados. Essas três situações Bobbio denomina de sociedade pré-estatal, antiestatal e inter-estatal, respectivamente. No Leviatã (1651), Hobbes refere-se a essas três situações, tendo, inclusive, vivenciado a segunda antiestatal na Inglaterra. 57 Poderá porventura pensar-se que nunca existiu um tal tempo, nem uma condição de guerra como esta, e acredito que jamais tenha sido geralmente assim. Porque os povos selvagens de muitos lugares da América, com exceção do governo de pequenas famílias, cuja concórdia depende da concupiscência natural, não possuem nenhuma espécie de governo, e vivem em nossos dias daquela maneira embrutecida que acima referi. Seja como for, é fácil conceber qual seria o gênero de vida quando não havia poder comum a recear, através do gênero de vida em que os homens que anteriormente viveram sob um governo pacífico costumavam deixar-se cair, numa guerra civil (HOBBES, 2000, p. 110). Segundo Bobbio (1991, p. 98-99), existem variações sobre os temas fundamentais, no que se refere ao estado de natureza hobbesiano: na primeira variação, o estado de natureza seria um fato historicamente determinado ou socialmente imaginado, na segunda, pontua-se a belicosidade ou harmonia deste estado, e, na terceira variação, refere-se ao indivíduo isolado ou em sociedade, ainda que seja primitiva. Na primeira versão, o estado de natureza, em Hobbes, é parcial, não universal e circunscrito a certas relações entre os homens ou grupos. Nesse aspecto, diferentemente de Rousseau, para o qual esse estado nunca existiu, para Hobbes, é uma hipótese baseada em fatos empíricos de certos momentos específicos da História, em que não existe, um Estado jurídico forte. Em todas as situações descritas, o estado de natureza é caracterizado pelo egoísmo individualista, acarretando uma agressividade contínua entre os homens. Bobbio, em relação à belicosidade ou harmonia do estado de natureza, afirma que: Na figuração Hobbesiana do estado de natureza, confluem três inspirações diversas: a representação do estado ferino da sociedade humana, segundo a concepção epicuriana transmitida por Lucrecio no quinto livre do De Rerum Natura; as descrições dos viajantes ao Novo Mundo, que foram documentadas, de modo amplo e admirável por Landucci; e as vivas impressões da guerra civil inglesa (BOBBIO, 1991, p. 50).13 Em relação ao fato de o estado de natureza ser individual ou social, as teorias jusnaturalistas se inspiram em princípios individualistas. A criação da sociedade política seria, portanto, uma criação dos indivíduos. Ao contrário da teoria aristotélica, em que há uma continuidade, passando por indivíduo, famílias e grupos (ARISTÓTELES), neste modelo, a sociedade política é diversa da natural, sendo um corte ou uma criação artificial, advindo, assim, a dicotomização entre estado de natureza e social. 13 Bobbio se refere aqui ao livro de Sergio LANDUCCI, I filosofi e i Selvaggi, 1580-1780. Torino: Einaudi, 1970. 58 Para Bobbio (1991, p. 3-8), alguns autores, principalmente depois de Hegel e Marx, consideram o estado de natureza como um constructo da formação da burguesia, principalmente sob o aspecto econômico. Já citamos Macpherson (1970), que constrói uma teoria do individualismo possessivo em cima do estado de natureza. No modelo Hegelianomarxista, citando Bobbio (1991, p. 5), artifícios, como contrato, pactos, dicotomia, estado de natureza e estado civil não têm significado. Na realidade, o movimento da história, da luta de classes e da economia é o que deve ser analisado. A relação homem-natureza é de transformação e criação. Não existe uma dicotomia entre natureza-cultura, mas uma relação mediada pelo homem, que transforma a natureza e modifica-se. Bobbio (1991, p. 15) pontua que o homines oeconomici tem relações entre si iguais e independentes. Com a dissolução dos laços feudais de clientela e do modelo familiar, tanto o greco-romano, quanto o feudal, a família tende a deixar de ser instituição econômica para tornar-se lugar de “afeto e educação” (ÁRIES, 1987, p. 98). Bobbio (1991, p. 14) vê, neste movimento histórico, um terreno fértil para o modelo jusnaturalista, que passa a expressar as relações econômicas e o individualismo da classe burguesa em ascensão. Mas Hobbes não pode ser reduzido a uma crítica histórica parcial, que não leva em consideração a complexidade do seu pensamento. Hobbes, segundo Bobbio, pode ser considerado o pai do jusnaturalismo moderno, já que Grócio ainda utiliza referências do jusnaturalismo medieval. É fundamental que, para marcar bem o homem natural de Hobbes, possamos recapitular alguns conceitos básicos no que se refere às faculdades corporais: passionalidade, liberdade, movimento, poder e guerra de todos contra todos. A conservação da vida humana é o alicerce deste arcabouço teórico. Pela conservação, o poder conquista, invade, orgulha-se, vangloria-se e torna o estado de natureza o espaço de uma luta sem trégua, sendo que, até o tempo em que não existe luta seja um tempo de preparação para ela. O medo, unido a uma tênue esperança de uma vida mais confortável, impele o homem natural a pôr fim à guerra, para dar um basta a sua própria insegurança e destruição. Segundo Ribeiro: O medo é das principais experiências que temos de nossa condição. Revela ao homem, no estado natural, que este é insustentável: por natureza cada indivíduo quer expandir-se; mas fazendo-o, entra em guerra com os outros. A morte violenta, resultado da própria natureza humana, limita-a brutalmente: vivemos a temê-la; até novo estado, o medo é a paixão que melhor nos define. “Depois, porém, contêm-se o temor à morte bruta, ao qual não se compara o novo medo, ao soberano: com ser discricionário, este é discreto e se levarmos uma vida retirada” estaremos tranquilos (RIBEIRO, 2004b, p. 295). Para Bobbio (1991, p. 98), o homem, na antropologia Hobbesiana, não é um valor absoluto. Não existe propriamente uma moral no estado de natureza, e esta é um produto da 59 invenção da linguagem e da razão e, principalmente, do Estado social. O realismo Hobbesiano coloca o homem como um ser passional e mesquinho no estado de natureza, não cabendo a essa antropologia a problemática da maldade, já que bem e mal são nomes ou marcas postas pela criação da linguagem14. Para Bobbio, no Leviathan: O homem é um ser da natureza, determinado por leis mecânicas, dominado por paixões inatas e prepotentes que configuram de modo irrevogável sua posição no mundo. A paixão mais característica do homem é, talvez, na antropologia de Hobbes, a vaidade: mais a vaidade do que o interesse, ou seja, mais o prazer de ser estimados e honrados pelos outros do que de tirar vantagens deles, sendo que a vaidade é o prazer da alma, enquanto o interesse é o prazer dos sentidos […] (BOBBIO, 1991, p. 85). Autores como Bobbio e Skinner consideram que Hobbes absorveu uma antropologia humanística que deve muito aos autores clássicos. Sendo que aponta não apenas para o trágico, mas, sobretudo, para o ridículo ou satírico da condição humana. Nessa passagem sutil entre o estado de natureza para o Estado social, ou do homem natural para o artificial, encontramos dois aspectos de nossas paixões que podem ser considerados como propulsores do movimento de passagem da nossa passionalidade para nossa racionalidade: a busca e a curiosidade. O que se pode dizer da moralidade no estado de natureza, não podemos falar de moral. Na luta de todos contra todos, não existem valores morais. Hobbes fala de preço ou valor que uma atitude tem em relação a outra. Todo homem tem seu preço, dependendo do valor que outros dão a determinada ação, sendo assim matar, trair, competir, ser generoso ou altruísta só pode ser valorizado sob o prisma do interesse do outro, que observa e coloca um preço na ação. Sem leis naturais e jurídicas e uma força maior que as façam cumprir, não se pode falar de moral, que, no Leviatã, não é apriorística, não nasce com o homem nem muito menos é corolário dele em estado de natureza, mas depende da sociedade política. O homem passional é, portanto, um ser amoral. Mesmo utilizando-se do recurso das leis naturais provenientes de Deus, no estado de natureza, o homem não é capaz de, em foro externo, cumpri-las. Essas leis, que são preceitos morais, mesmo funcionando em foro interno, não garantem sua execução, não sendo suficiente para fazer cumprir os pactos. 14 A leitura teológica de Hobbes coloca Deus como criador das leis da natureza, estas leis são morais e prescrevem in foro interno, normas de conduta para o homem. Como a natureza vem de Deus, assim como as leis, estas seriam transcendentes. Sobre isso ver o clássico: SCHMITT, C. Teologia Política, Belo Horizonte: Del Rey, 2006. 60 Para Hobbes, no estado de natureza, “as noções de bem e de mal, de justiça e injustiça, não podem aí ter lugar. Onde não há poder comum, não há lei, e onde não há lei, não há injustiça” (HOBBES, 2000, p. 110). Sendo assim, o homem natural, apesar de leis ou normas, necessita do poder da espada para cumpri-las, pois sua passionalidade não garante a obediência às leis da natureza. O homem as vislumbra, mas as paixões as obscurecem. Nesse ponto, o artífice se faz presente. Para corrigir uma natureza defeituosa e palco das paixões mais baixas, segundo Bobbio (1991, p. 28), o homem torna-se um relojoeiro e arquiteto. Como já citamos, cria-se a grande máquina (Schmitt, 2002, p. 98), para corrigir as imperfeições da natureza. Sua razão calcula, pede ajuda a Deus e treme: de indivíduo para indivíduo, ocorre um pacto de submissão. O súdito, que está na máquina, transforma-se no homem, que é um Deus para o homem, citado no início Do Cidadão. Na realidade, o homem é o autor de um palco, e o Estado Social é um texto a que os atores devem ser obedientes e submissos. Se não advém a morte e a esperança, perde-se. O lobo torna-se um súdito obediente. O sarcasmo de Hobbes evita soluções tão óbvias. O lobo é cínico, assim como os “recursos de eloquência de Hobbes (SKINNER, 1999, p. 34). E a violência e a agressividade? O monstro marítimo será capaz de acalmá-las? Neste momento da história, o lobo transformase em súdito. O Leviathan surge com todo esplendor. Concentração total do poder. Mas, eis que surge Beehemoth. Tentaremos agora concluir essa história e tirar um conceito sobre a agressividade e a violência na obra de Hobbes. Porém, fica a pergunta. Depois do De Cive, Hobbes supõe que os temperados apenas reagem aos ígneos, e a desconfiança se espalha. A competição, motor dos ígneos, é o princípio de tudo. Do lado destes, a vanglória e a competição. Os temperados desconfiam e se defendem. Essa dialética não está explícita em Hobbes, mas fornece uma pista. O Estado domestica o homem, pelo medo, transformando-o em cidadão? Esta transformação ocorre de fato? E a agressividade e a violência, presentes no homem natural, continuam a existir no Estado social? 61 1.7 AGRESSIVIDADE E VIOLÊNCIA EM HOBBES Podemos extrair conceitos sobre agressividade e violência em Hobbes? O modelo Hobbesiano gira ao redor do tema agressividade, violência, morte e poder. Não existe divisão entre agressividade e violência, a qual ocorrerá, principalmente, a partir do século XIX, com o advento da teoria da evolução. Ao falar sobre Hobbes, utilizaremos agressão e violência como um conceito único, já que nele não se encontra distinção, mas esse fato não impede que tentemos criar conjecturas e extrair do referido autor um eixo para a questão. Como vimos, Hobbes desde Os Elementos (2002), constrói uma psicofisiologia do homem, que parte das sensações até chegar a apetites, como desejo e aversão. Uma mistura da teoria das paixões de Aristóteles e das descobertas da ciência dos séculos XVI e XVII, principalmente de Harvey, na fisiologia de Vesálio, na anatomia e de Galileu, na física. A base de sua psicofisiologia é o movimento dos corpos. No De Corpore, faz toda uma análise, ao estudar o homem a partir de princípios geométricos, e seu constructo, até o De Homine, segue esta lógica, com poucas variações. No De Cive, segundo Bobbio (1991, p. 35), uma das obras políticas mais importantes de Hobbes, ele introduz diretamente o homem no estado de natureza, falando sobre insociabilidade natural, disputa, desejo mútuo em ferir-se, competição e uma tendência inata para a agressividade (HOBBES, 1998, p. 109-119). Na mesma obra, Hobbes (1998, p. 114) fala sobre temperad man e fiery spirit, tentando descrever duas biotipologias para o homem, sendo a segunda a causa da agressividade e violência, já que o temperad man apenas defendese. No De Cive, Hobbes (1998, p. 113) chega, inclusive, a supor que homens violentos podem existir em quantidade menor que temperados, mas a competição e a discórdia que eles provocam acarretam uma guerra generalizada. No Leviathan, capítulo XI, Hobbes assume a famosa posição “hiperbólica” (MARTINICH, 2005, p. 58), em que “todos os homens no estado de natureza têm uma tendência geral para a guerra, que é decorrente do desejo de poder generalizado”. Mas, no próprio Leviathan, (capítulo VIII, p. 74), Hobbes cita homens com pouco desejo e com muito desejo. Essas inclinações dependem da constituição e da disposição dos órgãos dos sentidos, que faz os homens desejarem objetos diferentes (Hobbes, 2000, p. 74). No De Corpore, Hobbes chega a esboçar uma localização anatômica para as sensações, inclusive para a “produção de fantasmas” (Hobbes, 2000, p. 216), que é a impressão causada pela sensação, quando o objeto encontra-se ausente. Podemos arriscar que Hobbes tenta 62 antecipar as neurociências e as ciências do comportamento, inclusive a Psiquiatria, quando remete tendências de personalidade à constituição cerebral e à loucura, principalmente a vanglória - decorrente do excesso de loucura - causas da agressividade e violência? É um risco, com certeza. Hobbes não tinha esses elementos em mente quando escreveu. A liberdade natural ou ausência de um Estado forte é um artifício utilizado por Hobbes para argumentar que a passionalidade do homem é destrutiva, e, por consequência, quando nada impede o exercício da liberdade, ela tende a tornar o homem violento, competitivo e querelante. Martinich (2005, p. 98) coloca que o argumento da liberdade e do direito natural é o ponto de partida para Hobbes tecer os fios de nossa passionalidade violenta e competitiva, mas podemos tentar imaginar que todos não são iguais, existem diferenças de constituição, educação, objetos de desejo. Liberdade e igualdade naturais são responsáveis pela competição, desconfiança e glória. Em obras, como De Cive, Hobbes enfatiza a vanglória, que é um exagero fantasioso de avaliação do poder de um individuo por outros, e este indivíduo age como se fosse e tivesse mais poder que possui na realidade. Nos Elementos, Hobbes cita o exemplo da fábula da mosca “que se senta sobre um eixo da roda e diz para si mesma: Quanta poeira eu faço levantar!” (HOBBES, 2002, p. 58). A glória, nos Elementos, é descrita como glorificação ou triunfo interior da mente. É aquela paixão que procede da imaginação ou concepção do nosso próprio poder (Power) sobre o poder daquele que está em disputa conosco (HOBBES, 2002, p. 58). O Orgulho é o resultado de desagradar às atitudes de glória por parte de um terceiro. No De Cive, o temperamento ígneo está associado à vanglória, e, no Leviathan, da vanglória à loucura, cabendo à glória ser uma das três causas da guerra de todos contra todos no estado de natureza. Voltando a Zarka (1999, p. 294), toda essa dinâmica passional é relacional. O desejo de poder, que visa ao domínio do outro, é quem opera essa transformação e dinâmica nas relações, levando ao estado de guerra. O ponto de partida é a liberdade e a igualdade naturais. Para Zarka (1999, p. 297), “Le désir de puissance se revele donc comme libido dominandi”. Glória, vanglória, orgulho, inveja, ciúme, crueldade e disputa decorrem do desejo de poder, que, para Zarka (1999, p. 79), é um dos pilares da metafísica Hobbesiana, que também será desenvolvida por Espinosa, que parte do mesmo princípio: o conatus. Na realidade, a autopreservação é a força e o movimento primordial, que leva o homem hobbesiano ao desejo de poder. Coloque-se a hipótese de uma liberdade e direitos naturais irrestritos, em uma natureza passional, e teremos, então, conflitos permanentes. 63 Mas, temos a constituição, os temperados e ígneos, que levam a diferentes caminhos para os desejos. Um temperado se contenta em viver em paz, não deseja uma escalada de poder e mais poder, tem virtudes, como cooperação e altruísmo, compaixão. Ocorre, na realidade, uma dinâmica não desenvolvida em Hobbes. Entre grupos, a causa dos ígneos deterem o poder e partirem para o ataque não se encontra explicada, só sugerida no De Cive. E esses temperamentos ígneos têm influência genética? Podemos aproximá-los dos atuais psicopatas? Por que a sociedade reforça esse tipo de comportamento predador? Independente das respostas, para sair deste estado, só o artifício, o pacto, ou melhor, a espada ou “a figura de um poder soberano forte e decisionista” (SCHMITT, 1992, p. 26-40). O Estado-máquina converte lobos em súditos, transformando o homem-lobo-do-homem em homem-Deus-para-o-homem (HOBBES, 2004, p. 11). Carl Schmitt (1992, p. 88-89) coloca que o Estado-máquina não transforma os lobos; o Deus-Máquina continua sendo composto por lobos, medrosos e obedientes diante da ameaça de morte, mas lobos traiçoeiros, travestidos de súditos. A máquina estatal, com suas leis e espada do rei podem adoecer. O próprio rei pode corromper-se. Hobbes (2000, p. 271) ironiza o Leviathan, quando coloca que tem esperança de que a obra venha cair nas mãos de um soberano, e este transforme “esta verdade especulativa na utilidade da prática” (2000, p. 271). Esse estilo irônico e sarcástico é uma das marcas de Hobbes, segundo Skinner (1999, p. 145)15. Podemos, ainda, seguindo Schmitt (1992, p. 51-62), interpretar a política, em Hobbes, como a formação da polaridade amigo-inimigo, que funda o político, que, para Schmitt (1994, p. 55), é a essência da luta e das disputas. Nesse aspecto, modificando o individualismo de Hobbes e substituindo-o pela divisão de grupos dentro da política, a guerra de todos contra todos se transforma, em Schmitt (1992, p. 56-58), no antagonismo amigo-inimigo. O político precede o Estado e é responsável pela formação da sociedade. O núcleo da formação política gira em torno do antagonismo amigo-inimigo. Assim como Hobbes, Schmitt (1992, p. 59) é um realista. A criação da visão antropológica realista, que coloca o homem como uma espécie passional, querelante, agressiva e violenta, sem intermediação de uma visão teológica do pecado original, remonta, para Schmitt (1992, p. 88-89), a Maquiavel, passando por Hobbes, Bossuet, Fichte, de Maistre, Donoso Cortes, Taine e Hegel, o que Schmitt considera ‘Bifronte’, por utilizar a dialética para mostrar a polaridade negativa e positiva do homem. 15 Para Skinner (1999), no Leviathan, Hobbes retoma elementos da retórica clássica, principalmente de Cícero e Tertuliano, deixando um pouco de lado a linguagem cientifica presente nos Elementos e no De Cive, Hobbes retoma no Leviathan argumentos da retórica clássica, como o sarcasmo e a ironia, por exemplo, para tornar a obra mais acessível ao leitor. 64 Podemos concluir, provisoriamente, que extrair de Hobbes que papel desempenha a agressividade e a violência na sua obra, não é uma tarefa simples, principalmente se utilizarmos alguns comentadores. Primeiro como já vimos, não há distinção entre agressividade e violência em Hobbes. Apesar de comentadores, como Zarka, colocarem o aspecto relacional, a criação da linguagem e a intersubjetividade como espaço para o desenvolvimento da agressividade e violência, não podemos concluir que Hobbes não remeta estas a um fator inato, genético. Existe, em sua obra, ao menos, um esboço de tipologias de naturezas humanas, como o temperado e o ígneo, o que parece remeter a um componente inato, ou, para trazer o debate para hoje, genético. Em Hobbes, apesar de a linguagem nos diferenciar de outras espécies, as paixões, inclusive a deliberação, une-nos a nossa herança animal. Existe um substrato comum passional, e vale lembrar que a paixão do medo é a que nos tenta retirar dessa herança animal, mas podemos concordar com Zarka, em parte, quando ele coloca que a linguagem introduz um elemento novo, relacional, no homem, e, através da linguagem, as paixões modificam-se. A invenção da machina machinarum de Schmitt é a grande prova do poder de criação do homem frente a outras espécies, porém o próprio Schmitt coloca que o lobo continua existindo dentro da máquina, então, Schmitt transforma a guerra de todos contra todos no antagonismo amigo-inimigo. A violência é política e entre grupos; este modelo, de outra maneira, será retomado pela etologia, sociobiologia, psicologia evolutiva, e Clastres (2003, p. 37) o usará para caracterizar a luta da “Sociedade contra o Estado”. O poder do Estado exerce uma violência que coloca limites e freios á paixão humana. Seja a sociedade contra o Estado, de Clastres, ou a violência simbólica contra o real do estado de natureza, podemos conjecturar que a violência, em Hobbes possui uma negatividade e positividade. Encontra-se disseminada no estado de natureza, precisa do Estado e do poder da espada para ter limites. O medo, em Hobbes, faz esta ponte entre a violência e guerra de todos contra todos e a violência do Estado. Fechando provisoriamente o tema, em Hobbes, podemos colocar que são paixões como desejo de poder, vanglória, disputa, inveja, ambição, principalmente, que se desenvolvem através das relações interpessoais e serão responsáveis pela violência, que é um produto do desejo e da criação da linguagem. E esta diz respeito à socialização do homem. Em relação à agressividade, podemos arriscar que ele tenta esboçar alguns componentes inatos, quando fala de constituição do corpo, poder natural, ígneos e temperados. Com um pouco de esforço, tentamos delimitar, em Hobbes, que ele parte de uma construção da agressividade, como 65 biológica e da violência, como social. O estado de natureza remete a indivíduos, mas estes se unem por interesse; instala-se a violência nesta passagem. Que o homem desenhado por Hobbes é violento, disso não temos dúvida, mas os seus constructos remetem a uma época: ao século XVII. A ciência, como diz Schmitt (2004, p. 37), começa a substituir a teologia com explicação do mundo. Hobbes “fundou a ciência política” (BOBBIO, 1991, p. 87). Viu a liberdade como um mal, a necessidade como sombra da liberdade, direitos como motivações para desejar as mesmas coisas com igualdade. Estamos no século XVII, Behemoth assombra a Europa, cujo sistema feudal está em dissolução. O rei e a soberania são necessários para organizar esse caos. O ethos aristocrático começa a ser transformado. Destes escombros surge o ethos burguês. Como diz Magalhães (2008, p. 4), duas éticas se superpõem: uma antiga e outra em formação. A violência é uma realidade para Hobbes, no século XVII. A sociedade do século XVII é violenta, o homem tem uma agressividade inata, mas esta não é apenas negativa nem leva necessariamente à violência destrutiva e transgressora. No momento, fiquemos com estas considerações. Hobbes, o lobo, o medo, Leviatã e Beheemoth agora cedem lugar ao selvagem, à criança e à vontade geral. Em breve, esses personagens voltarão a encontrar-se. Passaremos agora a analisar Rousseau. 66 CAP. 2 ROUSSEAU: Do Bom Selvagem ao Contrato Social “Farejo o sangue de um inglês. Esteja vivo ou morto, doente ou são, vou raspar-lhe os ossos e comer com pão” (JACOBS, apud TATAR, 2004, João e o pé de feijão, p. 143). Em Rousseau, existe uma antropologia que se desdobra em três etapas: na primeira, o homem no estado de natureza encontra-se nos primórdios da História, sendo concebido com restritas necessidades; a linguagem dos gestos predominando sobre a linguagem oral articulada; relação com a natureza baseada no aproveitamento dos dons oferecidos por esta; piedade e amor a si. Em um segundo momento, que tem como marco a propriedade, instaurase o processo de desigualdade entre os homens, daí origina-se a formação dos magistrados e das leis. O despotismo seria o derradeiro passo no aprofundamento da desigualdade na sociedade civil. No terceiro momento, através do contrato social e da educação, tenta-se corrigir os desvios produzidos pela sociedade civil. Deste modo, como observa Bobbio: A posição de Rousseau é complexa, porque sua concepção do desenvolvimento histórico não é diádica – estado de natureza ou sociedade civil – como no caso dos escritores precedentes (Hobbes, Locke, Puffendorf), sendo que o primeiro momento é negativo e o segundo positivo, mas triádica – estado de natureza, sociedade civil, república (fundada no contrato social), em que o momento negativo, que é o segundo, aparece colocado entre dois momentos positivos (BOBBIO; BOVERO, 1996, p. 55). A vontade geral é a instância reguladora do homem que, através do contrato, passa a ser configurado como um ser moral e racional que pode, enfim, usufruir os benefícios da socialização. Para viabilizar esse projeto, Rousseau prepara um processo pedagógico que se encontra desenvolvido em O Emílio. Em Rousseau, existe, portanto, um desdobramento do homem que passa por três estágios: estado de natureza, sociedade civil, e, através do contrato social e da educação, o Estado. Segundo Bobbio, o estado de natureza é representado como estado a-histórico por Rousseau, que, na primeira parte do Discurso sobre a origem das desigualdades entre os homens de 1753, identificando o estado de natureza como o estado primitivo da humanidade, inspira-se, como se sabe, na literatura sobre o “bom selvagem”, mas trata-se de uma hipótese teórica que tem uma função exemplar, na medida em que deve servir para, comparativamente, 67 apontar a decadência da humanidade, a partir do momento em que esta saiu desse estado para entrar na “sociedade civil, bem como a necessidade de uma renovação das instituições que não pode andar separada de uma revolução moral” (BOBBIO, 1991, p. 52). Para Rousseau, os primeiros progressos nasceram das dificuldades que se apresentam no meio natural, particularmente, em função dos animais que competiam com os homens, obrigando-os a desenvolver armas naturais, aperfeiçoando, assim, a disputa pela subsistência. No Discurso sobre a origem das desigualdades entre os homens, na primeira parte, Rousseau desenvolve o que poderia ser o homem em estado de natureza, colocando em relevo as capacidades corporais, a linguagem de gestos, a habilidade de conseguir alimentos, a força física para superar intempéries, o amor a si e a piedade. Neste momento, o que caracteriza esse homem é o corpo e suas faculdades. Sendo o corpo o único instrumento que o homem selvagem conhece, é por ele empregado de diversos modos, de que são capazes dada a falta de exercício, nossos corpos, e foi nossa indústria que nos privou da força e da agilidade que a necessidade obrigou o selvagem a adquirir (ROUSSEAU, 2000, p. 238). No estado de natureza, o homem nasce livre; esta liberdade se constituirá, para Rousseau, o valor mais inalienável para o homem. Da origem inicial, hipoteticamente solitária, o homem, levado pela necessidade de conservação, forma os primeiros compromissos mútuos. O interesse comum, mais frequente que a concorrência, ensina o homem a contar com a assistência de seus semelhantes. Nesta fase, para Rousseau, predomina a linguagem dos gestos e dos gritos. A teoria da linguagem é um desenvolvimento das ideias de Condillac no Tratado das Sensações (2000), que considera a linguagem dos gestos ou linguagem prática, fundamental para o posterior desenvolvimento da linguagem oral. A passagem para a sociedade civil é decorrente da divisão entre o “meu” e o “teu”, das divisões que nascem nas relações humanas, principalmente, quando aparece a necessidade do outro e a formação dos primeiros vínculos sociais. Para Rousseau, “o verdadeiro fundador da sociedade civil foi o primeiro que, tendo cercado um terreno, lembrou-se de dizer: isto é meu, e encontrou pessoas suficientemente simples para acreditá-lo” (ROUSSEAU, 2000, p. 259). Partindo de um estágio em que, inicialmente, o homem se limitava à sensação pura e aos instintos, na medida em que foram surgindo dificuldades, o ele precisou avançar em desafio, criatividade e superação. A conservação pura e simples no estado de natureza foi tornando-se complexa, fazendo com que houvesse a necessidade de criar vínculos sociais e caminhar rumo ao progresso, que, com o advento da propriedade, marca o início da desigualdade, da necessidade e da construção da sociedade civil, cujo contrato inicial 68 privilegia ricos e poderosos, em detrimento dos pobres. Leis e magistrados são, assim, instrumentos de exploração dos pobres. Ocorre uma apropriação de recursos materiais, por uma parte da sociedade, que passa a explorar os que não têm, usando, para isso, as instâncias sociais dos tipos magistratura e leis, para garantir o domínio dos ricos sobre os pobres. Do Contrato Social, uma das principais obras de Rousseau, tem como principal objetivo reconduzir o homem a sua verdadeira essência de liberdade e igualdade, a qual é perdida na passagem do estado de natureza à sociedade civil. Para Chevallier: Onde se acha, pois, nessa obra célebre, a invenção? No seguinte: a liberdade e a igualdade cuja existência no estado de natureza é tradicionalmente afirmada Rousseau pretende reencontrá-las no estado de sociedade, mas transformadas, tendo sofrido uma espécie de modificação química, ‘desnaturadas’ (CHEVALLIER, 1980, p. 161). A passagem: estado de natureza, sociedade civil e República, revela no pensamento de Rousseau, uma antropologia, em que se ressalta a capacidade do homem para a transformação, sendo considerado por Bobbio e Bovero (1996) um processo triádico precursor da dialética hegeliana, que, em Rousseau, corresponde ao estado de natureza como tese, sociedade civil como antítese, e República como síntese. Ao contrário de Hobbes, em que não existe ruptura e transformação, mas um prolongamento do homem natural para o artificial, em Rousseau, a sua modificação é possível. Partindo do selvagem piedoso, com amor a si e livre, passando para a sociedade degenerada, corrupta e desigual, chega-se ao terceiro momento, que é o Estado republicano, fruto do contrato feito por homens racionais, morais e livres, que resolvem criar um Estado igualitário e justo, que possa reconduzir o homem ao mais próximo possível da liberdade natural perdida. Para Cassirer (1954), a vontade geral torna o homem um ser verdadeiramente moral. Do selvagem, que é instinto e sensação, ao sujeito moral do contrato, existem rupturas e transformações, que demonstram a capacidade de criação e superação do homem. Em Rousseau, diversamente de Hobbes, não é tanto pelo entendimento e pela linguagem que os homens se distinguem dos animais, senão pela capacidade de se aperfeiçoar tanto individualmente quanto como espécie. A linguagem e a razão não são, a rigor, o que separa o homem de outras espécies, mas a capacidade de se aperfeiçoar. Esta capacidade é que faz o homem criar a linguagem sair do estado de natureza, desenvolver cultura, Rousseau acredita que é inerente a nossa espécie a capacidade de tentar chegar a perfectibilidade.com o 69 pressuposto de uma empatia, piedade e amor-de-si naturais, o homem traz a potencialidade de fazer o bem. A linguagem falada, como aperfeiçoamento do homem, é um dos fatores responsáveis pela passagem do homem isolado em estado de natureza para o homem agregado em sociedade. O desenvolvimento da linguagem cria necessidades que fazem parte das relações que os homens estabelecem entre si em sociedade. Para Rousseau, “a fim de explicar o fato, precisamos reportar-nos a algum motivo que se prenda ao lugar e seja anterior aos próprios costumes, pois, sendo a palavra a primeira instituição social, só a causas naturais deve a sua forma” (ROUSSEAU, 2000, p. 259). Ainda segundo Rousseau, a mais antiga de todas as sociedades e a única natural é a família, uma vez que se trata do primeiro modelo das sociedades políticas. Diferente de Aristóteles, Rousseau não vê uma evolução da família para a polis, como se a segunda fosse, naturalmente, a extensão da primeira. A instauração da sociedade civil se dá através de convenções, fazendo parte do progresso das necessidades e faculdades humanas. Eis, pois, todas as nossas faculdades desenvolvidas, a memória e a imaginação em ação, o amor-próprio interessado, a razão em atividade, alcançando o espírito quase que no termo da perfectibilidade de que é suscetível. Aí estão todas as qualidades naturais postas em ação, estabelecidos a posição e o destino de cada homem, não somente quanto à quantidade dos bens e poder de servir ou ofender, mas também quanto ao espírito, à beleza, à força e à habilidade, quanto ao momento e os talentos e, sendo tais qualidades as únicas que poderiam merecer consideração, precisou-se desde logo tê-las ou aparentar possuí-las. Para proveito próprio, foi preciso mostrarse diferente do que na realidade se era. Ser e parecer tornaram-se duas coisas totalmente diferentes. A esta distinção resultaram o fausto majestoso, a astúcia enganadora e todos os vícios que lhe formam o cortejo (ROUSSEAU, 2000, p. 97). Como foi citado anteriormente, é com a competição entre os homens, uns querendo sobressair-se, de que decorre o advento da apropriação de riquezas e a origem e o desenvolvimento das desigualdades, que faz com que o homem saia do estado de natureza e passe para a sociedade civil. Em Rousseau, o artifício do contrato social é quem cria o Estado. Junto à política, Rousseau desenvolveu uma pedagogia. O Emilio é publicado concomitantemente ao Do contrato social (1762). O projeto político e o educativo visam a modificar o homem degenerado da sociedade civil, criando o homem moral, cuja gênese encontra-se na obra, O Emílio. Nesse texto, Rousseau desenvolve o que vem a ser uma educação natural, partindo inicialmente de uma educação negativa, em que o fundamental é deixar a natureza seguir seu curso, até o pleno desenvolvimento da razão e da moral na adolescência, quando ocorre a formação do cidadão ou sujeito moral coletivo. Partindo do homem até chegar ao cidadão, O Emílio traça a gênese desse desenvolvimento e o papel 70 central da educação nesse processo. Para Barros (2006), o processo de mudança do homem passa pela desnaturação: “Não é possível conservar em sociedade a mesma condição do estado natural. A desnaturação gesta um novo homem, que passa a viver com os outros e, nesta nova condição sofrerá mudanças virtualmente impossíveis em seu estado natural” (BARROS, 2006, p. 2). Podemos resumir, assim, a antropologia em Rousseau: partindo do homem em estado de natureza, que é livre, piedoso, com restritas necessidades, chega-se ao homem em sociedade civil, que, pelos progressos das faculdades corporais, emocionais e intelectuais, torna-se insuflado pelo amor próprio e, com o advento da propriedade, torna-se corruptível, querelante, ávido pelo poder. A divisão, tão importante em Rousseau, entre o ser e o parecer. Este é o homem artificial, produto de convenção, que tem como esteio a exploração dos pobres pelos ricos; que institui as leis e a sociedade civil. Nele, a violência encontra-se acentuada, os homens tendem a querer destruir uns aos outros. Em um terceiro momento, através do contrato, criam-se as condições de possibilidade para o aperfeiçoamento moral, incluindo uma vida solidária e menos agressiva entre os homens. A educação e a política caminham juntas nessa empreitada; fruto da criação e potencial de modificação do homem. Carl Schmitt chama a atenção pelo fato de que o importante não é tanto definir o homem como naturalmente bom ou mau, mas saber se essa natureza pode ou não ser modificada. Neste ponto, diversamente de Hobbes, Rousseau e os iluministas em geral acreditavam na educabilidade dos homens: Para o racionalismo do Iluminismo, a pessoa era, por natureza, tola ou rude, mas educável. Assim, justificava-se o ideal de um “despotismo legal” por motivos pedagógicos: a humanidade inculta é educada por um legislador (que, segundo o Contrat social, de Rousseau, está em condições “de changer la nature de l’homme”) (SCHMITT, 2006, p.51). Para começar a definir como Rousseau analisa a agressividade e a violência, podemos demarcar que, assim como Hobbes, há dificuldades em extrair diferenças nos conceitos, mas no momento, é importante definir que, quando falamos em agressividade e violência em Rousseau, os termos não se distinguem de imediato, sendo necessário tentar fazer essa distinção. Podemos conjecturar que a agressividade, para Rousseau, faz parte do homem natural, do selvagem, da criança. Rousseau fornece pistas neste sentido, quando fala de sobrevivência, uso de força física, desenvolvimento das habilidades físicas para se defender dos ataques das feras, da relação da criança com os cuidadores, da possibilidade de utilizar birra e 71 manipulações. A violência instaura-se com o advento da sociedade civil. Como já foi colocado, e citando Peter Gay (2001, p. 7), esta divisão entre agressividade e violência é produto do século XIX, principalmente com o advento da teoria da evolução. Até hoje, existem dificuldades semânticas, como podemos perceber no primeiro capítulo, para tornar clara esta distinção. Mas isso não impede que tentemos seguir uma linha de raciocínio em nosso trabalho, mesmo considerando que Hobbes e Rousseau não abordaram essa questão com os olhos da biologia. Postas essas considerações, podemos resumir que, em Rousseau, a agressividade, tanto na criança, quanto no selvagem, pode ser considerado um movimento passional e inato, que serve para a conservação. Inicialmente, enquanto não chega a “idade da razão” (ROUSSEAU, 1999, p. 56), o impulso da agressividade serve para a proteção contra ataques, e encontra-se ligado ao instinto da piedade, sendo esta outra paixão inata. A piedade, na criança e no selvagem, ajuda o desenvolvimento do amor de si. Para Dent (1996, p. 35-40), o amor de si é um instinto natural, que leva o homem a se autopreservar, sem precisar disputar e ser egoísta com o outro. Pelo contrário, em Rousseau, o amor de si leva não só à preservação, mas a cuidar da prole, por exemplo, e ter empatia pelo outro. A grande “virada” ocorre, quando as relações humanas ficam mais complexas, através do desenvolvimento das faculdades intelectuais e da linguagem. A passagem do amor de si para o amor próprio, segundo Dent (1996, p. 39-42), marca, para Rousseau, uma ruptura no homem, fazendo-o sufocar instintos, tais como piedade e amor de si. A paixão amorosa, com seus ciúmes e contendas, na formação da família, é um dos vetores dessa transformação, que tem na propriedade seu ápice. Posteriormente, analisaremos, passo a passo, essa transformação. No momento, interessa definir que a agressividade, que não provoca guerra e querelas, mas só a defesa para conservação, não é a origem do mal no homem. Com o desenvolvimento da sociedade civil, podemos falar de violência, que passa a adquirir um aspecto nocivo e perverso. Essa transformação é fruto da socialização do homem. Podemos agora introduzir os personagens do selvagem, da criança e da sociedade, que alegoricamente continua sendo representada pelo lobo. A diferença é que, em Hobbes, este lobo encontra-se no estado de natureza, no início da história. Agora, ele aparece no decorrer da história, nas florestas e cidades povoadas de homens e mulheres com amor próprio, vaidade, orgulho e crueldade. Passaremos agora a aprofundar a antropologia em Rousseau. Para melhor analisar didaticamente, usarei, por questões metodológicas, em seqüência, O Discurso Sobre a Origem 72 da Desigualdade entre os homens seguido por Do Contrato Social, detendo-nos mais em O Emílio, que serve para analisar, em profundidade, nosso tema, por ser a obra mais didática, por descrever evolutivamente, todas as fases da formação da violência no homem. Usaremos uma metodologia diferente da utilizada em Hobbes, que tem uma obra coesa, cujos textos são variações de um mesmo tema. Já Rousseau, como diz Cassirer (1954, p. 34), é mais complexo, e seus textos requerem um olhar cuidadoso e desprovido de preconceitos, já que têm um estilo retórico que mistura subjetividade, autobiografia, literatura, ciência e história pessoal. Hobbes, nesse aspecto, apesar de ser um autor muito profundo, não coloca tantas armadilhas e labirintos para os comentadores. Espero ter sido compreendido nesta escolha metodológica e explicado a diferença na análise entre os textos de Hobbes e de Rousseau. 73 2.1 O DISCURSO SOBRE A ORIGEM E O FUNDAMENTO DAS DESIGUALDADES ENTRE OS HOMENS “Em casa, a rainha se dirigiu ao espelho e perguntou: ‘Espelho, espelho meu, existe outra mulher mais bela do que eu?’ O espelho respondeu como de costume: ‘és sempre bela, minha cara rainha, mas na colina distante, por sete anões cercada, Branca de Neve ainda vive e floresce, e sua beleza jamais foi superada’. Ao ouvir as palavras pronunciadas pelo espelho, a rainha começou a tremer de raiva. ‘Branca de neve tem de morrer!’ Exclamou, ‘mesmo que isso custe a minha vida. ’” (JACOB E GRIMM, apud TATAR, 2004, Branca de Neve, p. 94-95). A obra de Rousseau é complexa, dando margem a múltiplas interpretações. Para Cassirer (1954, p. 98), não podemos falar de um Rousseau, mais de vários. Bento Prado Jr (2008, p. 35-70) coloca que existem muitas interpretações de Rousseau, e, no século XX, o existencialismo e o estruturalismo, principalmente via Levi Strauss, fazem um resgate de Rousseau, colocando-o no centro das discussões do século XX. Para Bento Prado Jr (2008, p. 70), o pensamento de Rousseau não se presta a nenhuma forma de reducionismo, e deve-se considerar não apenas as obras filosóficas, mas as literárias, para compor um perfil que considere a complexidade de Rousseau. Em pleno “Século das luzes”, ele traz à tona uma realidade cruel, retirando a “luz da razão no centro” e colocando a política e a pedagogia como pontos fundamentais, inclusive com os primeiros esboços de uma ação política que transforme a sociedade. Dentro da trilogia que é mais estudada em Rousseau no que concernem às obras ditas filosóficas, (Discurso, Do Contrato e O Emilio), o Discurso sobre a origem das desigualdades entre os homens, é referência para o que podemos denominar pensamento etnológico e antropológico da primeira fase de Rousseau. Para Arbousse-Bastide e Machado (2000, apud ROUSSEAU, 2000 p. 6 - OS PENSADORES), as principais fontes de Rousseau no Discurso são: Buffon e sua história natural, P. Dutertre, autor de uma história natural das Antilhas, de quem Rousseau recebe as descrições dos nativos do novo mundo, incluindo os Caraíbas, e Montaigne, que também faz referência aos nativos, através dos relatos de outros navegadores. O mito do “bom selvagem” não é uma criação de Rousseau, na realidade, outros pensadores, além dos já citados, após a 74 descoberta das Américas, com os relatos que chegam sobre os nativos, desenvolvem o tema do “Paraíso nas Américas” e dos bons selvagens. Entre eles, o mais importante foi o frade dominicano Bartolomé de Las Casas que, ao divulgar o massacre de que os nativos foram vítimas, contribuiu para criar a imagem dos europeus, principalmente dos espanhóis, como cruéis e vorazes matadores de índios e destes como vítimas inocentes, criando, assim, a famosa leyenda negra16. Todos esses fatos, decorrentes das grandes navegações, levam alguns pensadores iluministas a adotarem, em relação aos povos nativos do novo mundo, uma postura de proteção e idealização (TODOROV, 2003). Mas a diferença fundamental do bom selvagem de Rousseau para os povos descobertos é que estes viviam em comunidades e não eram isolados, como imaginava Rousseau; ou seja, o autor parte do mito do bom selvagem, mas o transforma. Torna-se um artifício para justificar o homem isolado em estado de natureza, que é projetado nos selvagens. No Discurso, o foco antropológico é o selvagem, que simboliza o homem em estado de natureza. O isolamento, o individualismo e a autossuficiência são marcas fundamentais do homem neste estado de poucas necessidades. Os agrupamentos humanos surgem, por necessidade de sobrevivência, lutar contra as adversidades do meio e a ameaça de outros animais. A sociedade, impulsionada pela luta em busca da sobrevivência, é uma convenção, para Rousseau, distinguindo-se do modelo aristotélico de família como instituição natural. Em Do Contrato, Rousseau desenvolve mais profundamente a questão da família como produto das convenções sociais. Nesse aspecto, como jusnaturalista, contrapõe-se, assim como Hobbes, ao modelo aristotélico. Este homem em estado de natureza apresenta-se com sentimentos naturais inatos, como a piedade e o amor de si, a qual torna o homem natural não destrutivo em relação aos outros, com comportamento bem distante do homem egoísta de Hobbes. Sem recorrer aos testamentos incertos da história, quem não verá que tudo parece afastar do homem selvagem a tentação e os meios de deixar de ser selvagem? Sua imaginação nada lhe descreve, o coração nada lhe pede. Sua módica necessidade encontra-se com tanta facilidade ao alcance da mão e encontra-se ele tão longe do grau de conhecimento necessário para desejar alcançar outras maiores que não pode ter nem previdência, nem curiosidade (ROUSSEAU, 2000, p. 66). 16 Remetemos o leitor a: Frei Bartolomé, Las Casas: O paraíso destruído. A sangrenta história da conquista da América Espanhola. OP. C. JOSAPHAT, Las Casas: Todos os direitos para todos. Giuseppe TOSI, Bartolomé de Las Casas. Primeiro filósofo latino-americano da libertação. In: Cecília PIRES (org.), Vozes Silenciada, pp.157-176. 75 Podemos pontuar que a agressividade é utilizada para a autopreservação neste hipotético estado de natureza de Rousseau. O homem nasce com instintos inatos, tais como piedade e amor de si, mas o autor não fala de um “instinto natural para a violência”. Coloca que o homem defende-se de outros animais que o atacam e das intempéries do meio utilizando a agressividade. Podemos tentar conjecturar que a agressividade é um instinto para Rousseau, e serve para a autopreservação, não é negativa, faz parte da natureza humana e é necessária. Continuando a avaliar Rousseau no Discurso, a contingência fará do homem um ser egoísta, competitivo e destrutivo. Inicia-se, assim, a corrupção da espécie. Rousseau coloca como a passagem do homem do estado de natureza para o homem em sociedade, de “bom selvagem” para um ser egoísta e violento, que pouco se interessa pelo outro, modifica e transforma as relações humanas, que passam a ser competitivas, com disputas e relações de força. Nesse aspecto, o amor de si transforma-se em amor próprio. É o advento do “meu e teu”, da comparação entre os homens, que resulta na modificação definitiva para a corrupção, a qual parece ser obra do acaso, em Rousseau. Até então, com limitadas necessidades, o homem passa a desejar muito e a disputar e competir com os outros por honra, poder e riquezas. A violência passa a ser um componente fundamental nesta fase. Anteriormente, a agressividade aparece apenas como componente de luta pela sobrevivência, um instinto de agregação que se associava à piedade. O homem natural não se interessava em destruir o outro por prazer, competição, poder. Como coloca Rousseau (2000, p. 67), “este homem tinha limitadas necessidades”. É importante seguir, nesse trecho, a contribuição de Rousseau sobre a linguagem, que, em Hobbes, é de fundamental importância para a relação eu e outro e a irrupção do poder e da violência. Para Rousseau (2000, p. 264), a linguagem é um dos fatores fundamentais da passagem do homem de relações sociais simples para relações complexas. Outras espécies animais utilizam a linguagem dos gestos e vocalizações para comunicar-se. “Aqueles animais que trabalham e vivem em comum, como os castores, as formigas e as abelhas, possuem - não duvido - alguma língua natural para se comunicar” (ROUSSEAU, 2000, p. 264). No homem, a linguagem da convenção, ou artifício, feita por significantes, significados e regras gramaticais, faz progredir a ordem social “para o bem ou para o mal” (ROUSSEAU, 2000, p. 264). Necessidade e paixão estão na origem da linguagem, principalmente as paixões de amor, ódio, piedade e cólera. Para Rousseau (2000, p. 266), a linguagem, no homem, é um produto das paixões. Nos relacionamentos entre os homens, o grito, o gesto, a melodia, os 76 tropos e a linguagem figurativa são as linguagens originais. Para Rousseau (2000, p. 267), a princípio, só se falou por poesia, só muito tempo depois, tratou-se de raciocinar. A linguagem metódica, e, principalmente, a escrita, provoca uma cisão no homem. Rousseau (2000, p. 267) demarca o que é propriamente humano do que pertence a outras espécies. Principalmente a chamada linguagem e a escrita. Os animais usam a linguagem dos gestos, vocalizações, e também as crianças a utilizam. Estas, antes de artificializar a linguagem, conseguem comunicar verdadeiramente as emoções através da “poesia das paixões, dos símbolos e mitos” (ROUSSEAU, 2000, p. 267). Para Bento Prado Jr (2008, p. 41), em Rousseau, existe a prioridade do vivido em relação ao conhecido. O que ele faz aparecer é uma dialética da consciência da intersubjetividade, antes de Hegel. Para Burgelon (apud PRADO JR., 2008, p. 32), Rousseau transita entre dois pólos: o da ordem e o da existência. Existe um abismo entre esses dois termos. A linguagem pode ser verdadeira e aparência, transparência e obstáculo. Rousseau, na interpretação de Levi-Strauss (apud PRADO JR., 2008, p. 89), reconduz o homem a uma camada esquecida e primitiva da linguagem, que é a metáfora. Através da valorização da metáfora, Rousseau, para Levi-Strauss, produz uma fratura na metafísica, na ilusão do pensamento e da consciência. Derrida (2002, p. 11) chama Rousseau de pensador da metafísica, que vai até as últimas conseqüências, na tentativa de pensar a radical idade da escrita. Em função desse aspecto, suas obras literárias e, principalmente, suas confissões, são singulares, espelhando o projeto de desnaturação do homem na busca pela verdade e transparência. A retirada do véu encontrase nos escritos autobiográficos. O que nos interessa, no entanto, é que a linguagem, que, para Rousseau, não é a “maior invenção de todas” como diz Hobbes, mas um processo de socialização, que tem como base as paixões, passando por etapas evolutivas, em que podemos encontrar uma linguagem original, e outra, fruto do artifício. Os animais, e, principalmente, as crianças, têm acesso a “essa verdade” através de gestos, símbolos, tropos, figuração. Para ilustrar o abismo gerado entre linguagem natural, poesia, figuração e artifício, no Estado social, por contingência, com advento da posse, comparação, vaidade e piedade, como componente básico de nossos instintos, ela fica relegada ao segundo plano. Essa paixão cede lugar ao egoísmo e à vaidade; o reino da razão sufoca o dos sentimentos, e o homem cria máscaras passando, cada vez mais, a se artificializar. 