ENSINO DE REGÊNCIA: GRAMÁTICA NORMATIVA X

Propaganda
II CONGRESSO INTERNACIONAL DE LINGUÍSTICA E FILOLOGIA
XX CONGRESSO NACIONAL DE LINGUÍSTICA E FILOLOGIA
ENSINO DE REGÊNCIA:
GRAMÁTICA NORMATIVA X VARIAÇÃO
Aline Aurora Guida (CEFET-RJ/UFF)
[email protected]
RESUMO
No âmbito educacional, ainda é presente uma pedagogia, no ensino de língua
portuguesa, voltada para a tradição de que não utilizar o que rege a gramática
normativa está errado. No entanto é importante que a escola entenda que toda língua,
devido a diversos fatores, sofre diversas influências que implicam variação e mudança.
Diante disso, o professor de língua portuguesa não pode se esquivar dessa realidade
linguística. O objetivo deste trabalho é conduzir a reflexão crítica sobre a
sociolinguística educacional e sua efetiva utilização na prática de sala de aula. O papel
da escola, principalmente do professor de língua portuguesa, é promover uma
consciência linguística e não "ensinar" uma metalinguagem tradicional que pouco
coopera para a formação de um pensamento crítico-reflexivo do aluno sobre a própria
língua. Este trabalho procura, pois, levantar algumas reflexões acerca do ensino de
regência verbal e, sobretudo, analisar se os livros didáticos fazem referência apenas ao
registro formal ou se menciona ocorrências coloquiais da língua. Por fim, faz-se
necessário discutir a respeito da importância de um ensino de língua portuguesa
crítico-reflexivo que ultrapasse práticas pedagógicas cuja contribuição à formação
linguística esteja ligada apenas ao ensino da gramática tradicional.
Palavras-chave:
Variação linguística. Ensino de gramática. Sociolinguística educacional. Regência.
1.
Introdução
Apesar de grandes avanços, nas últimas décadas, acerca dos
estudos linguísticos, as investigações acerca da correlação entre
heterogeneidade da língua e ensino de língua portuguesa ainda estão
longe de cessar. A relação entre a sociolinguística e o ensino de língua
tem sido objeto de muitas pesquisas. Apesar desses avanços, sua
aplicação em sala de aula ainda é muito reduzida. Por essa razão, faz-se
necessário, ainda, discutir sobre o tema.
O ensino de língua portuguesa, durante muito tempo, permaneceu
excessivamente submetido à tradição gramatical. No entanto, nos últimos
anos, surgiram algumas críticas concernentes a esse ensino puramente
normativo e algumas reflexões acerca da finalidade da educação
linguística, bem como de seus conteúdos. Verificou-se, pois, que havia
necessidade de uma reformulação dessa educação que se ligasse à nova
realidade educacional do país. Hoje, procura-se buscar práticas
Rio de Janeiro: CiFEFiL, 2016.
417
Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos
pedagógicas que priorizem o ensino da língua materna voltado à
variabilidade tão presente no dia-a-dia a fim de desmistificar a crença de
que só existe uma forma "correta" de falar, de comunicar-se. Por isso, é
importante, em sala de aula, apresentar algumas variantes perfeitamente
justificáveis pela perspectiva sociolinguística.
Os Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa –
PCN (BRASIL, 1997) reforçam a importância e necessidade dos estudos
sociolinguísticos na sala de aula, a fim de propiciar ao professor e ao
aluno reflexões sobre o funcionamento da língua sob as diferentes esferas
de circulação. Nesse contexto, buscam-se novas perspectivas para as
práticas de ensino de língua materna como: a abordagem da variação
linguística; o combate ao preconceito linguístico; e a reformulação da
concepção de erro.
Com essas abordagens, o professor consegue se desvencilhar da
visão arraigada do ensino metalinguístico e do conceito dicotômico de
certo/errado, bem como melhorar a percepção do aluno sobre a língua,
ou seja, melhorar sua capacidade de compreensão e expressão,
principalmente, em situações de comunicações seja escrita, seja oral.
