PDF - Universidade São Judas Tadeu

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UNIVERSIDADE SÃO JUDAS TADEU
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM
FILOSOFIA
ALEXANDRE MATIAS SILVA
DO DEVER SER AO SER:
A LIBERDADE POLÍTICA EM ROUSSEAU
Dissertação de Mestrado apresentada ao
departamento
de
Filosofia
da
Universidade São Judas Tadeu, sob
orientação do Prof. Dr. Paulo Jonas de
Lima Piva.
SÃO PAULO
2014
AGRADECIMENTOS
Primeiramente a Deus, pelo dom da vida e da fé.
À minha amada esposa Rosana, pelo apoio, amor, cumplicidade, fé e
compreensão. Não foram poucas as horas furtadas de seu convívio, contudo juntos
compartilhamos esta pesquisa, eu mergulhado nos livros, ela em apoio silencioso a
passar nossas roupas nas duras horas da noite. Amor amadurecido, forjado em aço,
lutas, choros e alegrias.
A meu pequeno e muito amado filho Leon. Obrigando-me a ser sempre
melhor que fui ontem.
Aos amados, pais Matias e Cida, irmãs Lilian e Sabrina, cunhados Marcio,
Edi, Rosinha, Canto, Rogério e Patrícia e sobrinhos Lara, Maria Clara, Theo, Lu e
Elder,
pelo constante interesse, preocupação, perguntas e vibração sobre meu
mestrado.
Meu orientador Paulo Jonas de Lima Piva, verdadeiro filósofo e professor,
pela maneira democrática, livre, inteligente e estimulante que conduziu segura e
serenamente nossa pesquisa, ensinando-me a extrair o máximo de cada leitura.
Minha irmã Lilian e meu paciente e muito presente professor José Norberto.
Fundamentais em seu apoio técnico e precioso conhecimento. Vitais na conclusão
desta pesquisa. Soberanos em suas respectivas áreas do saber.
Ao corpo docente da Universidade São Judas Tadeu.
A banca que me avaliou. Figuras verdadeiramente honradas.
Ao velho Rousseau, influência perene.
RESUMO
O objetivo central desta dissertação é analisar e desenvolver uma reflexão sobre o
tema da liberdade política no pensamento do filósofo genebrino Jean-Jacques
Rousseau (1712-1778), tendo como base as elaborações teóricas e práticas sobre a
questão nas suas obras políticas capitais, tanto no campo do dever ser, isto é, o
trabalho conceitual, político e pedagógico de Emílio e no Contrato Social, ambos de
1762, e também os seus desdobramentos práticos ou, em outros termos, no campo
do ser, nas obras Considerações sobre o governo da Polônia publicado em 1782 e
seu Projeto de Constituição para a Córsega publicado em 1861, nos quais o
genebrino dedica-se a mediar seus conceitos com a experiência concreta e histórica
como um legislador.
Palavras chave: Rousseau; liberdade; educação; igualdade.
ABSTRACT
The main objective of this dissertation is to analyze and develop a reflection about
the theme political freedom in the Genevan philosopher Jean-Jacques Rousseau
(1712-1778) thought, based on the theoretic and practical elaborations about the
question on his political capital titles, as on “ought” field, that it is, the conceptual,
political and pedagogical work of Émile and On Social Contract, both from 1762, and
their practical explanation as well or, in other words, the “is” field, in the titles
Considerations on the Government of Poland published in 1782 and his Constitutional
Project for Corsica published in 1861, in which the Genevan dedicated to mediate his
concepts with solid and historical experience as a legislator.