77 A linguagem da convenção, que traz o desejo de posse, a divisão do meu e seu, é quem instaura essa divisão. Este é o inicio do processo de socialização que instaurará a violência na espécie humana. Seguindo Rousseau, no Discurso sobre a origem das desigualdades entre os homens, o homem, em estado de natureza, pode ser classificado em homem físico, psicológico e moral. O homem físico possui todos os instintos dos animais, e o seu temperamento é robusto, reforçado pela seleção natural; o corpo é o único instrumento, não necessitando da utilização de armas. Nesse estado, o homem se faz temer por outros animais e sofre apenas as intempéries e doenças provocadas por acidentes na luta pela sobrevivência. O homem psicológico possui, em comum, alguns pontos com outros animais, sendo o principal os sentidos, porém, é nesse aspecto que começa a diferenciar-se de outros animais. Essas diferenças são, principalmente, a liberdade de querer e de não querer, de desejar e de temer. Em segundo lugar, encontra-se a capacidade de aperfeiçoamento que faz seguir em frente ou retroceder. Em relação à capacidade de aperfeiçoamento, Rousseau coloca, no homem, a capacidade de superar os movimentos instintivos e a herança animal, e essa capacidade lhe dá as ferramentas necessárias para desenvolver a razão. Nesse ponto, Rousseau nos remete ao início do progresso e do desenvolvimento da linguagem, que solidifica a entrada do homem no estado de sociedade. A necessidade é o motor principal deste desenvolvimento, mas essa não produz uma “guerra de todos contra todos”, no estilo Hobbesiano, mas a agregação que é responsável pela entrada do homem em sociedade. Para Rousseau, a sociabilidade não está inscrita na natureza humana original. O homem não tem, naturalmente, necessidade de outrem. Esta visão é reavaliada a partir de O Emilio e Do Contrato Social. Finalmente, Rousseau nos apresenta o homem moral, cujo primeiro princípio é o instinto de conservação, através do qual o homem não é bom ou mal por natureza, utilizando a agressividade apenas para sobreviver e satisfazer poucas necessidades, tais como alimentação e sexo. O estado de natureza não é uma luta contínua de uns contra outros. Os homens não se agridem e não disputam entre si: esta talvez seja a diferença mais radical comparada à antropologia hobbesiana e com as descobertas da moderna antropologia cultural17. 17 Segundo Starobinski (1991, p. 89), a visão de Rousseau sobre os relatos dos nativos do Novo Mundo encontrase contaminada por uma visão ingênua das relações entre estes. Os caraíbas, por exemplo, apesar de formarem uma sociedade com aspectos igualitários, são uma “máquina de guerra”, segundo Clastres (2004, p. 23). Para Clastres (2004, p. 34-78), o que caracteriza as comunidades indígenas é a instituição da guerra voltada para 78 A piedade é o segundo princípio. Este sentimento é o que torna o homem solícito com o outro. Tomando como base o instinto materno, a piedade gera sentimentos altruístas no homem, freando a agressividade e fazendo-o interagir com outros. É a base fundamental da agregação familiar, que, em Rousseau, é uma convenção social, produto do artifício, não sendo uma evolução da natureza, como no modelo aristotélico. Até então, para Rousseau, a desigualdade é quase nula no estado de natureza. O homem natural não conhece o orgulho, a vaidade, a vanglória, estando bem distante do teatro bélico e agressivo de Hobbes. Piedoso e com poucas necessidades, o Homem, no Discurso sobre as origens da desigualdade entre os homens, vai tornar-se o arauto da discórdia, da disputa e da agressividade, quando, por contingência, através do advento da propriedade, institui a sociedade civil. Instaura-se a desigualdade e a guerra entre os homens. A família nasce por convenção, decorrente das necessidades de sobrevivência. Não é, em Rousseau, uma instituição natural. Esta passagem do homem solitário no estado de natureza para a agregação social se faz, a princípio, através da cooperação. Sentimentos como piedade e amor de si contribuem para formação da sociedade. Para analisar mais profundamente a raiz da divisão entre os homens, dentro do processo de socialização, Rousseau fala que: Aquele que cantava ou dançava melhor, o mais forte, o mais astuto ou o mais eloqüente, passou a ser o mais considerado, e foi esse o primeiro passo tanto para desigualdade quanto para o vício; dessas primeiras preferências nasceram, de um lado, a vaidade e o desprezo, e, de outro, a vergonha e a inveja. A fermentação determinada por esses novos germes produziu, por fim, compostos funestos a felicidade e a inocência (ROUSSEAU, 2000, p. 92). A desigualdade nasce dentro da relação entre os homens, no Estado social. O fundamental, nessa hipótese de Rousseau, é delimitar que o homem sai da vida solitária para a tribos diferentes. A relação amigo-inimigo opera nessas sociedades, embora não exista uma formação do Estado. O cacique, ou chefe, para Clastres (2004, p. 89), é controlado pela comunidade. Existe uma união orgânica destas comunidades que se estruturam internamente através da guerra contra tribos inimigas. Escravidão, canibalismo, extermínio e outras maneiras de violência contra tribos inimigas, estruturam a coesão social das tribos. Esta violência, de acordo com Clastres (2004, p. 78), é um produto da organização social, que opera dentro dessa dinâmica de nós e os outros, para produzir a diferença, a identidade. As tribos e suas máquinas de guerra operam, para Clastres (2004, p. 98), contra a máquina totalizante e homogenizadora do Estado. Sobre Rousseau, Clastres (2004, p. 199) reconhece a importância de ter aberto os horizontes para etnologia e antropologia, mesmo com uma visão idílica e indireta (através de relatos) dos nativos. Rousseau, para Clastres (2004, p. 188), no momento do confronto e dos grandes massacres dos europeus, em relação às populações indígenas, abre a condição de possibilidade para respeitar a alteridade dos nativos do novo mundo não só como diferentes de nós, mas como fazendo parte de nossa história, estando neles uma das chaves para a compreensão da nossa natureza. Isto exercerá grande influência, por exemplo, em Levi-Strauss. Ver também: TODOROV, Tzvetan. Nós e os outros: a reflexão francesa sobre a diversidade humana, v.1. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1993. 79 agregação social movido por necessidades, e essa passagem, inicialmente, não produz a transformação que leva nossa espécie à competição, à luta entre os homens, e à desigualdade. Essa virada é fruto do acaso, podendo existir sociedades que não se enquadram nessa ruptura para degenerescência. Essa marcha, em Rousseau, não é instintiva e inexorável, podendo ser modificada pela capacidade de aperfeiçoamento do homem. De um lado, temos os laços de cooperação entre famílias, e, de outro, as primeiras divisões entre os homens, movidas pelo desenvolvimento das faculdades intelectuais. Essa passagem do estado de natureza para o Estado social não é pontuada pela decrepitude da espécie, pois, para Rousseau: Assim, embora os homens se tornassem menos tolerantes e a piedade natural já sofresse certa alteração, esse período de desenvolvimento das faculdades humanas, ocupando uma posição média exata entre a indolência do estado primitivo e a atividade petulante do nosso amor próprio, deve ter sido a época mais feliz e duradoura (ROUSSEAU, 2000, p. 93). A necessidade do outro, ou do “socorro do outro”, fez com que o homem introduzisse a desigualdade. Este paradoxo, que conduz Rousseau, do estado de natureza ao Estado social, marcará toda sua obra. Como o homem solitário, transformou-se no homem social, através da necessidade de ajuda, e, a partir de então, vai-se instaurando a discórdia, a disputa, a desigualdade e a violência entre os homens. Essa piedade natural, instinto inato, para Rousseau, sufocou no amor próprio, que é egoísta. Mas, ao mesmo tempo, temos possibilidades de laços de cooperação e empatia, como é o cuidado com a prole, o sentimento de pertencer a uma família, um clã e uma tribo. A socialização e a necessidade do outro conduzem a esse duplo caminho. Rousseau dá o nome de contingência, a esse processo. Poderia ser de outra forma? Sim. O destino humano não está fechado, para Rousseau. Nesse ponto, temos a divisão da “transparência e do obstáculo” (STAROBINSKI, 1991). A exploração, a criação de leis e dos magistrados contribuirá para a formação de uma máquina de exploração do homem pelo homem. A violência humana, na sua forma destrutiva, tal qual Hobbes a descreve, é, em Rousseau, produto do desenvolvimento social, sendo, portanto, relacional e produto da necessidade do outro, que Rousseau coloca como contingência, criando um paradoxo complexo de se resolver. A vontade de poder, básica, em Hobbes, com relação à lei do desejo, é decorrente do progresso das faculdades e do desenvolvimento social. No Discurso sobre as origens da desigualdade entre os homens, para Rousseau: 80 Os corpos políticos, deste modo permanecendo si, entre si, em estado de natureza, logo se ressentiram dos inconvenientes que haviam forçado os particulares a sair dele, e tal estado tornou-se ainda mais funesto entre esses grandes corpos do que fora, antes, entre os indivíduos dos quais se compunha. Daí nasceu as guerras nacionais, as batalhas, os assassinatos e as represálias que levam a natureza a agitarse e chocam a razão (ROUSSEAU, 2000, p. 101). A origem dos corpos políticos funda-se na violência, na desigualdade e na exploração. No Discurso sobre as origens da desigualdade entre os homens, Rousseau parece delimitar naturezas diferentes no homem. O artefato social modifica instintos naturais, como a piedade e o amor de si, pervertendo-os. Originalmente, somos piedosos, mas, com o desenvolvimento de nossas faculdades e da sociedade civil, tornamo-nos egoístas e lascivos. Cassirer (1954, p. 100) analisa que, mesmo em escritos como a Desigualdade, um dos pontos fundamentais em Rousseau são a liberdade e a vontade, decorrente da primeira, o que leva o homem a tentar a perfectibilidade, que nada mais é que a moralidade verdadeira. Cassirer (1954, p. 80-230), como kantiano, minimiza a função dos instintos de piedade e amor de si, e passa a colocar na vontade e em normas da razão, que visa à perfectibilidade, motivos essenciais para a transformação do homem e a criação de uma sociedade justa. O paradoxo é que, justamente a liberdade e a vontade faz com que a perfectibilidade bifurque-se e conduza o homem a dois caminhos: o aperfeiçoamento e a decrepitude, o aperfeiçoamento moral ou a corrupção, a violência como autodefesa e a sobrevivência ou a violência como crueldade, perversão e subjugação do outro. Para Cassirer (1954, p. 101), é o caminho que leva às leis, à moral, ao aperfeiçoamento da razão, que resgata a “bondade natural”, no homem. Para Dent (1996, p. 48-49), devemos partir, ao contrário, da dualidade das paixões e de sua dinâmica. Piedade e amor de si são instintos naturais, mas podem transformar-se em amor próprio, crueldade, violência desmedida e perversidade. No Discurso sobre as origens da desigualdade entre os homens, essa dinâmica encontra-se nas primeiras relações sociais, principalmente na relação amorosa, que se transforma em ódio, ciúme e crueldade. A partir dessas primeiras relações, ocorre a comparação entre o eu e o outro, surgindo o sentimento comparativo do melhor, do pior, do mais inteligente, do mais habilidoso entre outros. Nessa dinâmica, os instintos naturais vão transformando-se, e a violência destrutiva instaura-se, culminando com o processo da propriedade. A dinâmica das paixões, para Dent (1996, p. 34), é relacional, tendo, na origem, uma bifurcação que pode levar a dois caminhos. Cassirer (1954) fala da bifurcação de vontade e perfectibilidade, Dent (1996), da bifurcação das paixões inatas. No momento, ficamos com essas duas ideias, que serão desenvolvidas e aprofundadas, principalmente em O Emílio. 81 Vamos agora aprofundar esses pontos nos aspectos antropológicos Do Contrato Social. Ao entrar no processo de desnaturação, que é o retorno às virtudes naturais da piedade e do amor-de-si do estado natural, dentro da superação da sociedade civil e criação do Estado do contrato social. 82 2.2 DO CONTRATO SOCIAL “Era uma vez um moleiro. Era muito pobre, mas tinha uma linda filha. Um dia, o moleiro teve uma audiência com o rei. E, para ostentar alguma importância, declarou: ‘tenho uma filha que é capaz de fiar ouro com palha’. ‘Ah, esse é um talento que vale a pena ter’, disse o rei ao moleiro. ‘Se sua filha é assim tão hábil, quanto diz, traga-a até meu palácio amanhã. Vou pô-la à prova’” Quando a menina chegou ao palácio, o rei a enfiou num quarto cheio de palha, Deu-lhe uma roda de fiar e um fuso, e disse: “Comece a trabalhar agora mesmo.” Se não conseguir transformar essa palha em ouro até amanhã de manhã, morrerá”. E o rei saiu e trancou a porta atrás de si, deixando-a completamente sozinha lá dentro. (JACOB E GRIMM, apud TATAR, 2004, Rumpelstiltskin, p. 129). Em 1757, Rousseau escreve O Emilio e Do contrato social. Os dois livros compõem o seu projeto de aprofundar e aprimorar o que havia escrito nos textos anteriores. Em Do Contrato Social, Rousseau faz algumas revisões em relação à visão do homem que havia formulado no Discurso sobre as origens da desigualdade entre os homens, principalmente, quando postula que: “A passagem do estado de natureza para o estado civil determina no homem uma mudança muito notável, substituindo na sua conduta o instinto pela justiça e dando às suas ações a moralidade que antes faltava”. (ROUSSEAU, 2000, p. 77). Nessa passagem, Rousseau já não percebe o selvagem, como ser humano, por excelência, provido de atributos, tais como a piedade e o amor de si. Essa condição tem que ser ultrapassada para atingirmos o que ele considera a verdadeira moralidade. O impulso é substituído pelo dever, o apetite pelo direito e a razão, como meta a ser alcançada, pelo ser moral, passa a substituir o amor próprio instintivo. O selvagem já não é tão nobre assim, já que o homem, em Do Contrato, fruto do desenvolvimento da razão e moral humanas, passa a “bendizer o instante feliz que dela (a condição anterior), arrancou-o para sempre e fez de um animal estúpido e limitado, um ser inteligente e um homem” (Rousseau, 2000, p. 77). O grande e inalienável bem que o homem deve buscar é a liberdade. Este é o maior resgate do homem em estado de natureza que o contrato social visa a resgatar. Se a necessidade constitui a família, a manutenção e o desenvolvimento dessas é obra do artifício social. Diferentemente de Hobbes, que coloca a vida como o bem supremo a ser preservado, sendo o medo da morte violenta o que motiva a saída do estado de natureza para o Estado social, em Rousseau, é a liberdade e o aperfeiçoamento das faculdades e da moralidade, que 83 faz com que o homem tente redefinir a sociedade civil, mudando a marcha de exploração, agressividade, egoísmo e degenerescência. A sociedade civil e o Estado, que representam o poder de exploração dos ricos sobre os pobres, são a verdadeira “máquina de guerra”. A guerra não representa, pois, de modo algum, uma relação de homem para homem, mas uma relação de Estado para Estado, na qual os particulares só acidentalmente se tornam inimigos, não o sendo nem como homens, nem como cidadãos, mas como soldados, e não como membros da pátria, mas defensores (ROUSSEAU, 2000, p. 63-64). A guerra e a violência entre os homens são um produto da sociedade civil, mais especificamente da sociedade que protege os ricos e dá privilégios a poucos, explorando os demais. Para Dent (1996, p. 42), a violência é um produto do artifício, não da natureza. O autor divide, em Rousseau, o artificial como produto da criação e invenção do homem. Como exemplo maior, temos o Contrato. Artifício dos artifícios, obra da perfectibilidade humana. Modificação, desnaturação, o caminho para o verdadeiro homem moral. O que o Contrato social visa a corrigir é esse tipo de sociedade. Nesse artifício, o homem e a natureza apresentam uma relação de parceria e transformação positiva. O supremo bem e a liberdade são a finalidade última. Para Dent (1996, p. 43-44), porém, o artificial em Rousseau, é também o conflito com a natureza, a relação de exploração, a corrupção, a violência desmedida. Nesse caso, o homem se coloca em conflito com a natureza e suas paixões, tais como amor de si e piedade. O amor próprio toma o lugar do instinto para a cooperação, e a sociedade civil degenera. Temos, para Dent (1996, p. 49), uma série complexa de possibilidades, em Rousseau, e um paradoxo: se o homem tem instintos que predispõem à compaixão e cooperação, como pode desvirtuar-se por esses mesmos homens? Dent (1996, p. 49) remonta a Aristóteles esse dilema. Na realidade, a paixão é de dupla face, está ligada, em “pares antagônicos” (HUME, 2000, p. 98) tipo amoródio, orgulho-humildade. O próprio Rousseau (2000, p. 78) descreve que, com o desenvolvimento do amor, surge a inveja, o ódio e o ciúme. As relações sociais e o espaço intersubjetivo são o espaço da “comparação entre os homens” (DENT, 1996, p. 69-70). O orgulho cresce da comparação entre o meu e o seu. Essa inclinação, para Rousseau, é intersubjetiva. Poderíamos arriscar que é uma modificação dos instintos naturais para artificiais, o que Dent (1996, p. 49) denomina paixões exóticas e naturais. Sendo aquelas, fruto das relações sociais sobre instintos naturais. 84 Do contrato social é a tentativa de corrigir os erros da sociedade civil. O homem preserva a liberdade e a capacidade de aperfeiçoamentos naturais, modificando sua trajetória. Sendo assim, Do Contrato social é obra da invenção, artifício do desenvolvimento da moral e da liberdade humana. A vontade geral é a verdadeira moralidade do ser social; só através dela, a piedade natural e o amor de si reaparecem e asseguram uma sociabilidade baseada na moral e na razão, produtos da perfectibilidade humana, para Rousseau. Suponhamos os homens chegando aquele ponto em que os obstáculos prejudiciais à sua conservação no estado de natureza sobrepujam, pela sua resistência, as forças que cada indivíduo dispõe para manter-se nesse estado. Então, esse estado primitivo já não pode subsistir, e o gênero humano, se não mudasse de modo de vida, pereceria (ROUSSEAU, 2000, p. 101). Para Rousseau, a necessidade de sair do estado de natureza é fundamental para a espécie humana. Diversamente do que pensava nos Discursos, Rousseau em Do Contrato social coloca a necessidade imperiosa da humanidade de sair desse estado, para um estado de eticidade, liberdade e justiça, de tal modo que a moralidade e a razão determinarão um novo homem, como diz Gilda Barros (2006, p. 50), “desnaturado”. Entendendo-se por desnaturação um processo que parte do homem em estado de natureza, com necessidades limitadas, depois passa para a sociedade civil e corrompe-se, instaurando a violência e a exploração dos pobres pelos ricos, até chegar a um terceiro estágio, que se afasta do estado de natureza inicial, supera os vícios da sociedade civil e atinge a sociedade do contrato, onde passa a predominar o indivíduo moral, racional, que constrói uma ética coletiva representada pela vontade geral. Recuperando a liberdade natural, agora, na sociedade civil, o homem desnatura-se para reencontrar a natureza perdida e aperfeiçoá-la em uma nova e justa sociedade. O homem, em Do Contrato social, já passou pelas duas fases que descrevem Bobbio e Bovero. Encontra-se, assim, na terceira, em que, através do contrato, passa a ser um “verdadeiro homem”. Para Mészáros (2006, p. 57), Rousseau foi um dos precursores de Marx, no que se refere à análise da alienação em sociedade, porém não o fez do ponto de vista econômico, mas das relações sociais18. A obra Do Contrato social, para autores, como Mészáros, aponta soluções “idealistas”. Rousseau ainda se move dentro das relações burguesas de produção. Avança no 18 Este é um ponto delicado de Rousseau em relação a Marx. Rousseau tem razão porque a alienação não é um fenômeno meramente econômico, mas mais amplo, está em todas as relações sociais; por isso, a mera superação da propriedade privada não vai produzir uma sociedade melhor como pensava Marx, porque os conflitos sociais permanecem. 85 aprofundamento da alienação nessa sociedade, mas as soluções não movem a apropriação do capital pela burguesia, que, para Mészáros, é a verdadeira causa da alienação. De qualquer maneira, segundo Prado Jr. (2008, p. 67), Rousseau pode ser considerado um precursor da ação política para a transformação da ordem social. Para Bobbio (1996, p. 89), temos, em Hobbes, a defesa da vida como vetor de transformação, e, em Rousseau, a liberdade e a igualdade, principalmente política, e, após Marx, a economia e o direito aos meios de produção, a quebra da hegemonia da burguesia pela apropriação do capital. Essas considerações ajudam a situar a importância Do Contrato na filosofia política moderna. A violência da ação política tenta acabar com a violência de uma sociedade corrupta e não igualitária. Se quisermos analisar Rousseau sobre a ótica marxista, a violência humana é produto do desenvolvimento social e atinge o ápice sob o sistema capitalista. Voltando ao Do Contrato, a República, a vontade geral e a democracia radical são tentativas de construir outro homem, “desnaturado” e “desalienado”, pois pressupõe um pacto que instaura um sujeito coletivo da eticidade, a democracia radical, a submissão à vontade geral, que é uma instância reguladora da eticidade coletiva e a manutenção da liberdade, dentro da coletividade. O homem assume seu destino, atinge a maioridade da razão e passa a agir de acordo com uma moral coletiva. Passaremos agora a aprofundar a visão antropológica em O Emilio, onde Rousseau vai desenvolver uma antropologia baseada na criança e na educação. 86 2.3 O EMÍLIO Era uma vez uma pobre viúva que tinha apenas um filho, chamado João, e uma vaca chamada Branca Leitosa. A única coisa que garantia o seu sustento era o leite que a vaca dava toda manhã e que eles levavam ao mercado e vendiam. Uma manhã, porém, Branca Leitosa não deu leite nenhum, e os dois não sabiam o que fazer. “O que vamos fazer? O que vamos fazer?” Perguntava a viúva, torcendo as mãos. “Coragem mãe. Vou arranjar trabalho em algum lugar”, respondeu João. (JACOBS, apud TATAR, 2004, p. 134). Atenhamo-nos, agora, em O Emilio, um texto denso, que apresenta a formação de uma criança até a idade adulta. Para o nosso tema, o que podemos pontuar em O Emilio? Dentro dos aspectos anteriormente abordados, temos uma complexificação dos temas. Rousseau não abandona o selvagem, mas este, que, em Do Contrato, já havia sido considerado uma etapa da evolução social do homem que deveria ser abandonada, em prol do homem moral e racional, em O Emílio, passa a ser um aspecto da natureza humana, que passa a ser objeto de modificação através da desnaturação. A marcha do homem em sociedade é irreversível, mesmo com a degeneração e a perversão, a redenção encontra-se na sociedade; é impossível olhar para trás. É no homem social que reside a condição de possibilidade do surgimento do homem moral e livre. O processo educativo faz esta ponte entre natureza e sociedade: “Nascemos fracos, precisamos de força; nascemos carentes de tudo, precisamos de assistência; nascemos estúpidos, precisamos de juízo. Tudo o que não temos ao nascer e de que precisamos quando grandes nos é dado pela educação” (ROUSSEAU, 1999, p. 8). Essa educação, coloca Rousseau (1999, p. 8-10), vem da natureza, dos homens e das coisas. A educação da natureza diz respeito ao desenvolvimento das faculdades, dos órgãos, das paixões: é a parte inata da educação. Os sentidos, as paixões a disposição para o amor de si, a piedade, a manipulação pelo choro (ataques de birra), fazem parte da educação natural. O sentimento moral não está incluído nessas disposições inatas: é uma potencialidade. A criança não sabe, até atingir a idade da razão, o que é bem ou mal. Não podemos inferir uma bondade natural ao ser humano, no máximo, uma potencialidade que a educação dos homens ajuda a desenvolver ou a transformar em mal. No capítulo V de O Emílio, o instinto social passa a ser considerado, por Rousseau, como componente inato, contrastando com escritos anteriores, principalmente com O Discurso: O primeiro sentimento de uma criança é amar a si mesma, e o segundo, que deriva 87 do primeiro, é amar os que lhe são próximos, pois, no estado de fraqueza em que se encontra, não conhece ninguém a não ser pela assistência e pela atenção que recebe (ROUSSEAU, 1999). Rousseau (1999, p. 274-275) coloca que o amor por si próprio faz com que amemos outra pessoa, para nossa própria conservação. Nesse aspecto, teríamos um instinto social que nos liga ao outro. A visão do selvagem solitário e auto-suficiente é reavaliada pelo próprio Rousseau. O Emílio chega a conter, para Cassirer, por exemplo, vários paradoxos, sendo um dos principais a educação isolada de Emílio dos homens, mas, ao mesmo tempo, o preparo, passo a passo, para o convívio, como ser livre e moral, em sociedade. Independentemente desses paradoxos, para Cassirer: Em O Emílio, Rousseau visa o homem moral e livre para conviver numa sociedade justa e igualitária. Sendo a sociedade a causa dos males, é nesta que a solução deve advir. O instinto social é necessário para o homem resolver este paradoxo, pois ele é, por instinto, um ser que precisa da ligação com o outro (CASSIRER, 1954, p. 56). A educação das coisas é a educação do contato entre o homem e o mundo, a maneira como as faculdades, a experiência, os sentidos e a razão interagem com as coisas. A relação entre o homem e os objetos, ou o que se passa no mundo interno entre o homem e as coisas, sem mediação da natureza e de outros homens. E a mais relevante de todas: a educação dos homens. Esta é o grande objeto da educação de O Emílio. Na realidade, para completar a educação da natureza e das coisas, o Emílio deve ser mediado pelos homens. É desta interação que irá surgir o cidadão. Para Rousseau (1999, p. 4), começamos a nos instruir, quando começamos a viver; nossa educação consiste menos em preceitos que em exercícios. Começamos a nos instruir, quando começamos a viver; nossa educação começa junto conosco; nosso primeiro preceptor é nossa ama-de-leite. Em seguida, Rousseau coloca que a mãe e o pai são os grandes educadores, na fase inicial da criança. Essa é a gênese da socialização do homem. Em O Emílio, a raiz do mal e da violência humana encontra-se aí. Vamos detalhar passo a passo este processo. Analisando a relação entre a criança e os cuidadores, Rousseau (1999, p. 50) coloca que é o choro que introduz o vínculo do ser humano com o mundo circunjacente. É o primeiro sinal que ativa uma relação, fonte de inserção da relação criança-adulto. A importância do choro em O Emilio é significativa, a ponto de Rousseau colocar que “aqui se forja o primeiro elo da longa cadeia de que é formada a ordem social” (ROUSSEAU, 1999, p. 50). 88 O choro introduz a criança na ordem da necessidade, e a resposta do adulto a essa necessidade é o primeiro passo para a socialização da criança. Logo em seguida, Rousseau avalia outro componente inato que o choro produz: o desejo de domínio e controle, colocando a relação criança-adulto dentro de uma dialética ordem-obediência. O paradoxo é que a criança começa chorando, para pedir ajuda às necessidades básicas (fome, sono), mas logo passa a usar o choro para tiranizar e controlar o adulto. Podemos conjecturar que é nesta interação que ocorre a passagem da agressividade natural para a violência social. Nesse contacto com a sociedade representada pelo cuidador, a criança perverte instintos naturais, como piedade, amor-de-si e agressividade, e passa a se tornar egoísta, tirânica, vaidosa e violenta. Os primeiros choros são pedidos; se não tomarmos cuidado, logo se tornam ordens. Começam por se fazer ajudar e acabam por se fazer servir. Assim, de sua fraqueza, de onde provém, inicialmente, o sentimento de dependência, nasce, a seguir, a ideia de império e dominação (ROUSSEAU, 1999, p. 52). Na sequência desse trecho, encontramos um elo importante entre a necessidade natural e a criação de necessidades artificiais pelo vínculo social. No momento em que Rousseau parece encontrar um princípio na criança, que a torna instintivamente propensa a manipular e a tiranizar os adultos, que tem analogia com a vontade de poder, em Hobbes, Rousseau recua e foca no adulto socializado o gesto que perverte a necessidade da criança. Rousseau (1999, p. 5) conclui, então, que, sendo a ideia de dominação excitada menos pelas necessidades que por nossos serviços, começamos aqui a perceber os efeitos morais, cuja causa imediata não está na natureza, e já vemos, porque, desde a primeira idade, é importante distinguir a intenção secreta que dita o gesto e o grito. Nessa relação, existe um desejo na criança que vai além das necessidades, e é o adulto que deve impor limite. Rousseau chega a dizer que toda criança “é má porque é fraca. Posteriormente a razão ensina a conhecer o bem e o mal” (ROUSSEAU, 1999, p. 67). Outro progresso torna a queixa menos necessária às crianças: é o de suas forças. Podendo mais por si mesmas, precisam com menos frequência recorrer aos outros. Junto com a força, desenvolve-se o conhecimento, que as põe em condições de dirigi-la. É nesse segundo grau que propriamente começa a vida do indivíduo, quando, então, ele toma consciência de si mesmo. A memória amplia o sentimento de identidade para todos os momentos de sua existência; ele se torna verdadeiramente uno, o mesmo e, por conseguinte, já capaz de felicidade e miséria. Portanto, é importante começar a considerá-lo agora como um ser moral (ROUSSEAU, 1999, p. 67). Para Rousseau (1999, p. 55), antes da idade da razão, fazemos o bem e o mal sem sabêlo, e não há moralidade em nossas ações, embora, às vezes, ela exista no sentimento das ações 89 de outrem que se relacionam conosco. A criança depende dos adultos para modular seus instintos que, tendem se deixados livres, à falta de limites e à tiranização da relação. O adulto, para Rousseau (1999, p. 178), diferentemente da criança, é um ser moral, e só este pode modular e redirecionar, através da educação, o movimento sem limites da criança. Para Rousseau (1999, p. 54), a criança tem uma tendência maior para destruir, porém a natureza coloca, nesse princípio ativo, uma quantidade pequena de força. As pessoas que entram em contacto com a criança são responsáveis pelo desenvolvimento deste princípio, e ela, sendo fraca, necessita dos adultos para manipular, e são justamente eles que potencializam artificialmente o poder das crianças, principalmente, quando criam necessidades não naturais, que são alimentadas pela fantasia. É justamente na satisfação dessas necessidades fantasiosas e artificiais, que o adulto desvia a criança das necessidades naturais. Em função desse importante aspecto, Rousseau coloca que a educação dos homens deve ser inicialmente negativa, trabalhando apenas com o favorecimento das necessidades naturais, sem interferência. “Limitar seu desejo a suas forças”, para Rousseau (1999, p. 55), é a chave para evitar que a criança torne-se um pequeno tirano. Não criar necessidades artificiais é o corolário dessa sequência. Mais uma vez podemos achar um elo de passagem da agressividade natural para a violência social. A criança, instintivamente, traz a possibilidade para o bem e para o mal; é o adulto socializado que possibilita a direção desses instintos para um lado ou para o outro. A formação do hábito é um dos elementos mais importantes nesta sequência, visto que estes são difíceis de modificação. Se a criança, por exemplo, aprende a manipular o meio através de chantagens e birras, vai formando o hábito que a transforma em uma verdadeira tirânica agressiva. A raiz da agressividade encontra-se nessa interação criança-adulto, sendo o adulto socializado o fator de criação de necessidades artificiais e fantasias na criança. Para Cassirer (1954, p. 67), O Emilio é fruto de um planejamento que tenta evitar o homem socializado corrompido, através do isolamento da criança desta sociedade. A desnaturação significa partir da natureza, sair da corrupção da sociedade e construir um homem moral. Cassirer vê, neste aspecto, o dever da perfectibilidade em Rousseau. O homem natural, com seus instintos, suas faculdades e suas potencialidades, necessita da relação com o outro para tornar-se moral; esta ligação é instintiva, porém o outro faz parte de uma sociedade violenta, corrompida e desigual. A educação, em O Emilio, é um produto da tentativa de Rousseau, em “criar um outro homem, do dever ser moral e coletivo dentro de uma nova 90 sociedade” (Cassirer, 1954, p. 87). Passaremos agora a analisar, dentro dessa dialética da relação criança-adulto, a formação do instinto do amor em si e da piedade. Para Rousseau (1999, p. 273), as paixões são o principal instrumento de nossa conservação. Os instintos são naturais, mas “mil riachos estranhos somaram suas águas à dela [...], nossas paixões são muito limitadas”. Nessa frase, encontra-se um princípio que associa fatores sociais às paixões, modificando-as. Na realidade, as paixões naturais são poucas, e a sociedade transforma e multiplica, através da fantasia, ela cria novas necessidades, artificiais. Em relação às paixões inatas, uma é considerada o antecedente de todas as outras. É justamente a modificação desta paixão que gera os transtornos que serão responsáveis pela corrupção do homem. Para Rousseau (1999, p. 740), o amor de si é sempre bom e estando cada qual encarregado da sua própria conservação, o primeiro cuidado e o mais importante é e deve ser zelar por ela continuamente. O amor de si faz com que a criança apegue-se à sua ama. Para Rousseau (1999, p. 275), o que torna o homem essencialmente bom é ter poucas necessidades e pouco se comparar com os outros; o que torna essencialmente mal é ter muitas necessidades e dar muita atenção à opinião de outros, neste caso dos membros de uma sociedade corrompida e escrava de preconceitos. A partir desses princípios, poderemos dirigir, para o bem ou para o mal, as paixões da criança. Dent (1996, p. 38) desenvolve a dialética que vai, em Rousseau, do amor de si para o amor próprio. O amor de si é instintivo, trabalha para a autopreservação, o bem-estar e a criatividade do indivíduo. O amor de si é fundamental para ter simpatia pelo outro, estabelecendo vínculos sociais saudáveis. Associa-se ao livre-arbítrio, nesse caso, sendo responsável pela busca da perfectibilidade e superação do homem. A liberdade, bem fundamental, é fruto do amor de si. Dent (1996, p. 38) coloca que Rousseau, após descrever o amor de si, coloca a liberdade e a perfectibilidade como instintos do ser humano. Este termo – instinto - é importante, pois leva a crer que Rousseau concebe uma base biológica - e, por que não arriscar, genética? -, para o altruísmo. No mínimo, uma propensão, uma tendência, que, se desenvolvida, faz do homem um ser cooperativo e moral. Mas a situação começa a complicar com o amor próprio. Como diz Starobinski (1991, p. 98), o obstáculo, a mentira e a corrupção começam nessa dialética, que transforma o amor de si em amor próprio. Mas, como isso é possível? Se seguirmos Dent: Logo após formar uma associação estável com outros seres humanos, é suscitado um desejo que se torna dominante e absorvente, de estabelecer-se como superior ao outro, de adquirir um poder arbitrário e despótico, de impor submissão e ignomínia ao outro. As relações humanas são desfiguradas por um desejo insaciável de 91 dominação e prestígio que exige e impõe deferência e subordinação (DENT, 1996, p. 40). O capricho, esta ponte que é descrita em O Emílio, é o que faz a transmutação de “instintos benéficos” para “maléficos”. O capricho, para Rousseau, é uma paixão artificial, alimentada pelos cuidadores, na criança. Tem origem na sua frustração em face de um desejo não atendido. A criança “sente medo e raiva e passa a hostilizar o adulto” (Dent, 1996, p. 52). Uma vez alimentado, este capricho transmuta o amor de si em amor próprio, e o poder, o desejo de domínio, o orgulho e a violência passam a comandar a vida da criança. Em resumo, estamos falando de Emílio, um bebê sem caprichos, ou com estes sendo cortados pela educação da natureza. A natureza não é a causa da violência: não podemos naturalizá-la, como vai ocorrer a partir de Darwin, com o darwinismo social, principalmente. É o homem e a estrutura social formada por ele que introduzem a violência em nossa espécie, e, junto a ela, suas máscaras, como a crueldade, a perversidade, os genocídios, a corrupção, o racismo, o bullying, o terrorismo, as guerras. Continuando a falar sobre Emílio, a educação que o perpassa, de negativa torna-se positiva, principalmente na idade da razão. A partir daí, podemos falar de moral e liberdade. A capacidade de perfectibilidade é atingida plenamente na idade da razão. Toda a educação do Emílio é voltada para evitar os males do amor próprio que, para Rousseau (1999, p. 358), não raro fere a mão que dele se serve e raramente faz o bem sem o mal19. Para Starobinsnki (1991, p. 89), a experiência infantil é o solo e o húmus do pensamento: na infância perdemos a ilusão do bem, o véu que encobre a verdade perde-se. O véu agora dá passagem para a crueldade e a violência do mundo adulto. A cisão ser e aparência instaura-se na criança. Bem vindo ao mundo adulto! É a vaidade, produto do amor próprio, uma das paixões mais danosas que o véu expõe a que “nada pode curar” (ROUSSEAU, 1999, p. 375), e que será o grande rito de iniciação da criança ao mundo do parecer do adulto. A aparência é a mascara, o artifício e a vaidade. Impedi-la de crescer é a tarefa da educação. Cassirer (1954, p. 97) coloca que, para Rousseau, o impulso para espoliar e dominar, com violência, é algo estranho ao homem natural, e, como tal, esse só pode surgir e criar raízes, depois que o homem passa a viver em sociedade e conhece todos os desejos artificiais. Entre o homem natural, o homem em sociedade, e, o 19 Estes processos que vão da educação negativa a positiva fazem parte do processo de desnaturação, que na realidade significa uma ultrapassagem do “bom selvagem” e do homem em sociedade civil, e a criação do ser moral e livre em uma nova sociedade. Neste caso, a infância é o palco para este processo e criação do novo cidadão, matriz de uma sociedade justa, ética, livre e igualitária. 92 homem resultado da educação em O Emílio, existe um processo de desnaturação. Este processo educativo, que inicia com o Renascimento, com Comenius, Erasmo, Morus, passa por Locke, enraíza-se com o Iluminismo e, em Rousseau, torna-se o dever-ser da criança. Partir da natureza, entrar na sociedade, modificá-la e aperfeiçoá-la, para Cassirer (1954, p. 78) é um processo que corrobora a tese de Rousseau de que o homem traz a potencialidade moral dentro de si; do contrário, o homem natural não seria capaz de tornar-se ético. Só o homem desnaturado, que passa pelo estado de natureza, sociedade civil e Contrato Social é capaz de atingir essa meta, porém a criança tem, à frente, “o obstáculo”, que é o véu dos preconceitos, das regras do falso moralismo, que fazem do homem, um projeto de aparência, falso, que mente para conseguir explorar o outro. O palco de aparências infla o orgulho da criança real e a transforma em um pequeno tirano. Handel (apud DENT 1996, p. 99) acredita que o homem só se torna moral, quando sai do estado de natureza, passa pela socialização e reconstrói, sob bases éticas, essa mesma sociedade. Para esse projeto, a educação é a principal estratégia. Educar a criança e acompanhá-la nas diversas idades até transformá-la em cidadã. Para Rousseau (1996, p. 392), é do sistema moral formado por essa dupla relação, consigo mesmo e com seus semelhantes, que nasce o impulso da consciência. Conhecer o bem é amá-lo; o homem não tem um conhecimento inato do bem, mas, assim que sua razão faz com que o conheça, sua consciência leva-o a amá-lo. É este sentimento que é inato. O homem moral nasce com a idade da razão, o bom selvagem não é moral, assim como a criança até a idade da razão. Cassirer e Handel percebem um Rousseau que aposta na transformação do homem, inclusive, dos seus componentes instintivos. Esta interação entre o biológico e o social faz o homem tornar-se moral. O caminho é a liberdade e a perfectibilidade. Vamos acompanhar, um pouco, a adolescência de Emílio e o surgimento de Sofia. 93 2.3.1 Emílio e Sofia O termo adolescência não estava em voga quando Rousseau escreveu O Emílio. No início do livro, Rousseau (1999, p. 13) divide o final da infância como puberdade, que se inicia entre os 12 e os 15 anos: é a idade da força. Deixando de lado a dependência e a fraqueza de criança, o púbere começa a ganhar força e a ficar mais independente. Essa transição, para Rousseau (1999, p. 272), é uma tempestuosa revolução, anunciada pelo murmúrio das paixões nascentes; uma fermentação muda, que anuncia a aproximação do perigo; uma mudança do humor; arroubos frequentes e uma contínua agitação, que torna a criança quase indisciplinável. Torna surda, a voz que a fazia ficar dócil. Como um leão em sua pele, desconhece seus guias, já não quer ser governada. Essa fase, para Rousseau (1999, p. 278), é um “segundo nascimento”. Na criança, o amor de si, por influência social, já se transforma em capricho, tirania, inveja, ciúme, disputa; na idade da força, soma-se a vaidade, o orgulho e a crueldade. A comparação com o outro, as preferências, os preconceitos, a opinião e, principalmente, a imaginação criam necessidades artificiais, que, somando-se à agressividade e ao egoísmo, fazem do púbere um lobo em potencial. Para Rousseau (1999, p. 275), eis como paixões doces e afetuosas nascem do amor de si, e como as paixões odiosas e irascíveis nascem do amor próprio, assim, o que torna o homem essencialmente bom é ter poucas necessidades e pouco se comparar com os outros; o que torna o homem mau é ter muitas necessidades, dando muita atenção à opinião. A partir desse princípio, é fácil ver como podemos dirigir para o bem e para o mal todas as paixões das crianças e dos homens. Esse é o ponto de Arquimedes em O Emílio. A dialética natureza-sociedade, instintosrelação com o outro (intersubjetividade), representa uma estrada com vários caminhos. Se existe uma tendência para a bondade, esta é apenas uma possibilidade. Na interação criança e cuidadores, existem inúmeras possibilidades: crueldade, tirania, doçura, maldade. Jogamos com interação, instintos e meio, ou, em uma linguagem atual, genes e sociedade. A violência é um produto dessa interação. Podemos até admitir, em Rousseau, tendências naturais, como o amor de si e a piedade, mas são possibilidades, que podem transformar-se em crueldade e violência. Até a idade da razão, para Rousseau (1999, p. 377), não podemos falar em moral. Até então, o jogo das paixões interagindo com os outros vai tecendo suas teias, tais como as parcas. 94 Na Profissão de fé do vigário Saboiano, que se encontra no capítulo IV do EMÍLIO, Rousseau fala de um instinto social. “O homem é social por natureza, ou pelo menos, é feito para tornar-se tal” (ROUSSEAU, 1999, p. 39). Este trecho contradiz textos anteriores, inclusive algumas passagens em O Emílio. Colocar a socialização como instinto, dentro da natureza, é reconhecer que não existem indivíduos isolados, como no Discurso. Este é um paradoxo, entre tantos, na obra de Rousseau. Para Starobinski (1991, p. 78), transparência e obstáculo, ser e parecer, verdade e mentira, indivíduo e sociedade, são pares que se opõem e complementam-se em Rousseau. Existe um movimento circular que inicia na criança e suas tendências inatas de amor de si, conservação, fome, temor da morte, necessidade de bem-estar, passando pelo outro, que cuida dela. Desse encontro, paixões inatas, como capricho, ciúme, inveja, crueldade, podem desenvolver-se. Alguns instintos, como o choro, a manipulação, o capricho e o amor próprio, dependendo dessa relação com os cuidadores, podem possibilitar à criança transformar-se em um violento e cruel tirano. Mas, por não ter ainda forças físicas suficientes, a criança espera a idade da força e da razão para transformar-se de vez em lobo. É na puberdade que a violência instala-se com toda intensidade. Na Profissão de Fé, Rousseau (1999 p. 379) declara que Deus não é o autor do mal, uma vez que Ele é justo e bom e em nada se relaciona com a maldade humana. O autor do mal é o próprio homem, que é livre, e é essa liberdade que o coloca frente a frente com o bem e com o mal. A sociedade é feita por homens. Sendo o homem um ser com instinto social, a sociedade pode ser o produto da perfectibilidade ou da corrupção humana. Queremos obter a preferência que concedemos; o amor deve ser recíproco. Para ser amado, é preciso tornar-se amável. Para ser preferido, é preciso tornar-se mais amável do que os outros, mais amável do que qualquer outro, pelo menos aos olhos do objeto amado. Daí os primeiros olhares para os semelhantes; daí as primeiras comparações com eles; daí a emulação, as rivalidades, os ciúmes (ROUSSEAU, 1999, p. 277). Esse trecho nos fornece pistas sobre o duplo caminho das paixões, no contato com o outro. Verdade e aparência, transparência e obstáculo. Para Starobinski (1991, p. 98), essa dialética perpassa o indivíduo, chega ao outro e retorna ao indivíduo. No caso de O Emílio, esse jogo de espelhos ocorre entre a criança e os cuidadores. Um jogo de rivalidades, ciúmes, inveja, disputas. Emílio, na idade da força, deve trabalhar principalmente, em ofícios manuais e estudar, principalmente história, controlar as paixões, cooperar e trabalhar junto a outros, aprender a 95 socializar-se, cooperando. Segundo Rousseau (1999, p. 356), a troca e a reciprocidade são valores que devem ser adquiridos por Emilio. Na idade da razão, é “preciso estudar a sociedade pelos homens e os homens pela sociedade; quem quiser tratar separadamente a política e a moral nada entende de nenhuma das duas” (ROUSSEAU, 1999, p. 309). Não é o desejo de ser o primeiro, mas o de superar-se e contribuir para a coletividade, que faz da idade da razão a fase apropriada para o desenvolvimento da moral. A piedade desenvolve-se plenamente nesta idade, mas temos o “outro lado”, do amor próprio, do orgulho, da vaidade e da crueldade. Nesse momento, temos Emilio e o lobo púbere frente a frente. Emílio desnaturou-se e tenta contribuir para o contrato social, mas os lobos encontramse soltos, em plena idade da razão, movidos pela vaidade, violentos e cruéis. Emílio, desnaturado versus lobos, frutos da socialização, que o preceptor tentou evitar em Emílio. Podemos agora resumir que, dos 12 aos 15 anos, Emílio deve aprender educação social, ofício manual, hierarquia dos ofícios, escolha de uma profissão e acúmulo de experiências úteis. Deve lutar contra a opinião e os preconceitos. Na idade da razão, dos 15 aos 20 anos, vem a educação sexual, estudo da história das paixões para aprender melhor sobre o homem, o desenvolvimento da piedade levando a uma verdadeira sociabilidade e a uma educação religiosa. O preceptor forma, assim, o púbere moral e o racional. Da natureza para a sociedade e da sociedade para a natureza modificada. Do outro lado, muitos lobos na idade da razão, inflados pela vaidade, são verdadeiros tiranos. Este confronto ainda passa por Sofia. Vamos agora contar um pouco dessa história. 