Apesar da importância de haver uma atividade linguística que
priorize a reflexão, é fato que a escola precisa, também, levantar questões
gramaticais em seus diversos níveis – fonético-fonológico,
morfossintático e semântico – e dar condições ao aluno de dominar a
norma padrão da língua, variedade de prestígio na sociedade, para que
ele ascenda socialmente.
No entanto o ensino da língua portuguesa apresenta-se, muitas
vezes, inadequado e improdutivo no que diz respeito à questão
gramatical. Em alguns casos, a gramática é ensinada de forma
descontextualizada e, meramente, centrada na metalinguagem e na
memorização das nomenclaturas arraigadas.
Em meio a essa situação, alguns estudiosos têm priorizado o
ensino dos conteúdos gramaticais com base na variação e no
funcionamento da linguagem. Procuram, pois, analisar as ocorrências
concretas de uso da língua para depois atribuir funções e regras,
diferentemente do ensino tradicional que reduz a língua e limita a
capacidade de reflexão do aluno.
Diante de muitas contribuições advindas de estudos linguísticos,
busca-se, aqui, analisar como o livro didático aborda tais questões. Será
418
Cadernos do CNLF, vol. XX, nº 03 – Ensino de língua e literatura.
II CONGRESSO INTERNACIONAL DE LINGUÍSTICA E FILOLOGIA
XX CONGRESSO NACIONAL DE LINGUÍSTICA E FILOLOGIA
que ele segue essas inovações linguísticas? Que concepção de língua ele
transmite? Não podemos deixar de considerar o papel do livro didático e
como os conteúdos são nele configurados já que, na maioria das vezes,
funciona como um suporte para as aulas de língua portuguesa.
Com base na relevância da variação linguística nas aulas de língua
materna e nos PCN, que buscam o desenvolvimento da competência
comunicativa, o presente trabalho procura tecer algumas reflexões de
como os livros didáticos trabalham o fenômeno da variação linguística
no que se refere à regência verbal.
2.
A sociolinguística e o ensino de língua portuguesa
O homem é um ser linguístico e social. Essa ideia corresponde,
principalmente, à interação com seus iguais, fato essencialmente fundado
na linguagem e pela linguagem. É, principalmente, por meio dela, que o
homem se torna um ser cognoscitivo, pensante, social e interativo.
Partindo dessa proposição, é importante destacar que língua e sociedade
não podem ser imaginadas de forma dissociada. Com base nessa
premissa, surgem os estudos referentes à sociolinguística, desenvolvidos
por volta da década de 1960, nos Estados Unidos e no Canadá, cujo
objetivo é a descrição da relação entre os fatos linguísticos e os fatos
sociais. O princípio básico da sociolinguística é o de que a língua sofre
variações e deve ser vista segundo a sua relação com a sociedade;
procura, portanto, estudar a língua em uso, dados os contextos sociais
reais em que é utilizada.
Durante anos, pesquisadores buscam estudar a língua e seu
funcionamento variável. Os diferentes falares impulsionam a necessidade
de entender os motivos que influenciam as variações linguísticas
existentes. As línguas são mutáveis, portanto estão sujeitas a mudanças e
transformações tanto no âmbito lexical e fonético quanto no
morfossintático. Sabe-se que o fenômeno da variação pode estar
vinculado a três fatores: o geográfico, o sociocultural e o situacional. A
sociolinguística é uma parte da linguística que objetiva investigar as
relações existentes entre língua/ linguagem e sociedade, a partir desses
fatores mencionados. Enquanto a gramática normativa prescreve
conceitos baseados na existência do “erro”, a Sociolinguística descreve
os fatos linguísticos, sem que se defina o que é certo ou errado. Para a
sociolinguística, o que interessa é a adequação das variantes linguísticas,
uma vez que o falante pode expressar-se de acordo com a sua localização
Rio de Janeiro: CiFEFiL, 2016.
419
Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos
geográfica – denominada variação diatópica; de acordo com a situação de
fala – variação diafásica; e de acordo com o nível socioeconômico, a
variação diastrática.