Keywords: Rousseau; freedom; education; equality.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ........................................................................................................ 7
CAPÍTULO I – EMÍLIO OU A PREPARAÇÃO DA LIBERDADE POLÍTICA ........ 27
1.1. Emílio, um aluno para a liberdade. ................................................................. 30
1.2. A idade da natureza ....................................................................................... 33
1.3. Educação negativa ......................................................................................... 36
1.4. Educação da natureza ................................................................................... 37
1.5. Rousseau, aprendiz de liberdade ................................................................... 39
1.6. Emílio e a escolha de seu ofício ..................................................................... 41
1.7. Emílio e o Contrato Social: o tema da liberdade ........................................... 43
1.8. Religião e liberdade no Emílio ........................................................................ 46
1.9. Sofia, amor e liberdade .................................................................................. 47
1.10. Emílio e Émile e Sophie ou os solitários e a liberdade ................................ 52
CAPÍTULO II – DO CONTRATO SOCIAL OU A LIBERDADE POLÍTICA EM
PARADIGMA ........................................................................................................ 56
2.1. A liberdade no livro V do Emílio: a semente do Contrato Social .................... 56
2.1.2. A viagem de Emílio ..................................................................................... 57
2.2. O Contrato Social legitimo .............................................................................. 62
2.2.1. A liberdade como valor inalienável .............................................................. 64
2.2.2. Contrato Social e a liberdade natural .......................................................... 65
2.2.3. O soberano e a liberdade ............................................................................ 67
2.2.4. Forçado a ser livre ....................................................................................... 68
2.2.5. Contrato Social: a liberdade civil como garantia .......................................... 70
2.2.6. O legislativo e a liberdade ........................................................................... 72
2.2.7. Representação política: ilusão de liberdade ................................................ 75
2.2.8. Vontade Geral: a liberdade em ação ........................................................... 77
CAPÍTULO 3 – CÓRSEGA E POLÔNIA: A LIBERDADE POLÍTICA NA PRÁTICA,
A LIBERDADE POSSÍVEL. .................................................................................. 80
3.1. A Córsega ...................................................................................................... 80
3.2. O projeto de Constituição para a Córsega ..................................................... 81
3.3. A importância da agricultura ........................................................................... 85
3.4. Regime de governo ........................................................................................ 87
3.5. A liberdade ..................................................................................................... 89
3.6. A experiência polonesa .................................................................................. 91
3.7. Da educação ................................................................................................ 100
3.8. As leis da Polônia ......................................................................................... 105
3.9. A simplicidade como valor fundamental ....................................................... 107
3.10. A defesa militar ........................................................................................... 108
3.11. Os reis e a liberdade .................................................................................. 112
3.12. A conclusão do projeto para a Polônia ....................................................... 114
3.13. A dialética Rousseauniana ......................................................................... 115
CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................ 119
BIBLIOGRAFIA .................................................................................................. 129
7
INTRODUÇÃO
A liberdade como uma necessidade vital, encontramos já entre os animais,
sobretudo entre os mais selvagens deles. La Boétie, no século XVI, em seu Discurso
sobre a servidão voluntária, de 1548, descreve de maneira interessante este fato:
O que quer dizer o elefante que, depois de se defender até mais não poder,
sentindo-se impotente e prestes a ser apanhado, espeta as presas nas
árvores e as quebra, assim mostrando o grande desejo que tem de
continuar livre como nasceu? Assim dá a entender que deseja negociar com
os caçadores, dando-lhes os dentes para que o soltem, entregando-lhes o
marfim em penhor da liberdade ( LA BOÉTIE, 2003, p.32).
Nascido em 1530, no Périgord, França, e falecido precocemente em 1563,
Étienne de La Boétie produziu uma defesa apaixonada da liberdade ao denunciar o
que ele denominou “servidão voluntaria”, a qual estariam submetidos todos os
homens.
De um ponto de vista tanto liberal quanto libertário ou republicano, se
quisermos, é possível associar a valorização da liberdade por parte de La Boétie, de
certa maneira, às reflexões de Jean-Jacques Rousseau, particularmente ao seu
célebre Contrato Social, de 1762, quando este filósofo expressa sua concepção de
poder soberano. Nesse sentido lemos ainda em La Boétie:
Agora gostaria apenas de compreender como é possível acontecer,que
tantos homens, tantos burgos, tantas cidades, tantas nações, suportem às
vezes um único tirano, que só tem o poder que lhe outorgam; que não tem
poder para ofendê-los, senão que tenham o poder de suportá-lo; que não
saberia fazer-lhes mal algum, senão que prefiram suportá-lo a contradizê-lo”
(LA BOÉTIE, 2003, p.26).
No século XVI tendo em mente a questão da liberdade, La Boétie investiga no
seu Discurso sobre a servidão voluntária as razões que levariam cidades e nações
inteiras a se submeterem ao comando de um só individuo. Leiamos:
Mas, oh, bom Deus! O que pode ser isso? Como o denominaremos? Que
desgraça é essa? Ou que vício? Ou, antes, que vício infeliz? Ver um
número infinito de homens não obedecer, mas servir, não serem
governados, mas tiranizados, não terem nem bens, nem pais, nem filhos,
nem a própria vida a lhes pertencer! (LA BOÉTIE, 2003, p. 26).
É possível reconhecer a importância desta análise política mesmo que dois
séculos antes de Rousseau, talvez antecipando importantes questões que um dia
8
também seriam tratadas pelo genebrino, como a concentração de poder dos
governos. Nesse sentido declara mais uma vez La Boétie:
Há três espécies de tiranos: uns conquistam o reino através da eleição do
povo, outros pela força das armas, outros pela sucessão da raça” (La
BOÉTIE, 2003 p.33).
Ao ler La Boétie em seu Discurso sobre a servidão voluntária é possível
pensar que, o homem por força do hábito, desaprendeu como é ser livre, e por
conseqüência, aceitou passivamente a servidão voluntária.