96 2.3.2 Sofia “Enfim o grande dia chegou. Elas partiram, e Cinderela seguia com os olhos até onde pôde. Quando sumiram de vista, começou a chorar. Sua madrinha, que a viu em prantos, lhe perguntou o que tinha: ‘eu gostaria tanto de... eu gostaria tanto de...’ Cinderela soluçava tanto que não conseguia terminar a frase. A madrinha, que era fada, disse a ela: ‘você gostaria muito de ir ao baile, não é?’ ” (PERRAULT, apud TATAR, 2004, Cinderela ou O sapatinho de vidro, p. 42). Para concluir seu intento, o preceptor precisa casar Emilio. A sociedade é formada por lobos, como evitar que a educação das crianças fique sob a responsabilidade de lobos? O gênio literário de Rousseau cria uma nobre personagem: Sofia. Diferentemente de Emilio, Sofia não tem preceptor. Aprendeu os trabalhos próprios do seu sexo, mesmo aqueles de que não damos conta, como cortar e coser seus vestidos. Aprendeu canto e dança com a mãe e o pai; criada para ser mulher, Sofia não passou pelo processo de desnaturação de Emilio. Tal como uma personagem virtual, estava pronta, “dócil e meiga, nem feia, nem bonita, apenas delicada” (Rousseau, 1999, p. 504). Da boa constituição das mães depende em primeiro lugar a boa constituição das crianças, do cuidado das mulheres depende também seus costumes, paixões e gestos, seus prazeres, sua própria felicidade (ROUSSEAU, 1999, p. 502). Sofia deve seu aprendizado, em boa parte, às lições da mãe, que, como preceptora, faz introjetar a máxima: “A mulher foi feita para ceder ao homem e para suportar até sua injustiça” (ROUSSEAU, 1999, p. 554). Sofia é bondosa, enrubesce fácil, é discreta e tímida, mas é esperta para conhecer os desejos do homem. Amadureceu rapidamente. Canta e dança, é sensível e pudica. É a perfeita costela de Emílio, apta a formar filhos, para se submeterem à vontade geral. Sofia compõe um perfil feminino da época dominada por homens. A submissão da mulher, a função de mãe e de dona de casa, as diferenças de criação e socialização são relevantes, no Emilio, que segue uma sociedade formada por homens, em que as mulheres são meras coadjuvantes. Tanto é que Sofia aparece no final do livro, é pouco aprofundada como personagem e reproduz a mulher submissa da família nuclear burguesa. 97 Longe do gozo sentido pelas surras da Srta. Lambercier, dos encontros com a Srta Vurson e a Srta. Goton, que davam tanto prazer e estimulavam a sua luxúria, aos 11 anos20, Sofia era uma personagem ideal, fruto de uma família que deve ser a base para criação do sujeito real. Longe da fundamental e real Srta Warrens, que tem grande importância na formação da personalidade de Rousseau - já que este perdeu a mãe, ao nascer, e da companheira Thérése, que lhe deu quatro filhos, que por necessidade, fatalidade e contingência, foram parar no orfanato -, Sofia é a mulher idealizada por excelência. Uma tentativa de construção de uma “Família Saudável”, que forma a base da nova sociedade do contrato. Como uma sequência do processo educativo o preceptor intercepta a mãe e Sofia para o encontro com Emílio. No final, Emílio diz ao preceptor: “Cumpriste tuas tarefas, guia-me para imitar-te, e descansa que é tempo” (ROUSSEAU, 1999, p. 680). Sofia, socializada para ser mulher. Para extrair um eixo para nosso problema sobre a agressividade e a violência em Rousseau, é a infância que fornece nossa chave. Não apenas em O Emílio, mas também nas Confissões, podemos colocar que a criança não é boa nem má, nasce com predisposições. O meio, os cuidadores, a sociedade como um todo direcionam as tendências naturais. Locke (2000, p. 78), na sua pedagogia, já antecipa como deve ser a educação das crianças. Locke quer formar o bom cidadão. Acredita, que a educação, os pais, o preceptor, podem dobrar tendências naturais e transformar a criança em uma boa cidadã. O importante é seguir Rousseau, em O Emilio, e ver que a solução final encontra-se na formação do casal, ou seja, na família. Esse processo passa por uma educação negativa, monitorizada pelo preceptor, tendo a natureza e os instintos como função fundamental. A criança deve ser afastada da sociedade, de sua contaminação, para, depois, retornar, sem os vícios e os desvios, para possibilitar a formação de um sujeito moral. Instintos naturais, como piedade, empatia, cooperação, vão surgindo naturalmente, sem a intervenção da sociedade civil, com seus males e sua degeneração. Sofia fecha o ciclo, em O Emilio, e o preceptor cumpre sua tarefa de educar em favor da natureza, culminando com o surgimento do amor entre homem e mulher e a formação do 20 Estas mulheres participaram da vida de Rousseau, estimulando a sua sexualidade, seus desejos masoquistas e um misto de culpa e prazer. São mulheres reais que contribuíram para formação de Rousseau, segundo o depoimento do próprio escritor contido nas Confissões Livro I, 2008. 98 casal. Essa é a utopia de Rousseau, mas assim, ele tenta fornecer subsídios para diminuir a violência entre os homens. O contrato faz parte de um processo que passa pela educação, que não é a educação formal. A natureza ensina ao homem a se tornar um sujeito moral e racional. Longe de naturalizar a violência, temos a natureza como resposta a ela. É na família, no amor natural, no casal Emilio e Sofia, que Rousseau tenta encontrar a resposta. Instintos, genes, temperamento, caprichos, todos esses caminhos, digamos, naturais, podem ser corrigidos pela educação. Preceptores, professores, pais, sociedade em geral, podem tornar a criança e o adolescente menos violentos? A agressividade é uma tendência inata, mas em nada se relaciona com destruição e violência? 99 2.4 AGRESSIVIDADE E VIOLÊNCIA EM ROUSSEAU Em Rousseau, temos, interpretando seus textos, a agressividade como componente natural da espécie, que serve para a sobrevivência, a superação, o aperfeiçoamento, a defesa. Não pode ser considerada um instinto negativo. Detalhamos esse aspecto na relação força e capacidades naturais em O Emílio. O marco divisor ocorre com a introdução da criança nas relações sociais. Os instintos naturais trazem o potencial para a piedade, o amor de si e a cooperação. Não nascemos ávidos por tiranizar e dominar; não somos egoístas por natureza. É na interação com o cuidador, que representa a sociedade, com suas normas e valores, que instintos inicialmente positivos se transformarão em tirania, violência, disputa, falta de consideração pelo outro. Fazer crescer a imaginação na criança, atender a ela e dar força a caprichos, torná-la rei ou rainha, criar necessidades artificiais, como luxo, riqueza, vaidade desmedida, faz do homem um ser violento. A violência é social. Não nasce com o homem, mas se faz nele através dos outros. A naturalização da violência encontra, em Rousseau, um dos principais opositores. Isso não quer dizer que somos anjos e bonzinhos, naturalmente, mas que não é na natureza que devemos tentar encontrar a raiz da violência. A linguagem, assim como em Hobbes, tem um importante papel na socialização do homem. Fornece chaves do tipo de educação, de desenvolvimento do sujeito moral e criação de laços de solidariedade e empatia. A resposta está no coração, na verdadeira natureza do homem, que é piedosa e cooperativa. Rousseau, nas Confissões21, define que o homem não “é” um lobo para o homem, apenas “está” um lobo. A criança é a chave para acompanharmos o processo de socialização. Não precisamos produzir lobos, mas crianças que se tornarão sujeitos morais, para isso temos que reformar a sociedade civil tornando-a uma República de cidadãos “virtuosos”. Esta que Rousseau tentou superar, mas ainda encontra-se presente em nossas vidas. Aqui entramos numa situação complexa: se a violência é produto social, então o Estado, dominado pela vontade geral, tem que ser produto da violência. Temos agora uma questão importante a ser colocada: para Rousseau a violência é criada pelo homem e é através dela que podemos tentar uma alternativa para uma sociedade mais justa e ética. Esta dupla face da violência é fundamental para continuarmos o aprofundamento de nossa tese. O processo educativo, por si só, já requer uma violência simbólica, como refere Bourdieu (2009). Um freio e um limite para reparar a 21 Starobinski (1991, p. 98) remete as Confissões como exercício de desnudamento do véu em Rousseau. 100 violência que instaura a exploração e a formação de pequenos tiranos da sociedade civil. Neste ponto, através de caminhos diferentes, extraímos de Rousseau este duplo da violência, que por questão de método denominamos de negatividade e positividade. Este tema será aprofundado à medida que começarmos a estudar os próximos tópicos. Vamos agora começar uma jornada pela etologia, psicologia evolucionista, neurociência, Psiquiatria, para adentrarmos nos séculos XX e XXI, tendo, como proposta, dialogar com Hobbes e com Rousseau, observar pontos de interseção, divergências e contribuir para o debate sobre agressividade e violência, trazendo-os para a ciência. Recorro a Hume (2000), como sombra, presença oculta, fio que une a filosofia, a ciência e a arte. Para Hume: Embora não haja tal coisa como o acaso no mundo, nossa ignorância da causa real de qualquer evento tem igual influência sobre o entendimento gerando equivalente tipo de crença e opinião. A probabilidade aparece como a superioridade de possibilidades a favor de uma das partes e, à medida que esta superioridade aumenta excedendo as possibilidades opostas, a probabilidade recebe um aumento proporcional gerando maior grau de crença ou assentimento à parte que descobrimos a superioridade (HUME, 2000, p. 71). A partir de agora, continuaremos apostando nos sentimentos humanos, na capacidade de empatia e cooperação: joguemos os dados. Para onde vai pender a violência? 101 CAP. 3 ETOLOGIA E SOCIOBIOLOGIA: Dos Instintos Básicos à Agressividade Humana 3.1 DETERMINISMO, GENE E AGRESSIVIDADE: Behaviorismo e Meio Ambiente Coraline observou o gato andar lentamente pelo gramado. Passou por trás de uma árvore e não reapareceu do outro lado. Coraline foi até a árvore e olhou por detrás. O gato havia sumido. (GAIMAN, Coraline, 2003, p. 41). Para Lestel (2006, p. 15-29), uma autêntica ciência do comportamento animal surgiu apenas há dois séculos. Citando Descartes, que tem como precursor Gomes Pereira (século XVI), Lestel (2006, p. 16) coloca que a visão do animal como máquina sem alma influenciou filósofos e cientistas, incluindo Malebranche (1638-1715), segundo o qual animais e relógios são regidos pelo mesmo princípio. Buffon (1707-1788) segue os passos do animal-máquina, colocando que a vida dos animais é monótona, e eles nada criam. Faz uma exceção para os chimpanzés, mas, mesmo assim, considera-os animais desprovidos de interioridade e de criatividade e, utilizando uma metáfora, afirma que são “um aborto retardado do homem”. Lestel (2006, p. 20-21) cita Charles-George Le Roy (1723-1789), como um dos primeiros cientistas a tentar analisar o comportamento animal, fazendo analogias com o comportamento humano. Locke (1632-1704), Leibniz (1646-1716) e, principalmente, Condillac (1715-1780) aprofundarão estudos sobre o comportamento animal, abrindo o campo epistemológico que nutrirá Darwin (1809-1882), Huxley (1825-1895), Haeckel (18341919) e Lamarck (1744-1829). Le Roy, com o livro Lettres sur les animaux (1710), torna-se, para Lestel (2006, p. 20), o precursor da etologia. Faz estudos de campo e começa a tentar pesquisar o que diferencia e o que assemelha o homem a outras espécies animais. Para Le Roy e Condillac, o estudo sobre os animais lança luzes sobre o homem, uma vez que a sensibilidade ou a emoção une homens e outras espécies. Essa é a grande revolução que se afasta do animal-máquina e abre caminho para o reconhecimento da existência de uma sensibilidade comum entre homens e animais. Le Roy, segundo Lestel (2006, p. 21), apresenta uma ideia audaciosa para sua época: a de que os animais possuem uma linguagem artificial. 102 Podemos citar ainda Hobbes, Rousseau e Hume como pensadores que já apontam para um caminho de analogias entre homens e animais, na época moderna. Estava dado o passo para Lamarck, Darwin e outros, finalmente, sistematizarem a teoria da evolução das espécies. A etologia, que dá seus primeiros passos com Le Roy, no final do século XIX e no início do XX, ganha consistência, principalmente com estudos de Spalding, Haldane, Lloyd Morgan, os quais utilizam o conceito de “condicionamento”, dando um passo importante para a fundamentação e o desenvolvimento do Behaviorismo. Em 1931 e em 1941, finalmente, Lorenz publica oito artigos que definem e cria a etologia como estudo do comportamento animal. Dos homens-máquinas a Lorenz, as hipóteses científicas modificam-se. A filosofia também muda e é obrigada a mudar, uma vez que se tornava complicado, a partir de Darwin, ignorar a Biologia. Com o século XX, a Química, a Física, a Biologia molecular e a genética adquiririam o estatuto de ciências que detêm as respostas significativas sobre a natureza humana. Wilson (1975) chega ao exagero hiperbólico de pedir para esquecer a filosofia, a sociologia, a antropologia e a psicologia, já que a Sociobiologia, que utiliza os estudos sobre o comportamento animal, a genética, as neurociências e a Biologia molecular respondem a tudo. O homem destronado ou “morto”, como diz Foucault (1982, p. 89), ocupa, agora, apenas um determinado lugar no interior da cadeia dos seres vivos e recebe um nome: “homo sapiens”. Para Trigg (1988) e Perugini (2004), as ciências sociais e a filosofia são debitárias da Biologia, desde a revolução de Darwin, e não podemos realizar pesquisas importantes sem trazer a contribuição dessa ciência. A revolução produzida por Darwin na Biologia foi e continua sendo profunda. No século XX, dentro do marco conceitual darwinista, surge a Etologia, a Biologia molecular, o Behaviorismo, a Físico-química, a Biossociologia e a Genética. Com Watson e Crick (1953), precedidos por Mendel (1820-1884), as Parcas da mitologia vão finalmente assumir um estatuto cientifico22. Todas estas transformações acarretam um deslocamento no conceito de animal, aproximando o homem, cada vez mais, das outras espécies aparentadas. Para Lorenz (1982, p. 76), o comportamento do homem é fundamentalmente semelhante ao dos outros animais, e os homens estão sujeitos às mesmas leis causais da natureza. Ainda de acordo com Lorenz, o critério para determinar que certo padrão de comportamento seja inato é que ele seja mostrado por todos os indivíduos normais da espécie, 22 As parcas são aqui utilizadas como metáfora dos genes que tecem a cadeia da vida. 103 de determinada idade e sexo, sem nenhum aprendizado anterior e sem tentativas e erros, tendo, como maior exemplo, o comportamento agressivo (LORENZ, 1982). Lorenz (1994, p. 98) ainda postula que o homem tem o padrão inato do comportamento agressivo. Esse impulso, no homem, não é ilimitado em função de armas e artifícios que multiplicam o poder ofensivo. Além desse fator, o não respeito aos gestos de submissão feitos pelo perdedor, presente em outras espécies, encontra-se diminuído no homem, contribuindo para o aumento da agressividade intra-espécie. Para Lorenz, a “agressão intra-espécie é o mais grave de todos os perigos da humanidade” (LORENZ, 1994, p. 45). A agressão é inata, mas a cultura humana e, principalmente, a situação atual da sociedade tecnológica propicia um aumento sem precedentes da agressividade entre os homens. Ao considerar a agressividade como um componente inato da natureza humana, Lorenz aproxima-se de Hobbes; porém, para Lorenz (1994, p. 121), a guerra de todos contra todos, nos seres vivos não humanos, não redunda em uma agressão contra a mesma espécie, estando ligada à sobrevivência, demarcação de território e hierarquia. Já no homem, com o advento dos fatores sócio-culturais e simbólicos, esse instinto acentua-se a ponto de pôr em risco a própria espécie. Lorenz representa apenas uma vertente do debate natureza-cultura, que para Matt Ridley (2008, p. 34), começa a se esboçar no século XVIII, com o Iluminismo e a partir do século XX até hoje provoca querelas entre corretes de pensamento que defendem que o homem é determinado pelo meio ou pela genética. Inato e adquirido são cara e coroa de uma mesma moeda, para Ridley (2008, p. 89), mas o dogmatismo persiste gerando falsas dicotomias. Diferentemente de Lorenz, por exemplo, Skinner e Watson, criadores da corrente Behaviorista, partindo de Pavlov e seus reflexos condicionados, delegam ao meio ambiente um papel determinante na formação da natureza humana. Neste aspecto, podemos interferir e mudar a natureza humana. Ridley (2008, p. 234) chega a colocar que nas fantasias de Watson (apud RIDLEY, 2008, p. 126) o homem poderia criar qualquer tipo de sociedade se conseguisse condicionar as crianças desde o nascimento para serem boas, más, artistas, cientistas. Foge ao escopo deste estudo fazer uma análise epistemológica deste tipo de psicologia, mas o Behaviorismo contrapõe-se, por exemplo, a toda interioridade e subjetividade da psicanálise, que parte de uma base instintiva e inata, pelo 104 menos em Freud e Piaget23, que cria o construtivismo a partir de uma base genética que determina as etapas do desenvolvimento da criança24. Dentro destas querelas, em 1975, aparecia um livro de E. O. Wilson, intitulado Sociobiologia, que tinha a pretensão de “codificar a sociologia dentro de um ramo da biologia evolutiva, abarcando todas as sociedades humanas, antigas e modernas, pré e pós industriais” (WILSON, 1975, p. 8). Para Wilson (1975, p. 102), “a existência de indivíduos poderosos e dominantes, que governam despoticamente o resto do grupo, é um fenômeno que tem correlato nos primatas superiores; a agressão faz parte do ser vivo e serve para sobrevivência, sendo positiva. Ainda segundo Wilson o gene determina o comportamento egoísta no homem, e isto aproxima a sua teoria à de Hobbes. O altruísmo e as cooperações são estratégias do egoísmo genético em prol da sobrevivência do gene. Aproximando esta visão do pensamento de Hobbes, poderemos reinterpretar as “leis da natureza” hobbesianas como uma estratégia adaptativa presente no código genético. Dentro desta corrente de pensamento, temos Richard Dawkins (2001), que com o livro O Gene Egoísta de 1976, expõe a tese que todas as nossas condutas são estratégias de genes para reproduzir-se e perpetuar-se. O mundo criado por esta máquina de genes é egoísta, competitivo, feito de exploração impiedosa, onde o altruísmo seria apenas uma estratégia para perpetuar o gene. Dawkins cria metáforas, pois ao falar de humanos recorre aos “memes”, como veremos adiante. Está dado um passo importante na eterna luta natureza/cultura. A psicologia evolucionista, a partir da década de 80, penetra de vez nos debates sobre a natureza humana: genes, neurociências, etnólogos, sociobiólogos, psicólogos evolucionistas, comportamentalistas, psicanalistas, todos querem uma fatia do bolo. Sonho (ou pesadelo) da biopolítica25, segundo Agamben (2007, p. 89), a Biologia foi a grande estratégia para controle 23 Piaget desenvolveu seus trabalhos no século XX, partindo do desenvolvimento da criança e da interação desta com o meio ambiente. A criança parte de um estágio sensório motor, passa pelo estágio préoperacional, depois de operações concretas e abstratas. Através da interação com o meio ambiente vai se construindo, modificando-se e modificando o meio. Freud parte do inconsciente, dos instintos que não são reconhecidos pelo ego consciente, criando uma meta-psicologia, onde segundo o qual, o homem é refém do inconsciente. 24 O construtivismo parte de um pressuposto que a crianças, ao interagir com o mundo, vai construindose e modificando o que está ao redor. Com os conceitos de estágios (sensório-motor, pré-operacional, operações concretas e abstratas), a criança vai seguindo uma sequência de interação biologia e meio ambiente, onde ambos influenciam-se. PIAGET (1994) é um dos principais pensadores do construtivismo. 25 Temos que nos reportar ao conceito de biopolítica e de governabilidade de Foucault. A biopolítica é uma estratégia de controle dos corpos e das populações. A biologia é assim usada politicamente, em função de fazer parte de jogos de verdade e da relação saber-poder do Estado, que servem para controle dos corpos de um dado território. Foucault desenvolve o tema ligando-o à governabilidade que vai controlar as populações através 105 da população e dos indivíduos por parte do nazismo e do stalinismo e continuaria sendo, para Agamben, a estratégia das modernas democracias, principalmente em época de globalização26. Gene e ambiente compõem um jogo de dados, parodiando Hume, e os cálculos da aposta são políticos. Esta redução dos comportamentos sociais ao gene ou ambiente é perigosa para Ridley (2008), Gould (1981) e Rüffiê (1980), pois “grande parte da conduta humana é uma adaptação entre o gene e o meio. Nós somos capazes de dar outra direção ao determinismo genético através da cultura” (GOULD, 1981, p. 177). A política entra neste cálculo, pois ela determina que uma versão ou outra prevaleça em determinado momento. De Lorenz a Dawkins, passando por Wilson, temos uma visão biológica ou biologicista, que procura reduzir o comportamento humano aos seus condicionantes “naturais” ou genéticos e é ideologicamente comprometida com uma visão autoritária e conservadora da política, cuja solução para a agressividade é, como diz Hobbes, “a espada” (HOBBES, 2000, p. 108). Esta visão é determinista e trabalha com a idéia central de que a agressividade é um instinto que é evolutivamente adaptativo, sendo o homem geneticamente egoísta e competitivo. Por outro lado, comportamentalistas, como Watson e Skinner, localizam a agressão e a violência na sociedade e propõem uma revolução política, que mude o homem através do condicionamento social. Nosso foco é a agressividade e a violência; no entanto, apesar das diferenças, permanece uma certa confusão semântica, na Biologia, que não distingue claramente agressividade de violência e tende a naturalizar as duas. Passaremos agora para estudos de primatologistas, que, principalmente, a partir da década de 90, vem trazendo importantes contribuições ao debate sobre a natureza humana. de práticas higienistas que se centram na saúde. Uma população sadia e corpos dóceis é o ideal da biopolítica para tornar o corpo rentável e produtivo para o sistema capitalista. Esta ideia vai servir de parâmetro para a crítica da biologia como discurso hegemônico sobre o saber e criador de estratégias de poder. 26 Esta tese é questionável porque aplica indiscriminadamente o conceito de “estado de exceção” tanto aos regimes democráticos como às ditaduras, assimilando assim dois sistemas radicalmente diversos com relação, por exemplo, ao respeito aos direitos humanos. 106 3.2 NOSSA HERANÇA PRIMATA E ADAPTAÇÃO HUMANA: Agressão, Pacifismo e Bipolaridade “Os diamantes e as pistolas muito podem sobre os espíritos; não obstante as palavras doces têm ainda mais força, sendo muito mais valiosas” (PERRAULT, 2008, p. 252). Wranghan e Peterson (1998) situam nossa agressividade na herança primata, principalmente os chimpanzés, seguindo os estudos de Morris (1969), que foi um dos primeiros autores a investigar nossa herança primata na década de 1960. “É verdade que chimpanzés e humanos regularmente matam adultos da própria espécie. Os chimpanzés e os humanos também compartilham outros males; assassinatos políticos, espancamento e estupros” (WRANGHAN e PETERSON, 1998, p. 164). No livro O Macho Demoníaco (1998), os autores defendem a tese de que a agressividade humana é produto de nossa herança primata, que partilhamos principalmente com os chimpanzés, que possuem 99% do material genético semelhante ao dos humanos. Para Wranghan e Peterson (1998, p. 167), “nos chimpanzés o gênero masculino responde por quase a totalidade dos atos agressivos”. Sendo assim, além de nossa herança comum aos chimpanzés, para os autores, a agressividade estaria relacionada com o sexo masculino. Ao comparar os chimpanzés com os bonobos27, outros tipos de primatas, os autores analisam a formação social, na segunda espécie de primatas, como matriarcal, constatando que os bonobos conseguem viver com pouca agressividade, em função da diminuição do poder dos machos. Por exemplo, no âmbito desta linha de pesquisa, Frans De Waal (2007) desenvolve importantes estudos sobre a estrutura social e política de chimpanzés e bonobos, uma espécie de primata, cuja estrutura social é menos hierárquica, e o poder concentra-se mais em fêmeas, encontrando pouca agressividade intra e extraespécie. No livro Chimpanzee politcs (1989), De Waal estuda o poder e a distribuição deste entre chimpanzés que possuem uma estrutura de hierarquia rígida e fronteiras intragrupais 27 O bonobo foi descoberto em 1928, pelo anatomista estadunidense Harold Coolidge, representado por um crânio que está no museu de Tervuren, na Bélgica, o qual se acredita ter pertencido a um chimpanzé juvenil. A descoberta foi publicada em 1929. A espécie distingue-se por uma postura ereta, uma cultura matriarcal e igualitária, e o papel proeminente da atividade sexual em sua sociedade. Estudos genéticos apontam que os bonobos são os animais mais próximos dos humanos. Os bonobos é uma espécie de primata que se encontra em diversos locais da África. O estudo sobre eles tem avançado, principalmente a partir da década de 1990. 107 estreitas, em que a agressividade e a luta pelo poder são a norma. Nossa herança primata é gregária e, mesmo com a agressividade dos chimpanzés, quando passamos a analisar os bonobos, que também apresentam 99% do material genético semelhante ao nosso, entre essa espécie de primatas, a agressividade encontra-se diminuída. Entre os bonobos, a estrutura hierárquica é frouxa, o poder do macho é restrito, e o ambiente apresenta recursos mais abundantes para possibilitar a sobrevivência. Os bonobos apresentam também traços de temperamento que os torna mais pacíficos e dóceis. Entre esses dois espectros, teríamos duas possibilidades de heranças primatas: uma que reforça a agressividade natural, e outra que relativiza a agressividade, como um fator de interação entre Biologia, meio ambiente e traços de temperamento, sendo a sociedade dos chimpanzés a primeira, e a dos bonobos a segunda possibilidade. Não temos, em De Waal, uma separação entre agressividade e violência, mas uma inscrição do biológico em duas tendências, uma agressiva e hierárquica, com lutas pelo topo do comando, e outra com estrutura mais pacífica e menos agressiva. Nos bonobos, segundo De Waal, a estrutura pouco competitiva, a maior tolerância intra e inter-espécie faz com que a resolução de conflitos seja mais eficaz. A paz entre essa espécie de primatas nos remete ao mito do “bom selvagem” de Rousseau. Os bonobos são produto de traços de temperamento herdados, menos agressivos, com estrutura social menos hierárquica, menos lutas pelo poder e ambiente ecologicamente favorável, o que faz com que se questione o determinismo genético, já que são capazes, para De Waal (2007, p. 78), de criar outra estrutura social, em que a colaboração e o altruísmo fazem desta sociedade um contraponto à sociedade dos chimpanzés. Para De Waal, partindo dessas duas heranças de primatas, chimpanzés e bonobos, a natureza humana carrega uma bipolaridade que é reforçada, ora para o lado sombrio e agressivo, ora para o lado pacífico e apaziguador; esse reforço é sócio-político. Visão também compartilhada por autores, como Gould (1981) e Rüffiê (1980), na Paleontologia e Biologia. Segundo De Waal: Somos afortunados porque em nosso íntimo habita não um, mas dois grandes primatas. E os dois, juntos, nos permitem construir uma imagem de nós mesmos consideravelmente mais complexa do que a que a biologia nos tem apresentado nos últimos vinte e cinco anos. A ideia de nós, humanos, como criaturas puramente egoístas e perversas, com uma moralidade ilusória, carece de revisão (DE WAAL, 2007, p.291). Baseando-nos nesses estudos, podemos tentar responder às seguintes questões: o ser humano é violento por natureza e necessita do poder da espada para coibir esta violência? Ou 108 a natureza humana é mais complexa, trazendo a propensão tanto para a agressividade desenfreada, como para a paz, estando, assim, inscrita em uma bipolaridade? A questão pode ser recolocada: até que ponto a herança primata fornece pistas para a violência humana, já que a agressividade é biológica? Nesse caso, podemos falar de chimpanzés mais agressivos e bonobos menos, mas a bipolaridade não serve para explicar a violência humana; no máximo, para apontar tendências biológicas agressivas, que, sob o efeito da estrutura social, propiciam uma maior violência entre os homens. Passaremos a analisar agora o pensamento de Lorenz, que naturaliza a agressividade, porém não separa esta da violência. Diferente de De Waal, Lorenz não aprofunda nossa herança primata e estuda a agressão como instinto que, no homem, assume uma dimensão patológica28. 28 Um tipo de agressão emocional e geralmente impulsiva. É um comportamento que visa a causar danos ao outro, independentemente de qualquer vantagem que se possa obter. Estamos face a face com uma agressão hostil, quando, por exemplo, um condutor bate propositadamente na traseira do automóvel que o ultrapassou. Esse comportamento só trouxe desvantagens para o próprio: tem de pagar os danos do seu carro, do carro do outro condutor, podendo ainda vir a ter problemas com a justiça. O termo raiva pode designar esse sentimento em oposição à agressão premeditada. 109 3.3. KONRAD LORENZ: A Agressividade Humana 3.3.1 A Agressividade, Ritos e Socialização “Ela bateu a tampa com tanta força que a cabeça do menino caiu dentro da arca com as maçãs” (RUNGE, apud TATAR, 2004, O pé de Zimbro, p. 163). Lorenz (1982, p. 47) coloca que “tem bons motivos para considerar a agressão intraespécie, na situação cultural histórica e tecnológica atual da humanidade, como o mais grave de todos os perigos.” Segundo Lorenz, a agressão é um instinto herdado geneticamente, que faz parte de nossas respostas reflexas a situações que ameaçam a vida. A conservação da espécie é a motivação primordial para o instinto agressivo ocorrer. Por instinto compreendese um sistema espontaneamente ativo de mecanismos comportamentais, suficientemente conectados por uma função comum, justificando sua denominação. Temos, para Lorenz, vários instintos inatos, como fome, sexualidade, fuga e a agressividade. Na realidade, eles se interrelacionam. Ao estudar a agressividade, devemos fazer um enquadramento didático, considerando a interdependência desses instintos. A esses quatro instintos e à relação entre eles, Lorenz denomina “assembléia dos instintos”, que é outra denominação para hierarquia dos instintos de Tinbergen (apud LORENZ 1982, p. 67). Para este autor, quando um instinto se sobressai, por exemplo, a fuga, os outros são momentaneamente inibidos ou atenuados. A proximidade de duas motivações dentro de um sistema hierárquico encontra sua expressão no tempo de que necessita para transcorrer, antes de o organismo estar apto a mudar de um padrão para o outro. A unidade de um instinto não pode ser realizada mudando de um padrão para outro. Um instinto pode vir de um nível elevado de hierarquia e se interrelacionar com padrões motivacionais de outros menos intensos para aquela resposta. Ao estudar a agressão, Lorenz coloca que não devemos isolar o instinto, mas didaticamente, enfatizar que, em determinada resposta motivacional, ele predomina dentro da assembleia dos instintos, porém sem deixar de relacionar-se com os outros. A observação da agressividade é empírica. Para a Etologia, é fonte de experimentos de laboratórios, através do método indutivo-dedutivo. Em todas as espécies, Lorenz coloca, como componente da agressão, os combates, como a principal maneira de observação destes. “Em todos os combates entre espécies diferentes, a função conservadora da espécie é muito mais evidente que no combate entre as mesmas espécies” (LORENZ, 1982, p. 42). Dentre esses combates, os principais são a luta 110 entre presa e predador e o mobbing, que é o reconhecimento da presa do ataque do predador, dando oportunidades de escapar. O terceiro tipo de combate é a reação crítica, em que a presa encontra-se cercada e vai para o tudo ou nada: ou luta desesperadamente, ou morre. Para Lorenz (1982, p. 47): “Todos estes casos de combate entre espécies animais diferentes que acabamos de descrever tem em comum o seguinte: cada um dos antagonistas adquire pelo seu comportamento, ou deve adquirir uma vantagem no interesse da conservação da espécie”. Para compreendermos melhor esses combates, a Etologia trabalha com categorias importantes, principalmente o território e a hierarquia. O território ou nicho ecológico é o espaço onde uma determinada espécie ou grupo, dentro da espécie, agrega-se. As lutas são geralmente travadas em referência aos territórios. Este mecanismo da luta territorial - mecanismo muito simples sob o aspecto da fisiologia do comportamento – resolve quase de forma ideal o problema de saber de que modo repartir, num território restrito, animais semelhantes de um modo equitativo, ou seja, de molde a que a totalidade da espécie aproveite isso (LORENZ, 1982, p. 55). A função da hierarquia é determinar quem manda, e quem obedece, quem protege ou vai ser protegido, a qual mantém a coesão social dos grupos animais e serve para a conservação da espécie, além de ligar-se ao estabelecimento de um território. Podemos diferenciar a agressão interespecífica (entre espécies diferentes) e a agressão intra-específica (no interior de uma mesma espécie). A primeira relaciona-se com a lógica presa-predador, e a segunda tem como função garantir a repartição regular de animais da mesma espécie em um território, mas não é a única; já Charles Darwin notara, com razão, que os combates entre rivais, sobretudo entre machos, favorecem a seleção natural, ou seja, a seleção dos melhores e mais fortes (LORENZ, 1982). É nessa forma de agressão, a intra-específica, que se encontra, para Lorenz, a raiz do ‘mal’, principalmente, no homem. Esse tipo de agressão, instintiva e funcional em outras espécies animais, assume, no homem, proporções devastadoras. Lorenz chama essa degradação de um mecanismo inato, fora de qualquer controle, de “agressão patológica”. Lorenz considera o instinto da agressão um dos mais úteis para a conservação da espécie, porém, se descontrolado, um dos mais perigosos. O homem possui essa herança, que não pode ser modificada pelo meio. Discordando de autores behavioristas, como Pavlov, Skinner e Watson, Lorenz coloca que o papel do meio ambiente, das condições sócioculturais, pode, no máximo, canalizar o instinto para uma direção útil à preservação da 111 espécie. A preocupação de Lorenz é com a agressão intra-espécie, que, para ele, atinge o ápice da patologia na espécie humana. De acordo com uma definição psiquiátrica antiga, e sempre útil, um psicopata é um homem que ou sofre das exigências da sociedade ou a faz sofrer. Assim, em determinado sentido, somos todos psicopatas, porque cada um de nós sofre da necessidade de impor a si próprio um controle para o bem da comunidade. A definição que acabamos de mencionar era, no entanto, destinada às pessoas que, sem sofrer em segredo, fraquejam abertamente sob a pressão que lhes é imposta, tornando-se neuróticas ou delinquentes (LORENZ, 1994, p. 284). Lorenz (1982) coloca que, em outras espécies, algum mecanismo, como a ritualização, contribui para diminuir a agressão intra-espécie. Através dela, a agressão é redirecionada para objetivos de agregação social. A ritualização, em outras espécies que não a humana, dá-se através de uma propriedade hereditária recém-formada, que copia modos de comportamento, cujo fenótipo era anteriormente causado pelo concurso de vários fatores, muito diferentes do meio externo. Cerimônias de acasalamento, danças entre outros servem a esse propósito, tendo sua origem em um material instintivo, que se modificando, produz um efeito de apaziguamento e diminuição da agressividade. Em relação aos ritos, podemos estabelecer fronteiras entre o homem e outros animais, já que no homem os ritos não são incorporados no patrimônio hereditário. São transmitidos pela tradição, e cada indivíduo tem de aprendê-lo de novo (LORENZ, 1994, p. 89). No homem, a formação dos ritos tradicionais começou certamente na aurora da cultura humana. Esta formação, para Lorenz, é análoga à formação de ritos em outras espécies animais. O hábito é o que aproxima o homem e outras espécies. A repetição dos hábitos nos ritos estabelece a propagação e o desenvolvimento destes. As duas principais funções dos ritos, para Lorenz, são: a canalização da agressão para fins inofensivos e a criação de laços entre dois ou mais indivíduos. Sejam filogenéticos ou culturais, os ritos contribuem para diminuir a agressividade intra-espécie. A esse mecanismo de formação dos ritos, em outras espécies, Lorenz denomina “especificação”, que é totalmente dependente dos instintos. No homem, tomando o termo emprestado a Eric Erikson (apud LORENZ, 1982, p. 124), Lorenz denomina “pseudo especificação” 29. A família e a escola compõem instituições em que a pseudo-especificação30 desenvolve-se. 29 A pseudo-especificação apresenta componentes aprendidos e culturais, que transformam os instintos. 112 No entanto, essa pseudo-especificação tende a produzir ritos rígidos e de difícil modificação, e, por outro lado, contribui para a coesão grupal, tendo como desvantagem a discriminação de grupos diferentes como inimigos e rivais. Para Lorenz (1982, p, 103), “esse é o lado triste da pseudo-especificação. Ela faz-nos considerar os membros das pseudo-espécies diferentes dos nossos como não humanos; muita tribo primitiva tem essa tendência”. Essa situação coloca-nos diante de uma dificuldade: se, por um lado, a pseudoespecificação produz ritos que fazem diminuir e canalizar a agressividade, ela também produz a agressividade, talvez mais nefasta e devastadora que a inibida intraespécie pelos ritos. Neste caso, podemos citar diferenças religiosas, por exemplo, como causa de violência e perseguições, diferenças de ideias e padrões culturais, produzidas pela pseudo-especificação, que levam a guerras e à destruição da alteridade. Partindo da ritualização, que tem componentes inatos e culturais, principalmente no homem, até chegar à agressividade entre grupos com pseudo-especificações diferentes, temos, diante de nós, uma agressividade de difícil controle. Para Lorenz, assim como para Hobbes, a agressividade é natural e faz parte de nossa herança animal. Mas a agressão confundindo-se com violência, não produzem um corte entre o homem e as outras espécies. Além de naturalizar agressão e violência de maneira confusa, Lorenz confunde violência com agressão patológica, biologicizando um componente social. Como vimos até agora, a agressão em Lorenz, é um instinto que, no homem, pode sair do controle e assumir a hierarquia na “assembléia dos instintos”, levando à destruição e ao desequilíbrio. Essa agressividade assume grandes proporções no homem, sendo denominada por Lorenz de “agressão patológica”. Esta é uma falácia de Lorenz que serve para naturalizar a violência através de outra roupagem. Para Lorenz (1982, p. 70), “Freud foi o primeiro a sublinhar a autonomia fundamental dos instintos em geral, embora só muito mais tarde tenha reconhecido o instinto da agressão no homem”. Para Freud (1969), esta agressão, ligada ao instinto de morte, pode levar ao “mal-estar na civilização”. Este instinto agressivo, como qualquer outro instinto, não necessita de um 30 A pseudo-especificação serve para criar instituições sociais para canalizar instintos agressivos, por exemplo, para finalidades sociais úteis. Exemplificando: a hierarquia, na família, e a obediência aos mais velhos, fazem com que a criança atenue a agressividade para fins sociais construtivos, como estudar, cooperar. A pseudo-especificação é um mecanismo cultural, criado pelo homem, para canalizar o instinto agressivo para fins socialmente úteis. 113 gatilho ou estímulo externo para ser desencadeado, depende de um limiar de excitação que o instinto produz no sistema nervoso central. Segundo Lorenz (1982, p. 72), todo o movimento instintivo a que se recusa a possibilidade de ab-reação (descarga, extravasamento), pode ter como efeito pôr o animal em um estado de agitação e fazê-lo procurar os estímulos aptos a provocá-lo. Essa busca consiste, no caso mais simples, em comer, voar ou nadar, mas pode, nos casos mais complicados, iniciar todos os comportamentos de aprendizagem ou insight. Tal movimento de agressão atinge seu limiar maior de excitação na agressão intraespecífica. Todo movimento agressivo tem que ser ab-reagido, ou seja, efetivado e descarregado. Caso haja um “recalcamento” 31 da agressão, esta passa a diminuir seu limiar para descarga, tornando-se incontrolável e buscando alvos diversos daqueles para os quais foi direcionado na agressão intraespecífica, esse mecanismo torna-se bastante perigoso e destrutivo, já que há uma tendência, após o recalque da agressão descarregada intragrupo, provocando inclusive o filicídio. No homem, esse recalque gera uma diminuição do limiar de agressão, que, para ser descarregado, em muitas ocasiões, volta-se contra membros do próprio grupo ou família. Enfim, para Lorenz, a agressão é um instinto que, fisiologicamente, tem seu correspondente em um limiar de excitação que se descarrega no sistema nervoso central. Cada organismo tem um limiar biológico. O meio ambiente pode recanalizar, reorientar, mas nunca suprimir a agressividade. Vimos que, nos ritos, nos hábitos e nas cerimônias, filogeneticamente ou culturalmente herdados, encontra-se um mecanismo eficaz para reorientar e diminuir a agressão intragrupo. Uma das funções dos ritos e das cerimônias é aumentar os laços afetivos dentro do grupo. No homem, esse processo foi denominado pseudoespecificação, que tem forte influência cultural. No entanto, se a agressão, dentro dos grupos, encontra-se diminuída, a coesão e as afinidades estão aumentadas, temos essa agressão voltada para pseudo-especificações diferentes. Temos novamente a confusão entre agressividade e violência, que é também comum a Freud. A agressão é um instinto, mas nada leva a deduzir que foge do controle no homem, produzindo uma desmedida de agressividade, nesse aspecto estamos aquém de outras espécies, que têm meios naturais para controle da agressividade. 31 Lorentz utiliza muitos conceitos freudianos para corroborar seu pensamento, sendo “ab-reação” e “recalcamento” dois deles. 114 Porém, o que, em Lorenz, é instinto e está inscrito na biologia, para Clastres, é um produto da formação social, um artifício. Para aquele, a agressão perpassa todas as espécies animais e independe dos mecanismos de controle ou reorganização serem filogenéticos ou culturais, pois é um instinto inscrito no corpo. Aprofundando agora a agressão para os grupos, dentro destes, ocorre o reconhecimento dos membros que o compõem como “amigos” ou componentes, cujo reconhecimento, em muitas espécies, pode dar-se através do olfato, da audição, da visão ou de qualquer outro dado sensorial. Os membros que não se reconhecem como “amigos” são identificados como “inimigos” e, assim, destruídos32. Lorenz (1982, p. 170) descreve o desenvolvimento da socialização nas espécies, que se inicia com os bandos anônimos, cujo principal exemplo é o cardume de peixes. Nesses bandos anônimos, a amizade pessoal ainda não se encontra desenvolvida, é uma associação pacífica, em que a coletividade anônima se sobressai aos laços pessoais. Lorenz coloca que: A forma mais primitiva de ‘sociedade’, no sentido mais lato do termo, é certamente o bando anônimo e os peixes, ao largo do oceano, dão-nos o melhor exemplo disso: No interior de tal grupo, não existe nenhuma espécie de estrutura, de chefe, de companheiro, mas um amontoado formidável de indivíduos similares (LORENZ, 1982, p. 171). O bando anônimo é a indiferenciação total. Não existem ainda laços pessoais, ritos ou estruturas mais complexas de socialização. Nos bandos anônimos, não ocorre a agressão, mas a socialização mais rudimentar já foi posta em prática pela evolução e é suficiente para inibir a agressão. A socialização complexifica-se, e o próximo passo se dá através da habituação a estímulos que um congênere emite. Esse mecanismo de reconhecimento de congêneres, através da habituação, inibe o comportamento agressivo com membros intragrupo. Habituarse a todos os estímulos que um congênere conhecido emite é, provavelmente, a condição necessária, para que se possa formar qualquer vínculo, estabelecendo a filogênese do comportamento social. O próximo passo, em Lorenz, é analisar a sociogênese entre espécies que agridem e necessitam destruir outras especificações diferentes. Analisando a sociedade de ratos, Lorenz coloca que o reconhecimento entre eles se dá através do cheiro, e o rato que não possuir um cheiro reconhecido pelos outros é alvo de ódio e destruição, acabando geralmente em atos de 32 Não sabemos, ao certo, se Lorenz leu Schmitt, mas existem correspondências entre estes conceitos, uma vez que ambos viveram o mesmo período histórico e aderiram ao nazismo. 115 crueldade. Nesse aspecto, a agressividade já não tem um valor evolutivo específico, como conservar a espécie. Lorenz (1982, p. 177) fala, nesses casos, da “função do mal’, para caracterizar essa forma de agressividade33. Essa formação social, que tem como modelo a sociedade de ratos, é ainda impessoal, tendo como uma de suas características a substituição de um membro por qualquer outro. Esse tipo de formação social move-se através de lutas extra grupos, onde a agressão assume níveis de ódio intenso e de destruição sem limites. Temos, ainda, as formações sociais formadas por laços, que introduzirão um elemento novo no processo de socialização: a individualização das relações. O laço, para Lorenz (1982, p. 207), é “o que individualiza uma relação”. Chamaremos a uma comunidade unida pelo laço, um grupo. Tal como o bando anônimo, o grupo é, portanto, caracterizado por uma coesão geral. Devido a reações provocadas por seus membros uns sobre os outros. Mas, ao contrário dessa ordem social impessoal, as reações estão aqui estritamente ligadas à individualidade dos membros do grupo (LORENZ, 1982, p. 197). A formação desses laços é fundamental para o desenvolvimento de uma socialização rica e complexa, em que os membros do grupo passam a discriminar uns aos outros. Laços de parentesco, amizade, inimizade, passam a surgir através desses mecanismos. Para Lorenz (1982, p. 244), “o laço pessoal, a amizade individual, encontram-se unicamente em animais, cuja agressividade intraespecífica é muito desenvolvida, [...]”. A solidariedade de dois ou de vários indivíduos se tornou necessária para cumprir a tarefa útil à conservação de espécie, e, na maioria das vezes, à proteção dos filhos. Nessa fase de evolução social, a agressividade e o amor passam a ser correlatos, já que, em espécies muito agressivas, o laço que produz o amor desenvolve-se. Derivado do amor, Lorenz (1982, p. 243) fala do “irmão mais novo do amor, o ódio”. Assim como o amor, o ódio necessita de laços para se exteriorizar. Em ratos, como vimos anteriormente, é através do odor, não de laços, que ocorre uma diferenciação dentro da comunidade, e quem não é reconhecido pelo cheiro, passa a ser destruído. Nas espécies com laços definidos, esse ódio é voltado para o outro, o inimigo, o que não comunga das afinidades grupais, o outsider que não entra no sistema de ritos, cerimônias e não reconhecimento de hierarquia e território do grupo. 33 Mas esta parece ser uma tese metafísica! O que é esta “função do mal”? É uma versão científica do pecado original? Como pode existir uma função que não tem uma “função” específica para a sobrevivência da espécie? 