Para a sociolinguística, a língua é dinâmica e apresenta diferentes
formas, as quais não são vistas como desvios da língua, mas sim como
construções que devem ser respeitadas. Algumas construções observadas pela sociolinguística - são contrárias às regras das gramáticas
normativas, como ocorrem com alguns casos, por exemplo, de regência
verbal. O verbo assistir, por exemplo, no sentido de ser espectador,
passou a ser empregado na linguagem coloquial como transitivo direto, e
pode haver até a construção passiva como mostra Celso Pedro Luft no
exemplo: “o jogo foi assistido”. Cabe ao falante fazer uso da língua de
forma mais adequada a cada situação comunicativa. Sobre isso,
defendem os Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa
– PCNLP (1997, p. 26)
A questão não é falar certo ou errado, mas saber qual forma de fala
utilizar, considerando as características do contexto de comunicação, ou seja,
saber adequar o registro às diferentes situações comunicativas. É saber
coordenar satisfatoriamente o que falar e como fazê-lo, considerando a quem e
por que se diz determinada coisa. É saber, portanto, quais variedades e
registros da língua oral são pertinentes em função da intenção comunicativa,
do contexto e dos interlocutores a quem o texto se dirige. A questão não é de
correção da forma, mas de sua adequação às circunstâncias de uso, ou seja, de
utilização eficaz da linguagem: falar bem é falar adequadamente, é produzir o
efeito pretendido.
O trabalho reflexivo com a sociolinguística nas aulas de língua
materna pode contribuir, portanto, para reduzir um olhar discriminatório
sobre a língua. Não devemos limitar a língua com uma classificação
simplista de que algo é “certo” ou “errado” e condenar determinadas
construções inseridas em certa situação social só pelo fato de outras
pessoas inseridas em um contexto mais formal não a fazerem. A língua
empregada pelas minorias em diferentes níveis de formalidade não deve
ser um paradigma para os demais. O falante deve ter, portanto, o direito
de escolher a melhor forma de se expressar e não usar apenas a variante
recomendada pela prescrição normativa tradicional que estigmatiza todas
as demais formas. Nesse sentido, Stella Maris Bortoni-Ricardo (2004, p.
8) prefere falar em diferenças, uma vez que o conceito de erro está
ultrapassado; a maioria das construções consideradas erros são, na
verdade, usos diferentes em cada contexto de emprego da língua.
420
Cadernos do CNLF, vol. XX, nº 03 – Ensino de língua e literatura.
II CONGRESSO INTERNACIONAL DE LINGUÍSTICA E FILOLOGIA
XX CONGRESSO NACIONAL DE LINGUÍSTICA E FILOLOGIA
Enfatiza-se aqui a questão de que a prescrição normativa deveria
ser baseada nas questões socioculturais e não meramente linguísticas.
Podemos inferir que o papel do professor de língua portuguesa é,
também, examinar os casos, no uso real, que se distancia da gramática
normativa tradicional e avaliá-los segundo o seu funcionamento
linguístico.
3.
A variação linguística nos livros didáticos
O livro didático é ainda um forte instrumento de apoio utilizado
pelo corpo docente nas escolas, pois ele apresenta de forma organizada
os conteúdos programáticos que o professor precisa seguir. De acordo
com Marcos Bagno (2007), os livros didáticos obtiveram um eminente
avanço com a criação do Programa Nacional do Livro Didático
(PNLD)55, uma vez que começaram a reconhecer, sobretudo, aceitar as
contribuições de educadores e linguistas voltados para uma nova
educação que, segundo o autor, serviram para a elaboração de uma
política linguística.
Apesar disso, o tratamento da variação linguística nos livros didáticos
continua sendo um tanto problemático. A gente percebe, em muitas obras,
uma vontade sincera dos autores de combater o preconceito linguístico e de
valorizar a multiplicidade linguística do português brasileiro. Mas a falta de
uma base teórica consistente e, sobretudo, a confusão no emprego dos termos
e dos conceitos prejudicam muito o trabalho que se faz nessas obras em torno
dos fenômenos de variação e mudança. (BAGNO, 2007, p. 119)
Em se tratando, portanto, do questionamento levantado nesta
pesquisa, estariam ou não os livros didáticos abordando a questão da
variação linguística no que concerne ao estudo da regência verbal? Será
que os alunos estão tendo contato, por meio dos livros didáticos, com
outras possibilidades de uso dos verbos além do que é instituído pela
gramática normativa?