O objetivo principal desta dissertação é investigar e explicar a concepção de
liberdade política em Jean-Jacques Rousseau, filósofo genebrino, nascido em 28 de
junho de 1712 e falecido em 2 de julho de 1778. Rousseau é reconhecidamente um
autor de diversas obras e nestas tratou dos mais diversos temas ligados ao
conhecimento humano. Sua teoria política exerceu e ainda exerce profundas
reflexões em seus leitores, neste campo alguns temas merecem destaque, como a
liberdade, muito presente em sua obra política. Para isso, nossa investigação será
organizada em três capítulos, além de sua conclusão que encerra o trabalho.
Na obra política de Rousseau a noção de liberdade pode ser considerada
complexa. Desta forma, o genebrino emprega os termos liberdade civil e liberdade
política com sentidos próximos. Em nossa pesquisa, como demonstra seu título
usaremos a terminologia liberdade política, pois acreditamos que seu sentido mais
amplo torna mais adequado a compreensão da liberdade propriamente dita e por
nos objetivada. Em nossas considerações finais procuraremos melhor esclarecer a
questão.
No primeiro capítulo trataremos da liberdade presente em sua obra
denominada Emílio ou da educação, escrito por Rousseau em 1762. A abordagem
da liberdade nesse capítulo se fará pela perspectiva da autonomia que goza Emilio,
assim, não se restringindo unicamente à liberdade política. Trata-se da liberdade
presente no processo de desenvolvimento e aprendizagem. Por se tratar de uma
obra pedagógica e política do genebrino, será investigada a relação que a obra tem
com o contrato social pensado normativamente por Rousseau, além de sua relação
com a liberdade política.
9
Será reservado ao segundo capítulo da dissertação o estudo e a reflexão
sobre a liberdade dentro do Contrato Social. Nesta obra, Rousseau faz uma análise
no “nível normativo” do “dever ser” de uma sociedade baseada na participação
popular e na liberdade. Investigaremos o papel que a liberdade exerce dentro deste
contrato e suas características.
O terceiro capítulo investigará a dimensão prática da concepção de liberdade
de Rousseau ao estudarmos as Considerações Sobre o Governo da Polônia e o
Projeto de Constituição da Córsega, publicados respectivamente em 1782 e 1861.
Aqui procuraremos demonstrar qual o papel da liberdade política em Rousseau no
plano prático, uma vez que em tais obras Rousseau posicionou-se, lembrando
Maquiavel, dentro da “verdade efetiva das coisas”.
As Considerações Finais procuram retomar a discussão presente na
introdução e encerra o presente texto.
A investigação da liberdade política percorrendo tanto o Emílio quanto o
Contrato Social em nosso entender se faz imprescindível, pois, já no livro V do
Emílio Rousseau começa a desenvolver a liberdade que seria mais bem trabalhada
em seu Contrato Social. O genebrino tratou da liberdade em diversos momentos de
sua vasta obra política, contudo seu Emílio e o Contrato Social formam um itinerário
praticamente obrigatório para a melhor compreensão da liberdade pensada e
defendida pelo genebrino, razão de nossa escolha para os primeiros dois capítulos
desta dissertação. A concepção de liberdade em Rousseau ao longo dos séculos
XIX e XX encontrou diversas interpretações, de liberais a marxistas, passando
também por anarquistas;Rousseau foi lido, debatido, comentado e, sobretudo,
criticado.
No seu Contrato Social, Jean-Jacques Rousseau nos apresenta um modelo
de pacto fundado na liberdade política e na igualdade entre os indivíduos. Pode-se
pensar que esta obra em sua integralidade se relaciona com a questão da liberdade,
pois como escreveu Rousseau (1996, p.70), “O homem nasceu livre e por toda a
parte se encontra sob grilhões”. Para Rousseau, uma sociedade será justa quando
os indivíduos forem livres politicamente, ou seja, participando de forma ativa na
elaboração das leis.
10
Rousseau nutria profundo respeito pela liberdade, tinha nela um valor
praticamente sagrado, não admitindo sua alienação, pois sua renúncia importava
perder a condição humana, como afirmou.
A liberdade pensada por Rousseau tem levantado controvérsias entre
filósofos e comentadores, sendo até mesmo considerado um inspirador do
totalitarismo.
Cientes das dificuldades existentes no estudo da liberdade em Rousseau,
destacaremos nesta introdução quatro diferentes abordagens sobre o assunto, com
a intenção de demonstrar a diversidade e complexidade existentes na teoria política
de Rousseau. Primeiramente os liberais com a crítica proferida por Benjamin
Constant em seu texto A liberdade dos antigos comparada à dos modernos serão
seguidos por Isaiah Berlin, filósofo Letão e critico de Rousseau; Loius Althusser,
filósofo argelino, Galvano Della Volpe, pensador italiano e o brasileiro Carlos Nelson
Coutinho que formam a perspectiva marxista, na sequência do texto, para
encerrarmos a introdução, a visão anarquista de Patrizia Piozzi, professora da
Universidade Estadual de Campinas e George Woodcock, estudioso canadense do
movimento anarquista.