116 Para Lorenz, assim como para Schmitt (1992), no livro, O conceito do político, o inimigo do grupo é o que dá coesão e diminui a agressividade entre os amigos, que são objetos de proteção, cuidados, zelo e carinho, enquanto o inimigo, de ódio e de agressividade desmedida. Lorenz, ao chegar a essa conclusão, analisa que, em gansos, através do ritual do triunfo, ocorre uma diminuição da agressão contra os inimigos. Nessa espécie, um ritual específico faz com que reine a paz entre grupos diferentes. Para Lorenz (1982, p. 267), se é possível a natureza achar soluções para a agressividade entre grupos diferentes, o homem não pode resignar-se a aceitar o que ele chama de “agressividade patológica” como elemento fixo para nossa espécie. Somos bem mais complexos que gansos. Um conceito fundamental, em Lorenz, é o de imprinting, que é um instinto que faz com que o animal se fixe ao primeiro objeto que se mova diante dele, ao nascer. O imprinting comporta um aspecto temporal entre tempo de nascimento e fixação da imagem, que, em gansos, é de mais de 15 horas após o nascimento e menos de três dias. A formação de laços sociais depende do imprinting, que é instintivo, mas, como observa Ridley (2008, p. 196), a apresentação da imagem que o fixa é ambiental. Por exemplo, um ganso pode-se fixar a um bode, um homem, um boneco, se eles estiverem no ambiente e no período de suscetibilidade de fixação da imagem. O imprinting é inato, mas a imagem é ambiental. No homem, apesar dos instintos, existe a cultura, a tradição, a criatividade, que produzem um corte entre agressividade e violência. É o que analisaremos agora. Tendo como padrão a interação instinto-ambiente no Imprinting, podemos fazer algumas conjecturas sobre a agressividade e a violência, delimitando pontos de ruptura e possíveis interseções. Este é um ponto de ligação entre a agressividade biológica e a violência social. Se no imprinting observam-se fenômenos que socializam, tipo imitação, atuando e modificando algumas configurações cerebrais, como ativação do sistema de memória, é neste aspecto que biologia e ambiente interagem. Deixamos a dimensão biológica como humanos e adentramos na dimensão social com interação do social no biológico. Esta é uma hipótese que, segundo Ridley (2008), esta sendo testada em pesquisas que estão em andamento. Em breve poderemos ter resultados que comprovem ou não esta tese. 117 3.3.2 A Agressividade na Espécie Humana “Minha mãe me matou, meu pai me comeu, Minha irmã, Marlene, meus ossos recolheu Em seda os envolveu, e sob o zimbro os depositou, Bela ave canora agora eu sou ” (RUNGE, apud TATAR, 2004, O pé de zimbro, p. 165). O homem, para Lorenz (1982, p. 27), é provido de instinto social, e um desses instintos de ligação social é o imprinting. A base da moral humana é instintiva, sendo a racionalidade um adorno do desenvolvimento sócio-cultural. Já a primeira função compensadora da moral responsável, aquela que impediu os austrolopitecos de destruírem a si próprios com seus primeiros utensílios de pedra, não teria sido possível sem uma apreciação instintiva da vida e da morte (LORENZ, 1994, p. 79). Diferentemente de Hobbes e de Rousseau (com exceção do capítulo IV, em O Emilio), Lorenz inscreve o homem no social. Essa socialização interage com nosso corpo e com seus instintos, moldando padrões de conduta, que, no homem, solidificam-se na cultura. Esta é a mescla de instintos e invenção social. Nesse aspecto, Lorenz aproxima-se de Rousseau, pois a origem “do mal”, no homem, encontra-se na perversão da organização social. Não são os instintos a origem do mal, e a agressividade serve à conservação das espécies, mas daí não decorre um estado de guerra, como descreve Hobbes. O imprinting nos liga a outros seres, construindo uma afinidade emocional. O homem é um animal social, e a socialização já é um fator que pode inibir os instintos agressivos. Quais seriam, então, as causas principais da degenerescência da agressividade no homem? Conjecturando com uma evolução histórica, Lorenz (1994 p. 40), coloca, à semelhança de Rousseau, que a posse individual, a divisão meu e teu, foi o início da divisão entre os homens. A agricultura e a passagem do nomadismo para o sedentarismo marcam uma mudança, na conduta humana, acarretada pela posse e pela sedentarização, então, ocorre o surgimento de castas e classes sociais e a institucionalização da propriedade privada. A partir de então, para Lorenz (1994, p. 140), ocorrem duas consequências: em primeiro lugar, os agricultores tornam-se muito mais agressivos na defesa dos seus territórios, que no tempo em que eram caçadores e viviam livremente dos frutos da natureza, não sendo, logo, decisiva, a agressão territorial [...]. Uma segunda consequência perigosa da agricultura foi o aumento explosivo da população que ela possibilitou. 118 Nesse trecho, Lorenz aparentemente caminha com Rousseau, mas, na segunda conseqüência, deixa claro que há um “malthusonismo social” nessa conjectura34. O aumento da população, para Lorenz (1994), alterou a relação entre dominantes e dominados com decorrente aumento da agressividade entre os homens. A industrialização e o avanço tecnológico, aliados à superpopulação, provocam uma “psicopatia generalizada na sociedade” (LORENZ, 1994, p. 277). “A psicopatia social é aquela na qual o homem fraqueja abertamente, sob a pressão que lhe é imposta, tornando-se neurótico ou delinqüente” (LORENZ, 1994, p. 289). O “homem domesticado é o psicopata social” 35 . A pulsão agressiva, que, nos primórdios da evolução humana, volta-se para grupos rivais, diminuindo dentro dos laços familiares, na sociedade industrial, generaliza-se. Essa situação assemelha-se ao “estado de natureza Hobbesiano”, que, para Lorenz, é formado por neuróticos e psicopatas sociais. O ódio entre pseudoespecificações diferentes passa agora a disseminar-se no tecido social. Para Lorenz (1994), a falta de coesão grupal e o abismo entre gerações dificultam a transmissão de ritos, normas e tradições. A geração mais nova não introjeta valores, além de não respeitar a hierarquia que a relação mestre-aluno favorece em sociedades tradicionais. Esses fatores acarretam um profundo tédio que contribui para a formação de delinquentes juvenis: a “sociedade industrial produz delinquentes juvenis” (LORENZ, 1994, p. 89) 36. Alterando uma homeostase biológica e social, que redireciona a agressão através de ritos, cerimônias e laços, temos agora uma alteração desse equilíbrio, levando a uma falta de mecanismos compensatórios, para diminuir a agressividade, generalizando-a no tecido social. O “mal”, na realidade, não é a agressão, mas a inexistência de mecanismos eficazes nos níveis cultural e filogenético que possam lidar com essa agressividade. A diminuição da criatividade humana com a superespecialização, a competição desmedida e destrutiva, que é diferente, para Lorenz, da competição pela preservação da 34 O termo diz respeito aos efeitos negativos da superpopulação, que leva à pobreza e a uma seleção que favorece os mais ricos, que são mais aptos a sobreviver e se refere à obra de Malthus, exemplo: Princípios de economia política (1820) e Definições em economia política (1827). Para o autor, a diferença entre as classes sociais era uma conseqüência inevitável. A pobreza e o sofrimento eram o destino para a grande maioria das pessoas. 35 Esta afirmação serve para naturalizar a violência, confundindo-a com agressividade. O psicopata social é uma metáfora perigosa, que faz do homem um animal que não controla os instintos, transformando-se em psicopata. 36 Uma falácia perigosa, pois não considera a construção de laços empáticos e de uma nova sociedade, com ideais de justiça, por parte dos jovens. 119 espécie, culmina com a cobiça do dinheiro, provocando uma “neurose epidêmica” (LORENZ, 1994, p. 145). Para Lorenz (1994), essa neurose caracteriza-se pela competição desregulada, a cobiça pelo dinheiro e a hierarquia desmedida, com aumento do desejo de poder: esses são os males do homem moderno. A agressividade humana patológica é produto desses fatores. Estamos utilizando o imprinting, para fixar modelos de pessoas perversas e gananciosas. O lobo é o objeto preferido para o imprinting da criança. Ridley (2008, p. 221) coloca que o conceito de imprinting foi uma ponte genial para associar natureza e criação. Imaginar um instinto, com todo seu aparato genético, que se ligue a um fator ambiental e retroalimente-se, é uma cartada poderosa que liga gene e ambiente. Um passo importante é dado, mas isso é apenas o começo, como aprofundaremos adiante. Para Lorenz (1994, p. 294), a nossa época oferece numerosas ocasiões desagradáveis de observar, no comportamento social, as consequências de uma falta, mesmo parcial, de tradição cultural. Os seres humanos, em causa vã, desde uma juventude que exige a abolição necessária, embora perigosa, de costumes que se tornaram anacrônicos, até os jovens em fúria e os bandos de adolescentes rebeldes, e, por fim, a certos tipos dessas características de delinquente juvenil que é igual em toda parte e cego a todos os valores. Todos esses infelizes são vítimas de um profundo tédio. A violência faz parte do continuum biológico-cultural. Não existe uma ruptura entre agressão/biologia e violência/cultura, neste ponto Lorenz estaria de acordo com Hobbes, para o qual, na passagem do estado de natureza para o estado civil, a natureza humana não muda. Lorenz fala em agressão patológica, que é característica do homem. O Imprinting é a ponte, mas Lorenz não aprofunda como de que modo genes são alterados pelo Imprinting. A agressão pode ser redirecionada para esportes, por exemplo, mas como o social penetra no gene, interage e o modifica não foi adequadamente explicado. A violência, excesso de agressividade, existe no homem, que, degenerado por laços sociais inadequados, transformase em psicopata social. Ridley (2008, p. 223), com lucidez, enxergou que Lorenz acertou em um ponto: ao colocar a agressão e a violência como uma interação de genes e ambiente, deu um importante passo, mas o que está errado é o continumm, a não diferenciação entre agressividade e violência, isto é, o que pertence à espécie humana e nos diferencia das outras espécies. O instinto agressivo descontrolado, no homem, não é a resposta. Faltou aprofundar que o impriting já coloca uma dimensão de socialização no processo, e, no ser humano, com a linguagem e a cultura, temos diferenças fundamentais em relação a outras espécies. 120 Passaremos agora para Wilson e Dawkins, que radicalizam, ainda mais, as posições de Lorenz, para os quais a biologia assume, através dos genes, uma posição de proeminência, e tenta deslocar de vez a questão da agressividade e violência para a dimensão biológica. 121 3.4 A AGRESSIVIDADE E OS GENES: Wilson e Dawkins Era uma vez um homem e uma mulher que tinham filhos demais e não conseguiam comida para eles. Pegaram então os três menores e os abandonaram na mata (JACOBS, apud TATAR, 2004, O Pequeno Polegar, p. 201). Para Wilson (1975, p. 118), não podemos reduzir o conceito de agressividade a termos restritos, já que é um fenômeno complexo que envolve diversas finalidades. Dentre as muitas funções da agressividade, Wilson (1975, p. 118-119) coloca principalmente as seguintes: defesa territorial, luta por dominância, competição sexual, disciplina de filhotes, incluindo agressão para defesa e colocação de regras, desenvolvimento de um código moral que leve a espécie à coesão e a atitudes altruísticas para preservação do grupo e, finalmente, a agressão predatória e a defesa a esse tipo de agressão, que não é um apenas um instinto, mas uma “misture of very diferent functions” (WILSON, 1975, p. 118). A competição sexual e por recursos, principalmente alimentos e territórios, é uma das formas mais comuns encontradas nas espécies para expressar a agressividade. A competição sexual leva à agressão intraespecífica, por exemplo, e, associada à luta por dominância, pode acarretar combates violentos e, às vezes, mortais, dentro do mesmo grupo. Filicídio, fratricídio, assassinato de membros do grupo, são consequências dessa “luta pelo poder”, como refere De Waal (2007, p. 56). A competição sexual e por hierarquia faz a agressão intraespecífica ser, em muitos casos, acirrada e fatal: um “teatro edipiano” no mundo animal, para utilizar uma metáfora que expresse a luta por sexo e poder em Wilson. Já a agressão por alimentos e território pode gerar combates, em larga escala, entre espécies diferentes. Para Wilson (1975, p. 127), a qualidade da agressão intra e interespecífica, pouco difere, divergindo, nesse ponto, de Lorenz. Citando, por exemplo, a prática do canibalismo, a agressão intraespécie não pode ser considerada mais suave, com mecanismo filogenético e cultural para limitá-la, como coloca Lorenz: pais matam filhotes, tios degolam sobrinhos, e algumas mães chegam a comer os próprios filhotes. São muitas as variáveis que podem produzir uma conduta agressiva e variam de uma espécie para outra. As estratégias dependem de um complexo jogo de hierarquia, território, competição por sexo e alimentos. Em espécies territoriais, por exemplo, passa a ser acirrada a demanda durante boa parte do tempo do grupo. Em espécies em que a hierarquia e a competição sexual exercem uma função competitiva constante, os combates podem ser 122 contínuos. Estratégias de agressão podem mudar evolutivamente. Wilson denomina ambiente externo. Alguns fatores que contribuem para desencadear a agressão e mudar sua estratégia. Dentre essas contingências, as principais são o encontro com animais estranhos ao grupo, sendo este o vetor principal da xenofobia. Agredir o outsider the group é um fator que pode tornar-se importante e predominante, a ponto de instalar verdadeiras guerras territoriais. Esse comportamento é observado principalmente em primatas. A falta de alimento pode gerar também um aumento das estratégias agressivas, assim como a “space-agression curves” (WILSON, 1975, p. 267). Quando muitos animais ficam próximos, dentro de um espaço limitado, existe um aumento da agressividade entre eles. Quando se associa falta de recursos alimentares a uma densidade populacional elevada, convivendo em território de pouco espaço, podemos observar, para Wilson (1975, p. 358), batalhas intermináveis e diárias. Esse é um dos principais aspectos que exacerbam a agressão entre as espécies e, principalmente, entre os humanos. Ecos de um malthusionismo social que vem do século XIX. Outro fator que está relacionado à competição por sexo, é o que Wilson denomina “Season Chance”. Na estação de acasalamento, há uma exacerbação dos combates agressivos; quando termina a estação, ocorre uma diminuição acentuada da agressividade. Podemos, seguindo Wilson, considerar a agressividade como uma conduta que apresenta diversos graus de complexidade, estratégias, fatores biológicos, sociais e contingências diversas para cada espécie. A agressividade é adaptativa, independente de mecanismos cruéis, e faz parte da tentativa do organismo de sobreviver e se adaptar a um determinado meio. Não existe diferença entre agressividade e violência. Wilson (1975, p. 78) considera que, no máximo, podemos falar de uma agressividade não adaptativa, ou que excede o limite que serve para a sobrevivência. Analisando as bases biológicas da agressividade, Wilson (1975 p. 345) coloca a influência dos genes que se expressa principalmente no sistema endócrino e no nervoso central. A participação dos hormônios em situação de estresse, como o cortisol, é fundamental para superar o perigo. Este é um exemplo de comportamento agressivo mediado por hormônios totalmente adaptativos. A testosterona, que é o hormônio masculino, é outro fator que se associa à agressividade, inclusive no gênero masculino. Wilson (1975) fala de diversos experimentos de laboratório em que se manipula a testosterona em ratos, observando aumento ou diminuição da agressividade. Na fêmea, a relação entre estrógenos e progesterona pode 123 determinar, em algumas fases do ciclo menstrual, um aumento da agressividade, principalmente antes da menstruação. Excesso de estrógeno, em alguns experimentos, pode produzir, em fêmeas de chimpanzés, uma exacerbação do comportamento agressivo. No corpo humano, com sua fisiopatologia, inscrevem-se os desequilíbrios e as distorções. O que Cesare Lombroso (1835-1909) e Galton (1822-1911), no século XIX, ensaiaram, a sociobiologia realizou. Do gene de Galton, ao cérebro de Lombroso, Wilson vai fixando a biologia como a ciência por excelência que explica a natureza humana. O cérebro tomou de vez o lugar da psique e da alma. A química desse cérebro responde pelos estados emocionais, inclusive a agressão: Dopamina, norepinefrina, serotonina, gaba37. Entre um neurônio e outro, os neurotransmissores. O cérebro, que, para Damasio (1996, p. 89), é o fundamento das emoções e de nossas ações - voltaremos ao tema mais adiante -, responde a tudo o que a metafísica não conseguiu responder. Sonho das neurociências e da Psiquiatria, o controle do comportamento pela química (hormônios, neurotransmissores, fisiopatologia cerebral e genes) tenta dar respostas à violência humana. De tanto olhar outras espécies, tornamo-nos mais uma entre várias. Essa máxima é o grande triunfo e perigo da sociobiologia. Com Wilson, definitivamente, a agressividade é naturalizada, e, diferentemente de Lorenz, não existe “patologia” nesta, ela faz parte do ser vivo, depende de fatores biológicos. O excesso e a utilização, para fins de não conservação da espécie, fazem da agressão um problema. No rastro da sociobiologia, teremos a psicologia evolutiva e os estudos sobre genes. Vamos agora analisar esses aspectos em Dawkins, que, com o livro O GENE EGOÍSTA (2001), tenta lançar luzes sobre a agressividade e a violência, criando metáforas, como genes egoístas e memes. 37 Neurotransmissores que respondem pela modulação das emoções, atuando em humor, atenção, agressividade, prazer. A ausência ou presença destes provocam alterações comportamentais e transtornos mentais. 124 3.4.1 Wilson: o “Gene Egoísta” ‘Porquinho, porquinho, deixe-me entrar’, Ao que o porquinho respondeu: ‘não, não, pelos fios da minha barba aqui você não vai pisar’ A isto o lobo respondeu: ‘Então vou soprar, e vou bufar, e sua casa rebentar’ E assim ele soprou, e bufou, e fez a casa ir pelos ares e comeu o porquinho (JACOBS, apud TATAR, 2004, A história dos três porquinhos, p. 209). Dawkins (2001, p. 139) expande o conflito entre pais, filhos e sexos para todas as espécies animais. Na realidade, já foi colocado que atitudes altruístas, para Dawkins, não passam de estratégias de genes egoístas. A tendência à socialização e a viver em bandos, inclusive, não passa de uma estratégia para replicação de genes. O gene ou as máquinas de sobrevivência formam a raiz das espécies, inclusive, da humana. O gregarismo é uma consequência do cálculo egoísta para replicação do gene. Formamos grupos para potencializar a sobrevivência dos genes, mas, como veremos adiante, Dawkins sairá desse aparente determinismo genético, fazendo uma ponte entre natureza e cultura. Para Dawkins (2001, p. 22), “este egoísmo do gene geralmente originará egoísmo no comportamento individual”. No entanto, como veremos, existem circunstâncias especiais, em que um gene pode atingir melhor seus próprios objetivos egoístas, cultivando uma forma limitada de altruísmo no nível dos animais individuais. Especiais e limitadas são palavras importantes na última sentença, pois, por mais que desejemos acreditar diferentemente, o amor e o bem-estar universais da espécie como um todo são conceitos que simplesmente não têm sentido na evolução, mas o homem pode mudar o seu destino, como um belo Prometeu. Dawkins (2001, p. 78) frisa que a palavra egoísmo é apenas uma metáfora. O gene é, na realidade, o arcabouço básico que forma todo o ser vivo na terra, e tem como principal objetivo a replicação. É a esta realidade “cega e inconsciente” que Dawkins (2001, p. 98) chama de “egoísmo”. Em uma das passagens do Gene Egoísta, falando sobre a agressividade, Dawkins (2001, p. 89) reforça a tese de Wilson de que a agressão é adaptativa, é uma estratégia dos genes egoístas, e remete a Maynard Smith (2001, apud Dawkins, p. 45), que faz o cálculo da estratégia dos gaviões e dos pombos. Os gaviões são agressivos, avançam e ganham sempre dos pombos, que usam estratégias mais defensivas e pouco audaciosas relativas a ataque, mas chegará um ponto em que os gaviões, exterminando os pombos, terão que enfrentar a si, então, autoaniquilando-se. Essa metáfora é estendida para mais dois estrategistas: o Fanfarrão, 125 que é um gavião que, ao ser atacado, foge imediatamente, e o Retaliador-Testador que, ao contrário do Fanfarrão, ao ser atacado, não foge e revida. O que importa, nesse modelo, é mostrar que existe uma equação na agressividade que Dawkins denomina EEE (Estratégia Evolutivamente Estável), a qual é “definida como uma estratégia que se adota pela maioria dos membros de uma população, não poderá ser sobrepujada por estratégia alternativa” (DAWKINS, 2001, p. 94). Esse modelo matemático, que é quase um pacto entre indivíduos, Dawkins (2001, p. 121) define como de custo-benefício. Mas não há entrega a um poder soberano nem à vontade geral. É o gene que faz com que indivíduos se associem para formar uma EEE, que pune, inclusive, quem sai das regras38. Gaviões, pombos e fanfarrões retaliam testador, tendo que chegar a uma EEE para evitar a morte de todos. Tudo isso lembra o estado de natureza Hobbesiano, mas o medo não entra como vetor da EEE. O gene quer replicar-se, e é esse o motivo para formar a EEE; assim, a agressão é controlada. Apesar de todo o aparente determinismo, Dawkins deixa margens para o ser vivo “rebelar-se contra a natureza egoísta”. Fatores de sociogênese podem influenciar padrões de cooperação, por exemplo, lobos cooperam e transmitem esse padrão de geração a geração, dando um rumo diferente para as “máquinas de sobrevivência egoístas”. No homem, além dos genes, Dawkins (2001, p. 215) nos reporta aos memes que não existem apenas no homem, mas também em primatas e em orcas, por exemplo, porém, no homem, atingem o grau maior de refinação, sendo a linguagem um dos fatores para potencializá-los, ou melhor, dizendo, potencializar o cérebro. O meme é a memória formada pelo conjunto de padrões culturais adquiridos, a qual é transmitida de uma geração para outra. Apesar da “natureza egoísta”, temos a oportunidade de mudar artificialmente nosso destino, através dos memes. A cultura não é específica da espécie humana, mas a memória e a capacidade de previsão, sim. Segundo Dawkins, podemos, metaforicamente, representarmo-nos como anjos caídos que querem elevar-se, através da meme, rebelando-se contra a natureza dos genes egoístas. A capacidade de previsão pode, hipoteticamente, criar formas de altruísmo que “consertem” a cegueira e a trapaça das máquinas de sobrevivência. Para Dawkins (2001, p. 222), “somos construídos como máquinas gênicas e cultivados como máquinas mêmicas, mas temos o poder de nos revoltarmos contra 38 Podemos perceber que os genes passam a ser uma entidade metafísica, que assumem o controle do ser vivo e determina suas ações, parecendo inclusive ter intencionalidade. Não existe uma explicação plausível, de como moléculas interferem no comportamento, só conjecturas. 126 nossos criadores. Somente nós, na terra, podemo-nos rebelar contra a tirania dos replicadores egoístas”. A implicação dessa teoria é que nossa natureza é programada para trapacear, mentir, burlar, agredir, assim como o homem em estado de natureza hobbesiano. Para mudar esse destino, temos que nos recriar, ou melhor, jogar memes contra genes, possibilitando, assim, uma mudança de rumo de uma natureza egoísta. Com a metáfora dos memes39, Dawkins (2001, p. 221) cria uma ponte entre genes e meio ambiente, entre natureza e criação, entre instinto e cultura. Chega, inclusive, a descrever, que os genes podem ser esquecidos em três gerações, enquanto os memes sobrevivem muito mais tempo. O Meme Sócrates, por exemplo, continua vivo nas salas de aula e em livros, enquanto os genes de Sócrates desapareceram há muito tempo. Quanto à agressividade, os memes, no homem, formam culturas diversas, religiões, xenofobia, ódios raciais e religiosos. Em suma: o que, no gene, é agressão adaptativa, nos memes, é crueldade pura, mas podemos tomar outro caminho. Podemos arriscar a hipótese de que os memes são os responsáveis pela violência na espécie humana, ainda que, em Dawkins, não temos a expressão desse pensamento. Existe também uma confusão entre agressividade e violência. A criação da metáfora dos memes remete à possibilidade de introduzir uma diferença entre a espécie humana e as outras. Essa distinção é esboçada com os memes. A agressividade, porém, continua a ser naturalizada junto com a violência, mas há espaço para mudança, para transformação em nossa espécie. Com a metáfora dos memes, Dawkins joga para a cultura e o social o que divide o homem de outras espécies, mas não separa agressividade de violência. Esta é um produto dos memes? Nesse caso, entramos em Rousseau, e a sociedade civil transforma-se em meme. Por ora, ficaremos com os conceitos de Dawkins, Wilson e Lorenz. Vamos agora aprofundar nossa herança especificamente primata, utilizando os trabalhos de Wranghan e Peterson e de De Waal. Trabalhando especificamente nosso pertencimento aos primatas. Questões tais, como gênero e formas de organização sociais diferentes, assim como naturezas diversas, apontam caminhos para a questão da agressividade e violência humanas. 39 Dawkins usa o meme com o mesmo significado de cultura humana, que seria uma unidade de imitação aprendida na cultura. Dawkins faz uma abreviação de mimeme para meme, que relaciona-se à memória ou á palavra francesa méme (o mesmo). 127 3.4.2. O Macho Demoníaco E o lobo pensou com seus botões: “Esta coisinha nova e tenra vai dar um petisco e tanto! Vai ser ainda mais suculenta que a velha. Se tu fores realmente matreiro, vais papar as duas” (JACOB e GRIMM, apud TATAR, 2004, Chapeuzinho Vermelho, p. 31). Para De Waal (2007, p. 67), temos em comum com o chimpanzé a busca por poder e sexo e a xenofobia, os quais são fatores fundamentais no desencadeamento da agressão. Nossa herança comportamental com os primatas vem sendo, aos poucos, revelada, principalmente, a partir da década de 60, com os estudos de Jane Godwal40. Wranghan e Peterson, no livro O Macho Demoníaco (1998), associam nossa agressividade à herança que temos em comum com os chimpanzés, principalmente com os machos. Relatando cenas de intensa crueldade entre essa espécie de primatas, Wranghan e Peterson chegam à conclusão de que herdamos essa agressividade e a violência, em todas as suas dimensões, dos chimpanzés41. Para Wranghan e Peterson (1997, p. 164), só chimpanzés e humanos apresentam a busca deliberada de vítimas, em que a mutilação e a morte de um vizinho impotente, apesar dos seus apelos por clemência, são inevitáveis. Somente para essas duas espécies, a morte do perdedor faz parte dos planos. Os outros grupos de primatas, incluindo orangotangos, gorilas e saguis, por exemplo, fogem a esse padrão de violência e crueldade, típico dos chimpanzés. Os orangotangos praticam o estupro, porém, a conduta violenta não se expande além desse ato. Entre os gorilas, encontramos a prática do infanticídio, que também é um ato circunscrito a situações sociais específicas, não se observando uma luta generalizada pelo poder como entre os chimpanzés. Neles, a luta por poder e sexo, a hierarquia e o domínio fazem desses animais, verdadeiros herdeiros do Príncipe de Maquiavel, para De Waal. A ligação entre 40 Uma das primeiras pesquisadoras a desenvolver trabalho de campo com primatas não humanos, especificamente com gorilas. 41 Mais uma vez a confusão entre a agressividade e violência faz com que os primatologistas naturalizem a violência. Nossa aproximação genética com primatas não humanos fornecem o álibi para os primatologistas fazerem esta aproximação. 128 agressividade, poder e sexo predomina entre machos, o que faz levantar a hipótese de que esse tipo de agressão está ligado ao gênero42. Outra associação importante, para Wranghan e Peterson, é entre inteligência e agressividade. Formas de violência exacerbadas correlacionam-se ao desenvolvimento da inteligência, aplicando-se a chimpanzés, cujo desenvolvimento cerebral é comparado ao de uma criança com três anos de idade da espécie humana. Com a complexificação da inteligência, as interações sociais ficam mais diferenciadas, favorecendo códigos que reforçam a luta pelo poder, pelo sexo e pela exacerbação da agressão para manter o status. Utilizando os estudos de Damásio (1996), Wranghan e Peterson tentam responder à questão: por que a estrutura emocional e cognitiva dos primatas favorece a agressividade acentuada? Para Damásio (1996, p. 99), são as emoções ligadas a determinadas áreas do cérebro que regem a conduta humana. Toda emoção tem um substrato fisiológico no cérebro, que foi moldada através do processo evolutivo. Dentre as emoções, Wranghan e Peterson destacam o orgulho como a principal fonte da luta por poder e sexo, nos primatas, e, principalmente, no homem. Como os chipanzés lutam por sexo, poder, status e hierarquia, o orgulho é a principal emoção que leva à agressividade nessa espécie. Para Wranghan e Peterson (1998, p. 237), o orgulho pode explicar a guerra. As causas imediatas das guerras são tão variadas quanto os interesses e as políticas que as desencadeiam, mas uma análise mais profunda leva a uma mesma conclusão: as guerras tendem a ter suas raízes na competição por status. Em relação, ainda, ao orgulho, seguindo Wranghan e Peterson (1998, p. 238), essa emoção evoluiu ao longo de inúmeras gerações, em que os machos que atingiam status elevado conseguiam transformar seu êxito social em reprodução adicional. É razoável ver o orgulho masculino, fonte de muitos conflitos, como o equivalente mental de ter ombros largos. O orgulho é outra herança da seleção sexual. A luta por status é decorrente do orgulho. Essa é a origem da agressividade, que não tem como função conservar a espécie, mas lutar pelo poder. A diferença entre agressividade 42 humana. Acredito que esta tese de WRANGHAN E PETERSON não pode servir de analogia para espécie 129 biológica, agressividade não adaptada (Wilson), patológica (Lorenz), violência e crueldade é de grau: o poder é o diferencial entre os graus43. A vontade de poder, tão importante em Hobbes e depois em Nietzsche, faz parte da nossa herança animal, principalmente dos chimpanzés machos, o que Wranghan e Peterson denominam “o macho demoníaco”. Porém, o problema está longe de se encerrar, pois o orgulho é apenas uma emoção que se traduz em traços comportamentais que são responsáveis pela conduta agressiva, associados ao gênero. Os estudos foram realizados em primatas não humanos. Machos possuem, fisicamente, principalmente sob influência da testosterona, uma arquitetura anátomo-fisiológica que impele à agressão. Para Wranghan e Peterson (1998, p. 176), em chimpanzés, boa parte do tempo útil dos machos é dedicado à luta pelo poder e à ascensão social. Para os autores, “os ombros e os braços dos machos humanos - como os músculos do pescoço de um cervo novo, as mãos que agarram de um sapo xenopos ou os dentes caninos de muitos outros primatas -, parecem ser o resultado da seleção sexual para a luta” (WRANGHAN; PETERSON, 1998, p. 225). Vejamos, então, o que produz, para Wranghan e Peterson, o macho demoníaco: a herança genética, principalmente dos primatas e, entre estes, dos chimpanzés, o gênero que favorece uma estrutura física e emocional, em machos, para um aumento da agressividade, o desenvolvimento do cérebro, a emoção do orgulho, responsável pelo desejo de poder e status e a xenofobia. Sendo os primatas uma espécie social, a divisão em bandos (equipes bando e bandos estáveis) faz com que ocorra a divisão entre intragrupo e extragrupo. Todos aqueles que não pertencem ao “nós” são considerados inimigos e objeto de violência e crueldade. Assim como em Lorenz, a agressão extragrupo tem um papel predominante na sociogênese da evolução das espécies, principalmente em primatas. Encontramos aqui uma justificativa biológica para o conceito do “político” de Schmitt, principalmente a divisão amigo-inimigo. Na obra O Conceito do político (1992), Schmitt discorre sobre a divisão amigo e inimigo, que funda o político. Esse conceito será utilizado por boa parte dos autores da etologia, inclusive, por primatologistas. 43 Mais uma vez, observamos que os primatologistas fazem inferências reducionistas. Será possível falar de orgulho e poder em primatas não humanos como se fala em humanos? Esta é a pergunta que faz Lestel (2006). 130 A moral está associada aos endogrupos. Os membros dos exogrupos são os outros, que devem ser destruídos. Este é um processo inconsciente para Wranghan e Peterson. A razão, quando aparece, é para calcular, justificar, prever a maneira da razão calculativa de Hobbes. É um instrumento para as emoções, principalmente para o orgulho, que traça a rota do desejo de poder44. Da luta pelo poder movido pelo orgulho, até a violência contra os membros do extragrupo, entramos nos limites do fundamento biológico da agressividade e da violência, que, no ser humano, em função da complexidade do cérebro e das organizações sociais, chega a um nível de destruição sem precedentes em relação a outras espécies. Para Wranghan e Peterson (1998, p. 278), essa é apenas uma hipótese que deve ser testada, não uma conclusão definitiva sobre as fontes da agressividade e da violência no homem. Existem outras maneiras de configuração social e outras espécies de primatas, com temperamento diferente dos chimpanzés. É esse o aspecto a ser analisado agora, através dos estudos sobre os bonobos, que já foram citados anteriormente, mas sem aprofundamento. Os bonobos foram descobertos e começaram a despertar interesse científico em 1927. O fato de serem parecidos com chimpanzés dificultou a sua separação como espécie distinta e com características de conduta individual e social bastante distante dos chimpanzés. Para Wranghan e Peterson (1998, p. 251), ao entrarmos no mundo social dos bonobos, podemos pensar neles como chimpanzés, que desenvolveram tríplice caminho para a paz: eles reduziram o nível de violência nas relações entre os sexos, entre os machos e nas entre as comunidades. Quais os principais fatores que respondem por essa convivência pacífica? O temperamento mais dócil, menos agressivo e a estrutura social caracterizada por codominância entre machos e fêmeas, com igualdade social, que são fatores que levam a sociedade dos bonobos a encontrar um caminho para a diminuição da agressividade e da violência. A sexualidade é utilizada abundantemente entre bonobos, o que faz aumentar a coesão social. Para diminuir conflitos, fazem sexo com intensidade. A ausência de ciúmes e disputas em relação à sexualidade é um dado muito importante. Uma fêmea copula com muitos machos, ao mesmo tempo, por exemplo, sem provocar disputas e rivalidades, ao contrário dos chimpanzés, onde existe um macho dominante que exerce a hegemonia em 44 Podemos conjecturar se esses autores leram Hobbes e se o poder do qual falam é o mesmo de Hobbes. Teriam os primatas esta capacidade da consciência de si e do outro a ponto de lutar por poder, da forma como os humanos fazem? Tomasello (2003) não concorda com a tese de que a intencionalidade dos atos em primatas não humanos seja equiparada à intencionalidade em humanos, já “que [os primatas] não entendem o mundo em termos causais e intencionais” (TOMASELLO, 2003, p. 25). 131 relação à copulação de fêmeas. Wranghan e Peterson (1998, p. 176) citam também os Muriquis, como espécies de primatas que convivem pacificamente e têm, a diminuição dos laços de hierarquia e a sexualidade em grande quantidade, um dos principais fatores para a resolução e diminuição da agressividade. A coesão das fêmeas é um fator fundamental para apaziguar o “demonismo” dos machos. Através da união, as fêmeas estabelecem laços fortes e evitam que machos dominem e formem grupos demasiadamente hierárquicos, como os chimpanzés. Um dos principais fatores da hegemonia das fêmeas entre bonobos e muriquis, para Wranghan e Peterson (1998, p. 189), é a cooperação entre si. O efeito da ação em grupo avassalador. O poder feminino vence os machos, que, ao contrário das fêmeas, não cooperam entre si, seja para se defenderem, seja para atacarem. Desse modo, até mesmo o macho da mais alta hierarquia pode ser derrotado se as fêmeas se juntarem contra ele (WRANGHAN; PETERSON, 1998, p. 54). Além do “matriarcado”, que diminui e quebra o poder dos machos, impera certo “comunismo” entre os bonobos. Através da hegemonia das fêmeas, estabelece-se, como vimos, estratégias de diminuição da agressão por meio da sexualidade. Uma considerável parte dos conflitos resolve-se com o sexo, que é chamado de “hoka-hoka”, termo criado pela tribo dos Mongandos45 Para Wranghan e Peterson (1998, p. 261), os bonobos empregam o sexo para muitos objetivos, além do reprodutivo: como meio de fazer amigos, para acalmar um membro do grupo que esteja com tensão e para reconciliação e resolução de conflitos, em que a agressividade encontra-se envolvida. A menor agressividade entre os machos e a ausência do “demonismo deve-se, principalmente, ao fato de que os bonobos machos, através da evolução, perderam a avidez predatória, hierarquia, luta pelo poder e orgulho. A coalização das fêmeas é um fator fundamental. Todos esses fatores facilitam a coesão de uma espécie em que a agressividade e a violência encontram-se diminuídas, contribuindo, assim, para abalar os alicerces do determinismo biológico. Apesar dos estudos sobre bonobos serem em maior quantidade, não 45 O termo refere-se ao atrito dos genitais para diminuir as tensões entre primatas não humanos. 132 podemos deixar de citar os muriquis como outro modelo de convivência pacífica entre primatas não humanos46. Essa contraposição entre chimpanzés e bonobos é retomada por De Waal (2007). Por ora, é suficiente acompanhar Wranghan e Peterson na construção do conceito do “macho demoníaco”, que não é universal e determinístico, já que espécies, como os bonobos e os muriquis, não apresentam o demonismo. Porém, Wranghan e Peterson (1998, p. 238) acreditam que herdamos o demonismo dos chimpanzés: o “macho demoníaco” está em nossa herança genética e contribui para estruturar nossas formações sociais. Conceitos, como hierarquia, poder, orgulho e violência fazem parte de nossa herança comum aos chimpanzés. A estrutura patriarcal, que também ocorre em gorilas, por exemplo, é outro fator importante para analisar a violência em primatas não humanos e humanos. A estrutura do cérebro em humanos é o fator que nos torna extremamente violentos. O artefato da cultura, a criação de armas, a exploração social e econômica são requintes de uma estrutura cerebral humana, que potencializa a demonização. Para Wranghan e Peterson (1998, p. 278), não existe a diferença entre agressividade e violência. Podemos falar de violência em chipanzés e humanos. O que diferencia é a nossa estrutura cerebral. O córtex, a complexidade de sinapses e a maior interação de neurotransmissores fazem do homem um “macho demoníaco mais letal que os chimpanzés.” Nossa estrutura é patriarcal, lutamos por hierarquia e poder, somos orgulhosos e vaidosos, xenófobos e preconceituosos. Nossas sociedades apresentam estruturas políticas onde a luta pelo poder é o fator principal (WRANGHAN E PETERSON, 1998, p. 315). Não podemos concordar com essa tese que naturaliza a agressão e a violência e nos faz primatas com algumas diferenças de outras espécies, mas com maior potencialidade de destruição. Nessa perspectiva, a espécie humana estaria naturalmente condenada a destruir e a ser violenta. Mesmo a questão do gênero não pode ser extrapolada para a espécie humana: não somos bonobos ou chimpanzés, mas humanos. O “macho demoníaco” é uma metáfora sugestiva, mas perigosa, que deve ser questionada. Podemos até concordar que homens sejam mais violentos que mulheres, mas esta condição pode ser explicada recorrendo a teorias sociológicas, como, por exemplo, a 46 O muriqui-do-sul ou mono-carvoeiro é um primata cujo nome científico é Brachyteles arachnoides. Considerado o maior entre os primatas do continente americano, encontrado originariamente na Mata Atlântica brasileira, consta da Lista Vermelha da UICN na categoria, em perigo crítico. É um dos primatas mais ameaçados do mundo. 133 subjugação da mulher e da propriedade privada, defendida por (ENGELS, 2004). Nesta teoria, que não endossamos, mas citamos a título de exemplo, a violência contra a mulher parte do uso do poder econômico e político entre os homens, que detém a propriedade, os meios de produção. A sociedade patriarcal seria assim um produto da história, assim como a violência do homem contra a mulher. Podemos recorrer também à Biologia, que pesquisa diferenças na estrutura cerebral, hormônios, como testosterona, que predominam no sexo masculino. Para Wranghan e Peterson (1998), é nossa herança com chimpanzés machos que faz com que o gênero masculino seja mais violento. Este é um tema que não está concluído. Podemos dizer que existem fatores biológicos, como hormônios, por exemplo, que predispõe a maior agressividade no gênero masculino, mas são conjecturas. A disposição de algumas áreas do cérebro responsáveis por condutas agressivas no homem pode ser um fator que, na melhor das hipóteses, predispõe a agressividade. Mas, sendo a violência um produto social, podemos nos reportar a Bourdieu para tentar explicar que o gênero masculino produz socialmente uma violência simbólica maior, baseada na acumulação do poder econômico e na circulação do capital simbólico que produz, na socialização, o fator masculino como sinônimo de força, vitalidade, coragem e violência. O homem é assim socializado para ser mais violento. Neste caso a tese de Marx e Engels apenas reforçam este tipo de socialização. O demonismo é uma hipótese biológica que não nos fornece respostas para violência no homem. Vamos encontrar melhores explicações em fatores históricos e sociais. Citando Nolasco (2001), o homem é socializado para competir e mostrar força. Fatores como a posse sobre a mulher, a utilização da violência para resolução de conflitos faz parte da socialização do homem. Homens se envolvem em comportamentos de risco em função da competição e da demonstração da virilidade. Temos, para Nolasco (2001), uma perpetuação da violência entre homens e entre homens e mulheres. Outra questão importante refere-se ao conceito de honra, que subjetiviza o universo masculino. Segundo Nolasco: Sobre a palavra ‘masculinidade’ encontramos em sua raiz as denominações ‘viril’, ‘enérgico', ‘forte’ e ‘ativo’. Esta aproximação vai além de uma pertinência semântica: masculinidade e violência guardam entre si relações que vão do modo como os meninos são socializados, até a maneira de compreender seus sentimentos como sendo de homem, ou seja, o que ele sente passa a se corresponder diretamente com a imagem que definiu para si mesmo (NOLASCO, 2001, p. 64). 134 Uma história de modelos de subjetivação masculinos pela sociedade patriarcal pode apontar algumas respostas sobre violência em gênero, mas deixa-se de lado a violência do gênero feminino, que pode ser subestimada. Para Nolasco (2001), a violência contra crianças é mais praticada por mulheres, por exemplo. Pode ter relação com a maneira de subjetivação feminina, o papel de dona de casa, posse do marido, e hoje, tendo que encarar uma dupla jornada, no trabalho e no lar. Estas discussões só corroboram a tese de que a violência de gênero é social. Faz parte do processo de socialização do homem e da mulher. Não podemos reduzir ao biológico. A ideia de macho demoníaco pode servir para estudos de primatologistas, mas não concordamos na sua extrapolação para espécie humana. Retomando a questão da nossa herança primata, poderíamos agora focar, um pouco, o filme “O planeta dos macacos”, do Diretor Frank Schnaffer, para tentar compreender essa metáfora. No final do primeiro episódio, o astronauta Taylor descobre o segredo que o Dr. Zairus tenta esconder: é a espécie humana a mais violenta que surgiu no Planeta, responsável pela destruição e devastação do planeta, por isso os macacos lobotomizam, cortam a língua e escravizam os humanos remanescentes. Cérebro e linguagem são os alvos dos macacos do filme. Extirpando o cérebro e a linguagem do homem, o problema da violência resolve-se, mas os macacos do filme são igualmente violentos, e o ciclo da violência não acaba extirpando a linguagem e o cérebro humano, mas continua. Descendemos de primatas não humanos. O demonismo está nos genes? Ficção à parte, a violência continua. Apesar de existirem os bonobos e os muriquis, a ficção esquece-se deles; confunde chimpanzés, orangotangos e gorilas com o homem, sem falar em espécies de primatas pacíficos. O homem é a espécie mais violenta do planeta. O poder, esse buraco negro, associado a um cérebro e à linguagem desenvolvida, faz-nos perversos e cruéis47. Damos bananas aos macacos e bombas aos inimigos. A agressividade e a violência são cara e coroa de uma moeda que nos une a primatas não humanos e a chipanzés, principalmente. Nesse aspecto, percebe-se como uma falácia pode gerar, segundo Tomasello (2003), catracas culturais e fazer passar o erro como verdade. Percebe-se a intenção da primatologia em dar continuidade à naturalização da violência. Ela usa a genética, a neuroquímica, para corroborar a tese de que “somos macacos um pouco diferentes”, apenas. A não compreensão do que é o poder associa-o apenas à dominação e à repressão. 47 Uma hipérbole dos primatologistas que leva a erros, uma vez que em nossa opinião, nossa herança primata não é tão determinante assim. 135 Vamos passar agora para De Waal: a bipolaridade como metáfora. 136 CAP. 4 BIOLOGIA E BIPOLARIDADE EM FRANS DE WAAL “A honestidade custa cuidados, ela requer um pouco de complacência, mas, cedo ou tarde, tem sua recompensa, e amiúde quando menos se espera” (PERRAULT, 2005, p. 252). Para De Waal (2007), longe de qualquer determinismo biológico, devemos analisar a interação genes, cultura, economia e principalmente política. Primatas são, acima de tudo, animais políticos, que formam alianças, manipulam, lutam por poder e formam grupos de amigos e inimigos, à maneira de Schmitt. Por afinidade genética e evolução, principalmente relativas ao cérebro, nossa herança mais forte é com os primatas, mas longe de enfatizar, como Wranghan e Peterson, o lado demoníaco do macho, De Waal analisa nossa bipolaridade como o dado mais significativo de nossa herança primata. Bipolaridade significa propensão para a agressividade desmedida, luta pelo poder desenfreada, xenofobismo, “demonismo” e o estado de natureza hobbesiano, convivendo com o lado pacífico, terno, conciliador, bondoso, com menos tensão e luta por poder e soluções mais igualitárias, seguindo o “bom selvagem de Rousseau”. Essa convivência de um lado obscuro e perverso com um lado moral, caridoso e apaziguador forma a natureza humana. De Waal (2007, p. 267) tenta partir de duas heranças primatas que considera as mais significativas para o homem: a dos chimpanzés e a dos bonobos. Para De Waal, herdamos uma mistura dessas duas naturezas. Os chimpanzés seriam o protótipo do “demonismo” descrito por Wranghan e Peterson, enquanto os bonobos formariam uma estrutura social distinta. Wranghan e Peterson (1998) analisam esta diferença no aspecto de gênero, argumentando que a sociedade dos bonobos é matriarcal, por isso é mais pacífica, menos hierárquica e mais igualitária. Além desses fatores, para De Waal (2007, p. 146), observam-se temperamentos diferentes entre chimpanzés e bonobos, inclusive, nos machos, que não teriam essa propensão acentuada dos chimpanzés para a caça predatória e o poder. Além disso, a fartura de recursos alimentares faz com que os bonobos se distingam dos chimpanzés. Fatores biológicos, políticos, econômicos são responsáveis, então, pela estruturação de dois modelos de sociedade de primatas bem diferentes. Usando a metáfora dos lobos e do bom selvagem, os chimpanzés estão para o universo hobbesiano, assim como os bonobos estão para Rousseau, mas o problema não é tão simples 137 como parece. Vamos tentar entender alguns conceitos que De Waal utiliza, para delimitarmos melhor o problema. 138 4.1 O PODER “Minha avó, por que tendes orelhas tão grandes? “É para melhor escutar, minha criança.” “Minha avó, por que tens olhos tão grandes?” “É para melhor ver, minha filha.” “Minha avó, por que tens dentes tão grandes?” “É para te comer” (PERRAULT, 2005, p. 236). A estrutura do poder, no reino animal, principalmente em primatas, faz com que De Waal (2007, p. 56) considere o universo descrito por Maquiavel como algo que também pertence a sociedades políticas de outras espécies, especialmente a dos chimpanzés. As manobras de dois contra um são o que trazem tanto refinamento como perigo às lutas de poder entre os chimpanzés. Nenhum macho pode dominar sozinho, pelo menos não por muito tempo, pois o grupo como um todo pode derrubar qualquer um. Os chimpanzés são tão hábeis para coligar-se, que um líder precisa de aliados, a fim de fortalecer sua posição e aumentar a aceitação da comunidade em geral. Manter-se no topo é um exercício de equilíbrio entre expressar veementemente a dominância, manter os aliados satisfeitos e evitar a revolta em massa. Se isso parece familiar, é porque a política humana funciona exatamente da mesma forma (DE WAAL, 2007, p. 59). A luta pelo poder e a manutenção de machos no topo da hierarquia consomem boa parte da vida de um chimpanzé. Como já analisamos, em se tratando da etologia, dois dos conceitos mais difundidos entre as espécies é o de território e hierarquia. Geralmente, quem está no topo luta para manter-se no poder, mas a resistência e a revolta de quem pertence a hierarquias inferiores é contínua. O ALFA (do topo da hierarquia) tem acesso às fêmeas, reproduz, dita as regras, comanda o grupo. Essa hierarquia é constantemente questionada, gerando o que De Waal (2007, p. 63) denomina “machos paranóicos”, que vivem em constante estado de alerta e luta, sempre prontos a revidar e a refazer coligações. O custo para a saúde dos ALFAS é grande, manter o poder tem seu preço, para De Waal. No livro Chimpanzee politcs (1989), De Waal analisa toda a estrutura política em sociedade de chimpanzés, constatando que, nessa espécie de primatas, a luta pelo poder é acirrada e consome todo o cotidiano dos machos da espécie. As fêmeas também fazem parte do complexo jogo de poder e ajudam os machos a manter o status, interferindo em coligações e, às vezes, contribuindo para traições. Nesse aspecto, De Waal coloca que as fêmeas exercem uma função de auxílio na manutenção da estrutura de poder pelos machos. São cúmplices e, por não formarem coligações fortes como as fêmeas dos bonobos, as quais bloqueiam a união dos machos, acabam sendo participantes ativas dessa estrutura “maquiavélica” dos chimpanzés. 