Para isso, constitui-se, neste trabalho, um corpus formado por três
livros didáticos do 3º ano do ensino médio, que são 56:
PNLD foi criado em 1996 pelo Ministério da Educação, cujo objetivo é avaliar, comprar e distribuir
os livros didáticos nas instituições de ensino.
55
Escolhemos os referidos livros porque são os mais utilizados em sala de aula, tanto na rede
privada, quanto na pública – todos indicados pelo Programa Nacional do Livro Didático – PNLD.
56
Rio de Janeiro: CiFEFiL, 2016.
421
Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos
1
Português – Contexto, Interlocução e Sentido – Maria Luiza
Marques Abaurre et al.;
2
Novas Palavras – Emília Amaral et al.;
3
Língua Portuguesa: Linguagem e Interação – Carlos Emílio
Faraco, Francisco Marto de Moura e José Hamilton Maruxo
Júnior.
Em relação à gramática, como disciplina, vale ressaltar que se faz
necessário ensinar a gramática e o seu uso para que os alunos possam de
maneira eficiente não só compreender a língua como também fazer bom
uso dela. No entanto muitos docentes, ao tratar do estudo gramatical,
priorizam apenas o ensino da metalinguagem como se esta fosse o
reconhecimento automatizado da forma e da função linguística.
Para Carlos Eduardo Falcão Uchôa (2007), o grande objetivo do
professor é o de conduzir o alunado a diversificar seus recursos
expressivos, a partir de sua própria linguagem. Dessa forma, a prática
dessa diversidade de ocorrências gramaticais acontecerá de forma
natural, e o aluno conseguirá transferir essa pluralidade linguística para
sua vida social.
O livro didático de língua portuguesa deve, portanto, garantir que
os alunos tenham contato com as variantes linguísticas de forma a não as
considerarem como ‘erros’ ou ‘desvios’, mas sim de forma a entenderem
que “todas as variedades de uma língua têm recursos linguísticos
suficientes para desempenhar sua função de veículo de comunicação, de
expressão e de interação entre seres humanos”. (BAGNO, 2005, p. 25)
Ao buscar um objeto de preocupação dos estudos variacionistas,
escolhemos a questão da regência verbal a fim de investigarmos se há
alguma menção sobre a diferença entre a prescrição normativa e a
variação. Em outras palavras: se o livro didático apresenta ao aluno o
português culto e o português coloquial contemporâneo.
4.
A regência verbal nos livros didáticos: gramática normativa ou
adequação?
Constatamos que todos os livros escolhidos iniciam o capítulo
intitulado “regência verbal”, com uma sucinta explicação sobre regência
– que trata da “relação de dependência estabelecida entre um verbo e seu
complemento”. (HERNANDES et al., p. 245)
422
Cadernos do CNLF, vol. XX, nº 03 – Ensino de língua e literatura.
II CONGRESSO INTERNACIONAL DE LINGUÍSTICA E FILOLOGIA
XX CONGRESSO NACIONAL DE LINGUÍSTICA E FILOLOGIA
No livro Novas palavras, os autores deixam claro que o estudo de
regência precisa ser feito com um comparativo entre a gramática
normativa e a adequação à situação de uso. Apresentam as duas
possibilidades de construções, por exemplo, do verbo IR (Quando o ser
humano irá a Marte? / Quando o ser humano irá em Marte?) e afirmam
que "uma determinada regência de um verbo pode ser adequada em um
contexto e ser inadequada em outro". (AMARAL et al., 2009, p. 272)
Considerando-se que o objetivo deste trabalho é o de analisar o
tratamento da variação na regência verbal, em três livros didáticos do 3º
ano do ensino médio, procura-se apresentar, no primeiro momento,
algumas atividades selecionadas para o estudo e, no segundo momento,
os comentários e/ou análise.