139 Os chimpanzés são tão hábeis para coligar-se, que um líder precisa de aliados, a fim de fortalecer sua posição e aumentar a aceitação da comunidade em geral. Manter-se no topo é um exercício de equilíbrio entre expressar veementemente a dominância, manter os aliados satisfeitos e evitar a revolta em massa. Em sociedades matrilineares, como a dos bonobos, existe estrutura de hierarquia e poder, porém, com a coalização de fêmeas, a agressividade dos machos diminui, e existe uma maior potencialidade para uma vida pacífica. As fêmeas têm maior capacidade para reconciliação e atenuação de conflitos, mesmo entre os chimpanzés. Na espécie humana, De Waal ressalta a diferença no comportamento agressivo entre meninos e meninas, sendo elas mais competitivas, provocando uma quantidade maior de conflitos. Os bonobos têm, na matrilinearidade, um dos principais fatores para tentar compreender a diminuição da agressividade, já que o gênero é um fator importante, neste caso. Essa estruturação é biológica, mas, no homem, atinge níveis diferentes de complexidade, em função da criação da linguagem e da cultura. Assim como Wranghan e Peterson (1998), De Waal coloca que a agressividade é bem mais destacada no gênero masculino. Outros fatores são também de fundamental importância, em bonobos, para justificar a diminuição da agressão. O fator ecológico, com um ambiente que apresenta recursos alimentares, localização geográfica a fontes de alimentos e pouca competição por estes, faz a sociedade dos bonobos ser distinta da dos chimpanzés. A estrutura de poder é um elemento importante também entre bonobos, mas existe uma estruturação hierárquica em torno das fêmeas. Machos, para serem respeitados, por exemplo, precisam estar próximos das fêmeas dominantes. Como as fêmeas são coesas e cooperam, entre os bonobos, a estrutura hierárquica é mais estável, diminuindo a luta pela hierarquia. Como os machos encontram barreiras com a coalização de fêmeas, eles não passam a maior parte do tempo, como entre os chimpanzés, a desestabilizar o grupo, na luta pelo lugar de dominante. Os bonobos, nesse aspecto, para De Waal (2007, p. 90), são mais conservadores. Os chimpanzés brigam tanto por hierarquia, que a estabilidade do grupo constantemente encontra-se afetada. É a ‘guerra pelo poder’, não de todos contra todos, como diz Hobbes, mas de hierarquia e de território, o que fornece mais acesso a alimentos e a sexo para os que estão no topo da hierarquia. Biologicamente, somos animais gregários, o individualismo, para De Waal, corroborando Norbert Elias (1994), é um artifício da modernidade. Mas, a guerra 140 existe, visando ao poder de chefiar o grupo. A questão encontra-se situada, para De Waal, entre a vontade de poder e as emoções48. Para Duso, o poder tem sua historicidade, e desde a antiguidade é considerado: A formulação de diretivas para ação de todos os componentes de uma sociedade que se manifesta na forma de comando - de um comando eficaz, enquanto garantido no uso de uma força comum preponderante, por outro lado, a atitude à obediência por parte de todos que se encontram na área deste poder; não uma obediência por coação, devido ao fato de que se sofre, pura e simplesmente, um ato de força, mas uma obediência voluntária, que parece característica da vida civil (DUSO, 2005, p. 29). No limiar da Idade Moderna, principalmente com Bodin, Maquiavel e Hobbes, surgirá a noção do poder soberano, ligado ao absolutismo. Este é unificador e visa a manter a constituição da sociedade contra uma pluralidade heterogênea de pensamentos, atitudes e instituições. Na sequência, esse conceito estende-se a um poder democrático, em que o homem é caracterizado pela socialitas: Mas a sociedade civil só é possível através do imperium, que assume agora um significado novo: deixa de ser condução do governo e torna-se poder, no qual se exprime o sujeito coletivo, a civitas, cujas ações - as únicas políticas - são entendidas como separadas e diferentes das ações dos cidadãos, já reduzidas a uma dimensão privada (DUSO, 2005, p. 34). Foge ao trabalho aprofundar uma teoria do poder, mas este tem sua historicidade. Com a revolução francesa e a norte-americana, começaremos a associar o poder à cidadania, à constituição e ao direito. Teóricos, como Weber (apud DUSO 2005), dividem o poder em legal-racional, cuja impessoalidade caracteriza a burocracia moderna; o poder carismático, que é bem diverso do legal-racional, caracteriza-se pela pessoalidade e extraordinariedade de uma pessoa, sendo passageiro; e o poder tradicional, que tem como prerrogativa a crença em costumes e tradições do passado, e sua legitimidade em uma autoridade individual, que assume as prerrogativas de comando. Em Foucault (1982), o poder não se encontra apenas na soberania, mas perpassa as relações entre os indivíduos, encontrando-se presente no que se refere ao microfísico, que é o nível das relações humanas cotidianas. Não é visto apenas na sua negatividade, mas na criação de saber e formas de subjetivação do indivíduo. 48 De Waal move-se dentro de um conceito de poder que remete à soberania e à vontade de poder, em Hobbes, remonta a Maquiavel, e faz da “política dos chimpanzés” uma analogia com a política humana. Não cita, por exemplo, Foucault e seu conceito de poder. Prende-se a um conceito que mistura hierarquia, dominância e uso de força entre primatas a estrutura de poder em humanos, que está longe de ser reduzida ao aspecto da soberania e ao uso de força. Na nossa opinião, porém, o poder é construção e capacidade de criar e de mudar, inclusive, os rumos da violência. 141 Podemos citar também o poder simbólico de que fala Pierre Bourdieu (2009, p. 9), que é instrumento de conhecimento e de comunicação, só podendo exercer um poder estruturante. O poder simbólico é um poder de construção da realidade que tende a estabelecer uma ordem gnoseológica: o sentido imediato do mundo (e, em particular, do mundo social). É estruturante, porque serve de coesão a uma determinada ordem social. Temos várias definições de poder, e não há como associar diretamente o poder à violência. O poder simbólico, inclusive, pode-se contrapor à violência, por exemplo. Essa breve discussão se fez necessária para tentar não associar a discussão sobre poder com a violência. Os erros dos primatologistas consistem em confundir conceitos, misturar poder com violência e naturalizar os dois. Chimpanzés gostam de hierarquia, mas não podemos inferir uma teoria do poder semelhante à humana para primatas não humanos. Entraremos agora em outro aspecto fundamental para De Waal, que diz respeito à nossa natureza bipolar. 142 4.2 BIPOLARIDADE A espada gasta a bainha, dizem por aí. Eis o meu caso. Minhas paixões me fazem viver e minhas paixões me mataram. (ROUSSEAU, 2008, Livro V, p. 213). Como dissemos anteriormente, de Waal trabalha com a metáfora de duas heranças que são importantes para a espécie humana: a dos chimpanzés e a dos bonobos. São dois modelos diferentes que produzem duas heranças: uma agressiva, xenófoba, extremamente hierárquica, que vive lutando pelo poder, com dominância de machos e recursos naturais mais escassos (chimpanzés), e outra, matrilinear, menos agressiva, com relações hierárquicas mais estáveis, menos competição pelo poder e dispondo de recursos naturais mais abundantes (bonobos). Segundo De Waal, somos um “híbrido dessas duas heranças”. Talvez tenhamos muito em comum com estes híbridos. Somos afortunados porque em nosso íntimo habita não um, mais dois grandes primatas, e os dois juntos nos permitem construir uma imagem de nós mesmos consideravelmente mais complexa do que a Biologia nos tem apresentado nos últimos 25 anos (DE WAAL, 2007, p. 291). Com um rosto “metade demônio, metade anjo”, somos capazes, para De Waal, de conviver com as maiores atrocidades e os gestos mais nobres e altruístas. A mesma herança genética produz Hitler e Gandhi. Talvez essa seja a origem do dualismo entre bem e mal, mas, na realidade, não existe dualismo, para De Waal, e sim duas tendências convivendo na mesma natureza. Que pode reforçar nosso lado chimpanzé ou bonobo? A resposta mais simples e fácil é a que diz respeito à formação do social. Algumas sociedades podem reforçar o lado chimpanzé (como não pensar em Marx e no capitalismo, assim como descrito por ele, nos “ressentidos de Nietzsche”, no homo sacer de Agamben, ou, então, produzir sociedades disciplinadas e hierárquicas, como a japonesa, que, para De Waal, apresentam baixos índices de agressividade e violência, ou ainda, países, como a Finlândia, que apresentam grau forte de coesão e cooperação social? Esse é apenas um lado da questão. Se assumirmos nossa parte de demonismo e capacidade de cooperação, podemos iniciar uma tentativa concreta de resolução dos problemas. Essa bipolaridade inscrita geneticamente é apenas uma hipótese de De Waal, que naturaliza tendências humanas, e a cultura entra como reforçador de tendências cooperativas e competitivas. De Waal também não diferencia agressividade de violência, traça o constructo da bipolaridade, inscrito geneticamente no homem e remete ao social apenas o reforço de uma 143 dessas duas heranças. Simplifica bastante nossa natureza e junta os “temperados” e “ígneos” de Hobbes dentro de um mesmo indivíduo. Em Hobbes, temos dois tipos que se confrontam com a disputa, pendendo para a vitória dos ígneos: um dualismo entre a espécie humana. Já em De Waal, as duas tendências encontram-se dentro da mesma pessoa, e a organização social define qual tendência prevalecerá. Para De Waal, a agressividade, a crueldade, a luta por hierarquia, estão em um pólo, e a cooperação, a paz, e a convivência com respeito pelo outro, encontram-se em outro, mas De Waal dá um passo adiante, quando analisa a resolução de conflitos, o sentimento de empatia e, mesmo entre chipanzés, o papel da reconciliação. Vamos continuar acompanhando De Waal, no que ele chama de Conflit Resolution: talvez aqui poderemos, enfim, encontrar uma resposta para a questão que fuja do puro biologicismo. Observaremos que, neste caso, no que concerne à resolução de conflitos, o poder pode ajudar a diminuir a violência. 144 4.3 CONFLICTS RESOLUTION Toda aquela abundância de alimento e de dinheiro, que estava guardada e escondida pela bruxa avarenta, pertencia agora àquelas crianças cheias de vida e de esperança na vida! João e Maria se abraçaram e tudo acabou bem (JACOB E GRIMM, apud TATAR, 2004, João e Maria, p. 60). Aurelli e De Waal (2000, p. 14) constata que o estudo sobre agressividade e violência centra-se nos dois termos, e pouco se tem estudado sobre resolução de conflitos. A capacidade para isso é observada em outras espécies, principalmente, em primatas não humanos e humanos. Os bonobos, segundo Aurelli e De Waal (2000, p. 90), resolvem boa parte dos conflitos através do sexo. Existe uma estratégia para apaziguamento das tensões, utilizando a sexualidade. A capacidade de empatia, que é inata; para Aurelli e De Waal (2000, p. 45), é um dos fatores responsáveis pela resolução dos conflitos e diminuição da violência. Aurelli e De Waal (2000, p. 23) fez observações em chimpanzés e constatou que o sentimento de empatia encontra-se presente e é significativo e primordial na resolução dos conflitos. Carolyn Zahn Warxel (apud AURELLI E DE WAAL, 2000, p. 26) estudou também crianças, constatando que o sentimento de empatia é pré-verbal, precedendo o desenvolvimento da linguagem. A empatia forma a matriz da moral em primatas não humanos e humanos. Para Aurelli e De Waal (2000, p. 56), condiz com a convicção de Charles Darwin de que a ética nasceu com os instintos sociais. Seguindo os passos de Darwin, para Edward Wester Marck (apud AURELLI E DE WAAL, 2000, p. 65), antropólogo finlandês do início do século XX, é fundamental compreender quanto é pequeno o controle que exercemos sobre nossas escolhas morais, pois são produto das emoções. Aurelli e De Waal (2000, p. 45) citam Mencio (372-89 a.C.), para ressaltar que a moral tem sua origem em sentimentos e é inata, não sendo esta uma ideia nova. Rousseau (1843) sistematizou esse conhecimento sobre a origem instintiva de nossa moral, colocando a piedade e o amor de si como sentimentos inatos ao ser humano. Intervir na criança para esses instintos, através do contato com uma sociedade corrupta e cheia de vícios, é, para Rousseau (2000, p. 78), uma tentativa de podar o crescimento da violência, que é um produto do desenvolvimento da sociedade. 145 Yarn (apud AURELLI E DE WAAL, 2000, p. 78) diz que é necessária uma comunicação entre juristas e biólogos, para tentar compreender como funcionam os mecanismos de resolução de conflitos. Nem sempre a lei (que é um artefato humano) resolve conflitos, sendo necessário observar, na natureza, as soluções. Para Yarn (apud AURELLI E DE WAAL, 2000, p. 68), como o homo sapiens é complexo, as soluções jurídicas e institucionais, nem sempre, conseguem resolver problemas ligados a disputas e à violência. Dentro dessa proposta, os estudos em crianças e adolescentes humanos assumem uma grande importância, pois é com essa população que podemos trabalhar, de maneira adequada, a interação genes e ambiente, intervindo nos “gatilhos ambientais” (VERBECK; HARTUP & COLLINS, apud AURELLI E DE WAAL, 2000, p. 108), que fomentam a violência. Estudar a agressividade e a violência na infância e na adolescência implica trabalhar diversas variáveis, que vão desde a família, passam pela condição socioeconômica, pela escola, pelos fatores culturais e pelos transtornos mentais associados à violência. Todos esses fatores integrados podem contribuir para aprofundar o estudo da agressividade e da violência, bem como para resolução de conflitos. Partindo do pressuposto de Konrad Lorenz (1994) de que a agressividade é um instinto básico e inato, crianças de todas as condições sócio-culturais vão apresentar agressividade. A violência, que é um produto da socialização humana, é que apresentará características diferentes, de acordo com variáveis acima citadas. Em relação à resolução de conflitos, para Verbeck, Hartup & Collins (apud AURELLI E DE WAAL, 2000, p. 35-36), crianças menores até a idade pré-escolar dependerão de modelos parentais para resolução de conflitos. A violência pode ocorrer entre crianças ou entre crianças e pais. Esses conflitos envolvem posse de jogos, dificuldade na introjeção de regras, rivalidade entre irmãos, disputa por amor e poder como os pais. Reportando a Rousseau (1999, p. 79), em O Emílio, “é a época onde os vícios ou males podem crescer ou ser podados”. Crianças, principalmente, em idade pré-escolar, estão sujeitas à autoridade e à subjugação dos pais ou dos cuidadores, sendo esse um fator primordial, para ajudar a aquisição de modelos para lidar com a violência. Para autores, como Werbeck, Hartup & Collins (apud Aurelli e De Waal , 2000, p. 39), crianças em idade escolar ainda dependem da família e também da escola como referenciais de socialização. A resolução dos conflitos depende de modelos aprendidos principalmente nessas duas instituições. 146 Para Stemberg e Dobson (apud AURELLI - DE WAAL, 2000, p. 49), a resolução de conflitos unilaterais é realizada dentro de uma relação de poder assimétrica, terminando com a subjugação de uma das partes envolvidas. Na resolução bilateral, ocorre o desenvolvimento da negociação, cooperação e principalmente a empatia. Até a fase pré-escolar, a resolução de conflitos é unilateral, dependendo dos cuidadores. O desenvolvimento emocional e cognitivo da criança encontra-se incompleto e depende, nessa faixa etária, do introjeção de modelos de adultos, precipuamente. Segundo Aurelli e De Waal (2000, p. 98), em crianças escolares, abre-se uma possibilidade de negociação bilateral, principalmente com intervenção positiva de adultos. Stemberg e Dobson (apud, AURELLI - DE WAAL, 2000, p. 57) colocam que, no início da adolescência, os conflitos terminam através da força e são unilaterais, dependendo de uma relação de poder assimétrica. No final da adolescência, entretanto, “as negociações bilaterais são mais comuns”. A intensificação dos conflitos, no início da adolescência, deve-se a diversos fatores, sendo um dos principais a transformação hormonal, especialmente a produção de testosterona. Para Werbeck, Hartup and Collins (apud AURELLI - DE WAAL, 2000, p. 41), a resolução de conflitos, na infância e na adolescência, aponta para soluções em relação à violência. Se, por um lado, ocorre, desde a infância, uma propensão aos conflitos e ao uso de violência nas relações, há, concomitantemente, diversas estratégias de resolução para os conflitos. Na adolescência, por exemplo, segundo Werbeck, Hartup e Collins (apud AURELLI E DE WAAL, 2000, p. 58), existe o máximo em exacerbação de violência, porém, simultaneamente, a maior variedade na resolução bilateral de conflitos. Para Stemberg e Dobson (apud AURELLI E DE WAAL, 2000, p. 67), o modelo de negociação dos conflitos ocorre no interior da família, em boa parte da infância, podendo também incluir a escola como referencial de modelos de negociação. Na escola, o aprendizado para resolução de conflitos é muito importante, cabendo aos professores e demais componentes, a escolha de modelos disciplinares que facilitem a negociação e o respeito. Segundo estudos de Horowitz et al (apud AURELLI E DE WAAL, 2000, p. 78), fatores socioeconômicos e culturais são fundamentais para a aquisição de modelos de resolução de conflitos. Para o autor, adolescentes de famílias desorganizadas não conseguem resolvê-los espontaneamente, gerando, em consequência, um aumento da agressividade e da violência. Ainda segundo o mesmo autor, adolescentes de classe média norte-americana conseguem resolver conflitos entre os pares, sem mediação de adultos, contanto que os modelos 147 familiares sejam coesos e estruturados. Alguns estudos (MADSON & SHAPIRO, 1970; KAGAN & MACEM, 1971; MCCLINTOCK, 1977, apud AURELLI E DE WAAL, 2000) comparam crianças e adolescentes de culturas diferentes, verificando padrões mais adaptados de resolução de conflitos em determinada população. Em comparação a crianças e adolescentes americanas, por exemplo, observa-se um “padrão mais favorável de resolução de conflitos entre descendentes de mexicanos, comparados aos anglo-americanos que moram no subúrbio da Califórnia” (KHORAM, 1994, apud AURELLI E DE WAAL, 2000, p. 34). Esses estudos apontam para a importância empírica de realizar estudos com diversos segmentos de uma determinada população, com níveis socioeconômicos e culturas diferentes. Para maior validade, é necessário que se realize, em diversas partes do mundo, com situações sócio-políticas distintas. De qualquer maneira, aponta caminhos que corroboram para a importância do ambiente no aumento da violência e estratégia de resolução de conflitos. As pesquisas não são conclusivas e se restringem a localidades específicas, não podendo ser generalizadas em outras situações e outros contextos. O que podemos concluir é que a agressividade e a violência são fatos verificáveis desde a infância. É justamente na interface entre crianças e adultos, que pode ocorrer a exacerbação da violência ou as possibilidades de resolução de conflitos. Jean Pierre Lebrun (2008, p. 23-24) coloca que a função paterna, atualmente, encontrase invertida, principalmente nas sociedades ocidentais. Os pais agem como se fossem crianças desprotegidas e não servem mais de modelo para elas. A estrutura familiar não serve mais de suporte para conter a agressividade da criança, que, para a psicanálise, é incestuosa, parricida e perversa, e depende da modulação dos pais, nesse caso, da resolução do conflito edipiano (LEBRUN, 2008, p. 87), para canalizar construtivamente a agressividade. A resolução de conflitos passa pela superação, pela canalização e pelo redirecionamento da violência para funções socialmente construtivas, que é um dos princípios da teoria psicanalítica freudiana e depende de fatores inatos ou ambientais, dos modelos parentais, da escola, da rede social como um todo, para ser eficaz. É essa lacuna ou a falta desses modelos, que Jean Pierre Lebrun (2008, p. 42) denomina “crise da legitimidade”. As funções materna e paterna instauram uma dispersão social, não possibilitando às crianças terem referências e modelos positivos, os quais permitam modulação dos afetos e resolução dos conflitos. Os estudos sobre resolução de conflitos trazem alguma perspectiva para o problema, pois não focam apenas a violência, mas em como podemos, nós, cientistas, educadores e pais, 148 construir modelos de resolução dos danos causados por ela. Ou ainda: a resolução de conflitos é o exercício de uma violência positiva, que interdita e coloca limites. Podemos tentar compreender como os primatas resolvem seus conflitos, e como crianças e adolescentes chegam a acordos de paz, mas ainda estamos muito distantes de encontrar respostas para o problema da violência? Estudar a violência apenas sob o prisma do negativo não ajuda a trazer soluções. Remetendo a Aurelli e De Waal (2000, p. 90) devemos constatar que a existência da violência é tão óbvia que não podemos mais nos deter em estatísticas. Hobbes e Rousseau, cada um no seu período histórico, tentam dar solução a esse problema. O que a Biologia pode fazer por nós? Apontar, no máximo, caminhos, mas nunca o caminho. A resolução de conflitos aponta caminhos e longe de ser um tema deslocado do nosso trabalho, ajuda-nos a pensar que podemos frear a violência, e a solução encontra-se no social. Em animais de espécies não humanas, temos resolução de conflitos que ajudam a diminuir a luta por território e hierarquia. Os bonobos e os chimpanzés fornecem exemplos de conciliação. Nesses casos, não podemos falar de diminuição de violência, pois esta só se encontra em humanos, mas de controle de agressividade. Já falamos sobre território, posição na escala social, briga por alimentos, como componentes que geram conflitos em espécies animais não humanas. O instinto agressivo aparece tanto do lado dos conflitos, como da resolução destes. Talvez seja uma pista para os humanos usarem a agressividade a fim de resolver conflitos. Se a agressividade é um instinto que ajuda a preservação da espécie, pode também ajudar a frear a violência, colocando limites, por exemplo, afinal, em nossos conflitos, a violência aparece e traz sua marca humana. O que decorre do social tem sua resolução no social: pais, famílias, grupos, justiça, lei são todos instâncias sociais que podem combater a violência no homem. A chave não é a agressividade, e esta não é um mal e pode servir para abrandar disputas e chegar à paz, como diz Lestel (2006, p. 234), “devemos aprender como outras espécies resolvem e encontram soluções para alguns problemas”. Nunca comparando a nossa espécie a outras, mas tirando exemplos da natureza, para abrir novos horizontes para ela. Nesse ponto, a natureza não é a imperfeição nem o mal, mas o que deve ser sentido e observado para aprendermos boas lições. Temos ainda uma vertente que estamos desenvolvendo, aonde a violência tem aspectos negativos e positivos. Se pegarmos a origem latina da palavra, vis significa violentia, que é um conceito 149 amplo, que se refere a qualquer comportamento ou conjunto que deriva de vis, força (vigor) contra qualquer pessoa ou ente. Temos, por este viés, a associação de vis a virtude e força, que refere-se a energia e firmeza de algo. Violência e força, virtude e ira. A ira estaria ligada a violência negativa e a virtude, á força da violência positiva. Este é um construto que estamos tentando articular, para compreender inclusive, resolução de conflitos. A agressividade é biológica, esta tem componentes genéticos. Proporcionam constituições diferentes e podem acarretar em indivíduos uma maior propensão para ser agressivo. A passagem da agressividade para violência depende da socialização humana. O desejo e a consciência do ato, a falta de empatia, transforma a agressividade em violência negativa. Vamos abordar com mais profundidade este tema mais adiante. No momento, é necessário que falemos da agressividade e suas origens biológicas. Para isso, vamos fazer uma ponte da biologia, com aspectos de pesquisa desta, que são a genética, as neurociências e a Psiquiatria. Devemos passar e aprofundar o que cada uma tem a dizer, para fecharmos nossa análise da biologia. É justamente dessas árvores ditas científicas que hoje se tenta definir o que é agressividade e violência no homem, servindo, na maioria das vezes, para aumentar a confusão entre os termos. Incluir a Psiquiatria é importante, mesmo se tratando de um trabalho de filosofia. Podemos questionar, como Foucault, a Psiquiatria como ciência, mas não podemos esquecer que a biologia molecular, a genética e as neurociências são discursos que tentam ser hegemônicos e passar como verdades, e a Psiquiatria retira seu discurso dessas ciências. 150 4.4 AS PARCAS E OS GENES As parcas, divindades responsáveis pela sorte dos homens, eram três irmãs, filhas da noite e de Cérbero. Chamam-se Cloto, Láquesis e Átropos e sua morada é vizinha à das horas. Possuem um palácio em que o destino dos homens está gravado em ferro e bronze, de sorte que nada pode apagá-lo. imutáveis em seus desígnios, tem nas mãos o fio misterioso que simboliza o decorrer da vida, nada podendo impedi-las de corta-lhe a trama. (COMMELIN, 2005, p. 82). Em 1794, Erasmo Darwin conjecturou que a vida estava ligada por um fio. Para a época, uma ideia “assombrosa” (RIDLEY, 2001, p. 20). Antes dele, Van Imune, em 1648, e Wohler, em 1828, levantaram hipóteses de que a vida se resumia a uma estrutura química. Passando por Darwin, Lamarck, Mendel e tantos outros, a ideia de um fio primordial, à maneira das parcas, tornava-se, cada vez mais, consistente, até que, em 1943, um cientista canadense, Oswald Avery, identificou o DNA. Estávamos na Segunda Guerra Mundial e Mengele fazia experiências com gêmeos. A genética começava a ganhar força. Dez anos depois, em 1953, James Watson e Francis Crick finalmente decodificam o DNA, chegando ao gene. Esse fio reduz a vida a um código de 120 letras. Tudo depende de um cálculo combinatório destas. Para Ridley (2001, p. 23), o DNA é uma grande fábrica de bolos. As receitas transformam-se em proteínas, e estas representam a química da vida: respiração, metabolismo, replicação, comportamento, informação, sexo. Tudo está contido no gene. O genótipo é o que se passa dentro do organismo; o fenótipo é a interação deste com o ambiente. Dessa interdependência, genótipo e fenótipo dependem a natureza humana. Para Ridley (2001, p. 89), faltava uma peça, mas, em 1980, Thomas Cecli e Sidney Altram decodificaram as importantes propriedades do RNA. O RNA é o Mercúrio, o mensageiro, o que faz as receitas chegarem até o bolo. Ridley (2001, p. 123) diz que, sem o RNA, os “dois mundos”, DNA e proteínas, não se ligam. Está desvendado o fio. Os genes tecem os fios da vida humana, a partir do momento em que o óvulo e o espermatozóide unem-se. Para Burt Triviers (2008, p. 1-36), os “selfish genetic elements” entram em ação com a concepção. O gene é uma máquina egoísta, e cada um tende a se reproduzir e a perpetuar-se. Burt e Triviers (2008, p. 98-120) vêem o gene como uma fantástica máquina de guerra, mas, paradoxalmente, dessa guerra, surgem acordos e 151 cooperação, caso contrário, nenhuma estrutura viva tornar-se-ia viável. Em 2001, o projeto genoma anunciou que 30.000.000 de genes respondem pela vida na terra. O genoma humano - o conjunto completo de genes humanos - vem acondicionado em 23 pares distintos de cromossomos, dos quais 22 são numerados por ordem aproximada de tamanho, do maior (número 1) ao menor (número 22), enquanto o par remanescente consiste em cromossomas sexuais X, nas mulheres, e um pequeno Y, nos homens. Para tentar fazer uma analogia com o código genético, utilizamos uma fábula de La Fontaine: “o Leão vencido pelo homem”. Vamos imaginar que, em uma edição, constem 23 fábulas, sendo a do Leão a de número 11. As 23 fábulas representam os cromossomos, os parágrafos das fábulas são chamados exons, que são interrompidos por introns, que são as gravuras. Os códons são as palavras compostas em todos os parágrafos, e cada palavra é escrita por letras que se chamam “bases”49. Os introns são regiões do DNA que não estão no mRNA de alguma proteína, já os exons são as regiões do DNA que estão no mRNA de alguma proteína. As cadeias de RNA recém-sintetizadas de núcleos isolados são muito maiores que as moléculas de mRNA derivadas delas. De fato, o transcrito primário do gene de globina beta contém duas regiões não-traduzidas. Essas seqüências intercalares no transcrito primário 15S são removidas, e as seqüências codificantes são simultaneamente ligadas por um mecanismo de processamento preciso para formar o mRNA 9S maduro. As seqüências codificantes dos genes divididos são chamadas éxons (regiões que se expressam), enquanto as seqüências intercalares não-traduzidas são conhecidas como introns. Geralmente, os introns são seqüências que são eliminadas na formação das moléculas de RNA maduro. Outro gene eucariótico dividido é o da ovalbumina em galinhas, que é composto de oito éxons separados por sete longos íntrons. Ainda mais marcante é o gene do colágeno, que contém mais de 40 éxons. Uma característica comum na expressão desses genes é que seus exons são ordenados na mesma seqüência tanto do mRNA quanto do DNA. Assim, os genes divididos, como os genes contínuos, colineares com seus polipeptídeos produzidos. Um código de uma só base pode especificar apenas quatro tipos de aminoácidos, pois existem somente quatro tipos de bases do DNA. Dezesseis tipos de aminoácidos podem ser 49 Os introns e os exons foram descobertos quando viram uma diferença de tamanho entre o mRNA da proteína da globina beta e o DNA que o codificava. 152 especificados por um código de duas bases, ao passo que por um código de três bases determinam 64 tipos de aminoácidos. Por esse cálculo ficou evidente que três ou mais bases são necessárias para especificar um aminoácido. Experimentos genéticos mostraram que um aminoácido é de fato codificado por um grupo de três bases, chamado códon. Figura 1: Cada códon de ARNm liga-se ao respectivo códon de ARN t, que transporta um aminoácido específico. O ribossomo move-se ao longo do ARN m, ligando-se nos final os aminoácidos na seqüência exata da proteína codificada. Figura 01: Código Genético. Fonte: SADLER, 2001. Existem 1 bilhão de palavras no livro do genoma. Imaginar esta quantidade é algo assustador. Vamos agora reproduzir a fábula que corresponde ao cromossomo 11. Havia exposto um quadro no qual o artista pintou um enorme leão sendo dominado e abatido por um único homem. As pessoas por ali passavam e admiravam o quadro, se vangloriando da proeza; porém, um leão que por ali também passou, baixou-lhes o entusiasmo: Posso ver bem que o pintor atribuiu a vitória a vocês, porém ele os enganou, pintando aquilo que lhes ditou a presunção. Com maior razão seria a nossa vitória, caso os leões soubessem pintar. Se trocarmos as letras, em alguns trechos, vamos ver como fica? “Havia imposto um quadro na qual o arti pintou um enorme loaõ o sendo dominado e abat por um único horem”. Dá para compreender? Lemos um trecho sem nexo, aparentemente. Podemos supor que as letras trocadas são mutações, produzidas por alimentação artificial, uso de drogas, radiação. 153 A fábula passa a ter um significado estranho, e o leitor não vai interagir com ela. Agora vou, tal como uma parca, reintroduzir o fio em alguns estudos científicos, em que o exemplo ganha cada vez mais sentido. Utilizando os estudos de Dilalla e Gottesman (1991), envolvendo genes e desenvolvimento, os autores dividem os grupos violentos em: 1) Delinquentes transitórios ou comportamentais, que se limitam à adolescência; 2) Antissociais contínuos, que são violentos, ameaçadores e homicidas durante a adolescência e a vida adulta; 3) Desabrochados tardiamente, que iniciam os atos violentos antissociais na idade adulta. Para Dilalla (2008, p. 139), a influência genética específica na violência tem sido explorada através dos estudos de neurotransmissores. Um dos genes identificados é o DRD4, situado no cromossomo 11. Esses genes codificam as proteínas que respondem no cérebro ao neurotransmissor dopamina, que, no sistema límbico, é responsável pelo comportamento de busca de novidades e agressão. A presença do alelo 4 repetido do gene versus a repetição deste, potencia a busca por novidades e atos violentos. Para Ridley (2008, p. 98), esse gene atua, facilitando traços de comportamento relacionados à busca de novidades e atitude agressiva e podem facilitar a eclosão de transtornos destrutivos na infância, tais como transtorno de conduta oposicional desafiante, que vão ser responsáveis pela violência da criança contra outras crianças e adultos, seja em forma de disputa por objetos, agressão física, desafio a adultos, maus tratos a animais. Ridley (2001, p. 138) defende que a predisposição genética é apenas um fator. O importante é a interação com o meio, os adultos, as outras crianças, em suma, a cultura. Nesse aspecto, não podemos esquecer-nos do Emílio, que aponta para esse caminho. Vamos supor que a criança tenha uma forte influência do DRD4 e nasça em ambiente onde existem brigas, não introjeção de modelos parentais, inadequação aos traços de temperamento da criança. Como diz Lacan (1988, p. 98), falta a função materna e paterna. Nesse jogo, o gene vai, progressivamente, produzindo dopamina, e a criança fica, cada vez mais, agressiva e excitada. Resultado: como diz Rousseau, um pequeno tirano é formado. Utilizando o jargão da Psiquiatria, podemos ter uma criança com transtorno de conduta. Mas, com os avanços da interação gene e ambiente, essa situação é apenas uma possibilidade. Um gene sozinho e uma mãe não fazem verão. Quanto mais se estuda genes, mais percebemos a complexidade da interação dentro do gene e entre genes. Os estudos 154 envolvendo interação entre genótipo e fenótipo estão apenas começando. Vamos citar outro exemplo, o BNDF (Brian Derived Neurotrophic Factor), que se encontra também no cromossomo 11, é um gene curto, de 1335 letras. Segundo Ridley (2007, p. 111), a simples troca de uma letra G por A produz mudanças significativa na expressão de traços de comportamento. A troca de letras acarreta duas variantes, uma com duas proteínas de metionina e a outra com duas de valina, o que Ridley (2001, p. 111) denomina MET-MET e VAL-VAL. O gene que apresenta duas moléculas de valina apresenta traços de ansiedade acentuados, sendo mais vulneráveis às intempéries do ambiente. Imaginemos agora uma criança VAL-VAL em um ambiente onde a mãe foi abandonada pelo pai, este é alcoólatra, ameaça e agride a mãe, esta não apresenta rede de apoio, tipo parente. Cada vez mais, essa relação com a criança vai ficando complicada e pesada. O VALVAL vai atuando, estimulado pelo ambiente, e, aos poucos, a criança começa a agredir a todos. Bem, essa é apenas uma hipótese, um jogo de dados de Hume, em que os dados caem mais no número 5. Repete várias vezes o mesmo número, e acreditamos que este número repetido é a realidade, mas é uma hipótese. A dopamina é apenas uma das inúmeras substâncias neurotransmissoras. Temos a serotonina, hoje estudada como co-responsável por conduta agressiva e perda no controle dos impulsos; a noradrenalina, o gaba, a epinefrina, a adrenalina, além dos hormônios, como o cortisol, responsável pela reação do estresse, os hormônios da tireóide, a testosterona, incriminada em conduta agressiva, principalmente no gênero masculino. São milhares de circuitos cerebrais e genes em proporção suficiente, para fazer um livro com muitas e variadas versões. Mas, o que interessa, parafraseando Ridley (2008, p. 84), é a interação gene e ambiente. A sopa que começa a ser feita no DNA, passa por RNA, produz proteínas, interage com o ambiente, provoca mutações, enfim, faz do ser humano uma mistura de moléculas que interage com o mundo, em uma relação dialética de retroalimentação contínua. Tomasello (2003, p. 84) fala de “meio ontogenético”, que é a matriz da criança, em que esta nasce e começa a desenvolver-se. Esse meio não é escolha mas contingência, é o ponto de partida da interação com os genes. A tendência para a agressividade encontra-se nos genes? Podemos dizer, provisoriamente, que essa é uma parte da questão. Traços de busca de novidades, agressividade, escassez de dopamina, serotonina ou excesso, em determinadas regiões 155 cerebrais, ajudam a produzir temperamentos agressivos. Aristóteles criou uma biotipologia, que, na realidade, remonta a Hipócrates, com tipos sanguíneos, fleumáticos, bilios. Thomas Hobbes, no De Cive, fala sobre o temperamento ígneo e temperado, sobre constituições diferentes com diversos tipos de desejos, cita os sensuais, os invejosos, o dominado pela vanglória, cita diversos tipos de loucuras. Rousseau fala da interação criança e adulto. Todos esses aspectos soam atuais, se analisarmos a genética, a interação genótipos e fenótipos, pelos relacionamentos: essa é a sopa primordial. Com o advento da linguagem, temos consciência da violência. Sentir, ou não sentir culpa nos distingue de outras espécies, pois a culpa requer memória, e esta precisa da linguagem para criar signos. O gene é a receita; a violência, o bolo, mas a perversão e o mal só estão presentes no homem, pois este possui a linguagem. Não brigamos apenas por hierarquia e território, mas pela vanglória e por vaidade. Poder, perversão, paixões, como vanglória, vaidade, inveja são resultados de interações dos genes com o ambiente. Agora vamos aproximar toda essa discussão de nossa herança primata. Aos poucos, estamos montando um complexo quebra-cabeça. Para clarear as ideias, neste ponto, podemos falar que a genética nos fornece uma chave para a predisposição a sermos mais ou menos agressivos. A agressividade faz parte do ser vivo, e os genes, principalmente, no homem, podem originar alterações bioquímicas, anatomofisiológicas que podem levar a uma resposta mais agressiva, porém a violência é de outra ordem, só se encontra no homem e tem que existir relação deste com outros ou consigo. A interação de um genótipo, nos circuitos cerebrais, que acarrete um temperamento agressivo, não leva diretamente à violência, uma vez que existe a mediação do social, da cultura. Nesse caso, uma pessoa com predisposição para maior agressividade, pode, ou não, tornar-se uma pessoa violenta. Levando a discussão para nossa proximidade genética com primatas não humanos, segundo Katharine S. Pollard (2009, p. 34), temos que considerar que 99% de nossas cópias de DNA são idênticas às dos chimpanzés e bonobos. Para a autora, apenas 15 milhões ou 1% de letras formadoras do genoma humano passaram por mudanças em 6 milhões de anos. O que diferencia humanos de chimpanzés e bonobos neste 1%? A sequência HAR 1, que ativa o córtex e é especialmente grande em humanos. A sequência FOXP2, que é fundamental para o desenvolvimento da linguagem humana. Utilizando Hobbes, o FOXP2, interagindo com o ambiente, foi a responsável pela maior invenção da espécie humana. A sequência AMY1 facilita a digestão do amido, o que facilita uma maior articulação para a busca de alimentos, o que significa maior socialização e trocas, o que, para Ridley 156 (2000, p. 145), é a origem da cooperação. A troca de alimentos, a especialização das funções, a divisão do trabalho é, para Ridley (2000, p. 189), a origem do sentimento de cooperação e ajuda mútua. A sequência ASPM, também é responsável pelo desenvolvimento do cérebro. O uso de ferramentas depende desse crescimento e do desenvolvimento cerebral. Cérebro, linguagem, uso de ferramentas, alimentação, trocas, especialização e divisão de trabalho diferenciam, geneticamente, humanos de primatas não humanos, principalmente chimpanzés e bonobos. Para concluir, entre as sequências gênicas que diferenciam humanos de primatas não humanos, temos o LCT, que envolve a digestão do açúcar, que, como foi citado por Ridley (2008, p. 238), é fundamental para a formação de trocas sociais e divisão de trabalho. Enfim, temos a sequência HAR2, que responde pela habilidade manual e pela destreza, possibilitando o uso de ferramentas. Temos uma chave genética neste 1%: cérebro, linguagem, alimentação e uso de ferramentas respondem pelo surgimento das linhagens de hominídeos que culminam com o homo sapiens. Do Sahelanthopus Tchadensis, que é considerado o hominídeo mais antigo, passando pelo Australopithecus Aferensis, Homo Ergaster e o Neadenrtalensis, que dominaram o Oeste da Ásia e a Europa glacial por quase 2000 anos. O Homo Sapiens, cujos fósseis foram encontrados na Etiópia, em 1967, na sequência, foi o único hominídeo a colonizar todos os continentes, a usar símbolos, a desenvolver linguagem e ferramentas e a realizar trocas sociais complexas. O Sapiens conviveu com outras espécies, mas não temos como conjecturar como foi a única espécie que conseguiu se expandir pela terra, criando estruturas sociais e políticas complexas. Para Buller (2009, p. 62), a situação é mais complexa e não podemo-nos deter nas diferenças genéticas e focar o Homo Sapiens por esse aspecto. Para Buller (2009, p. 62), “o cientista evolutivo Jaak Panilsepp identificou sete sistemas emocionais bem anteriores ao pleistoceno, época do alvorecer do homo sapiens”. Emoções, como cuidado, pânico e ação remetem a primatas bem menos evoluídos que chimpanzés e bonobos (como lêmures, saguis), enquanto reações, como raiva, medo, perseguição e prazer têm origem em pré-mamíferos. Nesse aspecto, temos emoções elementares em espécies, que não os primatas próximos ao homem. O sapiens herdou também essa herança. Um substrato de emoções antigas, que remete a pré-mamíferos, acompanha nossas emoções. Temos o córtex mais desenvolvido entre as 157 espécies, mas nossas emoções básicas vêm de um passado reptiliano, que não faz parte do 1% que nos diferencia dos chimpanzés e bonobos; ao contrário, compõe um patrimônio genético de espécies bem menos complexas e anteriores filogeneticamente ao homo sapiens. Em relação à agressividade, para Dilalla (2008, p. 131-148), existem fortes indícios de que a genética influencia traços de temperamento em humanos, inclusive essa herança reptiliana. Estudos, como o de Aniskiewycz (1979), demonstram uma hereditariedade de 82% para agressão em crianças de até 5 anos. Para Dilalla (2008, p. 138), esses estudos são duvidosos e merecem ser revistos, pois seguem um padrão de gêmeos monozigóticos que estabelecem uma estimativa de, ao menos, 40% de traços de temperamento agressivos em crianças. Outros estudos aumentam para 51%. Em dizigóticos, chega a 21%. Aprofundando mais a questão, alguns estudos delimitam forte componente genético na agressão física (50%), que se correlaciona com traços de temperamento de busca de novidades e fraca regulação do autocontrole e tolerância à frustração. A agressão social, que se relaciona ao abuso psicológico do tipo xingamento, depreciação, humilhação, ofensas, negligência e racismo, possui uma menor influência genética. Segundo Brendem et al (apud RIDLEY, 2008), para a agressão social, temos apenas 20% de influência genética, cabendo os 80% restantes ao meio ambiente. Esses estudos são realizados em crianças e podem ser considerados pouco conclusivos, fornecendo apenas algumas pistas. Podemos conjecturar que a genética fornece apenas uma hipótese para as agressões humanas, ou melhor, é apenas um ingrediente da sopa. Um tempero, ou, usando o código genético, letras a mais ou a menos, que, associados ao ambiente, à cultura, à situação socioeconômica formam um prato, em que os temperos provocam um gosto apimentado e diferente. Podemos usar a metáfora da dança da criança e do adulto de Rousseau, que pode produzir um pequeno tirano. Genes, tipo DRD4 e uma mãe e pai abusadores ou pouco continentes, produzem uma sopa venenosa e destrutiva. A violência instaura-se nessa relação: é social. A genética nos fornece faces de um dado. Chamary e Hurst (apud RIDLEY, 2008, p.4-39) colocam que sabemos ainda muito pouco sobre genes. Termos como “gene egoísta”, “máquinas de sobrevivência” nada dizem. As mutações silenciosas, para Chamary e Hurst (apud RIDLEY, 2008 p. 38), só agora começam a ser investigadas, e cada espécie apresenta sua peculiaridade. Na espécie humana, temos uma cultura complexa, que, para Lestel (2006, p. 156), não é apanágio de humanos. A arte, que, em humanos, encontra-se plenamente desenvolvida; a utilização de ferramentas, que 158 para Lestel (2006, p. 98), encontra-se em primatas não humanos, em uma forma mais simples, mas os chimpanzés, por exemplo, já fazem uso de ferramentas, e a linguagem, essa sim, específica de humanos, se considerarmos a linguagem verbal, a formação de símbolos, e a escrita. Podemos, provisoriamente, resumir que a genética é um componente importante dos quebra-cabeças do estudo da natureza humana e pode predispor temperamentos com maior tendência à agressividade. Pode também ser um fator de predisposição para alguns transtornos mentais na infância, tais como transtornos disruptivos, que são responsáveis por condutas agressivas. Parodiando Ridley (2008, p. 98), esse é apenas um lado da eterna luta natureza versus criação. Na realidade, Ridley (2008, p. 145) propõe que essa é uma falsa questão. Estamos apenas engatinhando nos estudos das influências genéticas, mutações silenciosas, partes não estudadas do código, interação genótipo e fenótipo, todos esses estudos estão apenas começando. Só podemos, por enquanto, constatar o óbvio: a espécie humana é a mais violenta de todas as espécies, e essa violência é diferente da agressividade, que pode, no máximo, contribuir para gerar pessoas que o processo de socialização torna violentas. Um exemplo: certo indivíduo nasce com predisposição a ter um comportamento que busca novidades e respostas agressivas mais acentuadas. Os pais, sendo permissivos, incentivam essa conduta, mas a violência se instaura nos interstícios dessa socialização, quando pais incentivam um filho a humilhar outras pessoas, ou eles presenciam os pais sendo preconceituosos e racistas com terceiros. Poderíamos citar mais exemplos envolvendo outras situações, como abuso, negligência parental. Nesses temas, vamo-nos deter mais adiante, mas é o que nos ajudará a ver como a agressividade pode ser utilizada socialmente, para produzir condutas violentas. Utilizando uma linguagem mítica, as parcas tecem o destino, mas podem mudá-lo. Moram perto das horas. O fio das narrativas dos contos de fadas e dos contos maravilhosos, o fio da Sherazade, o fio do DNA, todos se entrelaçam, mas são apenas fios; nada definem sobre o destino do homem. Nele, temos a história, produto real e material feito por seres humanos. Os mitos compõem a história humana, mas, como diz Darnton (1986), fazem parte de uma materialidade que é histórica, assim como a violência, produto dos homens e da sua história real e concreta. O BNDF é o fator genético que faz nosso cérebro crescer e, cada vez mais, simbolizarmos, criando arte, Estado, economia, religião, história. Os personagens antropomorfizados falam, usam BNDF, as parcas tecem, o cérebro, 1%, a herança reptiliana, 159 as paixões, o poder. A violência travestida faz sua aparição na história humana. Átropo corta o fio, uma mutação silenciosa ocorre: o cérebro humano entra em cena. Este é nosso próximo tema: cérebro e transtornos mentais. Não devemos esquecer que nosso trabalho é interdisciplinar; é justamente do confronto entre filosofia, artes, ciências, sociologia que podemos defender uma ideia coesa. Excluir o empirismo das neurociências e da Psiquiatria é não dar oportunidade de dialogar com a realidade de nosso século. Poderíamos parar aqui e falar mais sobre Hobbes, Rousseau e fazer uma ponte com o que foi escrito sobre etologia e genética, mas, empiricamente, são as neurociências e a Psiquiatria, as quais assumem um discurso de verdade sobre o tema. Escanteá-los e tentar não compreender o que o empirismo desses campos do saber tem a dizer é jogar com um dado tendencioso. Certamente, traz mais problemas e complicações, mas esse é o objetivo do nosso trabalho. 160 CAP. 5. AS NEUROCIÊNCIAS E O ANTISSOCIAL ENTRAM EM CENA 5.1. DAMÁSIO, AS EMOÇÕES E OS NEURÔNIOS ESPELHO “Finalmente chegou à torre e abriu a porta do quartinho em que a rosa de urze dormia. Lá estava a princesa deitada, tão bonita que ele não conseguiu tirar os olhos dela. Então, curvou-se e beijou-a” (JACOB e GRIMM, apud TATAR, 2004, A Bela Adormecida, p. 107). La planéte dês singes, escrito por Pierre Boulle, em 1963, que narra a saga de um planeta dominado por macacos, onde os humanos são escravos e perseguidos, virou sucesso em todo o mundo. Nessa obra de ficção, os macacos falam e usam cérebro e ferramentas, e os humanos são uma ameaça, em função da violência. Quando o astronauta Taylor descobre que o ser humano provocou a destruição do planeta, desespera-se. O Dr Zairus, literalmente, faz lobotomia e corta a língua dos humanos, pois é justamente do cérebro e da linguagem que vem o poder de destruição do homem, porém, quando os macacos adquirem essas habilidades, passam a ser tão destrutivos quanto os humanos. Por que o cérebro traz esse potencial destrutivo? Antonio Damásio (1996, p. 34-76) fala de emoções e sentimentos que são regulados pela anatomofisiologia cerebral. Neurotransmissores, sinapses, hormônios, áreas cerebrais, tudo compõe um jogo intrincado, de onde surgem as emoções, que, para Damásio (2001, p. 36), precedem os sentimentos. Esse fato é explicado pela evolução biológica. Se seguirmos Damásio (1996, p. 38-72), a emoção tem sua origem em processos metabólicos, que são químicos e físicos, seguidos por sistemas de defesa imunológicos e reflexos básicos. Esse é o ramo primeiro da árvore das emoções e segue um ramo médio associado à sensação de prazer e de dor, de punição e de recompensa, o qual provoca aproximação e afastamento. Complexificando, Damásio (1996, p. 43-44) coloca que, só ao entrarmos no reino dos apetites, como fome, sede, curiosidade, sexo, comportamentos de busca e de condutas lúdicas, é que passamos a atingir o ápice das emoções. No cume, encontram-se a alegria, a mágoa, o medo, o orgulho, a vergonha e a vaidade. Essas emoções, à medida que se vão complexificando, tornam-se sociais, ou melhor, relacionais. Em nosso cérebro, ocorrem 161 reações químicas e físicas, das mais básicas às mais complexas, áreas são ativadas, outras desativadas, e tudo isso depende do gene. Emoções, para Damásio (1996, p. 48), são fontes de regulação de todo ser vivo. Damásio divide as emoções em três tipos: 1) Emoções de fundo, que são pré-linguísticas, gestuais, sensório-motoras, que fazem o ser vivo sobreviver em nível básico; 2) As emoções de base, como medo, raiva, nojo, tristeza, felicidade, surpresa; 3) Finalmente, temos as emoções sociais: simpatia, compaixão, embaraço, vergonha, culpa, orgulho, ciúme, inveja, gratidão, desprezo, espanto e admiração. Para Damásio (1996, p. 89), o mecanismo das emoções encontra-se no cérebro e os níveis de emoção se entrecruzam e influenciam-se reciprocamente (1996, p. 54-58). Como estamos analisando, o homem tem diferenças que o separam de outras espécies. O cérebro é uma das principais. Fazendo uma paródia, imaginemos um carrossel: o cérebro. Vamos colocar um hipotético viajante, para andar por esse carrossel. Para Damásio (1996, p. 65), deve existir um estímulo emocional competente para desencadear a emoção. Digamos que o desejo de andar no carrossel seja o estímulo. No início da viagem, o personagem entra nos córtices visuais ou auditivos dos carros. Essa é a fase de apresentação, em que ele percebe a partida, o início da viagem pelo carrossel e sente as primeiras emoções. Agora ocorre uma corrente de estímulos, e o carrossel começa a andar por diversas regiões, que são os circuitos cerebrais, as conexões se formam, e, de súbito, o personagem encontra uma barreira e sente medo. Entramos na amígdala, “situada nas profundezas do lobo temporal, uma parte do lobo frontal a que chamamos córtex pré-frontal ventro-medial, e uma outra região frontal no córtex do cíngulo e na área motora suplementar” (DAMÁSIO, 1996, p. 66). A amígdala é o centro do carrossel, que intercepta os estímulos, manda sinais para o córtex, desencadeia emoções como medo e raiva. Na amígdala, fecham-se e abrem-se as comportas de reações de medo, raiva, que fazem ligação com culpa, ataque, inveja, vaidade. Da amígdala, parte a execução da ação para o prosencéfalo basal, hipotálamo, tronco cerebral, nossas vísceras se alteram, assim como nossos músculos, e o viajante grita: pare o carrossel! Tudo bem, dá para ver que viajante fala, grita, faz-se compreender, mas os circuitos cerebrais ativados podem ser os mesmos de um chimpanzé, porém o viajante fala, protesta, usa a lei, processa o dono do parque. Esse exemplo que tomei a liberdade de criar, é ficcional, mas ilustra como funciona a maquinaria cerebral. A amígdala do viajante é o centro de onde irradiam-se o medo, a raiva, a fuga, o grito. O mais importante desse mecanismo é que somos 162 um conjunto complexo de órgãos, interagindo através de substâncias químicas e estímulos físicos. Damásio (1996, p. 210-212) chama de “marcadores somáticos” a essas interações que ocorrem entre o organismo e o meio. O corpo é o receptáculo de todos os eventos. A amígdala do viajante interage como obstáculo ao carrossel. Nesse momento, o corpo fala. Em regiões cerebrais, são ativados neurotransmissores, hormônios são liberados, a musculatura reage, as cordas vocais entram em ação. Algo acontece no cérebro: circuitos envolvendo amígdala, córtex, neurotransmissores e hormônios estão atuando diferentemente. Para Damásio (1996, p. 99), podemos observar esse aspecto da importância do cérebro em lesionados cerebrais. Quando uma determinada área é afetada, por exemplo, o cortéx-pré-frontal, o indivíduo passa a ter um comportamento desinibido, desafiante, agressivo, que antes não tinha. As neurociências, com o estudo de pessoas que sofrem lesão cerebral, mapeiam as áreas responsáveis por determinado comportamento. O que Damásio (1996) tenta realçar é que não podemos negar um componente neuro-anátomo-químico para as condutas perversas, para a crueldade, para o prazer em fazer o mal ao outro. Existe a psicopatia secundária, que ocorre em lesionados cerebrais, e a primária, que depende de fatores genéticos, de marcadores-somáticos, da interação gene e ambiente. Não existe uma taxionomia ou teoria para as emoções50 que seja geral, ou aceita, de forma universal. Várias têm sido propostas, entre elas: Cognitiva' versus 'não cognitiva' "Emoções intuitivas" (vindas da amígdala) versus "emoções cognitivas" (vindas do cortex prefrontal) "Básicas" versus "complexas": em que’ emoções básicas, em conjunto, constituem as mais complexas. Categorias baseadas na duração: Algumas emoções ocorrem em segundos (ex. surpresa), e outras levam anos (ex. amor). Existe uma distinção entre a emoção e os resultados da emoção, principalmente os comportamentos gerados e as expressões emocionais. As pessoas frequentemente se comportam de certo modo, como um resultado direto de seus estados emocionais, a saber: chorando, lutando ou fugindo. Ainda assim, se podem ter a emoção sem o correspondente 50 Emoção é uma experiência subjetiva, associada ao temperamento, à personalidade e à motivação. A palavra em inglês 'emotion' deriva do francês émouvoir, que decorre do latim emovere, onde o 'e-‘ (variante de ex-) significa 'fora' e ‘movere’ significa 'movimento'. O termo relacionado motivação é, assim, derivado de movere. 163 comportamento, então, nós podemos considerar que a emoção não é apenas o seu comportamento e muito menos que o comportamento não é a parte essencial da emoção. Sentimentos, de forma genérica, são informações que seres biológicos são capazes de sentir nas situações que vivenciam. Por exemplo, o medo é uma informação de que há risco, ameaça ou perigo direto para o próprio ser ou para interesses correlatos. A empatia é a informação sobre os sentimentos dos outros, a qual não resulta necessariamente na mesma reação entre os receptores, mas varia, dependendo da competência de lidar com a situação, e de como isso se relaciona com experiências passadas e outros fatores. O sistema límbico é a parte do cérebro que processa os sentimentos e as emoções. A Medicina, a Biologia, a Filosofia e a Psicologia estudam o sentimento humano, as quais, para Damásio (2003, p. 92), são fundamentais. O sentimento engloba percepção sobre pensamentos, estados do corpo, emoções básicas. O mapeamento, no cérebro, de estados do corpo, a ativação de regiões cerebrais por estímulos externos que o atingem formam a matriz dos sentimentos. Um percurso que começa com um estímulo externo, passa por vísceras, atinge amígdalas, hipotálamo, mexe com pensamento, memória e termina no córtex, formando o circuito dos sentimentos, o qual, tendo componentes diferentes, com menor reatividade das amígdalas, por exemplo, ao medo, ou diminuição de serotonina, produz condutas cruéis, sem culpa nem remorso. Damásio (2003, p. 138) nos faz perceber que o homem é corpo, utilizando, inclusive, Espinosa. O cérebro humano é bem mais complexo que o de qualquer primata. Somos primatas com consciência do eu, intencionalidade nos atos, que reconhecem a alteridade do outro. Chimpanzés podem ser agressivos, até matar outros, mas lhes falta a consciência do eu, a percepção daquilo que está fazendo, a culpa; a intencionalidade de que aquele ato é cruel e deliberado e parte da vontade consciente. Conhecer a neurociência é importante para situar, no cérebro, a arquitetura das nossas emoções e sentimentos. Nosso cérebro é diferente do de outros primatas, e esse detalhe é fundamental, inclusive, não podemos deixar de citar a descoberta dos “neurônios espelho”, que fazem com que tomemos consciência da atitude e da intenção do outro. Apesar de encontrar esse mecanismo em primatas não humanos, o desenvolvimento pleno dos neurônios espelho encontra-se na nossa espécie; eles são a base da imitação, do aprendizado social e da empatia, os quais foram descobertos pelos pesquisadores Giacomo Rizzolatti, Vittorio Gallesw e Leonardo Fogasi, no início da década de 90. Para Katja Gaschler (2009, p. 46-51), 164 essa descoberta pode ser a chave para explicar o desenvolvimento da socialização humana, inclusive, para perceber a intencionalidade e a alteridade nos gestos de outro. Esses neurônios são responsáveis pela percepção do outro, que facilita a empatia e faz com que reconheçamos aquele que não faz parte de nós, ajudando o processo de pertencer a um grupo. Os neurônios espelho estão no início da pesquisa, mas já podem nos fornecer pistas sobre os processos de imitação, socialização e empatia51. Nos humanos, pode ser observada atividade cerebral consistente com a presença de neurônios espelho no córtex pré-motor e no lobo parietal inferior. Alguns cientistas consideram esse tipo de células uma das descobertas mais importantes da neurociência, na última década, acreditando que eles possam ser de importância crucial na imitação e na aquisição da linguagem. Para concluir, as neurociências fornecem pistas sobre o processo de humanização e o nosso cérebro. Não podemos negar que o processo de humanização tornou nosso cérebro o mais complexo entre todas as espécies. Seria tendencioso afirmar que somos violentos, em função de nossa estrutura cerebral, mas podemos colocar que o cérebro humano, que apresenta mecanismos responsáveis pelo processo de socialização e nos diferencia de outras espécies, tem um papel importante que nos singulariza como humanos. Talvez seja a ponte entre agressividade e violência. Com a apresentação empírica de alguns transtornos mentais, pretendemos aprofundar essa questão, ressaltando que, longe de biologicizar o homem, estamos tentando compreender sua natureza, trazendo para o debate a contribuição de outras áreas do saber. Como Psiquiatra, com experiência clínica há 17 anos, não posso omitir-me em tocar nesse tema sob a ótica da Psiquiatria. A psiquiatria estuda os chamados transtornos do comportamento, podendo trazer contribuições para o estudo da violência. Mesmo sendo questionada como estratégia de saber-poder da biopolítica e controle social dos comportamentos, não podemos deixar de fazer um link com o que a psiquiatria tem a dizer sobre a violência, mesmo que seja para contestar. 51 Um neurônio espelho, também conhecido como célula-espelho, é um neurônio que dispara tanto quando um animal realiza um determinado ato, como quando observa outro animal (normalmente da mesma espécie) a fazer o mesmo ato. Dessa forma, o neurônio imita o comportamento de outro animal como se estivesse ele próprio realizando essa ação. Esses neurônios já foram observados de forma direta em primatas, acreditando-se que também existam em humanos e em alguns pássaros. 165 5.2 TRANSTORNO MENTAL E COMPORTAMENTO VIOLENTO Chapeuzinho Vermelho disse consigo: nunca se desvie do caminho e nunca entre na mata, quando sua mãe proibir. (JACOB e GRIMM, apud TATAR, 2004, Chapeuzinho Vermelho, p. 35). Depois de abordamos, de passagem, a contribuição das neurociências, através de Damásio, daremos continuidade a nosso recurso às ciências do comportamento, entrando na Psiquiatria, que estuda a violência do ponto de vista dos transtornos mentais e das alterações cerebrais. Vamos começar pela infância, em que encontramos os primeiros transtornos que provocam comportamentos violentos. Os transtornos disruptivos, tais como o transtorno de conduta, o ‘oposicional desafiante’ e o transtorno de ‘déficit de atenção’ com hiperatividade respondem pela quase totalidade das condutas violentas na infância. Excluindo transtornos globais do desenvolvimento, os retardos mentais e os transtornos de humor, podemos afirmar que são principalmente os disruptivos, que provocam problemas de violência e invasão do direito dos outros52. O transtorno oposicional desafiante ocorre mais em crianças entre 7 a 10 anos e está ligado ao confronto de introjeção de autoridade com adultos. O conflito gira em torno de obedecer, ou não, às normas dos cuidadores, mas não podemos detectar um comportamento violento que provoque agressão física deliberada, intimidação, roubos, mentiras persistentes. É um indicador de que algo não vai bem em uma determinada estrutura familiar; tem substrato genético, segundo a Psiquiatria. Nessa interseção social/família e genes, encontraremos respostas para os problemas da nossa pesquisa. O Transtorno de Déficit de Atenção com Hiperatividade - TDAH, que, na realidade, caracteriza-se por hiperatividade, desatenção, impulsividade, tem bases genéticas e neuroquímicas, acarreta dificuldade na família, na escola e nas relações interpessoais da criança. Pode ser um fator facilitador de brigas corporais, desafio à autoridade de pais e professores, e, se não tratado, pode acarretar problemas maiores, principalmente na adolescência, como uso de substâncias psicoativas e transtorno de conduta. É um transtorno crônico, que se pode arrastar durante anos, gerando na criança, na escola e em todos os que convivem com ela, um mal estar que vai, cada vez mais, perpetuando-se, levando-a a assumir atitudes, às vezes, violentas, chegando, até mesmo, a tornar-se uma abusadora de outras 52 Disponível em http://www.psiquiatriainfantil.com.br. Acessado em 20 de setembro de 2008. 166 crianças. Há fatores genéticos e neuroquímicos que facilitam a precipitação deste transtorno, mas não o determinam (ASSUMPÇÃO JR E KUKSINSKI, 2008). Finalmente temos o “transtorno de conduta”; devido à sua importância para a nossa tese, citaremos os critérios do DSM-IV E CID 10, utilizados pela Psiquiatria, a fim de compreendermos melhor esse transtorno. 167 5.3 TRANSTORNO DE CONDUTA E COMPORTAMENTO DISRUPTIVO: Características Diagnósticas Ladrões se introduziram em uma casa onde nada encontraram, exceto um galo. Pegaram-no e saíram. O galo, vendo que iria ser morto por eles, põe-se a suplicar que o deixassem, dizendo-se útil aos homens, pois os acordava antes do raiar do sol para o trabalho. Os ladrões, porém responderam: ‘mais um motivo para te matarmos, pois, acordando os homens, tu nos impedes de roubar’ (ESOPO, 2008, p. 86). A característica essencial do Transtorno da Conduta é um padrão repetitivo e persistente de comportamento, em que são violados os direitos básicos dos outros ou as normas ou regras sociais importantes apropriadas à idade (Critério A). Esses comportamentos caem em quatro agrupamentos principais: conduta agressiva, que causa ou ameaça danos físicos a outras pessoas ou a animais (Critérios A1-A7); conduta não-agressiva, que causa perdas ou danos a propriedades (Critérios A8-A9); defraudação ou furto (Critérios A10-A12) e sérias violações de regras (Critérios A13-A15). A perturbação do comportamento causa prejuízo clinicamente significativo, no funcionamento social, acadêmico ou ocupacional (Critério B). O Transtorno da Conduta pode ser diagnosticado em indivíduos com mais de 18 anos, mas apenas se os critérios para Transtorno da Personalidade Antissocial não são satisfeitos (Critério C). O padrão de comportamento em geral está presente em uma variedade de contextos, tais como em casa, na escola ou na comunidade. Uma vez que os indivíduos com Transtorno da Conduta tendem a minimizar seus problemas de conduta, o clínico, com frequência, precisa recorrer a informantes adicionais, entretanto, o conhecimento do informante sobre os problemas de conduta da criança pode ser limitado por supervisão inadequada, ou pelo fato de a criança não tê-los revelado. As crianças ou os adolescentes com esse transtorno frequentemente iniciam o comportamento agressivo e reagem agressivamente aos outros. Elas podem exibir um comportamento de provocação, ameaça ou intimidação (Critério A1); iniciar lutas corporais frequentes (Critério A2); usar uma arma que possa causar sério dano físico (por ex., um bastão, um tijolo, uma garrafa quebrada, uma faca ou até uma arma de fogo) (Critério A3); ser fisicamente cruéis com pessoas (Critério A4) ou com animais (Critério A5); roubar em confronto com a vítima (por ex., “bater carteira”, arrancar bolsas, extorquir ou assaltar a mão armada) (Critério A6); ou forçar alguém a manter atividade sexual (Critério A7). A violência 168 física pode assumir a forma de estupro, agressão ou, em casos raros, homicídio. A destruição deliberada da propriedade alheia é um aspecto característico desse transtorno, podendo incluir a provocação deliberada de incêndios com a intenção de causar sérios danos (Critério A8) ou a destruição deliberada da propriedade alheia de outras maneiras (por ex., quebrar vidros de automóveis, praticarem vandalismo na escola) (Critério A9). A defraudação ou furto é comum, podendo incluir a invasão de casas, de prédios ou de automóveis alheios (Critério A10); mentir ou romper promessas, com frequência, para obter bens ou favores, ou para evitar débitos ou obrigações (por ex., ludibriar outras pessoas) (Critério A11); ou furtar objetos de valor sem confronto com a vítima (por ex., furtar em lojas, falsificar documentos) (Critério A12). Caracteristicamente, os indivíduos com esse transtorno também cometem sérias violações de regras (por ex., escolares, parentais). As crianças com o transtorno frequentemente apresentam um padrão, iniciando-se antes dos 13 anos, com a permanência fora de casa até tarde da noite, apesar das proibições dos pais (Critério A13). Pode haver um padrão de fuga de casa, durante a noite, (Critério A14). Para ser considerado um sintoma de Transtorno da Conduta, a fuga deve ter ocorrido, ao menos, duas vezes (ou apenas uma vez, sem o retorno do indivíduo por um extenso período). Os episódios de fuga que ocorrem como consequência direta de abuso físico ou sexual não se qualificam tipicamente nesse critério. As crianças com esse transtorno podem, com frequência, faltar à escola sem justificativa, iniciando tal comportamento antes dos 13 anos (Critério A15). Em indivíduos mais velhos, isso se manifesta por constantes ausências do emprego, sem uma boa razão. Dois subtipos de Transtorno da Conduta são oferecidos, com base na idade de início do transtorno, isto é, Tipo com Início na Infância e Tipo com Início na Adolescência. Os subtipos diferem com relação à natureza característica dos problemas de conduta apresentados: curso, prognóstico e distribuição entre os gêneros. Ambos os subtipos podem ocorrer de forma leve, moderada ou severa. Na avaliação da idade de início do transtorno, as informações devem ser obtidas, preferivelmente, do jovem e de seus responsáveis. Uma vez que muitos dos comportamentos podem ser ocultados, os pais ou responsáveis podem não relatar todos os sintomas e superestimar a idade de seu início. O Tipo com “Início na Infância” é definido pelo início de, ao menos, um critério característico de Transtorno da Conduta antes dos 10 anos de idade. Os indivíduos com o Tipo com “Início na Infância”, em geral, são do sexo masculino, e, frequentemente, 169 demonstram agressividade física com outros, têm relacionamentos perturbados com seus pares, podem ter “Transtorno Desafiador Opositivo” durante um período precoce da infância e geralmente apresentam sintomas que satisfazem todos os critérios para Transtorno da Conduta antes da puberdade. Esses indivíduos estão mais propensos a terem Transtorno da Conduta persistente e a desenvolverem Transtorno da Personalidade Antissocial na idade adulta que aqueles com o Tipo com Início na Adolescência (ASSUMPÇÃO JR E KUCZYNSKI, 2008). Já o Tipo com Início na Adolescência é definido pela ausência de quaisquer critérios característicos do Transtorno da Conduta antes dos 10 anos de idade. Em comparação com o Tipo com Início na Infância, esses indivíduos estão menos propensos a apresentar comportamentos agressivos e tendem a ter relacionamentos mais normais com seus pares (embora frequentemente apresentem problemas de conduta na companhia de outros). Eles também estão menos propensos a terem um Transtorno da Conduta persistente, ou a desenvolverem Transtorno da Personalidade Antissocial na idade adulta. A razão de homens para mulheres com Transtorno da Conduta é menor para o Tipo com Início na Adolescência que para o Tipo com Início na Infância. Os indivíduos com Transtorno da Conduta podem ter pouca empatia e pouca preocupação pelos sentimentos, desejos e bem-estar alheios. Especialmente em situações ambíguas, os indivíduos agressivos com esse transtorno, em geral, percebem mal as intenções dos outros, interpretando-as como mais hostis e ameaçadoras do que de fato são, e respondem com uma agressão que, então, percebem como razoável e justificada. Eles podem ser grosseiros e não possuir sentimentos apropriados de culpa ou remorso. Pode ser difícil avaliar a autenticidade do remorso demonstrado, pois esses indivíduos aprendem que a expressão de culpa pode reduzir ou evitar punições. Os indivíduos com esse transtorno podem facilmente delatar seus companheiros e tentar culpar outras pessoas por seus atos. A autoestima, em geral, é baixa, embora o indivíduo possa projetar uma imagem de “durão”. Fraca tolerância à frustração, à irritabilidade, aos acessos de raiva e à imprudência são aspectos frequentemente associados. Os índices de acidentes envolvendo homicídios parecem ser mais altos entre os indivíduos com Transtorno da Conduta que naqueles sem essa condição. O Transtorno da Conduta continuamente está associado a um início precoce de comportamento sexual, consumo de álcool, uso de substâncias ilícitas e atos imprudentes e arriscados. O uso de drogas ilícitas pode aumentar o risco de persistência do Transtorno da Conduta. Os comportamentos do Transtorno da Conduta podem levar à suspensão ou à 170 expulsão da escola, problemas de ajustamento no trabalho, dificuldades legais, doenças sexualmente transmissíveis, gravidez não planejada e ferimentos por acidentes ou lutas corporais. O Transtorno da Conduta pode estar associado a uma inteligência inferior à média. O rendimento escolar, particularmente em leitura e outras habilidades verbais, em geral, está abaixo do nível esperado com base na idade e na inteligência, podendo justificar o diagnóstico adicional de Transtorno da Aprendizagem ou Transtorno da Comunicação. O Transtorno de Déficit de Atenção/Hiperatividade é comum em crianças com Transtorno da Conduta. O Transtorno da Conduta também pode estar associado a um ou mais dos seguintes transtornos mentais: Transtornos da Aprendizagem, Transtorno de Ansiedade, Transtorno do Humor e Transtornos Relacionados a Substâncias psicoativas, principalmente álcool, e estimulantes tipo crack e cocaína. Os seguintes fatores podem predispor o indivíduo ao desenvolvimento do Transtorno da Conduta: rejeição e negligência parental, temperamento difícil no bebê, práticas inconsistentes de criação dos filhos com disciplina rígida, abuso físico ou sexual, falta de supervisão, institucionalização, nos primeiros anos de vida, mudanças contínuas dos responsáveis pela criança, família muito numerosa, associação com um grupo de companheiros delinquentes e certas espécies de psicopatologia na família Consoante à definição de transtorno mental do DSM-IV, o diagnóstico de Transtorno da Conduta aplica-se apenas, quando o comportamento em questão é sintomático de uma disfunção básica interior ao indivíduo, e não uma mera reação ao contexto social imediato. Além disso, jovens imigrantes de países assolados pela guerra, com uma história de comportamento agressivo que pode ter sido fundamental à sua sobrevivência, naquele contexto, não indicariam, necessariamente, um diagnóstico de Transtorno da Conduta. Nesses casos, pode ser útil considerar o contexto sócio-econômico em que os comportamentos indesejáveis ocorreram. Os sintomas do transtorno variam com a idade, à medida que o indivíduo desenvolve maior força física, capacidades cognitivas e maturidade sexual. Comportamentos menos graves, como mentir, furtar em lojas, entrar em lutas corporais, tendem a emergir primeiro, enquanto outros, como o roubo, tendem a manifestar-se mais tarde, entretanto existem amplas diferenças entre os indivíduos, sendo que alguns se envolvem em comportamentos mais prejudiciais em uma idade precoce. O Transtorno da Conduta, especialmente do Tipo com Início na Infância, é muito mais 171 comum no sexo masculino. As diferenças entre gêneros também são encontradas em tipos específicos de problemas de conduta. Os homens com um diagnóstico de Transtorno da Conduta frequentemente apresentam lutas, furtos, vandalismo e problemas de disciplina na escola. As mulheres com diagnóstico de Transtorno da Conduta tendem a apresentar mais mentiras, gazeta à escola, fugas, uso de substâncias, principalmente psicoestimulantes como cocaína, crack e/ou álcool e prostituição. Enquanto a agressão com confronto é mais comum entre os homens, as mulheres tendem mais a usar comportamentos sem confronto. A prevalência de Transtorno da Conduta parece ter aumentado nas últimas décadas, podendo ser superior em contextos urbanos, em comparação à área rural. As taxas variam amplamente, dependendo na natureza da população amostrada e dos métodos de determinação: para os homens com menos de 18 anos, as taxas variam de 6 a 16%; para as mulheres, as taxas vão de 2 a 9% (www.psiquiatriainfantil.com.br). O Transtorno da Conduta é uma das condições mais continuamente diagnosticadas em instituições de saúde mentais ambulatoriais e de internação para crianças. Estimativas obtidas a partir de estudos de gêmeos e de adoções mostram que o Transtorno da Conduta tem componentes tanto genéticos quanto ambientais, e seu risco é maior em crianças com um dos pais biológicos ou adotivos com Transtorno da Personalidade Antissocial ou um irmão com Transtorno da Conduta (ASSUMPÇÃO JR. E KUCSINSKI 2008). O transtorno também parece ser mais comum em filhos de pais biológicos com Dependência de Álcool, Transtornos do Humor ou Esquizofrenia ou pais biológicos com história de Transtorno de Déficit de Atenção/Hiperatividade ou Transtorno da Conduta. Embora o Transtorno Desafiador Opositivo inclua algumas características observadas no Transtorno da Conduta, como desobediência e oposição a figuras de autoridade, ele não inclui o padrão persistente das formas mais sérias de comportamento, em que são violados os direitos básicos dos outros ou as normas ou regras sociais apropriadas à idade. Quando o padrão de comportamento do indivíduo satisfaz os critérios para Transtorno da Conduta e Transtorno Desafiador Opositivo, o diagnóstico de Transtorno da Conduta assume precedência, e não é diagnosticado o Transtorno Desafiador Opositivo. Embora as crianças com Transtorno de Déficit de Atenção/Hiperatividade apresentem um comportamento impulsivo ou hiperativo, que pode ser perturbador, esse comportamento, em si, não viola as normas sociais apropriadas à idade e, portanto, não satisfaz, habitualmente, os critérios para o Transtorno da Conduta. Quando são satisfeitos os critérios para Transtorno 172 de Déficit de Atenção/Hiperatividade e Transtorno da Conduta, aplicam-se ambos os diagnósticos. Irritabilidade e problemas de conduta frequentemente ocorrem em crianças ou em adolescentes que passam por um Episódio Maníaco. Esses geralmente podem ser diferenciados do padrão de problemas de conduta vistos no Transtorno da Conduta, com base no curso episódico e com sintomas concomitantes característicos de um Episódio Maníaco. Se os critérios para ambas as condições são satisfeitos, aplicam-se os diagnósticos tanto de Transtorno da Conduta quanto de Transtorno Bipolar I. O diagnóstico de Transtorno de Ajustamento (Com Perturbação da Conduta ou Com Perturbação Mista das Emoções e da Conduta) deve ser considerado, se problemas de conduta clinicamente significativos que não satisfazem os critérios para outro transtorno específico se desenvolvem em clara associação com o início de um estressor psicossocial. Problemas de conduta isolados que não satisfazem os critérios para Transtorno da Conduta ou Transtorno de Ajustamento podem ser codificados como Comportamento Antissocial da Criança ou do Adolescente. O Transtorno da Conduta é diagnosticado apenas se os problemas de conduta representam um padrão repetitivo e persistente associado com prejuízo no funcionamento social, acadêmico ou ocupacional. Para indivíduos com mais de 18 anos, um diagnóstico de Transtorno da Conduta aplicase apenas, se não forem satisfeitos os critérios para Transtorno da Personalidade anti-social. O diagnóstico de Transtorno da Personalidade Antissocial não é utilizado a indivíduos com menos de 18 anos. Como já deixei claro, seguirei alguns parâmetros do DSMV E CID 10, para ajudar a tornar mais objetivo alguns critérios. Os critérios de Diagnósticos para transtorno de conduta (DSMV E CID 10) são os seguintes: – Um padrão repetitivo e persistente de comportamento em que são violados os direitos básicos dos outros ou normas ou regras sociais importantes apropriadas à idade, manifestado pela presença de três (ou mais) dos seguintes critérios, nos últimos 12 meses, com, ao menos, um critério presente nos últimos 6 meses. – Agressão a pessoas e a animais. Outros fatores importantes e fundamentais no transtorno de conduta são os fatores familiares, sociais e, inclusive, a situação sócio-econômica. Para Bordin e Offord (apud MATOS; VIEIRA; NOGUEIRA; BOAVIDA E ALCOFORADO 2008, p. 270-273), fatores importantes são ser do sexo masculino, receber cuidados paternos e maternos inadequados, 173 discórdia conjugal, residir em áreas urbanas e ter nível sócio-econômico baixo. O abuso físico, sexual, psicológico, a negligência parental, a maternagem insuficiente podem contribuir para formação do transtorno de conduta. Segundo Bordin e Offord (apud, MATOS; VIEIRA; NOGUEIRA; BOAVIDA E ALCOFORADO 2008, p. 272), em levantamento populacional realizado no Canadá (1999), envolvendo 1651 indivíduos entre 14 e 24 anos, constatou-se que, para homens, o fato de conviver com pais com problemas mentais (depressão, mania, psicose) é importante para o desenvolvimento do transtorno na infância. Para meninas, abuso sexual, físico, psicológico, convivência com pais antissociais e usuários de drogas foram considerados fatores de risco. A violência física, sexual, ameaças, intimidação física, ameaças de morte são comuns em meninos com transtorno; já as meninas apresentam mais mentiras, usam mais sexualidade, trapaceiam, seduzem e fazem jogos psicológicos requintados. Já falamos antes do bullying, e não podemos deixar de colocar que, para Fante (2008, p. 78), 80%, dos que cometem bullying têm perfil de transtorno de conduta. Geralmente, conseguem liderar grupos, persuadir e intimidar outros e chefiar gangues. A velha questão genética e ambiente volta à cena nesses casos. Como vimos, genes podem facilitar traços de temperamento, como a busca por novidades, a conduta agressiva, a impulsividade; associando-se ao ambiente, com todos os fatores já citados, temos uma “sopa”, um caldo de cultura ideal para o transtorno de conduta. Para explicar melhor este aspecto, vamos enumerar alguns fatores biológicos que podem ser responsáveis pelo transtorno de conduta. Dolan (apud MATOS, VIEIRA, BOAVIDA E ALCOFORADO 2008, p. 182) cita: 1. Alguns estudos apontam que níveis elevados de monoamino oxidase protegem os indivíduos contra os efeitos adversos dos maus tratos; 2. O Transtorno de Déficit de Atenção com Hiperatividade- TDAH, e o transtorno oposicional desafiante, quando não tratados, predispõem para transtorno de conduta; 3. A função reduzida de 5-HT (serotonina, neurotransmissor cerebral) no cérebro, pode levar ao aumento da violência, da crueldade, do suicídio e da autoflagelação; 4. Uma baixa atividade do eixo hipotalâmico-pituitario-adrenal podem estar envolvidos em níveis de condutas destrutivas, principalmente em meninos; 5. Uma resposta enfraquecida do sistema nervoso autônomo pode levar à diminuída interação com o meio ambiente e à aprendizagem com situações de risco; 6. A capacidade de empatia envolve o sistema da amígdala, e a disfunção, nesse 174 sistema, envolve pobre modulação de emoções, associado com déficit no sistema cortex órbito-frontal. Em portadores de transtornos de conduta, não ocorre modulação dos impulsos e controle destes. Existe uma diminuição do circuito cerebral responsável pelo medo e pela punição e uma ativação maior do centro de recompensa e prazer. Vale salientar que todas essas pesquisas neurobiológicas são inconclusivas, e devemos ter o cuidado de não retrocedermos a Lombroso. Mas, apesar de tudo, não podemos deixar de pontuar esses fatores, embora acreditemos que não se trate somente de pistas a serem investigadas e não de respostas. Em contrapartida, temos fatores ambientais. Em contrapartida, temos fatores ambientais. Farrington (apud MATOS; VIEIRA; NOGUEIRA; BOAVIDA E ALCOFORADO 2008, p. 221-243) faz um estudo sobre a delinquência, começando na infância e terminando na idade adulta, e descobre que alguns fatores ambientais, que já foram citados, reforçam o estudo, tais como baixo rendimento familiar, família numerosa e sem condições financeiras, pais condenados, irmãos delinquentes, mãe jovem e deprimida, desarmonia familiar, QI familiar baixo. Quanto aos fatores individuais, enfatiza os seguintes: QI não verbal baixo, QI verbal baixo, baixo desempenho escolar, alta impulsividade, baixa concentração, desonestidade, conduta provocativa. Este estudo fala de dados óbvios, que só reforçam a hipótese da interação do genótipo e fenótipo e aponta soluções políticas públicas de prevenção. Outro estudo, de Fonseca e Queiroz (apud MATOS; VIEIRA; NOGUEIRA BOAVIDA; E ALCOFORADO, 2008, p. 194-211), tenta diferenciar a adolescência como fase propícia para atos de rebeldia, que podem ser confundidos com condutopatia. Os pesquisadores apontam estudos que remetem ao século XIX, os quais delimitam a adolescência como o terreno fértil para condutas de transgressão. Rousseau, no Emílio, fala da adolescência como a idade em que as forças corporais aumentam e propiciam mais força e destreza. O “lobo obsceno” surge completo na adolescência, seguindo o raciocínio de Rousseau, mas é uma grande falácia associar a adolescência à condutopatia. Podem existir condutopatas na adolescência, mas não é regra. A adolescência é uma fase rica, complexa, em que, na grande maioria dos casos, o senso moral vai desenvolver-se plenamente, inclusive, a cooperação. Voltando ao estudo de Fonseca e Queiroz (apud MATOS; VIEIRA; NOGUEIRA; BOAVIDA; E ALCOFORADO 2008, p. 212), os autores chegam à conclusão de que realmente a adolescência é a fase mais vulnerável para a formação de atos de delinquência, mas ressaltam que esses atos, em sua maioria, são transitórios, e, ao atingir-se a idade de 18 175 anos, diminuem, reforçando a ideia anterior e desestigmatizando a adolescência. De acordo com Moffitt (apud MATOS; VIEIRA; NOGUEIRA; BOAVIDA; E ALCOFORADO, 2008, p. 210), apenas entre 5% a 6% persistem na idade adulta com comportamentos antissociais. Este estudo leva em consideração adolescentes normais, com períodos de turbulência. Do ponto de vista da Psiquiatria, transtorno de conduta não é somente uma teoria, é baseado em fatos, em evidências. Na minha experiência clínica, já enfrentei o caso de uma criança de quatro anos degolando irmão de 1 ano! Mas, não podemos generalizar; acredito que estamos margeando linhas de um tecido que, aos poucos, vai-se formando. Um rizoma, como diz Deleuze. Temos muitas peças. Uma criança com transtorno de conduta é o protótipo da crueldade e não podemos dissociá-la das gangues, do bullying, da delinquência juvenil. Para Diógenes (2008, p. 98), a cultura da violência é o ambiente adequado para a formação de gangues juvenis. Estas existem desde o início da história; há relatos na Babilônia, de gangues juvenis. Se, agora, a Psiquiatria denomina tais fenômenos de transtorno de conduta, é só uma questão semântica e histórica: os conceitos e maneiras de se dizer a verdade mudam historicamente, como analisa Foucault (1982, p. 78). Um grave problema que contribui para a violência é o uso de substâncias psicoativas. Segundo Marques e Cruz (apud ROMARO E CAPITÃO 2007, p. 320-335), é na passagem da infância para a adolescência que se observa o aumento do uso de drogas, em que se geram frustrações, ansiedade, culpa, baixa auto-estima, o que, por si, já ajuda a busca por substâncias. Mas, nosso foco é o transtorno de conduta. Estudo realizado pelo CEBRID (Centro de Informações sobre drogas psicotrópicas), em 1977, no Brasil, já apontam aumento do uso de álcool e tabaco, em estudantes da 5ª série do primeiro grau, iniciando a partir dos 10 anos. Nesse mesmo estudo, o uso do crack já aumenta entre crianças e adolescentes GIGLIOTTI, 2006). Estudos recentes, de 2006, do Cebrid, constatam o aumento assustador do uso de crack entre jovens no Brasil e em algumas partes do mundo. O crack produz um quadro clínico de aumento de violência, desinibição, ideação de perseguição, e pode ser responsável por crimes violentos. O álcool também responde por condutas violentas, acidentes de trânsito e mortes fatais. No Leviatã, Hobbes já associava o álcool à loucura, porque indiretamente fortalece as condutas do homem ígneo. Levantamos essa questão por ser essencial. Falar sobre agressividade e violência e não tocar no tema do uso de drogas, do narcotráfico, da geração química, do investimento, como diz Negri e Hardt (2006, p. 78), do império pela química, é 176 deixar passar ao largo um dos fatores que contribuem para o aumento assustador da violência social. A conclusão a que podemos chegar nessa discussão é que a Psiquitaria não distingue claramente a agressão da violência, e os transtornos de conduta ainda precisam ser aprofundados. Que eles contribuem para a violência é um fato inegável, mas determinar que o transtorno de conduta é a causa dela é perigoso. Talvez cheguemos à conclusão que portadores de transtornos de conduta imitam comportamentos violentos de pais, amigos, familiares, da mídia, e o cérebro, estando predisposto a produzir comportamentos violentos, necessita apenas desse fator de imitação, para desencadear comportamentos violentos. Mas neurônios-espelho, impriting, empatia são interações aprendidas socialmente, reforçadas ou diminuídas. O foco não está apenas no cérebro, mas na maneira como ele interage com o meio social onde está inserido. Se algumas pessoas nascem com prejuízos na área cerebral responsável pela empatia, esse fato não é regra nem determina seu destino. Pode ou não tornar-se um antissocial, vulgo psicopata. Não devemos esquecer que o que o psicopata destrói é, principalmente, a alteridade do outro. Ele é o protótipo do homem violento, mas não é o homem, assim como os ígneos, são apenas uma parcela de nossa espécie. Passaremos agora a aprofundar sobre o antissocial e ver o que ele tem a contribuir com nosso tema. 177 5.4 O ANTISSOCIAL ENTRA EM CENA Nem sempre a cara revela o valor do indivíduo (FEDRO, 2006, p. 135). O antissocial, esse personagem tão popular hodiernamente, que dá tanta audiência na mídia, é geralmente do sexo masculino, na proporção de 7 a 8 homens, para 2 ou 3 mulheres, em países ocidentais (SADOCK E SADOCK, 2007). Para Ballone (2006), para estudar o anti-social estamos entrando em território difícil e temos que ter cautela, já que engloba as pessoas que não se enquadram nas doenças mentais já bem delineadas e com características bastante específicas, a despeito de se situarem à margem da normalidade psicoemocional ou, no mínimo, comportamental. As implicações forenses desses casos reivindicam da Psiquiatria estudos exaustivos, notadamente sobre o grupo de entidades com Transtornos da Personalidade. Os transtornos de personalidade, que podem acarretar problemas de violência, crueldade, homicídios, corrupção e outros atos delinquentes são: o Borderline, o Histriônico, o Paranóide e, principalmente, o Antissocial. Existe uma característica comum entre eles: a falta de controle de impulsos, o envolvimento com drogas, a sexualidade promíscua, a impulsividade, as mentiras. Excetuando-se o paranóide, que desconfia de tudo e de todos, para quem qualquer um pode ser um inimigo em potencial, os demais têm características que podem levar a atos de crueldade. O que é um transtorno de personalidade? Citando BALLONE (2006, p. 35), é quando a personalidade atinge padrões de condutas repetitivas, fixas, que não mudam com aprendizagem e terapia. São personalidades imaturas, infantis, envolvem os outros em confusões e apresentam graves problemas com a lei53. Como não posso. nesta tese. abordar todos os transtornos de personalidade. focarei o antissocial, uma vez que interessa e muito ao nosso trabalho. Seguindo Ballone (2006), estudar o potencial da destrutividade humana é bastante interessante e poderá esclarecer certos pontos em comum entre grandes manifestações de 53 Podemos conjecturar se Hobbes, quando descreveu o estado de natureza, não vislumbrou essas personalidades, ou, se Rousseau, ao falar do desvio, da contingência, não quis se referir a indivíduos com transtornos de personalidade. Neste exato momento, corro o risco de receber críticas destrutivas, por tentar psiquiatrizar autores clássicos e colocar palavras neles. Não é essa a intenção. Faço pontes, assim como uma história que se constrói, conjecturo os fios que vou tecer. Sou uma fiandeira. Mas, acredito que o homem do século XVII e XVIII foi inventado de acordo com sua época e para lidar com problemas da época. O que faço é pura hipótese. Como diz Foucault (2002, p. 78), jogos de verdade e poder-saber, Rizomas de Deleuze, fio das parcas, contos das velhas fiandeiras, que, ao redor da clareira, teciam suas histórias. 178 destrutividade, como são as guerras, os genocídios, as torturas, o terrorismo e, talvez, manifestações incomuns da personalidade humana, baseadas na psicopatologia, na psicologia e nas neurociências. A evolução dos conceitos sobre a Personalidade Psicopática transcorreu, durante mais de um século, oscilando entre a bipolaridade orgânico-psicológica, passando a transitar também sobre as tendências sociais e parece ter aportado, finalmente, numa idéia bio-psico-social que, senão a mais verdadeira, ao menos se mostrou a mais sensata. (Ballone, 2006). Desde o século XVI, já se tenta descrever essas personalidades “sem alma”. A psiquiatrização começa com Pinel e a Psiquiatria. Roudinesco (2008, p. 89) nos fala de Gilles De Rais: um assassino, pedófilo, sem nenhum remorso, que matava crianças em série na França do século XIII. O Marquês de Sade inaugura a literatura oficial sobre os perversos. No século XIX, temos Lombroso e seus discípulos que tentam encontrar características no crânio, para naturalizar o comportamento psicopata. Peter Gay (2001, p. 12) coloca que o século XIX, finalmente, “cientificaria o mal”. O psicopata atinge, com Lombroso, um estatuto biológico e tenta ser justificado cientificamente. Vamos fazer um salto para a década de 80 do século XX. A partir daí, delineia-se o lugar do transtorno de conduta, na infância, e da personalidade antissocial, no adulto. A década de 90 solidifica a tendência, e entramos no século XXI falando de transtorno de conduta e dos anti-sociais. A mídia já havia descoberto, há muito tempo, o potencial de venda da imagem desse personagem. A indústria cinematográfica, aos poucos, substitui vampiros, lobisomens, múmias, por antissociais. Que tem a nos dizer o antissocial com vista aos objetivos da nossa pesquisa? Para Silva (2008, p. 79-99), condutas como impulsividade, autocontrole deficiente, necessidade de excitação, falta de responsabilidade, problemas comportamentais precoces, transgressão, ausência de culpa, sedução, manipulação, mentiras fazem parte do cotidiano do antissocial. Os antissociais estão espalhados em toda parte; existem em graus, que vão do leve ao moderado. Os homicidas talvez sejam apenas 5% a 10%. Quando estão em bando, são mais fortes. Os skinheads, por exemplo, são apenas a ponta de um iceberg. Antissociais manipulam grupos, criam redes, organizam crimes, estão infiltrados no Estado. Elegem políticos ou são eles próprios os políticos. O antissocial não pode ser contrariado: manda matar, ou tirar de circulação; não tem limites. É o perfeito homem hobbesiano em estado de natureza. Tem a face de bonzinho, sedutor, mente para conseguir objetivos, frauda, desdenha da lei. Não sente remorso nem 179 culpa. Fraudar milhões e desviar dinheiro de refugiados, tudo isso nada significa para ele. Um bom almoço com boas companhias vale a morte de mil crianças refugiadas. Sem culpa nem remorso54. É a sociedade de Rousseau que produz esses seres? Para a Biologia, existe a genética, o cérebro, o lobo frontal, as amígdalas, os neurotransmissores. Eles, biologicamente, não sentem emoção ou culpa, mas o ambiente reforça a crueldade. Não são maioria, tal como os ígneos de Hobbes, existe os temperados, mas um antissocial pode formar grupos com pessoas inseguras, frágeis, conseguir o poder do Estado, criar organizações criminosas. É o fator contingente de Rousseau. Mais uma vez podemos cair no erro de colocar uma lente de aumento e brincar de diagnosticar psicopatas em muitas pessoas. Uma brincadeira perversa que pode servir para vender revistas, filmes e livros, mas reduz o fenômeno a um universo que não corresponde à realidade. Delumeau (2009, p. 355-507), remete ao medo de satã, da demonização da mulher, dos muçulmanos, todos ligados a ele, a partir do século XVII. A partir do século XIX, a classe operária, os pobres, os marginais, os loucos eram figuras de medo. Ligados a satã surgem vampiros, lobisomens, múmias, depois o nazismo, a guerra fria, os comunistas, e, hoje, os terroristas. O medo, tão presente em Hobbes, funda o Estado. Era o medo do homem ígneo, do sem limites, do violento, do cruel e do agressivo. Rousseau não fala em medo, mas em pequenos tiranos, em corrupção, em maldade: não é o estado de natureza, mas a sociedade civil que é antissocial para Rousseau. Hoje, temos medo do antissocial. Como adverte Silva (2008, p. 147-148), estão nas manchetes, na TV, nos jornais. Para a autora, nossa cultura estimula o antissocial. O cinema faz deles heróis, e os noticiários de TV nutrem-se de notícias sensacionalistas, envolvendo crimes, corrupção, formação de quadrilhas. Essa discussão sobre o antissocial não é apenas um recurso da vontade de saber-poder da Psiquiatria. Como já citei Hipócrates, por exemplo, traça uma biotipologia humana, que é utilizada por Aristóteles. Santo Agostinho fala, nas confissões, dos males da juventude. Hobbes usa os conhecimentos da anatomia e da fisiologia da época, para traçar perfis diversos. Rousseau, no Emílio, descreve o desenvolvimento humano, passo a passo, até a idade a adulta. Hoje temos a Biologia, a Psiquiatria, o antissocial. 54 Não podemos cair no erro de fantasiar o psicopata e dizer que ele responde por toda violência humana. Ele é apenas uma parte. Existem psicopatas que se isolam, outros que transtornam a vida de poucas pessoas, não se envolvem em gangues, por exemplo. 