4.1. Língua Portuguesa: Linguagem e Interação – Carlos Emílio
Faraco et al.
Atividade (p. 220)
Nas frases que seguem, não se obedeceu à variedade padrão da língua.
Reescreva em seu caderno, utilizando outra possibilidade de regência do verbo
implicar.
a) "Viagem do presidente implica em risco políticos".
(http://vestibular.uol.com.br)
b) "O aquecimento da atividade econômica implica em problemas para a
trajetória de inflação". (http://vestibular.uol.com.br)
Após análise da parte teórica e das atividades propostas - no livro
didático Língua Portuguesa: Linguagem e Interação –, constatou-se que
os autores trabalham apenas conteúdos gramaticais com base em "regras"
preconizadas pela gramática normativa. Não há, no decorrer do capítulo
de regência, nenhuma referência à sociolinguística apesar de o assunto
estar inserido no tópico "Língua – análise e reflexão".
Prevalecem, pois, atividades mecânicas, como reescritura de
trechos na variedade padrão, de forma a coibir ou anular a possibilidade
de o aluno refletir sobre os possíveis usos da preposição e da regência
verbal, como se a língua fosse estática e homogênea. Percebe-se, com
isso, uma visão limitada sobre a língua em conformidade com as variadas
situações comunicativas.
Rio de Janeiro: CiFEFiL, 2016.
423
Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos
4.2. Novas Palavras – Emília Amaral et al.
Atividade (p. 277) (UFS Car-SP) Considere a tirinha abaixo.
Na situação comunicativa em que se encontram, os personagens velem-se
de uma variedade linguística marcada pela informalidade. Reescreva as
frases a seguir, adequando-as à norma-padrão, e justifique as alterações
realizadas.
a) "Onde ele foi?" e "Vai onde for preciso!"
b) "Você conhece ele..." e "A gente tem camisa pra frio?"
No livro didático Novas Palavras, destaca-se aqui algo positivo
em relação à abordagem do assunto regência verbal. Os autores, na parte
teórica, mencionam a importância de se estudar a regência verbal com
base não só nos conceitos normativos, como também na adequação à
situação de uso. Os autores separam alguns verbos em dois grupos:
o primeiro desses grupos é constituído por verbos que apresentam
determinada regência na variedade padrão e outra na variedade coloquial; o
segundo é formado por verbos que, na variedade padrão, apresentam mais de
uma regência. (AMARAL et al, 2013, p. 273).
Do primeiro grupo, destacam os verbos assistir (=ver), ir, chegar,
obedecer, desobedecer, pagar, perdoar, preferir, visar (=objetivar).
Diferentemente do que ocorreu no livro anterior, neste percebeuse, ainda que de forma sucinta, que há referência à variedade coloquial
ou popular tanto na exposição teórica quanto nas atividades apresentadas.
Podemos observar isso com o uso das expressões "situação
comunicativa", "variedade linguística marcada pela informalidade"
presentes no enunciado na atividade supracitada. Nesse momento, o
aluno já passa a perceber que, numa situação informal de fala, a língua
apresenta uma variante diferente daquela ditada pela gramática
normativa.
424
Cadernos do CNLF, vol. XX, nº 03 – Ensino de língua e literatura.
II CONGRESSO INTERNACIONAL DE LINGUÍSTICA E FILOLOGIA
XX CONGRESSO NACIONAL DE LINGUÍSTICA E FILOLOGIA
Vale destacar que os autores não afirmam que é uma inadequação
ou "erro" de regência apesar de ser uma questão de reescritura para
norma padrão. Pode-se inferir, pois, que o professor, com essa atividade,
pode levantar reflexões sobre a heterogeneidade da língua e a noção de
adequação e inadequação à situação comunicativa conforme procura
defender a sociolinguística e não somente a ideia de conceitos de "certo"
e "errado".
Nas demais atividades, percebeu-se o cuidado em elaborar
enunciados que levassem o aluno a refletir sobre o fenômeno da variação.