180 A violência negativa e suas máscaras: a crueldade, a perversidade não é universal. Não se encontram em todos os homens. A violência não faz parte de uma natureza decaída, um pecado original, um estado de natureza que deve ser superado. O poder é uma ameaça e uma solução. Temos o poder de mudar; isso nos faz humanos. Podemos até, com o avanço da ciência, detectar indivíduos que tenham uma arquitetura cerebral que não estimula a empatia e o sentimento de culpa, e tentar ajudar cuidadores a estimularem tendências opostas. O destino nunca está fechado. Se o psicopata mete medo, é porque a estrutura social investe nesse medo. Não são arautos da violência, mas um reflexo da sociedade em que vivem. Passaremos agora a analisar fatores sociológicos que podem ajudar em nosso estudo sobre o tema. Focar no antissocial e em transtornos mentais pode parecer uma atitude reducionista e biologicizante. Entre constatar que existem indivíduos com a predisposição a um comportamento violento transgressor e colocar a origem da violência neles, sem passar pela sociogênese da formação do indivíduo, é não levar em conta a dimensão social do homem. Antes de existir o “eu”, o nós precede a formação da personalidade. Em função desses fatos, falaremos um pouco sobre alguns aspectos da sociogênese da violência. Utilizarei principalmente autores, como Elias, Clastres, Girard e Birman. 181 5.5 OUTSIDERS E INTEGRADOS: O Diferencial de Poder em Norbert Elias Um dos temas importantes desta pesquisa diz respeito à sociogênese dos conflitos. Vamos entrar agora no fator grupal. Elias (2000) fala de “outsiders e estabelecidos”, para descrever que, entre grupos, existe sempre uma tensão, um clima de guerra, o que ele chama de “Diferencial de Poder” 55 (ELIAS, 2000, p. 32). Assim, nesta pequena comunidade (Wiston Parva), deparava-se com o que parece ser uma constante universal em qualquer figuração de estabelecidos e outsiders: o grupo de estabelecidos atribuía a seus membros características humanas superiores, excluía todos os membros do outro grupo do contato social não profissional com seus próprios membros; e o tabu em torno destes contatos era mantido através de meios de controle social como a fofoca elogiosa (praise gossip), no caso dos que o observavam, e a ameaça de fofocas depreciativas (bleme gossip), contra os suspeitos de transgressão (ELIAS, 2000, p. 20). Os estabelecidos são os que detêm o poder, e os outsiders são os que possuem pouco poder. Para Elias (2000, p. 33), um dos fatores fundamentais para ser estabelecido é ter melhores condições materiais. Ter mais dinheiro, ser proprietário de meios de produção, ter redes econômicas e políticas são fatores que ajudam os estabelecidos a tentar a supremacia sobre os outsiders. Mas, para Elias (2000, p. 35-36), essa é uma meia verdade. Nesse aspecto, Marx tem razão, em relação à supremacia dos estabelecidos, que ele chamou de classe dominante, mas só isso não explica a diferença de poder para Elias. Um fator considerado fundamental por Elias (2000, p. 35) é a chamada “Fantasia Coletiva”, que é criada pelo grupo estabelecido e pode ser baseada em fantasmas protohistóricos, que são ‘fantasias coletivas ou individuais, experiências afetivas que moldam afetos e condutas’. Por exemplo: um grupo pode se achar portador de uma verdade religiosa, uma pureza racial, uma habilidade artística ou outro fator diferenciador que gere diferenças entre grupos. Na realidade, funciona na base do: “nós somos melhores que eles”. É certo que, quando existe predomínio material, esse diferencial de poder torna-se um fator de grande pressão entre grupos, mas não é a condição necessária. Pessoas da mesma classe social podem-se digladiar por questões religiosas, rixas de famílias. Nesse ponto, a crueldade é exercida através de fofocas, difamação, lutas corporais, impedimento do acesso a 55 Este diferencial em Elias diz respeito à estrutura material, poder simbólico, como por exemplo, deter melhores instituições de educação, ter acesso a arte e lazer. Falar mais corretamente a linguagem, ter mais coesão social e união. 182 empregos por parte dos estabelecidos em relação aos outsiders. O estudo de Elias (2000) foi realizado no bairro operário de Winston Parva, em Londres, entre a década de 40 e 50 do século XX, um fator fundamental para ser estabelecido é a coesão grupal. São famílias e grupos mais estruturados e organizados, que têm acesso à educação, à rede social, a empregos, a cuidadores para crianças. Enquanto os outsiders apresentam pouca coesão, dificuldade de redes sociais são alvos de fofocas e discriminação. Elias (2000, p. 117-124) coloca que a discriminação e a falta de oportunidades dos outsiders pode ser um fator importante na formação da delinquência juvenil. Mais uma vez, estamos falando de adolescentes como idade de risco, e o fato de serem outsiders, pouca coesão grupal, famílias desestruturadas contribuem para grupos de delinquentes. Fazendo uma ponte com os estudos da socióloga brasileira, Glória Diógenes (2008), a formação de gangues, principalmente juvenis, é um fenômeno que vem crescendo na América latina e do Norte e na Europa. Gangues de skinheads, neonazistas, homofóbicas, ligadas ao narcotráfico, ao tráfico humano, à cultura hip-hop, ao racismo branco ou negro, ao ódio por imigrantes. Esse é apenas um lado da violência, que não pode ser resumida ao grupo, pois é também individual; pode acontecer entre duas pessoas, ou ser silenciosa, como a negligência e a omissão. Segundo a autora: Talvez a faceta mais peculiar das práticas da violência seja o seu caráter difuso, imprevisível, sem “lugar” definido no corpo social. A violência é uma prática que foge do curso presumivelmente disciplinado e estável da ordem social. Ela emerge como aquilo que não deveria ocorrer, ela parece resvalar de outra ordem (DIÓGENES, 2008, p. 55). O universo hobbesiano é indivíduo contra indivíduo, mas podemos ampliar para grupos contra grupos e indivíduo contra si próprio. Do ponto de vista da Antropologia, Clastres (2004, p. 267) mostra que as sociedades ditas primitivas constroem-se para a guerra. A violência mantém os grupos coesos, as tribos passam a identificar, na outra tribo, o inimigo, a alteridade, o diferente, e passam a construir uma coesão interna sobre o inimigo da tribo rival. Existem alianças, pactos, mas a guerra permeia as tribos. Qual a função da guerra primitiva? Assegurar a permanência da dispersão, da fragmentação, da atomização dos grupos. A guerra primitiva é o trabalho de uma lógica centrífuga, de uma lógica da separação, que se exprime de quando em quando em conflito armado. A guerra serve para manter cada comunidade em sua independência política. Enquanto houver guerra, há autonomia. É por isso que ela não pode, não deve cessar, é por isso que ela é permanente. A guerra é o modo de existência privilegiado da sociedade primitiva enquanto essa se distribui em unidades sociopolíticas iguais, livres e independentes: se não houvesse inimigos, seria preciso inventá-los (CLASTRES, 2004, p. 266). 183 Tudo isso se encaixa como uma luva no “Conceito do político” de Carl Schmitt. A famosa divisão amigo-inimigo, o diferencial de poder, os grupos lutando entre si por hegemonia compõem a paisagem da violência humana. Só o homem possui linguagem, cérebro desenvolvido, uso de ferramentas e é violento, tendo consciência do fato e da intencionalidade. Aprofundando Elias (2000, p. 140-143), o estigma e o preconceito fazem parte da estratégia dos estabelecidos para dominar os outsiders. Um aspecto importante é que, geralmente, outsiders têm menos coesão social, vivem em famílias desestruturadas e têm menos opção de lazer, educação e emprego. Esse fato contribui para a delinquência juvenil. Elias (2000, p. 140) alerta para o fato de que a sociogênese da delinquência tem um forte componente social. Focar em fatores individuais é reduzir, a uma parte, uma questão complexa. Ser outsider é ser estigmatizado, objeto de chacota, ter menos oportunidades sociais, menos coesão grupal. Concomitantemente, para Elias (2000, p. 178), podem ocorrer transformações de grupos, e outsiders podem passar a “estabelecidos”. Na realidade, não é um jogo de vítima e algoz, mas uma questão de diferencial de poder. Utilizando René Girard (2008) podemos considerar que é impossível falar em sociedade sem violência. Todas as religiões funda-se em mitos que remetem à violência e ao sagrado (GIRARD, 2008, p. 23). Estamos seguindo um caminho que parte do individual ao coletivo e faz parte de toda a estrutura social humana. A sociedade é organizada em grupos, usando Elias (2000), de estabelecidos e outsiders. Dentro desses pólos, estabelece-se uma tensão, um conflito contínuo, onde a difamação, o ódio, o preconceito, o estigma, a guerra fundam a alteridade. Mas, perpassa o indivíduo e ecoa nele a marca do estigma, do preconceito, da exclusão. O indivíduo dentro do grupo pode-se desestabilizar e chegar a cometer homicídio e suicídio. Ordenando o que foi colocado até aqui, podemos dizer que a sociedade é dividida entre grupos, que Elias (2000) denomina de estabelecidos e de outsiders; Clastres (2006), de sociedade contra o Estado, sendo que a violência instaura os grupos dentro de uma coesão que estabelece amigos e inimigos, o que corrobora, em alguns aspectos, a doutrina de Schmitt (2006). O indivíduo é parte dessa corrente, ele está no grupo, mas não é o grupo. Tem consciência, desejos e diferenças de temperamento e constituição que o torna singular em relação à homogeneização do grupo. 184 Analisando Girard (2008), o homem é governado por um mimetismo instintivo responsável por comportamentos de apropriação mimética geradores de conflitos e rivalidades, onde a violência é um componente natural das sociedades humanas. A origem da violência encontra-se no desejo humano. Aqui é que a situação fica complexa, em função de este desejo ser mimético e desejar o que o outro deseja. Inaugura-se assim um ciclo de violência entre os homens que passa a gerar conflitos. A vingança permeia o desejo; se muitos desejam a mesma coisa, por exemplo, uma caça que vai trazer prestígio, quem não conseguir o objeto de desejo será possuído por inveja e desejo de vingança. Assim começa um ciclo sem fim. A vingança constitui um processo infinito, interminável. Quando a violência surge em um ponto qualquer da comunidade, tende a alastrar e ganhar a totalidade do corpo social, ameaçando desencadear uma verdadeira reação em cadeia, com consequências rapidamente fatais em uma sociedade de dimensões reduzidas. A multiplicação das represálias coloca em jogo a própria existência da sociedade. Por esse motivo, onde quer que se encontre, a vingança é estritamente proibida (GIRARD, 2008, p. 27). Fundando a violência no desejo, temos, desde que haja mais de uma pessoa envolvida, a possibilidade de conflito. Podemos conjecturar que a violência estende-se a todo corpo social, começando pela instituição familiar. Mas, para Girard (2008, p. 34), a sociedade tem mecanismos reparadores que podem tentar conter e diminuir a violência e a vingança decorrente desta. Girard (2008) denomina meios preventivos, os artifícios sociais que servem para conter a sede de vingança e a retroalimentação da violência. Um dos artifícios mais antigos é o sacrifício ritual que algumas comunidades praticavam, como a maia, por exemplo. A religião tem, para Girard (2008), uma função importante em agir preventivamente contra a vingança. Os sacrifícios humanos e animais, ritos de expiação, culpabilização da consciência; são formas de tentar diminuir a violência, mas são meios preventivos que usam de violência para conter a violência. Duelos, formação de alianças, reparações, são outras estratégias preventivas utilizadas para coibir a violência, mas não são tão eficazes, para Girard (2008). Para o autor é o sistema judiciário o recurso mais eficaz para reparar a vingança e conter a violência. Criando uma hipotética evolução dos meios preventivos das sociedades ditas primitivas até a formação judiciária, esta exerce uma função curativa. Dos sacrifícios rituais das religiões ao sistema judiciário temos diversas maneiras de lidar com a violência. Temos um problema em Girard (2008): a solução jurídica pode ser a mais eficaz, já que é o sistema judiciário que exerce o poder de vingança, limitando e punindo as ações dos algozes. Mas, ao mesmo tempo, oculta da vítima seu objeto de vingança, que vai ficar 185 encarcerado. E a justiça sofre o viés do Estado. Pode ser exercida arbitrariamente, em casos de ditaduras, por exemplo. Assim, formou-se, entre presos políticos e presos comuns no Brasil, na década de 70, a raiz do crime organizado no País56. A classe social pode fazer a justiça não ser aplicada a todos. Existem diferenças entre Países, aonde o sistema jurídico funciona mais equitativamente. Mas o risco de não ser equitativa, faz a vítima não limitar o desejo de vingança. Esta é uma questão complexa, que foge a nossos objetivos. Mas, voltamos a Hobbes e Rousseau. Ambos tentam fornecer soluções jurídicas para conter a violência. Tanto o Leviatã, quanto a Vontade geral, são soluções jurídicas, que passa, segundo Girard (2008), por um processo não mais preventivo, mas curativo. A justiça atua após a consecução do ato de violência transgressora. Esta visão pode ser questionada por defensores do estado de direito. A justiça tem assim, também, um papel preventivo, de coibir a violência, mas esta posição merece ser questionada e aprofundada, o que foge do escopo da tese e das perspectivas que vem sendo desenvolvidas. Em Girard (2008), temos o conceito da dupla face da violência: “Os homens não conseguem penetrar no segredo desta dualidade. Eles não conseguem distinguir entre a boa e a má violência; desejam repetir incessantemente a primeira para eliminar a segunda” (GIRARD, 2008, p. 53). Outro aspecto que Girard (2008) fala é da associação entre sexualidade e violência. Ambas provêm do desejo e seguem a mesma trajetória de disputa, vingança e reparação para serem aplacadas. A sexualidade produz disputas, rivalidades, homicídios, ciúmes, e está associada à violência. Mas como a dupla face da violência, pode ser limitada por interdições e leis. Assim o incesto, longe de ser um dado biológico, é passível de controle social, através de tabus, leis e interdições. Percebemos então que autores como Elias, Clastres, Girard, deslocam a questão da violência do biológico para o social. Visão que também converge com a de Birman, que se utiliza do conceito de Bourdieu de violência simbólica para estruturar uma relação entre violência simbólica e real ou transgressora. Todas as soluções encontram-se na sociedade. E é através da violência, produto do desejo humano, que podemos enfrentar a violência. Cria-se assim uma solução partindo da violência contra a própria violência. É como se tivéssemos criado um problema no nosso processo de socialização e, através do problema criado, usando a própria violência, pudéssemos diminuir os efeitos destrutivos desta. 56 A convivência entre prisioneiros políticos e bandidos comuns deu a estes uma situação de coesão que acabou redundando em organizações criminosas com estruturas rebuscadas. 186 Dos ritos de sacrifício até as leis jurídicas, todas as soluções passam pela dupla face da violência: de um lado a violência é destruição, caos, subjugação de outros, homicídios, abusos, roubos, corrupção. De outro, é lei, ordem, criação de cultura, pactos de convivência, aplacamento da vingança por uma instância, como o sistema jurídico, por exemplo. O poder, quando exercido nos limites da lei e do consenso democrático, pode e deve ser um fator positivo na diminuição da violência individual e social. A grande confusão, para Girard (2008, p. 54) ocorre quando não sabemos mais distinguir entre a boa e a má violência. Ou, parodiando Birman (2009, p. 57), quando o jogo entre violência simbólica e transgressora se confunde. Instaura-se o que Lebrun denomina de “perversão comum” (2008), ou seja: uma maneira de socialização sem hierarquia, definição de papéis, perda de identidade pessoal, ética individual em detrimento de uma ética coletiva, desrespeito as normas que regulam o simbólico do social, possibilitando um viver coletivo. Chegamos a um ponto onde os resultados de nossa pesquisa começam a se delinear: a violência é produto da socialização humana, da consciência do eu, da intencionalidade, do cérebro humano, que apresenta grandes diferenças em relação à de outras espécies. Podem existir fatores genéticos biológicos, característicos do cérebro, que predispõem a certos comportamentos, como os dos antissociais, das pessoas que não sentem emoções nem culpa, mas o que vai amplificar, ou amenizar tais fatores é a “socialização humana”, as relações interpessoais, sem as quais o eu não existiria como tal. Neste ponto, pode-se instaurar a violência, o conflito ou a solução pacífica do conflito. Então, temos agora uma chave importante: independente de fatores biológicos, transtornos mentais, arquitetura do cérebro e genes, é a estrutura social que vai instaurar, no homem, a violência transgressora. Lebrun (2008) remete à sociedade de mercado, ao homem como dimensão antropológica do capitalismo. A economia de mercado sob sua forma sem rédeas, esse neocapitalismo liberal triunfa desde a última década do século XX. Com efeito, quando o vazio que habita tanto o singular quanto o coletivo vê-se desmentido pelo Imaginário Social, chegamos, como vimos, à suspensão de todo limite, de toda diferenciação dos lugares, de toda lei á qual temos que recorrer..., exceto a pretensa lei do mercado, que na verdade é apenas um modo de regulação espontânea da vida em sociedade,e não apenas da economia no sentido estrito, em função de interesses particulares (LEBRUN, 2008, p. 104). A violência é humana, porque pensamos, refletimos e sabemos a direção que vamos imprimir aos atos. Podemos conscientemente negar a alteridade do outro e destruir a nós mesmos. É na formação da sociedade civil, na maneira como os grupos detêm o poder, 187 principalmente o econômico, que se instaura a desigualdade, a exploração e a violência transgressora. Vamos remeter agora a fatos do cotidiano, a retratos da vida: abuso, negligência, bullyng, para constatar que é no social que encontramos a violência transgressora, no cotidiano, na relação entre os homens. Não podemos tornar biológica essa realidade, que é social. Quanto aos leitores, não se assustem; o quebra-cabeça vai sendo montado. Existem peças soltas. Viajamos por paisagens diversas. Fomos ao corpo humano, viajamos pelo cérebro, por grupos, por primatas. Agora vamos apresentar o que denomino máscaras da violência humana. Falaremos sobre nossa sociedade, o mundo humano, dos desejos, da cultura, da política e da violência. Como esta se instaura nas redes do social? Apresentemos a violência em sua negatividade. 188 5.6 SOBRE ABUSO, BULLYING E NEGLIGÊNCIA A prática do infanticídio é uma das mais antigas da humanidade. Podemos citar a Suméria, o Egito, Esparta, Herodes, e o próprio Jeová, como civilizações e Deuses infanticidas. Roudinesco (2008, p. 36-38), tece detalhes sobre Gilles de Rais, um pedófilo infanticida, que se comprazia em atrair meninos, usá-los sexualmente e depois esquartejá-los. O nascimento de Jesus foi acompanhado por um grande infanticídio promovido por Herodes. Segundo Lippi (apud ASSUMPÇÃO JR. E KUCZYNSK, 2008, p. 128-133), só no século XX começam a levantar e tentar punir crimes cometidos contra crianças. Qual a importância deste tema para nosso trabalho? Parodiando Roudinesco (2008, p. 42), a crueldade cometida contra crianças revela explicitamente a parte obscura de nós mesmos. O gozo do ódio e prazer funde-se num ato de desproporção de poder, onde uma pessoa mais forte, na pretensa idade da razão, sente prazer em dilacerar corpos de crianças de um, dois, três anos. Hodiernamente, para Lippi (apud ASSUMPÇÃO JR. E KUCZYNSK, 2008, p. 132136), a família é o local do rito inicial de todas as formas de crueldade contra crianças. Esta violência vai desde a negligência e omissão, quando cuidadores não prestam auxílio a crianças enfermas, omitem-se no processo educacional e de lazer e fazem pressão emocional a crianças, abusando psicologicamente, com mentiras, difamação de conjugues, humilhações. Podemos estender esse conceito aos primórdios da humanidade, para concluir que a criança sempre foi objeto de abuso e de agressão (ROUDINESCO, 2008, p. 89). A negligência pode ser acompanhada de abuso físico, sexual e psicológico. Para tornar o assunto mais assustador, segundo Vaz (apud ROMARO E CAPITÃO, 2007, p. 138-140), em levantamento estatístico realizado no Brasil, em 1998, 80% dos abusados eram do sexo feminino e 75% dos abusadores eram o pai ou o padrasto. Podemos destilar resultados de diversas pesquisas, que estão disponíveis em conselhos tutelares, juizados de menores e Organizações não Governamentais. Segundo, Bouhet e Perardr Zorman (apud ROMARO E CAPITÃO 2007, p. 141), a violência sexual ocorre entre os 9 e os 12 anos de idade, e existem relatos omitidos, com crianças de menos de 6 anos de idade. Nossa intenção é mostrar que mitos, como a casa, a família, os cuidados parentais estão, cada vez mais, caindo por terra. Esses fatores ligados a abuso sexual, psicológico e à negligência formam a matriz de uma futura personalidade violenta e cruel. É em casa que começamos aprender a ser cruéis. O jogo da disputa, da vaidade, das preferências, dos ciúmes, da inveja e da divisão começa em casa. 189 Caim e Abel são paradigmas que persistem através dos tempos. Javé tem seu povo escolhido: na casa de Deus, só entram os justos. O sagrado e a violência, para Girard (2008), são realidades familiares. Se o genótipo vem do sexo, e deste a união que forma o casal, o fenótipo vem dessa família de negligentes, abusadores, homicidas. O Édipo é uma metáfora freudiana para esse jogo perverso, aliás, a psicanálise fez da criança, um perverso polimorfo, e da ligação com os pais, uma disputa parricida e matricida. Elias (2000, p. 135) reforça a tese de que é na família desagregada, desunida, sem rumo e sem perspectiva que mora a fábrica de delinquentes. Os estudos não param de apontar; negligência, abuso, homicídios, drogas, como fatores que retroalimentam o ciclo da violência. Rousseau teve a premonição do mal na família. Se lermos atentamente O Emílio, perceberemos que a família torna a criança um pequeno tirano, um déspota. Mandar e obedecer, invejar, medir e comparar. A reforma, em Rousseau, começa na família, com a criança57. Que vemos agora? A sociedade civil, tão criticada por Rousseau, é o palco de negligência, abuso, violência, crueldade. Pequenos e grandes tiranos. O homem é cruel para o homem, ou melhor, na face de uma criança, jaz o ódio do abuso, da negligência e da floresta encantada de nossa inércia. Pinker (2008, p. 494-516) fala que a genética fornece hipoteticamente entre 40% e 50% de traços de temperamento e constituição das crianças, e a influência da educação dos pais não é significativa, tentando defender o papel da biologia, que, até agora, tentamos contestar. Os pais não podem moldar como querem o comportamento dos filhos58. Existe também a influência do ambiente não compartilhado, que são as experiências individuais de cada criança, com amigos, escola, preferências de lazer, qualidade de relacionamento com pais e outros familiares. O ambiente não compartilhado, para Pinker (2008), tem uma influência maior que o ambiente compartilhado, que é a hipotética estrutura do lar que tenta oferecer as mesmas oportunidades a todos os filhos. Podemos tentar traduzir essa ideia de Pinker (2008), no que se refere ao bullying, uma prática que virou uma moda para pesquisadores, a fim de 57 Para Pinker (2008, p. 335-345), apesar de existir, na família, um altruísmo nepotista, o que se observa é uma guerra generalizada entre pais e filhos, irmãos e irmãs, e assim sucessivamente, ’o que essencialmente é melhor para uma pessoa não é idêntico ao que essencialmente é melhor para outra. Assim, todo relacionamento humano, mesmo o mais devotado e intimo, contém a semente do conflito (Pinker, 2008, p. 335). O autor cita inclusive casos das crianças que foram salvas dos pais abusadores por colegas, vizinhos e professores. 58 Temos que citar de novo Pinker, pois ele tenta continuar a corrente dos etologistas que defendem a natureza humana determinada pela biologia, com algumas tentativas duvidosas de fazer interação genes e ambiente, para, no final justificar que é o biológico que predomina. 190 corroborar a disputa e o conflito, principalmente, usando como foco as escolas, tem sua origem na família; sua matriz encontra-se nas relações entre pais e filhos. Vamos voltar a analisar o bullying, da casa para a escola. Nossos filhos crescem e dão continuidade ao ciclo da violência que aprenderam em casa. Abuso, negligência são praticados verticalmente, entre adultos e crianças, e, horizontalmente, entre crianças. A criança e o adulto entram em um ciclo de crueldade e de ódio. Vítimas e algozes se revezam. Ora o mal se esconde no rosto de um adulto, ora em uma criança. Na Dinamarca, e na Noruega utiliza-se o termo mobbing, na França, harcèlemens quotidién, na Itália, prepotenza (ou bullismo), no Japão, yjime. Fante (2005, p. 28-29) coloca que, independentemente do termo, o bullying é um ato de violência, constrangimento e crueldade praticado entre pares. É um desequilíbrio de poder, em que existem vítimas e agressores. Em uma divisão mais minuciosa, podemos ter agressores, vítimas passivas e ativas, que sofrem e praticam, e os indiferentes, que compactuam e se calam. Middelton-Moz e Zawadski (2008, p. 95-108) colocam que o bullying tem origem na família. Como vimos anteriormente, pais e filhos, irmãos, primos, amigos, todos entram na dança do bullying na família; a escola é uma extensão. Aprendendo a constranger o irmão mais novo, uma criança vai praticar, na escola, com outras crianças. Para Middelton-Moz e Zawadski (2007, p. 99), existe uma cumplicidade entre agressor e vítima, ambos passando a ter uma relação de intimidade e dependência. Quanto mais a vítima se sente impotente, maior o gozo do agressor. O bullying encontra-se em todo o tecido social, porém a escola passou a ser visada, em função dos massacres, mas, na família, no trabalho, nas universidades, na relação conjugal, onde existir relação de medição de forças, o bullying se instaura. O início do ciclo começa em casa, passa para a escola e invade as relações. Passamos a acreditar que Foucault tem razão com sua microfísica do poder: ele está em toda parte, e, nesse aspecto, o bullying é a versão da moda infanto-juvenil para microfísica do poder. Fante (2008, p. 71-74) classifica os atores do bullying como: 1) Vítima típica, que é o famoso bode expiatório. Este se encontra em desvantagem de poder, por ser mais pobre, gordo, feio, baixo, ter estigmas que o diferenciem e distanciem bastante do grupo. São presas fáceis para agressores; 2) Vítima provocadora, que chama para si, através de provocações, a reação do outro. Este dá motivo para ser agredido e depois tenta fazer-se de vítima; 191 3) Vítima agressora, que reproduz fielmente a conduta do agressor e passa a ser um. Passa de um papel para outro e dança a crueldade com gosto. Esses são vingativos e provocam massacres, tramam mortes; 4) O agressor. Existem componentes antissociais nos agressores, falta de limites familiares, modelo de agressão aprendido em casa, incentivo por parte dos pais, têm pouca ou nenhuma empatia pelas vítimas. Encaixa-se, em muitos casos, em transtorno de conduta. Têm facilidade em liderar e podem ser líderes de gangues. Passa-se, assim, para uma dança grupal de predadores e de caças. 5) E, por fim, temos os espectadores: Estes podem ser os professores, funcionários do colégio, amigos, pais, irmãos, eu, você. Os espectadores são os voyers, os que gozam calados, e nada fazem. Como colocamos, respaldados por Middelton-Moz e Zawadski (2008), o bullying cria um terreno fértil para a formação de gangues. Temos agora uma ponte com estabelecidos e outsiders, com Schmitt e a relação amigo-inimigo. Por motivos de território, respaldado por relações de poder, em que os estigmas fazem a diferença, as gangues semeiam terror. Há uma divisão, e quem não for protegido, ou fizer parte do grupo pode sofrer, desde intimidação até morte. Assim começa a “política verdadeira”. O gozo do ódio espalha-se. Da casa para a escola, da escola para a rua, depois por cargos de poder, até chegar ao Estado. A microfísica é dos grupos. As redes se infiltram, controlam tráficos de drogas, corpos, bancos, empresas, pedaços de favelas, escolas. O Estado a serviço dos grupos. A microfísica do poder transita no corpo dos indivíduos, dos grupos, forma estabelecida e outsiders, amigos e inimigos e divide a sociedade em um palco de guerra. Podemos utilizar Hobbes, já que a criança precisa de lei e de interdição, do outro (neste caso, do adulto) que impõe normas e regras. Para o estado de natureza infantil, a família, a escola são os Leviatãs, ou, utilizando Rousseau, a família deve podar o pequeno tirano, mas discorda de Hobbes em um ponto fundamental: a educação deve afastar a criança da sociedade, ser negativa, evitar as influências de uma sociedade corrompida, que forma a matriz do tiranocida, que pode vir ser a criança. Hobbes prega uma instituição Estatal forte, um leviatã, mas não se preocupa com a criança. Para ele, os infantes são desprovidos de razão são propriedades dos pais e devem obedecer a eles. Rousseau cria, passo a passo, a educação de uma criança, para se desnaturalizar. Não reproduzir os males de uma sociedade corrupta e degenerada. 192 Lebrun (2008, p. 50) usa o conceito de “reparentalização” 59, uma crítica à desagregação da família como lugar de interdição. A horizontalizarão das relações adultos e crianças, para Lebrun (2008, p. 66-68), leva a uma dispersão, uma pluralização, que deixa a criança entregue aos seus impulsos. Fica simples, nesse contexto, compreender o abuso, os maus tratos, a negligência e o bullying. As guerras são travadas dia-a-dia, da casa para a escola. Nesse contexto, as gangues, os chefes antissociais ganham poder, território e espaço. Para preencher o vazio do outro, de que fala Lebrun (2008, p. 23), a estrutura social aparece como metáfora do chefe carismático, antissocial, que oferece crueldade, drogas e prazer imediato. Segundo Gigliotti (2006), estatísticas do CEBRID, no âmbito do Brasil, a imersão no mundo das drogas começa aos 10 anos e atinge ambos os sexos, com predominância masculina. Nessa sequência, gangues com líderes carismáticos, que podem ser antissociais, fazem a festa. Drogas aumentam a crueldade, principalmente estimulantes, como o crack. Para Birman (2009, p. 61-66), a naturalização da violência “silencia o que há de mais complexo na experiência da violência”. No homem, temos, para Birman (2009, p. 65), dois tipos de violência: uma simbólica e outra real. Na simbólica, existe um ato fundador da lei, da interdição, impondo limites ao caos, criando a história e os laços sociais. Na violência real, ocorre a transgressão, o desafio à lei, à ordem, à temporalidade. É necessário, pois, a instauração de uma violência simbólica, para dar sentido à história e à sociedade. A violência real forma a matriz da negligência, do abuso, do bullying, dos homicídios, dos suicídios, do terrorismo, do narcotráfico. Apesar de serem fenômenos distintos, operam sobre uma transgressão às normas sociais. Os mecanismos e as estratégias são diferentes, porém operam sobre a subversão do real. Vimos em Girard (2008), que o desejo humano instaura a violência no social, mas esta tem uma dupla face: coloca limites e instaura cultura e pode destruir, matar, subjugar pelo arbítrio. Ao apresentar as faces da violência, estamos lidando com a violência real, transgressora, o negativo de Girard. A simbólica e positiva interdita essa violência, é a lei, o Leviatã, a vontade geral, a justiça. A culpa e a introjeção da ética fazem parte da violência simbólica de impor limites à violência real, sem limites. Remete ao mito freudiano do parricídio original, que necessitou de uma violência simbólica, para criar a cultura, o sentimento de culpa e a ética” (BIRMAN, 2009, p. 67). 59 Nesta estrutura de família que se afigura no século XXI, a função paterna e materna perde espaço. A reparentalização é uma estratégia para “reeducar” os pais, fazendo-os assumir a função de cuidadores, e na falta destes, figuras substitutas, como colocação da criança em outra família, por exemplo. 193 Temos agora uma constatação: a violência é necessária, socialmente, para instaurar uma ordem, sem a violência simbólica ou positiva (termo debitário de Girard- 2008), a violência transgressora invade e destrói o social. Para coibir abuso, negligência, homicídios e bulliyng, a sociedade civil organizada tem que contar com uma violência legítima, que faz a interdição e coloca limites às ações humanas. Esse foi o princípio do Leviatã e da vontade geral. Operando sobre dois princípios, um totalitário e outro democrático, esses modelos de Estado e de organização social instauram uma violência legítima que é uma alternativa para coibir a violência transgressora. Depois de Auschwitz, a face do homem torna-se a “de um assassino em potencial, um universal homicida” (GLUCKSMANN, 2007, p. 19). Para Glucksmann (2007, p. 12), o ódio60 acusa sem saber e sem ouvir. O ódio condena a seu bel-prazer. Em nada acredita e nada respeita, encontra-se diante de um complô universal. Esgotado, recoberto de ressentimento, dilacera tudo com seu golpe arbitrário e poderoso. “Odeio, logo existo.” Depois do advento de Auschwitz, Hiroshima e Nagasaki, genocídios no leste europeu, na África, nas Américas, do advento do terrorismo em escala universal, da pobreza crescente e dos meios de destruição como espetáculo, não podemos mais encobrir a face da violência negativa no homem. Glucksmann (2007) coloca que ser homem é ser cruel e ter o ódio como herança. Cita Homero, Medeia, La Fontaine, e traz para a atualidade esses mitos e fábulas. O terror, as guerras, as drogas, o narcotráfico, são estratégias de perpetuação deste ódio pelo tecido social61. Ele chega a admitir que para obter trégua, só: “um aliança entre inimigos potenciais diante da adversidade coletiva” (GLUCKSMANN, 2007, p. 239)62. Em Glucksmann (2007, p. 265-270), existe uma máxima sobre o ódio; o ódio existe, o ódio se camufla com ternuras, que é a máxima do perverso, do antissocial, o ódio é insaciável, não pára, não relaxa ou se movimenta, à maneira de Hobbes, sem limites. O ódio promete o paraíso: o sagrado e o ódio se unem. O ódio deseja ser o Deus criador, através da globalização passa a ilusão de uma união universal, mas, na realidade, segrega, é sexista, discrimina, explora, divide, destrói a alteridade. O ódio ama até a morte, cria antinomias, como mulher/homem, judeus/não judeus, americanos/não americanos. Proclama o amor e pratica a 60 Não concordamos com o autor, que utiliza o ódio como uma emoção que conduz a violência. Não estabelece uma dinâmica da violência, como faz Girard, e, erroneamente, confunde um sentimento com ações violentas. Esse ser do ódio parece uma entidade metafísica, e não leva em consideração sentimentos como amor, piedade, altruísmo. 61 Esta tese é questionável, pois ele confunde sentimento que não são hegemônicos no homem e dá um estatuto metafísico a este sentimento. 62 Podemos interpretar um certo pessimismo no autor, que exagera a parte da banalidade do mal, extraindo exemplos negativos da história,principalmente os campos de concentração. 194 morte. Para Glucksmann (2007, p. 268-269), o que o ódio exige de seus objetos de amor? Que eles se mantenham; se não aceitar o amor do ódio, morte ao amor. E finalmente o ódio se nutre de sua devoração: homicidas e suicidas chegam ao limite63. Mas somos humanos, temos 1% de diferença genética com os primatas e criamos laços sociais complexos e ricos, assumindo várias faces. A crueldade, o ódio, a perversão são apenas uma fração dessas faces, são características humanas, assim como a bondade, a empatia, a piedade, o altruísmo, a cooperação. Retornemos ao ígneo e ao temperado de Hobbes, sendo que hoje a psiquiatria e a psicologia falam de transtornos de personalidade, e, foca o antissocial, como “a bola da vez”. O pequeno tirano de Rousseau, hoje, tem o nome de transtorno de conduta. Na prática clínica, quem já entrou em contacto com crianças com transtornos de conduta e adultos antissociais sabe que a frieza não é exagero. Existe realmente uma falta de empatia pelo ser humano e por animais não humanos. Encontram-se casos de crueldade extrema, como a que presenciei no CEA (Centro de Educação para Adolescentes - Menores Infratores) de João pessoa, Paraíba. Em 2008 um adolescente de 15 anos arrancou o coração de outro de 14, pelo simples motivo de não concordar com os gestos banais afeminados apresentados pela vítima. Mas também encontramos pessoas capazes de sacrificar suas vidas por uma causa coletiva, de agir com cooperação e altruísmo, sentir empatia pelo próximo e se colocar no lugar dele. Em bonobos, De Waal (2007) encontra gestos de extrema empatia e altruísmo, por exemplo. Nós, seres humanos, somos dotados dessa empatia que é inata no ser humano, se seguirmos De Waal, Damásio, e Rousseau, ao falar da formação natural do Emílio. Sem a contaminação da sociedade civil, o sentimento de empatia é um instinto que, junto ao amor-de-si e da piedade, faz o homem se colocar no lugar do outro. Concordo com De Waal de que a base da moral vem de sentimentos inatos, o que reforça Rousseau. Ao contrário do que afirma Pinker (2008), não podemos reduzir Rousseau a uma visão simplista da natureza humana como boa. Trazemos a potencialidade para cooperar, para empatizar, mas é a socialização que desvia esses instintos inatos. Não vamos focar a banalização do mal como universal 64 . Para Sémelin (2009, p. 19- 86), os grandes genocídios não podem ser explicados fora de um contexto histórico. Não 63 O autor parece confundir sentimento com violência, operando uma naturalização de ambos. Não chega a fazer uma analise de outros sentimentos, como a piedade, o altruísmo. Focar no ódio é uma atitude reducionista do autor, em função de deixar de lado sentimentos diferentes e construtivos.O homem não vive apenas de ódio e esse é exacerbado pela estrutura social, como coloca Lebrun (2008).A competitividade, a lei do mercado, a disputa, a desagregação da família e da referência de um Deus transcendente ou numa instituição que interdite e coloque limites no homem, faz crescer o vazio e o ódio. 195 podemos naturalizar a história dos genocídios, inclusive a de Auschwitz, recorrendo a uma xenofobia de cunho biológico, que se encontra em outras espécies, como refere, por exemplo, Lorenz. O outro como negação da alteridade faz parte de componentes históricos tecidos pelos homens. Como coloca Sémelin (2009), o massacre, a morte em série, os atos de crueldade fazem parte de um contexto histórico que se formata através do tempo. Vistos estes fatos, não podemos tornar a violência um espetáculo banal. Naturalizá-la, banalizá-la. Principalmente a violência real, que nega a alteridade e é intencional. Ela é produto humano, não de todos os homens, mas de alguns. Se for cantada repetidamente, como um mantra, corre o risco de se tornar banal. Hobbes tentou fazer uma classificação, no De Cive, e longe de definir o homem como egoísta e guiado pelo auto-interesse, formulou a existência de homens temperados, que trazem sentimentos bons. Rousseau descreveu a gênese da formação de pequenos tiranos como o resultado da interação social e do jogo de mando e de obediência, mas ofereceu um processo educacional que pode evitar que a criança transforme-se em tirano. Evitemos clichês. Vamos agora juntar as peças utilizando Hobbes e Rousseau como interlocutores. Para quem caminhou até aqui, vale a pena terminar de montar esse quebra-cabeça. 64 Para Hannah Arendt a banalização do mal faz parte de uma estrutura burocrática do nazismo, onde a técnica se sobrepõe ao humano. Neste aspecto, a morte, passa a ser considerada, apenas, uma obrigação burocrática relacionada ao desenvolvimento da sociedade industrial. 196 CAP. 6 DE VOLTA A HOBBES E A ROUSSEAU 6.1 O HOMEM É O LOBO DO HOMEM, OU O CIDADÃO É UM DEUS PARA O HOMEM? Hobbes introduziu o Leviathan como a solução para a violência negativa, irracional, transgressora. Hobbes enxergou o indivíduo como se ele fosse sem limites, o banido, o lupus, o homem e sua vanglória, e, acima de tudo, o desejo de poder. O homem não é social, e, se o é, é por interesse pessoal. Só o poder do Estado forte, da espada, de uma violência terrificante pode frear o homem de sua crueldade. Temos em Hobbes uma concepção que tem afinidades com o conceito de estado de exceção desenvolvido por Schmitt, o qual está acima das leis e cria decretos provisórios, para sustentar a governabilidade. Nesses dois pensadores, temos uma visão do homem violento e beligerante, movido por egoísmo e disputas, que necessita da intervenção de um Estado forte para controlar e impor limites às condutas egoístas ou à violência real do homem. A violência simbólica ou positiva exerce-se através do Estado de exceção. Vamos sintetizar alguns aspetos da teoria de Hobbes, fazendo um paralelo com o século XXI. 1. Hobbes acredita que a natureza humana tem uma tendência à violência e a ser dominada por paixões. Mesmo com a divisão entre temperados e ígneos, estes estabelecem uma guerra contínua entre si. Os ígneos provocam, espoliam, atacam os temperados, forçando-os a se defenderem. Formam-se alianças, grupos, e a batalha prossegue: poder, poder e mais poder. A agressividade está em nossa constituição, mas não existe uma separação entre ela e a violência, dando margens a naturalizar a violência. Pinker (2008) procede, utilizando Hobbes para corroborar a tese de uma “violência natural”. E isso tudo leva à crueldade e à perversidade. Hobbes nos alerta de que o estado de natureza é ainda parte do nosso dia-a-dia, não está no passado, não é uma mera construção ideal, mas a possibilidade concreta em que a sociedade civil pode cair, quando o soberano não consegue manter a ordem e a paz: o estado de natureza está sempre à espreita, no momento em que colapsa a frágil camada superficial de civilidade que nos protege. O processo civilizador em que Norbert Elias (2003) acredita, deu apenas uma máscara ao cidadão de Hobbes. Este anteviu, no jogo de 197 autor e ator, esse teatro, essa criação da persona, que é o Estado moderno. Não mais o homem-lobo, mas o cidadão65. 2. Homens e animais de outras espécies, para Hobbes, pouco se diferenciam. Se não fosse a linguagem, o desenvolvimento da razão calculativa e a possibilidade do aprendizado que a linguagem proporciona, seríamos tão chimpanzés quanto qualquer chimpanzé. Hobbes prenunciou em que sentido, no aspecto das emoções, o 1% que nos diferencia dos parentes chipanzés e bonobos. Aliás, Hobbes, com a sua teoria dos temperados e ígneos, aproxima-se de De Waal e da bipolaridade, com a grande diferença de que Hobbes fala sobre duas biotipologias de homens distintas, e De Waal, de duas tendências dentro do homem. A balança pende para os ígneos, pois estes possuem mais vontade de poder, vanglória e crueldade. O lado chimpanzé predomina sobre o lado bonobo? Estas questões não podem ser respondidas de maneira simples. No século XVII, Hobbes acreditava que os ígneos dominavam, naquela época, nas transformações sociais que estavam ocorrendo, principalmente focando o grande parlamento que era, segundo ele, o “reino de Beehemoth”. A guerra civil inglesa que instaurou o Grande Parlamento foi comparada por Hobbes à instauração do caos, da anarquia: e talvez foi esta realidade histórica que lhe inspirou o conceito de estado de natureza. Beehemoth associa-se à alegoria do monstro terrestre que instaura o caos, que vem das antigas religiões mesopotâmicas e é citado no Antigo Testamento. 3. Esta era a visão histórica de Hobbes. De Waal constata que atualmente nosso “lado chimpanzé” prevalece. Assim com Hobbes baseou-se na guerra civil Inglesa e no momento histórico que estava vivendo, De Waal olha para o século XXI e realça nosso lado mais sombrio, mesmo deixando brechas para mudanças com nosso lado bonobo. Hobbes acentua a biotipologia ígnea, que, prevalecia segundo suas observações, na sociedade do Antigo Regime e no inicio da modernidade. Este ponto é importante, pois converge também com a dupla face da violência. Temos que concordar que, seja falando sobre ígneos e temperados ou bipolaridade, estamos entrando na constituição biológica. Trata-se de uma predisposição, uma possibilidade. Usando metáforas, se admitimos que somos ígneos ou temperados ou ainda bipolares, estamos partindo do pressuposto que biologicamente herdamos uma tendência para comportamentos 65 querelantes, competitivos, egoístas ou conciliadores, piedosos e O homem artificial tem os olhos costurados, vive ligado a uma rede de computadores, e forma simbiose com a máquina. Esta é uma metáfora para o século XXI, se quisermos arriscar uma fábula para o Estado hobbesiano. 198 cooperativos. A agressividade, que ajuda na sobrevivência, pode também ser destrutiva, e não ter finalidade apenas positiva, a nível biológico. A agressividade em um temperamento ígneo, por exemplo, gera competição, disputa e, socialmente, ajuda a construir uma sociedade violenta dentro dos aspectos negativos desta. 4. Em Hobbes, o homem é caracterizado como competitivo, movido pela glória, desconfiado e não sociável. Este é um artifício para justificar o Estado soberano. A solução é se dobrar ao estado de exceção, ao poder soberano, à violência do Estado66. Vamos agora fixar um ponto em Hobbes: é justamente no De Cive, que aparece o homem temperado e o ígneo. Nesse aspecto, existe uma luz no final do túnel, mas temos que refletir, porque os ígneos detêm o poder com mais frequência, são movidos por vaidade, inveja, ressentimento, ira, luxúria e vanglória. A perversão vence sempre? O Leviatã é uma solução artificial. O estado máquina de Hobbes é a máscara do homem ígneo. Em um mundo dominado por guerras, feudos, divisões, com uma classe burguesa se firmando, o Estado era fundamental, não para atingir a paz e garantir a vida, mas para os ígneos acumularem o capital. Leo Strauss viu uma moral burguesa em Hobbes, mas uma falsa moral. Persona, atores que fazem um pacto com o soberano, pela vida e contra a morte, que ronda o estado de natureza. O Leviatã vence? Parodiando Foucault, novas estratégias, novos jogos. A sociedade disciplinar, o panopticum, a sociedade de controle começa com o Estado moderno. Hobbes tinha o medo, como diz Janine Ribeiro (2004a, p. 4), que o fez querer que o rei não ficasse nu. Queria o poder soberano. Como Hobbes nunca quis enfrentar a crueldade humana, a perversão, deu a hegemonia aos homens ígneos e transformou-os numa hipérbole. Fica a mensagem: o homem dá medo. O homem artificial engana o medo por instantes. Se a linguagem foi a grande invenção, para Hobbes, e podemos ensinar alguma coisa é a de não ter medo. Este é nosso primeiro passo para desvendar o problema. Hobbes, ao abrir a possibilidade para o homem temperado, criou uma solução que não foi devidamente explorada por ele. Temos também empatia, piedade, amor e cooperação. O Estado de exceção de Hobbes e Schmitt é um Estado feito para ígneos. Mas nem todos os homens são ígneos. 5. Extraímos de Hobbes, seguindo comentadores, principalmente Zarka (2001), uma ponte entre a agressividade e a violência. A linguagem e o desejo de poder é essa ponte, introduz elementos novos na socialização humana. Hobbes seguiu fiel ao modelo jusnaturalista, e a divisão estado da natureza e Estado social. Compreendeu o homem como individuo que só se 66 A violência simbólica é apenas um dos aspectos da violência exercida pelo Estado. Este, exerce o poder econômico através dos grupos que o controlam, assim como, o poder sobre os corpos. Para Clastres (2004), o poder do Estado é exercido contra a sociedade civil, principalmente contra os que não detém capital. 199 socializa por interesse. A criação da linguagem é a ponte entre o biológico e o social, faz do homem um ser que precisa se socializar. Nesse aspecto, a violência se instaura e faz da agressividade natural uma violência humana. Por não compreender essa passagem, Hobbes transformou o homem natural em violento. Deu falsas pistas a darwinistas, etologistas, freudianos, e, até hoje, é utilizado para argumentar uma naturalização da violência humana. Façamos agora algumas considerações sobre Rousseau: 200 6.2 ROUSSEAU: A CRIANÇA COMO PARADIGMA DE AGRESSIVIDADE E VIOLÊNCIA Em O Emilio, Rousseau parte da criança e tenta afastá-la da sociedade civil. Na sociedade encontra-se pais ocupados, pessoas neuróticas, criança entediada. Rousseau viu, na criança, a chave do cidadão. Em O Emílio, aponta dois caminhos: a criança pode se tornar um pequeno tirano ou um indivíduo que, seguindo sua natureza, aos poucos, vai descobrindo suas possibilidades e a empatia pelo outro, dentro de uma partilha cooperativa. O adulto pode reforçar, mimar, regar a planta que forma o menor violento e cruel, que usará a linguagem do mando e da submissão; ou, ao contrário, monitorizar, não contaminar, acompanhar a criança e ajudá-la a crescer de acordo com a natureza. A crueldade e a perversidade são, uma mistura dessa interação, adulto e criança. O adulto pode infundir vícios, caprichos, paixões sociais, como orgulho, vaidade, inveja. A família vista por Rousseau é um misto da aristocrática e da burguesa. Ele olha para o campo, para Esparta, e, nesse aspecto, segue um ideal renascentista. Emílio chega à adolescência, torna-se forte e depois vem a idade da razão e chega à moral. Falta-lhe apenas casar. Temos, assim, a obra completa. A família de Rousseau curva-se à vontade geral. Sofia é a esposa perfeita, misto de recato e de submissão. Esse ideal de Rousseau segue o Iluminismo. A educação das crianças é a chave para formar um bom cidadão. Comenius, Erasmo, Locke e tantos outros reformadores apostam na educação da criança. O Emílio aponta um caminho que permite que a criança siga a sua natureza, deixando-a usar suas forças até a idade da razão e da moral. Em textos, como “Cartas sobre o governo da Polônia”, ele fala da educação como dever do Estado. A escola como paradigma de disciplina e socialização é o ideal dos estabelecidos burgueses. Desde então, persegue-se esse ideal: a criança é a chave para o controle da crueldade e da perversidade. O foco é a infância. Lebrun, Ridley, Watson, Skinner, Piaget, a Psicanálise, a Genética seguem os passos de Rousseau. O referido autor parte do selvagem, da sua pouca necessidade, de uma agressividade natural que serve para autodefesa e localiza o início da desigualdade no desenvolvimento das capacidades intelectuais, quando os homens passam a se comparar e a dividir o “meu e o teu”. Nesse processo, ocorre a acumulação de riqueza e instala-se uma sociedade civil que, (como diria Bourdieu), através da violência simbólica, cria toda uma estrutura para homologar a dominação dos ricos pelos pobres. Podemos pontuar que a instalação da sociedade civil, para Rousseau, dá-se pela instalação da violência. O que era uma agressividade natural vai, aos 201 poucos, transformando-se em violência. Falta, porém, uma caracterização desta violência como negativa e positiva. A sociedade civil que ele descreveu apresenta uma violência que contribui para exploração, dominação dos pobres pelos ricos, mas também cria cultura, ciência e modelos de violência simbólica que servem para manter a coesão e união social. Em O Emilio, esse processo é aprofundado sob a ótica da criança. Nos interstícios da relação com os cuidadores, o social vai interagindo com a natureza. A criança traz disposições inatas, como piedade, amor-de-si, agressividade, que, se não for bem conduzidas, transformam a criança em um pequeno tirano, que passa a operar sob a ótica do mando e da obediência. Em função desse fato, a criança tem que passar pelo processo de educação negativa, deixando a natureza seguir seus passos, a fim de evitar a contaminação social. O foco é a relação cuidadores e crianças. Acredito que seja uma importante chave para compreender como natureza e a sociedade interagem. Se a criança traz, digamos, geneticamente67, tendências que são condições de possibilidade para a moralidade, partindo dos sentimentos, é justamente a sociedade que, interagindo com essas tendências, distorcemna e as transforma em egoísmo, tirania, desejo de posse. A agressividade, instrumento natural, transforma-se em violência. Esse produto de socialização volta-se para o outro, anulando sua alteridade e é intencional, tem objetivos socialmente aprendidos. Se uma determinada sociedade valoriza a disputa, a acumulação do capital e a competição, essa socialização tenderá a transformar o amor-de-si em amor-próprio, que é a semente do egoísmo. Simplificando, para Rousseau, as tendências naturais seriam boas, e a sociedade as estragaria, mas como seria possível isso? Como a sociedade pode poluir uma tendência natural boa? De onde vêm os instintos, as bases biológicas, os quais transformam a criança em um pequeno tirano? Como a agressividade natural, que serve somente para a defesa, podese transformar em violência? Em suma, como a sociedade pode colocar, na criança, algo que não está já nela em potência? Não haveria possibilidade disso, se não houvesse uma dupla possibilidade, na natureza humana, não só para a moralidade, mas também para a violência. Nesse caso, temos que concordar com a bipolaridade de De Waal. Só a socialização pode direcionar, desenvolver e colocar, em atos, instintos de piedade e de amor-de-si, como fala Rousseau. Se acompanharmos Rousseau, o início dessa transformação do homem ocorre, quando aparece a divisão entre o meu e o teu, a comparação entre quem é melhor ou pior, passando pela aquisição da propriedade privada, e, consequentemente, a formação de sociedades baseadas na exploração de grupos de pessoas por outras, que geralmente detêm o 67 É bom enfatizar que Rousseau não disse isso, até porque ele não conhecia a genética. 202 poder soberano, os meios de produção e formam a estrutura simbólica da sociedade, inclusive, as leis, que favorecem grupos ligados ao Estado. Essa análise de Rousseau abre caminho para a sociedade de direito e a democratização das relações sociais. Concordando com Bourdieu (2009) e Clastres (2004), o que estrutura a socialização humana é a violência, a criança vai entrar em uma estrutura, inicialmente, de violência simbólica, depois, de transgressão, utilizando-a para prejudicar o outro, com intencionalidade. Conforme Castor Ruiz (2009), entra-se dentro de uma violência real e transgressora, que não é freada pela violência simbólica. As leis, a interdição, a cultura, os costumes podem ajudar a diminuir a violência transgressora, mas a dinâmica está instaurada. Não podemos fugir da violência, não porque é determinada pela biologia, mas porque estrutura o social. Não pode ser considerada apenas em sua negatividade, pois não é o mal, servindo para criar novas maneiras de relacionamento entre os homens. Rousseau, através da pedagogia, da educação das crianças, tenta formar a base para um Estado de eticidade. A vontade geral instaura uma violência simbólica que é necessária para evitar a violência real dos homens transgressores, corruptos, ávidos por destruição e crueldade. Neste campo entram os direitos humanos. A lei coíbe os excessos da violência transgressora. Mas, esse Estado teria as mesmas características de Hobbes, então, seria um estado de exceção ou um estado de direito? Acreditamos que o fortalecimento do Estado de Direito com a participação de movimentos sociais articulados com o interesse da comunidade seja uma possibilidade de solução adequada, para isso é necessário fortalecer a sociedade de direito. A solução a um Estado de exceção com poderes plenos para gerar a violência pode acabar em experiências como a Alemanha nazista, as ditaduras latino-americanas das décadas de 60 e 70, e tantos outros exemplos históricos que culminaram, tornando o Estado de exceção o detentor da violência simbólica e transgressora. Podemos conjecturar se, seguindo Rousseau, a solução está realmente na formação de crianças que não passem por abusos, negligências, maus tratos, ou tenham cuidadores adequados para colocar limites na agressividade natural, redirecionando para fins úteis? Mas, para isso ocorrer, acreditamos que seja necessário um Estado de direito organizado e que funcione. No momento, ficaremos com as sínteses de Hobbes e Rousseau. Agora, usaremos uma alegoria, sem prejuízo da pesquisa, apresentando um resumo de tudo o que foi falado até agora. 203 6.3 BIOLOGIA, AGRESSIVIDADE E VIOLÊNCIA: Hobbes e Rousseau Podemos começar falando sobre um personagem de 11 anos, que chamarei de Y. Seguindo Ridley, ele carrega uma genética que o faz buscar novidades e ter mais tendência para a violência. Nasceu em local muito violento, tendo sido abusado, negligenciado e sofrendo maus tratos. Fenotipicamente, foi estimulado, ao máximo, pelo ambiente. Temos, assim, alguém com propensão a desenvolver um transtorno de conduta. O ígneo de Hobbes faz sua aparição e contribui para a instalação da violência transgressora. Centrar o foco em Y é fácil, pois tem genótipo e fenótipo; pobreza, miséria e exploração fazem parte de seu mundo. Do outro lado, temos uma menina de 12 anos, que chamarei de Z. Faz parte de uma classe média, tem genes, digamos, parecidos com os de Y, mas não mora em local de pobreza nem miséria, tem recursos financeiros, usa a Internet, diz-se justiceira, mas tem também predisposição a transtorno de conduta. É ígnea, pequena tirana, os pais fazem tudo o que ela quer: é a “princesa do lar”. Aprendeu desde cedo, a ser preconceituosa, a comprar tudo o que quer, inclusive, amizades. Sabe usar a violência transgressora e vence. Temos, assim, dois exemplos hipotéticos de como a agressividade natural, os genes e a estrutura cerebral transformam-se em ato violento, com intencionalidade e negação da alteridade do outro. Temos a lei, a justiça, que instaura uma violência simbólica e tenta diminuir a violência real de Y e Z. Agora, invertendo os exemplos, temos um personagem V, que nasceu em uma comunidade pobre, tem constituição temperada, sentimentos inatos de empatia e cresceu em ambiente que valoriza a cooperação e o trabalho. A agressividade natural será transformada para fins socialmente úteis, e essa criança cresce e não exerce a violência transgressora, pois sente culpa, remorsos e enxerga o outro. Como não podemos jogar com hipóteses simples, colocaremos, agora, uma criança R, do sexo feminino, que nasceu com lesão cerebral, possibilitando, assim, um aumento da agressividade, mas recebeu dos pais, atenção e cuidados, apego e carinho. A agressividade vai continuar existindo, mas possivelmente a violência transgressora está diminuída. Agora, um menino B, que nasceu com estrutura genética para empatia, piedade, cooperação, mas foi abusado sexualmente pelo pai, aos 3 anos, a mãe se cala, e o ambiente não fornece suporte para reagir. Mesmo não tendo predisposição, essa criança pode apresentar 204 condutas violentas contra o outro, violência transgressora, crueldade. Mesmo mesclado por sentimentos de culpa68. Continuando a usar exemplos alegóricos, dessa vez, referindo-nos a grupos, vamos seguir por partes. No início, vem o gene: ele não determina, mas fornece os ingredientes para, por exemplo, uma predisposição a busca de novidades e excesso de violência. Em alguns casos, afeta, de uma maneira especial, o cérebro, tornando empatia, culpa, remorso, sentimentos não presentes. Não importa se estamos falando do lobo mau, do bandido, do homem ígneo, do pequeno tirano, do estado de natureza hobbesiano, da sociedade civil de Rousseau, dos burgueses. Temos tantas terminologias que não me darei ao trabalho de enumerá-las. O gene, apesar de ser máquina egoísta, faz parte de um ser vivo que se encontra em relação com o meio. Damos a isso o nome de fenótipo. Uma sociedade de decapitadores de cabeças vai reforçar essa tendência nos grupos. Outra sociedade de amantes do sexo vai reforçar essa tendência. Se uma Sociedade habitar a Ásia e outra a América, talvez dê para coexistirem, sem tomar conhecimento uma da outra, mas, se ocupam o mesmo território, lutarão por recursos, hegemonia, poder. Ocorre uma divisão: a alteridade é o inimigo. Vamos jogar com a probabilidade de que a sociedade dos decapitadores de cabeça tenha mais indivíduos com gene que predisponham o transtorno antissocial. A crueldade e a junção gene e fenótipo propiciará um excedente de crueldade, e os decapitadores subjugarão e vencerão os amantes de sexo. Podemos pensar que as coisas são simples, assim; induzir o leitor ao erro, porém os decapitadores podem desejar fazer alianças com os amantes de sexo, para procriar mais decapitadores, exterminar os que não querem se render e poupar e absorver os que querem se subjugar. Teremos agora uma sociedade maior, que decapita cabeças e faz muito sexo. Agora, chega ao local, uma multinacional, com interesse em alguns minérios dessa região. Os habitantes da comunidade são hábeis em extrair minérios. Os estrangeiros são vistos como inimigos, de início, mas logo formam alianças, constroem locais luxuosos para a 68 Podemos continuar mesclando exemplos, são muitas as probabilidades. Hoje estão sendo estudados fatores de resiliência (CYRULNIK, 2003), que possibilitam a uma criança resistir a um meio adverso, a abusos, a negligência, a guerras e a catástrofes. A resiliência considera os fatores constitucionais e ambientais. Cyrulnick (2003, p. 64-65) fala que a chave encontra-se na interação com cuidadores, a formação de um apego seguro, a sensação genuína de ser cuidada, a formação de redes sociais, que podem ser amigos, escola, instituições. Uma criança que não tem resiliência pode cometer suicídio, ou reagir às adversidades com violência, mesmo tendo herdado genes “bons” ou vice-versa: uma criança com lesão cerebral, Cyrulnick (2003, p. 33) cita exemplo de síndromes genéticas que predispõem a agressividade exacerbada, mas, por ambientes tranquilos, com apego e cuidado, ocorre uma diminuição das tendências agressivas. Exemplo: Síndrome de Kluver-Buck, síndromes autísticas. 205 prática de sexo, elegem um exército de decapitadores, com a intenção de pegar os rebeldes, subornam o Governo do país onde se encontra o território desses híbridos, e constroem belos edifícios em centros urbanos, ótimos shoppings. Para manter o centro urbano funcionando, vão pactuar, em algumas favelas, com líderes antissociais para tráfico de drogas e de órgãos humanos. Injetam dinheiro na política e elegem deputados e senadores. Da América à Ásia, existem redes, com certeza, para não ter empatia pelos outros. Esses detentores do capital têm genes que afetam o sentimento de culpa, o remorso, a empatia. Enganam com doses de cinismo, permitem o florescimento de religiões, tribos urbanas, darks, skinheads, controlam a mídia: está montado o grande Beehemoth. Neste jogo, não podemos dicotomizar classe dominante e dominada, estabelecidos e outsiders, amigos e inimigos. Tudo compõe um todo, uma harmonia de sangue, crueldade e exploração. O 1% que nos diferencia dos chipanzés e bonobos faz a diferença. Temos uma violência social baseada no capital. O poder simbólico reforça o valor do dinheiro, da exploração, do luxo que podemos conseguir como acúmulo do capital. Subjetiva-se o corpo como mercadoria, e esse se torna um fetiche. O ter passa a valer mais que o ser. Essa é a grande serpente do capital de que fala Deleuze (2002). Mas, se é o capitalismo o responsável pela violência transgressora, como explicar a violência em sociedades pré-capitalistas? Quando Clastres fala da instituição da violência, em comunidades indígenas, que guerreiam com outras tribos para manter a coesão intragrupo, estamos remetendo a uma maneira de subjetivação não capitalista. Devemos pontuar quais fatores, no capitalismo atual, servem para aumentar a violência transgressora. Como pontua Lebrun (2008), uma subjetivação baseada na falta de hierarquia, na desconstrução de um modelo de família, onde falta a figura do pai, interdições sociais, o individualismo, o consumo de mercadorias como objetivo social, a formação de laços sociais frágeis entre as pessoas, uma diminuição do sentimento de pertencimento ao coletivo, pode levar à formação de indivíduos que não tenham canais socialmente úteis para canalizar e frear a violência transgressora. Esta é apenas uma hipótese de Lebrun, precisa ser avaliada historicamente. Ocorrendo um processo de mudança na socialização dos Países capitalistas, temos que, delimitar em quais e aprofundar o que esse fato contribui para o aumento da violência transgressora. A solução não se resume a esse jogo de probabilidades, a uma construção hipotética. Onde ficam os temperados? Os que não apresentam alterações cerebrais que predisponham a crueldades? As crianças que não se transformam em pequenos tiranos? Ao nosso lado 206 bonobo? Já podemos constatar, por tudo que foi argumentado, que estes não desejam avidamente, em uma sociedade capitalista, ao acúmulo do capital através da exploração do outro. Têm estratégias para resolução de conflitos. Estão do lado do conflict resolution. Podem ajudar crianças a ter uma base segura, mesmo com a balança do social instalando uma violência simbólica baseada no capital econômico. Podem ajudar a amenizar a situação, podem exercer lideranças construtivas, criar ambientes de cooperação. Todos têm em comum a empatia pelo outro, o colocar-se no lugar do outro, mas o próprio Hobbes coloca que os ígneos provocam e competem tanto, que obrigam os temperados a se defenderem. Vimos, com Elias, que os estabelecidos ferem a autoestima dos outsiders, fazem fofocas, deturpam a imagem, impedem o acesso ao trabalho, condições de vida adequadas. Podem fazer alianças, mas de submissão e assimilação. Amigos e inimigos trocam, podem ter interesses comuns, e nisso, Matt Ridley percebe uma saída para a paz. Temos que cooperar para conseguir o que, eu não tenho e o outro tem. De Mauss fala sobre dávida, Matt Ridley sobre troca e cooperação, habilidades diferentes, especialização. Isso move o interesse da reciprocidade. Na parte maldita, Bataille (2005, p. 89) coloca que existe um excedente que circula na terra, mas a apropriação é feita por poucos. Tem para todos, comida, fartura, mas alguns retêm 90% desse excedente. Nosso 1% nos faz assim: a linguagem, o uso de ferramentas, as paixões sociais, como vaidade, orgulho, inveja, vanglória fazem do homem uma espécie diferente, mas a violência está nesta construção social, e não nos genes, nem em uma natureza humana oriunda de primatas não humanos. A contingência faz o homem construir sociedades de exploração que fornecem o substrato para violência real, transgressora alastrar-se. Do indivíduo aos grupos, do solitário anônimo ao bando de fanáticos, do suicida isolado ao grupo de banqueiros. É a estrutura social que faz a violência real caminhar e circular entre os corpos. A situação não é tão linear. Existem indivíduos e grupos que resistem a esta realidade. Temperados, resilientes, piedosos tentam construir uma sociedade, em que a violência simbólica assuma proporção aceitável para uma convivência de mais respeito, menos exploração e destruição da alteridade. E a criança? Longe de utopias e reformas evolutivas, sabemos que é nessa fase que podemos evitar que o “mal” cresça, parodiando Rousseau. Mas, com quais cuidadores e em que tipo de sociedade? Vamos tentar fornecer oportunidade de resiliência, resolver conflitos provocados pelo bullying, diminuir conflitos familiares, respeitar, acima de tudo, os direitos 207 humanos, mas, para isso é necessário que exerçamos uma violência simbólica, que faça respeitar a justiça. Devemos contar com nosso lado bonobo e com os temperados? Com os Emílios e Sofias? Para isso, é necessário coragem, empatia, esperteza, curiosidade, uma genética favorável e um meio ambiente propício e redes sociais. Podemos concluir que a agressividade não é o problema, faz parte de nossa biologia. A violência é produto humano e instaura o social, mas nem toda violência exerce o efeito destrutivo que tivemos, por exemplo, na Alemanha nazista, nos massacres de Kossovo e Ruanda. Nossa sociedade tem o crime organizado, o narcotráfico, a corrupção de políticos, mas têm também os defensores dos direitos humanos, os ecologistas, crianças índigo. 69. O sistema mundial está dominado pelo capitalismo, tudo bem, mas este não é o nosso problema, o nosso problema é que, neste sistema mundial há sociedades mais violentas e outras menos, o que demonstra que é possível, dentro do mesmo sistema, controlar a violência e viver de forma mais cooperativa e harmoniosa. Existem países, como o Japão, por exemplo, onde encontramos um controle do social exercido por tradições, disciplina, funcionamento adequado das leis. A Noruega é outro exemplo de controle e diminuição da violência, com índice de educação formal elevado e leis que funcionam. No Brasil, estamos em uma fase, em que o controle da violência transgressora é fraco, aumentando os casos de falta de respeito pela alteridade e pelo direito do outro. Na realidade, fazer um mapeamento da violência transgressora, no mundo, foge ao nosso foco, neste momento, mas vale ressaltar que, mesmo dentro do sistema capitalista, ocorrem gradações e soluções diferentes para diminuição da violência transgressora. A etologia, a psicologia evolutiva, a primatologia, as neurociências e a Psiquiatria podem apontar setas, mas, não constituem sozinhas, a verdade sobre o homem. Este se constrói em sociedade, como diz Rousseau, e busca a superação e a perfectibilidade. Se a sociedade facilita o surgimento de psicopatas, por exemplo, é porque ela precisa deles para reforçar seu status quo. Podemos até concordar com a Psiquiatria quanto à falta de empatia, ausência de culpa entre outros, mas o psicopata só floresce em meio social propício. Reforçando que é o homem o arauto da violência transgressora, do uso desta para o bem e o mal. Que estamos tentando colocar? 69 Uma metáfora criada para retratar a criança que tem consciência ecológica, preocupação com o outro e quer construir um mundo melhor. 208 1. Não podemos ser deterministas, principalmente, quando se trata da espécie humana. Fatores biológicos, no máximo, dão um impulso para comportamentos violentos, mas não determinam nada; 2. Inscrever o homem em uma ordem natural é algo óbvio, mas reduzi-lo à biologia é desconhecer que somos humanos. A etologia fornece exemplos de outras espécies, mas não podemos proceder por analogia. Esta é uma falácia. A primatologia comete também este erro. Uma coisa é dizer que somos primatas humanos, mas evocar uma herança em função de semelhanças genéticas é um erro. E as diferenças? E o que nos torna humanos? 3. Devemos fazer uma análise da atual forma de socialização que o capital impõe, assim como as sociedades que resistem à globalização. Não podemos generalizar o Império de Negri e Hardt como uma máxima universal. Foge do escopo deste trabalho fazer uma análise aprofundada do capitalismo e adentrar nas formas de subjetivação produzidas por este sistema. Teríamos que mapear e comparar muitos países e fazer um mapeamento da violência, inclusive, em países comunistas e muçulmanos, como China e Irã. 4. Ao invés de olhar para sociedades animais e fazer analogias, vamos olhar e aprofundar como a espécie humana está se socializando. Este é o caminho de análise mais promissor. Neste aspecto, entra a destruição do Planeta pelos excessos do capital financeiro, com lucro desmedido e destruição sem limites da natureza; mas não é só esse aspecto. Como países comunistas estão lidando com a violência? 5. Chegamos à conclusão que a violência não é o problema, mas o homem. E não existe um destino, ou algo que determine nossa espécie, porque temos a capacidade de nos construir, tanto para o bem, como para o mal, utilizando parábolas teológicas. Aceitamos a hipótese que temos uma constituição ígnea e/ou temperada, somos bipolares, temos a propensão para amar e odiar, destruir e construir, ser egoísta ou cooperar. Assim como existem psicopatas desprovidos de moral e empatia, temos muitas pessoas que trazem na constituição a moral e a empatia. Vamos agora fazer considerações finais apontando caminhos. 209 CONCLUSÃO À custa de brigas, pancadas, leituras escondidas e mal escolhidas, tornei-me taciturno e selvagem. Começou a minha cabeça a se alterar, e passei a viver como um lobisomem (ROUSSEAU, 2008, As confissões, Livro I, p. 58). Depois desta análise que passou por várias disciplinas, podemos esquematizar da seguinte maneira o que pesquisamos: Por questão de método, ao falarmos de agressividade, remetemos a uma estrutura biológica, individual: o ser vivo, com suas estruturas físico-químicas, seus genes, suas estratégias de sobrevivência, elementos, digamos, da estrutura genotípica, que podem variar de espécie para espécie, de organismo para organismo, de indivíduo para indivíduo. Esta definição tem como referência a etologia, principalmente Lorenz,Wilson e Dawkins. Ao nos referirmos à violência, entramos em uma esfera propriamente humana. Se vivemos em uma época violenta, vamos rastrear as probabilidades que a facilitaram. Genes, família, Estado fazem parte de um jogo que instaura e perpetua a violência, o qual pode ser micro ou macro estrutural, que começa em casa, entre marido e mulher, pais e filhos, entra nas instituições, chegar ao Estado, parte para as nações, raças, ideologias, religiões. Utilizamos como referência os estudos de Ruiz, Girard, Clastres e Lebrun, principalmente para enfatizar a dimensão humana da violência. A violência aparece com o processo de socialização humana. A linguagem, específica da espécie humana, faz do pensamento humano um processo complexo, que amplia as possibilidades de socialização humana e torna o desejo numa dimensão de multiplicidade de objetos, que são criados pela linguagem e o desenvolvimento das sociedades humanas. Entramos assim num aspecto importante em Rousseau, que analisa, principalmente em O Emilío, a evolução deste desejo em sociedade. O processo de humanização está condicionado por dois fatores ineludíveis: a herança biológico-genética, fruto de um longo processo evolutivo (processo que o homem compartilhou, em alguns momentos, com outros animais a ele próximos); e os condicionamentos sociais, em que o homem é também, desde sempre, inserido. O espaço da liberdade humana é definido, nos interstícios desses dois condicionamentos. O homem é, portanto, ao mesmo tempo e de forma indissolúvel, um ser natural e um ser social, e será sempre difícil definir o que é natural e o que é social ou cultural, no homem, à medida que o processo de humanização cria, para o homem, uma “segunda natureza”. Esta é resultado da 210 socialização, dos processos da criação da cultura, linguagem. A segunda natureza é uma metáfora para delimitar esta passagem do homem biológico para o homem que cria a linguagem e relações que produzem um corte entre nossa espécie e as outras. Nesse sentido, a relação entre agressividade e violência é qualitativa. O homem, como ser biológico, traz a agressividade na sua constituição, mas a passagem desta para a violência depende da intencionalidade para fins da consciência do eu, da negação da alteridade do outro, ou negação de si, como é o caso do suicídio70. Segundo Bourdieu (2009), o conceito de violência simbólica é instaurado pela cultura e pelas estruturas sociais; Birman (2009) utiliza esse conceito, para contrapor violência simbólica e violência real, que é da ordem da transgressão. Sendo assim, a violência é parte constitutiva da estrutura social e tem seus aspectos de construção e organização da temporalidade e sentido, na História. A divisão da violência em simbólica e transgressora é apenas uma maneira de analisar. A simbólica instaura a coesão grupal, mas geralmente exerce-se de maneira negativa contra grupos e classes sociais diferentes, os que Elias vai denominar de “estabelecidos e outsiders”. Já a violência transgressora estabelece-se contra uma ordem simbólica, podendo ser individual ou grupal. No momento que se instaura uma violência simbólica, já existe a condição de possibilidade de uma violência transgressora, que pode ser negativa ou positiva. Quando restringe-se a utilizar da transgressão para ferir, subjugar, cercear a liberdade, abusar, matar, corromper, a violência transgressora é negativa, por negar a alteridade. Quando defende direitos, preserva a dignidade do indivíduo, ajuda a romper com uma violência simbólica opressora para instaurar uma ordem mais justa, a violência transgressora apresenta-se como condição de possibilidade para uma condição humana mais adequada. Dentro desta perspectiva, Girard (2008) analisa a violência nos seus aspectos positivos e negativos, ligando-a à condição do homem como ser do desejo. Damos um passo a mais em nossa pesquisa, quando colocamos a violência sob a óptica de uma complexidade maior, não sendo apenas o negativo do homem. Ao falarmos de crueldade, perversão, ódio, genocídios, da maldade (alegoria mítica), estaremos entrando na dimensão negativa da violência: são máscaras da violência, segundo Birman (2009), Girard e Clastres. O homem possui linguagem, cérebro desenvolvido, utiliza ferramentas, faz trocas sociais complexas, tem capacidade de sentir culpa ou não, elemento fornecido pela linguagem, que torna nossos pensamentos um software gigante em marcas e 70 Para a etologia, como iremos ver, principalmente em autores como De Waal, Wrangham e Peterson, existiria intencionalidade e consciência em alguns primatas não humanos. Este tema é controverso, pois não leva em consideração o processo de hominização e diferenças fundamentais com outras espécies de primatas. 211 sinais. O homem, pelo menos, tem consciência do que é o bem e mal. O chimpanzé, por exemplo, para De Waal (2007), apresenta uma moral, mas pré-linguística. Bonobos podem superar humanos em gestos nobres, mas estão além do bem e do mal. Estudos recentes de alguns etólogos parecem indicar que a moral não é apanágio do homo sapiens, mas a perversidade e crueldade sim, a consciência da violência sim. Ao comer uma presa, ao perseguir um opositor, um leão não pensa: é um ato de violência, que aparenta ser cruel e, perverso, para nós, mas que o leão apenas faz: uma agressão para além do bem e do mal. Na nossa conclusão, a violência não pode ser interpretada apenas como “o negativo”, mas como o que constroe e possibilita a criação de cultura, sociedades, e relações entre os homens. Poder e violência não são sinônimos, embora não possa existir um poder sem violência, pelo menos a violência legítima do Estado de Direito. Hobbes define o poder individual como os meios de que presentemente dispõe para obter qualquer visível bem futuro, podendo ser natural ou instrumental. Não podemos detectar, em Hobbes, apenas uma relação do poder com dominação, coação, violência; o poder também é reputação, prudência que pode levar à paz, à eloqüência, à nobreza e à beleza, que contribuem para paz. O poder soberano, pode inclusive garantir a vida e a paz entre os homens: a solução para a guerra e a violência em Hobbes passa pela criação do Estado, que precisa exercer um poder efetivo. Neste caso, quando o poder serve para mudar as relações entre os homens, não é o negativo, porque acarreta a violência, mas também cria saber e novas maneiras de subjetivação humana. Neste trabalho, utilizamos o conceito de poder numa dimensão mais próxima a que Foucault, na Microfísica do Poder (1982), lhe deu, distanciando o tema do aspecto unicamente repressivo, mostramos também uma conotação mais positiva. O poder pode destruir, humilhar, negar a alteridade do outro, mas pode também criar, opor-se à violência e apresentar alternativas de paz e resolução de conflitos. O poder é também criação de saber, resolução de conflitos, resiliência, que é a capacidade de resistir e se reinventar diante das adversidades. Seguindo Rousseau, podemos afirmar que a perfectibilidade humana, este desejo de criação e superação é uma componente do poder humano. Temos ainda o conceito de poder simbólico de Bourdieu, que remete a estruturas culturais, institucionais, de crenças e linguagem que servem para constituir o social, como já citamos. Vamos finalmente tentar desfechar nossas conclusões e responder as questões colocadas no inicio do trabalho. Para isso, pontuaremos os seguintes aspectos: Dentro do corpo do ser vivo existem genes que interagem com o ambiente. A nossa espécie tem um diferencial, podemos chamar metaforicamente de 1% de genes, que nos 212 separam dos chimpanzés e dos bonobos, mas estes 1% significam algo de novo, um corte. A linguagem, a complexidade do cérebro e consequentemente do desejo, o bipedalismo, que libera as mãos para atividades manuais e construção de ferramentas: assim nos tornamos humanos. Somos diferentes, mais complexos, e criamos culturas variadas, temos a capacidade de inventar e reinventar a nós mesmos, trazemos a tendência para o bem e para o mal. Sendo mais explícito: o processo de socialização humana trouxe um ingrediente novo: a violência, fundadora e desconstrutora, simbólica e real. Esta é nossa marca. Ela não opera apenas negando a alteridade do outro e tendo intencionalidade, princípios, meios e fins; constrói também cultura, religião, mitos, a política. Pode servir para mudar uma ordem social para melhor. Não nos deteremos apenas na violência real e transgressora. Não devemos esquecer-nos do gênero masculino, principalmente da tese do macho demoníaco de Wranghan e Peterson. Em relação à estatística, o transtorno anti-social é bem maior em homens, numa proporção de 7 para 3. Em grupos que cometem atos delituosos, há um predomínio do sexo masculino nas chefias e lideranças. Mas esses dados não são conclusivos, e a empiria tem suas armadilhas e erros. Faltam estudos para corroborar que, no gênero masculino, o gene tem importância fundamental, existem as hipóteses hormonais, inclusive com testosterona, mas, biologicamente, precisa-se de estudos para corroborar esta tese. Podemos conjecturar um fenótipo favorável para dominação masculina, já que a sociedade civil é dominada política e economicamente por homens, na maioria dos locais. Hobbes e Rousseau não tocam no assunto de gênero. Sofia, quando aparece, é para ser complemento submissa a Emílio. Mas não podemos escorregar na facilidade destes dados. O gênero feminino pratica também a violência transgressora, pratica atos negligentes, mente, seduz, trapaceia e é conivente com a violência masculina. Existem diferenças de gênero inegáveis, mas não podemos demonizar o homem, nem muito menos a mulher. Eva não é a causa da queda, nem Caim é o protótipo do homem violento. Continuando, com a biotipologia em Hobbes, dividimos os homens em temperados e ígneos, depois aproximamos os ígneos dos anti-sociais. Esta é uma divisão dualística. Precisaria ser aprofundada. Existem traços de temperamentos que seriam responsáveis pela violência? Acreditamos que exista uma predisposição em fatores biológicos, demonstramos estes aspectos no capítulo 4. Ao falar de neurociências, transtorno de conduta e anti-social, percebemos fatores genéticos que predispõe à falta de empatia, por exemplo, como é o caso do anti-social. Podemos conjecturar, então, que a estrutura social utiliza-se de algumas pessoas com determinados tipos de traços de personalidade. Os ígneos, por exemplo, seriam 213 mais interessantes numa sociedade competitiva e de pouca cooperação, assim como o antisocial, a criança com transtorno de conduta. Psiquiatrizar é um caminho fácil. Não enxergamos o todo e a sociedade se aproveita destas predisposições. A agressividade é biológica, pode ser alterada por estrutura do cérebro, por genes, por acidentes que danifiquem o cérebro. Torna-se mais intensa, foge ao controle. Existe, porém, um longo caminho para transformar este quantum de agressividade em violência. Podemos conjecturar que, mesmo um antissocial precisa de um ambiente que estimule competição, falta de empatia, egoísmo, individualismo, para manifestar os traços herdados geneticamente. Demos outro passo, constatamos que o problema não reside apenas no indivíduo, mas nos grupos. A sociedade pode ser o palco de uma guerra contínua, alianças, disputas, que se estendem entre as nações. Os grupos aonde a crueldade, o excesso de violência, a falta de culpa, o desejo desenfreado de poder, a vaidade e a vanglória imperam, tendem a dominar? Não podemos reduzir tudo, à relação senhor e escravo, como quer Nietzsche. Podemos até concordar que os escravos, ou os outsiders de Elias, são ressentidos e clamam vingança. Daí vem a luta contínua, em todas as esferas. O Estado é só o palco, o intermediador destas lutas, geralmente a favor dos estabelecidos, ou de amigos. Neste tempero, xenofobia, crenças diferentes, estigmas físicos, acúmulo de capital, tudo faz parte do jogo, onde o poder de criação humana faz a diferença. Mas a violência passa, inicialmente, por uma dimensão individual. Não podemos esquecer que tanto em Hobbes, quanto para Girard, o desejo humano é o princípio condutor da violência. Existem transgressores homicidas e suicidas; abusadores e praticantes de bullying. Estes se engajam em grupos, mas esta não é condição necessária. Um franco atirador pode responder pelos atos sem precisar do grupo. Um serial killer geralmente é um indivíduo isolado. E a educação, tão propalada em Rousseau? Convivemos hoje com o fenômeno bullying. Algumas escolas se parecem com o estado de natureza hobbesianos, ou, parodiando Rousseau, a sociedade civil degenerada. Como diz Lebrun (2008, p. 120), vivemos numa época de explosão do conceito de hierarquia, principalmente no Ocidente. Pequenos tiranos florescem. O fenótipo está propício à formação de lobos, ou melhor, ígneos, anti-social, condutopatas. A sopa da bipolaridade forma temperos fortes com o lado chimpanzé do homem, utilizando a metáfora de De Waal. Temperados bonobos só assistem? Emílios são vítimas de bullying? O medo paralisa temperados e Emílios em suas casas, na Internet, de onde não estão salvos, pois a Internet hoje é um meio para prática da crueldade. Mas cresce uma consciência ecológica, aliado à preservação dos direitos humanos. Não podemos dizer 214 que nesta parábola, os temperados apenas assistem e se amedrontam. Reagem e tentam instaurar outra ordem de violência simbólica. De Waal fala de resolução de conflitos, Matt Ridley de cooperação e trocas, alianças. Talvez seja o caminho, tentar negociar uma probabilidade menor de danos. Temperados, Emílios, defensores dos direitos humanos podem construir uma sociedade melhor. Não a paz, mas, um outro estado de situações, onde, a violência seja limite e lei, cooperação e distribuição de rendas, diminuição de privilégios e respeito à alteridade do outro. Este é o caminho. Falamos de resolução de conflitos, de resiliência, de cooperação e empatia. A violência real pode ser barrada, até porque acreditamos que o homem se reinvente sempre, e tente se aproximar da perfectibilidade tão propalada por Rousseau. Rousseau e Hobbes trazem luzes. Cada um no seu momento histórico. O Leviatã tenta instaurar uma trégua na guerra de todos contra todos, domesticar o homem. Busca preservar a vida, que no século XVII, valia pouco. Era uma época de mudanças, guerras, formação do Estado moderno, pestes e outras epidemias, mortalidade alta. Hobbes percebeu que a violência do Leviatã podia frear a violência transgressora deste estado de coisas. Rousseau viu na educação da criança um caminho e na vontade geral uma solução para instituir uma ordem da eticidade, através de um tipo de violência que freiasse o individualismo, o egoísmo e a crueldade individual. Tudo começa na infância, inclusive a esperança. Nem bons, nem maus, nem lobos ou bom selvagens. O homo sapiens é um agregado de crueldade, bondade, perversão, egoísmo, cooperação, uma cadeia de probabilidades. Mas somos a única espécie que não estagna, aprende, cria, inventa. Rousseau prefigurou este fato. Hobbes foi mais pessimista. Temos a empatia, um instinto que faz com que percebamos o outro e nos coloquemos no seu lugar. Esta chave é fundamental para nossa espécie. Rousseau acredita que instintos como piedade, amor-de-si, cooperação e empatia façam parte da “verdadeira” natureza humana. A sociedade é quem desvirtua esta natureza, a artificializa, gerando pequenos tiranos. Mas sociedade e violência são produto humano, e podemos modificar nosso destino. A perfectibilidade humana, a moralidade e sentimentos de empatia podem dar um rumo diferente a esta sociedade. Neste aspecto, concordamos com Rousseau. Em Hobbes temos uma passionalidade humana que só se curva com o poder da espada. Infelizmente Hobbes não desenvolveu a biotipologia do homem temperado e como estes podem modificar a sociedade. Acabou criando uma visão dualista, e nesta, os ígneos prevaleceram. 215 Resumindo: este é nosso mundo. A violência é nossa criação. Mas podemos fazer dela muitas coisas. Podemos transformá-la, administrá-la, coibi-la, limitá-la. Faz parte da natureza humana, ser violento e agressivo, mas temos a violência que constrói, coloca limites e ajuda a estruturar laços sociais, assim como temos a violência que explora, aniquila a alteridade e instaura o caos. Se, por contingência, como diz Rousseau, nos tornamos violentos sob o aspecto negativo, podemos mudar o rumo da história. O primeiro passo é reconhecer a nossa criação, e tal como uma criança aprender a brincar com ela, tornando-a mais inofensiva e menos ameaçadora. As questões colocadas neste trabalho tiveram respostas: as respostas de Hobbes e de Rousseau são diferentes. Este é um ponto central: em Hobbes a natureza humana não pode ser modificada, apenas escondida atrás de uma máscara. Será que o medo é suficiente para mudar a natureza humanas, será que o a criação do progresso e da civilização mudam a natureza humanas ou oferecem uma trégua até que volte o estado de natureza com as guerras civis, ao menor descuido do soberano? Hobbes, em sua obra, não acredita na possibilidade de uma modificação profunda da natureza humana, tanto que, para criar o artifício do Estado, cria um ser metade homem, metade máquina, que só se dobra pelo poder da espada, de um Estado forte, que impõe sua força pelo medo, o mesmo medo que faz o homem tentar sair do estado de natureza. Rousseau acredita na possibilidade de mudança, para isso o homem deve passar por um processo educativo que modifique os erros produzidos pela sociedade e crie as condições de possibilidade para uma sociedade pautada na ética e na cooperação. Rousseau acredita numa natureza humana que tenha a potencialidade para piedade e cooperação. Ao colocar em relevo a perfectibilidade humana, abre a condição de possibilidade para a formação de um sujeito ético e coletivo. Hobbes é mais pessimista, na realidade, desconfia na possibilidade do homem mudar, a não ser através de um poder externo e coercitivo e movido pelo medo. Rousseau acredita na educação, na formação do homem desde a infância, onde os abusos da sociedade civil são corrigidos. Esta capacidade de modificação, da busca pela perfectibilidade, nos faz aproximar nossas conclusões de Rousseau. A moral, a razão, a piedade, fazem com que o homem tente modificar a socialização corrupta e injusta, criando um estado ético. Se analisarmos em detalhes os dois autores, Rousseau tenta fornecer soluções para mudanças, acreditando na capacidade humana de se aperfeiçoar e partindo do pressuposto que temos instintos naturais que favorecem a cooperação e a moral. Em Hobbes se nota uma visão 216 mais determinista e conservadora. Mas, mesmo dentro desta perspectiva, o medo faz o homem tentar a criação do Estado. A violência simbólica instaurada por este, é fruto de um pacto entre os homens. Hobbes viveu no século XVII, e não podemos esquecer, como diz Magalhães (2006), tentou dar respostas a questões históricas. Mesmo com a passionalidade humana, a violência no estado de natureza, Hobbes viu uma saída no medo. Podemos questionar este medo, mas ele ainda encontra-se presente hoje. O medo é uma estratégia para justificar uma posição pessimista no homem. Mas não podemos fechar Hobbes neste aspecto. Acreditamos que a resposta que deu tem seu valor histórico, mas hoje podemos também ver em Hobbes um pensador cujo determinismo não pode ser simplificado. Alguns aspectos do seu pensamento não foram devidamente desenvolvidos, como a esperança, a biotipologia ígnea, a presença de instintos de empatia, que hipoteticamente pode estar presente nos temperados. De uma maneira geral, sua visão pode conduzir a um conceito de natureza humana determinístico, aonde o homem é movido por paixões, principalmente a vontade de poder. Em relação à violência, Hobbes propõe soluções. E neste aspecto devemos refletir sua mensagem que é bem atual: como criação do homem, a violência só pode ser modificada pelo homem. Se tentarmos ver uma dupla face na violência, associando inclusive aspectos negativos e positivos, é porque temos, como criadores, várias direções para a violência e Hobbes viu no Estado absolutista uma resposta. A lição de Hobbes e de todos os realistas pessimistas tem validade para qualquer momento histórico: ele nos alerta sobre a possibilidade de uma irrupção do estado de natureza, porque a natureza humana e as suas paixões não mudam radicalmente, mas são simplesmente controladas pelo Soberano e compatibilizadas através da força com as paixões dos outros. É verdade, porém, que há sim uma mudança, porque desta maneira se criam as condições para uma vida civil, para a cultura, o progresso, as artes, mas è algo sempre precário que pode ruir a qualquer momento, basta que o soberano perca a sua capacidade de manter a ordem e a paz: o estado de natureza está sempre à espreita! Em Rousseau, temos, principalmente no Emilio, uma dialética de interação criança adultos que mostra a gênese da formação da personalidade, na relação com a sociedade, representada pelos cuidadores (pais, preceptores, amas-de-leite). Desta relação podem surgir pequenos tiranos ou cidadãos. Em Rousseau, podemos até hipotizar uma agressividade natural na criança, que deve ser canalizada e direcionada na construção da moral, da empatia e da 217 cooperação. Apesar da complexidade do seu pensamento, podemos extrair um núcleo aonde não existe determinismo. O homem tem o poder de mudar seu destino e se reinventar. A sociedade, assim como a violência, são produtos do homem, mas Rousseau acredita que temos instintos, como a piedade, que pode nos fazer colocar no lugar do outro. A moral é uma potencialidade que a sociedade pode contribuir para desenvolver ou não. Para Rousseau temos uma natureza que, a principio, é piedosa e traz a moral como potencial. É um aspecto que poderíamos dizer biológico. A “segunda natureza” é criação da sociedade. Nesta segunda natureza temos os preconceitos, o egoísmo, a disputa, a violência transgressora. Rousseau propõe todo um processo educativo e mudança na interação criança e cuidadores para modificar os aspectos negativos da violência humana. Neste caso, concluímos que nossa natureza não é fixa, assim como a história, apresenta modificações e transformações que vão depender da estrutura social na qual o homem está inserido em determinado momento. Quanto à violência, ela é social, produto do homem. A agressividade é um instinto, mas não um mal, tem a função de sobrevivência. Mas, quando entramos na esfera da socialização humana, esta agressividade sofre diversas transformações e passa a ser confundida com a violência. A violência é a agressividade que interage com o social; em outros termos: a constituição biológica modificada pelo mundo humano. A partir desta premissa, tentamos dar uma resposta para toda tentativa de naturalizar a violência e confundir agressividade com violência. O nosso trabalho tentou compreender a violência, sua complexidade, e fazer dela uma possibilidade construtiva de colocar uma ordem simbólica permeada pela cooperação e moral coletiva. Recorremos a Hobbes e Rousseau para fechar o trabalho: que o medo não nos faça recuar, mas nos dê a coragem de, pelo menos, compartilhar do sorriso de uma criança, descobrindo o mundo. Um mundo de pequenos construtores e menos de pequenos tiranos. Como chegar a isso? A resposta está em nossas mãos; com a criatividade de uma criança a descobrir o mundo e reinventá-lo. Independentemente das adversidades, a criança sorri e recomeça. A resposta à questão é que, concordando com Rousseau, devemos reinventar a sociedade partindo da socialização das crianças. A natureza humana não é fixa, muda e se transforma através da história. A violência é um produto de nossa socialização. Não podemos negar esta herança. Qualquer tentativa de construir um novo modelo de sociedade mais igualitário deve reconhecer que terá que ser através da violência. Esta é nossa marca para 218 construir ou destruir, para criar grandes civilizações ou sociedades corruptas. A agressividade entra apenas como instinto, não determina nossa natureza. A violência funda a sociedade, mas nada determina que deva ser exercida para destruição e subjugação dos homens, pois nossa natureza é mutável. Após todo este percurso, podemos colocar que as respostas dadas por Rousseau continuam atuais e válidas. Mesmo reconhecendo todas as dificuldades da violência, o homem traz dentro de si a condição de possibilidade de tornar esta mais construtiva, contribuindo assim para modelos de socialização mais igualitários e cooperativos. O resultado da pesquisa aponta um caminho que é, na realidade, um desafio: não podemos escapar da violência. Qualquer mudança na natureza humana deve partir de um processo de criação de limites, instauração da violência para criar uma ordem social mais coletiva e cooperativa. O resultado é um confronto de forças, entre violência como criadora de ordem, disciplina, limites, submissão do individuo ao coletivo e violência como destruidora da ordem, fomentadora da exploração do homem pelo homem, dentro de uma dinâmica social que privilegia grupos contra grupos, indivíduos contra indivíduos, numa lógica que coloca o privilegio de grupos acima dos interesses coletivos. O homem, este sujeito em eterna mutação, pode modificar a história, mas, para isso, tem que utilizar sua própria criação: a violência. É esta inquietante conclusão que chegamos, ao final do nosso percurso. 219 REFERÊNCIAS 1 AUTORES HOBBES, Thomas. Leviathan, or The Matter, Forme and Power of a Commonwealth Ecclesiastical and Civil, introdução de C. B. Macpherson. London-England: Penguin Books, 1985. _______. Man and Citizen (De Homine and De Cive). Garden City-NY: Edited by Bernard Gert, 1998. _______. Leviatã, ou Matéria, Forma e Poder de um Estado Eclesiástico e Civil. 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