Pode-se notar isso com o enunciado "baseando-se nas respostas aos itens
b e c, faça uma hipótese para explicar por que, principalmente, na língua
falada, o verbo preferir aparece acompanhado de expressões
comparativas". (AMARAL et al., 2013, p. 277)
Para mostrar que ocorre variação na regência de alguns verbos, os
autores fizeram uso de diferentes gêneros para compor as questões, como
tira e reportagem de jornal. Com isso, já se pode notar uma leve
preocupação com o uso da língua em diferentes situações
sociocomunicativas, já que o texto jornalístico, por ser modalidade
escrita, requer uma variante formal, ao passo que a tira se aproxima da
língua oral, portanto é aceitável uma variante coloquial.
4.3. Português – Contexto, Interlocução e Sentido – Maria Luiza
Marques Abaurre et al.
Atividade 1 (p. 292)
Rio de Janeiro: CiFEFiL, 2016.
425
Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos
Atividade 2 (p. 293)
1- Segundo as regras da gramática normativa, há uma inadequação de
regência verbal em uma das perguntas de Calvin. Transcreva no caderno o
enunciado em que essa inadequação ocorre.
a) Reescreva esse enunciado adequando-o às regras da gramática
normativa.
b) Explique em que consiste essa inadequação.
2- Por que o contexto de ocorrência torna aceitável a estrutura sintática
utilizada por Calvin?
Após fazer análise do recorte teórico e das atividades - propostas
no livro didático Português – Contexto, Interlocução e Sentido –,
constatou-se que, apesar da referência teórica à variação linguística, as
autoras trabalham os conteúdos gramaticais com mais foco nas "regras"
ditadas pela gramática normativa. Não há, no decorrer do capítulo de
regência, reflexão crítica sobre sociolinguística. As referências feitas à
variação linguística são superficiais como podemos observar nas únicas
notas intituladas "De olho na fala".
Uma construção muito frequente com o verbo esquecer, em contextos
informais, é o resultado da combinação das suas duas regências. Em lugar de
dizerem "Esqueci os compromissos" ou |"Esqueci-me dos compromissos", as
pessoas dizem "Esqueci dos compromissos". Embora seja aceitável em um
uso coloquial, deve ser evitado em contextos formais.
Já se tornou corrente no português oral a forma implicar em. Raras são as
pessoas que observam a regência desse verbo em situação informal de fala.
Porém, tanto na fala quanto na escrita, em contextos mais formais, deve-se
observar a regência do verbo, que é transitivo direto e, portanto, liga-se a seu
complemento sem auxílio de preposição. (ABAURRE, 2013, p. 291)
Vale destacar que, embora as autoras façam referência a contexto
formal e informal, nas notas mencionadas, as atividades não extrapolam
426
Cadernos do CNLF, vol. XX, nº 03 – Ensino de língua e literatura.
II CONGRESSO INTERNACIONAL DE LINGUÍSTICA E FILOLOGIA
XX CONGRESSO NACIONAL DE LINGUÍSTICA E FILOLOGIA
as possíveis situações de uso da língua. O curioso é que as autoras
escolhem, como texto base para as atividades, o gênero tira que se
apropria da fala na sua construção e não aproveitam para mostrara língua
e sua funcionalidade nas diferentes situações de uso. Ao contrário,
afirmam, nos enunciados, que há uma inadequação de regência verbal e
pedem que seja corrigida. Em apenas uma alternativa, resolvem levantar
a questão do contexto discursivo, como se pode ver no enunciado "Por
que o contexto de ocorrência torna aceitável a estrutura sintática utilizada
por Calvin?".
No geral, percebe-se que o estudo sobre a variação linguística –
nos livros didáticos – não contribui significativamente para que o aluno
compreenda e perceba a língua como um ato social. Compreende-se,
portanto, que os livros didáticos, aqui analisados, não estão totalmente
em consonância com os estudos linguísticos, especialmente, com os
sociolinguísticos, assim como se afastam bastante de um dos objetivos do
Guia do PNLD (MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, 2010, p. 22), o qual
destaca a necessidade de se “abordar os diferentes tipos de
conhecimentos linguísticos em situações de uso, articulando-os com a
leitura, a produção de textos e o exercício da linguagem oral”.
5.
Considerações finais
Desde que os estudiosos começaram a priorizar o ensino de língua
portuguesa com um viés sociovariacionista, houve avanços nas análises
das ocorrências concretas de uso da língua. O ensino tradicional que
reduz a língua e limita a capacidade de reflexão do aluno deixou de ser
uma prioridade.
No entanto, constatou-se, neste trabalho, que, em vista de o
professor, muitas vezes, se apoiar no livro didático – no qual há um
silenciamento quanto à importância de se estudar a língua dentro dos
mais variados contextos comunicativos –, o ensino de língua materna
continua sem um aprofundamento no que se refere à teoria da variação
linguística.
Os livros didáticos analisados, embora indicados pelo PNLD, não
se coadunam com as finalidades definidas pelo programa para o ensino
de língua portuguesa. Por essa razão, não podem ser suficientes para a
prática pedagógica do professor, pois se faz necessário um estudo mais
aprofundado sobre a língua para que não haja uma limitação no processo
Rio de Janeiro: CiFEFiL, 2016.
427
Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos
de ensino/aprendizagem. Percebe-se, pois, com esta pesquisa, que o livro
didático não pode ser o único instrumento norteador da prática docente,
uma vez que se constatou que a variação linguística recebe um
tratamento muito superficial em comparação com o destaque atribuído à
gramática normativa. Essa omissão quanto à diversidade linguística
implica prejuízos no desenvolvimento da competência comunicativa do
aluno por não permitir que compreenda a relação entre língua e
sociedade.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ABAURRE, Maria Luiza Marques; ABAURRE, Maria Bernadete
Marques; PONTARA, Marcela Nogueira. Português – Contexto,
Interlocução e Sentido. São Paulo: Moderna, 2013.
AMARAL, Emília; FERREIRA, Mauro; LEITE, Ricardo Silva;
SEVERINO, Antônio. Novas Palavras. São Paulo: FTD, 2013.
BAGNO, Marcos. Português ou brasileiro? Um convite à pesquisa. São
Paulo: Parábola, 2001.
______. A língua de Eulália: uma novela sociolinguística. São Paulo:
Contexto, 2005.
______. Nada na língua é por acaso: por uma pedagogia da variação
linguística. 2. ed. São Paulo: Parábola, 2007.
BORTONI-RICARDO, Stella Maris. Educação em língua materna: a
sociolinguística na sala de aula. São Paulo: Parábola, 2004.
BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Fundamental.
Parâmetros curriculares nacionais: língua portuguesa. Brasília: MEC/
SEF, 1997.
FARACO, Carlos Emílio; MOURA, Francisco Marto de; MARUXO
JÚNIOR, José Hamilton. Língua Portuguesa: Linguagem e Interação.
São Paulo: Ática, 2013.
LUFT, Celso Pedro. Dicionário prático de regência verbal. 8. ed. São
Paulo: Ática, 2005.
NEVES, Maria Helena de Moura. Que gramática estudar na escola?
Norma e uso na língua portuguesa. São Paulo: Contexto, 2006.
428
Cadernos do CNLF, vol. XX, nº 03 – Ensino de língua e literatura.
II CONGRESSO INTERNACIONAL DE LINGUÍSTICA E FILOLOGIA
XX CONGRESSO NACIONAL DE LINGUÍSTICA E FILOLOGIA
______. Ensino de língua e vivência de linguagem: temas em confronto.
3. ed. São Paulo: Contexto, 2006.
PNLD 2011. Guia de livros didáticos. Língua portuguesa. Brasília:
Ministério da Educação, Secretaria de Educação Básica, 2010.
TRAVAGLIA. Luiz Carlos. Gramática e interação: uma proposta para o
ensino de gramática no 1º e 2º graus. 2. ed. São Paulo: Cortez, 1997.
UCHÔA, Carlos Eduardo Falcão. O ensino da gramática: caminhos e
descaminhos. Rio de Janeiro: Lucerna, 2007.
Rio de Janeiro: CiFEFiL, 2016.
429
Download