Liberalismo, Marxismo e Anarquismo constituem perspectivas distintas para
um exame de um mesmo objeto, a teoria política e a liberdade em Rousseau. O
filósofo de Genebra ao estudar a complexa questão da liberdade em pleno século
XVIII causou indignação na sociedade de sua época, o que lhe valeu desconfortos e
perseguições, influenciando inclusive os jacobinos durante a Revolução Francesa.
Faremos agora a análise do texto Da liberdade dos antigos comparada à dos
modernos de Benjamin Constant, escrito em 1819, do pensador liberal nascido em
1767 e falecido em 1830.
Benjamin Constant procurou fazer uma comparação entre a liberdade que
tinham os povos antigos, em especial em Esparta e Roma e a liberdade ideal nos
povos modernos. Argumenta que a liberdade Individual era a verdadeira liberdade
moderna, não sendo possível qualquer tipo de restrição a ela.
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Para Constant, o controle e a vigilância exercidos pelas antigas repúblicas
gregas e romanas em relação a seus cidadãos estariam longe de criar um cenário
republicano e democrático, ao contrário, teriam efeitos funestos convertendo-se em
verdadeiras tiranias, como se lê:
Em Esparta, Terpandro não pode acrescentar uma corda à sua lira sem
ofender os Éforos. Mesmo nas relações domésticas a autoridade intervinha.
O jovem lacedemônio não pode livremente visitar sua jovem esposa. Em
Roma, os censores vigiam até no interior das famílias. As leis
regulamentavam os costumes e, como tudo dependia dos costumes, não
havia nada que as leis não regulamentassem (CONSTANT, 1985, p.1).
Ao observar a maneira rígida do modelo de liberdade nas repúblicas de
Esparta e Roma, Constant argumenta que os antigos eram soberanos em questões
públicas, mas escravos em assuntos privados. Para Constant o objetivo dos antigos
era a partilha do poder social como representação maior de sua liberdade, porém
com os modernos, a liberdade se limita à segurança dos privilégios privados. Pela
leitura de Constant é possível afirmar que a liberdade das Repúblicas de Roma e
Esparta foi totalmente voltada à participação política, criando, porém, uma
submissão do cidadão ao corpo político, além de anular por completo qualquer traço
de individualismo. Como podemos perceber, Constant é radical na defesa da
liberdade e da independência privada:
Conclui-se do que acabo de expor que não podemos mais desfrutar da
liberdade dos antigos a qual se compunha da participação ativa e constante
do poder coletivo. Nossa liberdade deve compor-se do exercício pacífico da
independência privada (CONSTANT, 1985, p.3).
Interessante perceber que Esparta e Roma, cultuadas no texto por Constant,
são enaltecidas por Jean-Jacques Rousseau em sua obra, sobretudo no Discurso
sobre as ciências e as artes publicado em 1750, como lemos:
Tal foi, também. a própria Roma, nos tempos de pobreza e de ignorância;
tal se mostrou até nossos dias esta nação rústica, tão enaltecida pela sua
coragem, que a adversidade não pôde abater, e pela sua fidelidade, que o
exemplo não pôde corromper (ROUSSEAU, 1983, p.338).
Prossegue Rousseau em sua defesa de Esparta:
Oh! Esparta, eterno opróbio de uma doutrina vã! Enquanto os vícios levados
pelas belas-artes se introduziam conjugados em Atenas, enquanto um tirano
lá reunia, com tanto cuidado, as obras do príncipe dos poetas, tu
escorraçavas para fora de teus muros às artes e os artistas, as ciências e os
sábios! (ROUSSEAU, 1983, p, 399).
12
Em seu texto e de forma respeitosa Constant objeta Rousseau, porém
reconhece a inteligência e seu amor pela liberdade, todavia alerta para os
desastrosos
pretextos
tirânicos
derivados
do
pensamento
rousseauista.
Curiosamente, quanto a Montesquieu, Constant (1985, p.4) foi generoso,
observando ser possuidor de “espírito observador e cabeça menos ardente” . É
possível afirmar que o ponto de divergência entre estas perspectivas de liberdade
entre Rousseau e Constant reside na crença daquele que tudo deveria ceder frente
a vontade coletiva e que todas as restrições aos direitos individuais seriam
largamente compensadas pela participação no poder social, já Constant coloca-se
como defensor intransigente da liberdade individual. Constant também não poupa e
é até mais contunde nas críticas dirigidas a Gabriel Bonnot (1709-1785), conhecido
como abade de Mably, assim escreveu:
Aliás, não é a Rousseau, como veremos, que se deve principalmente
atribuir erro que vou combater: ele pertence muito mais a um, de seus
sucessores, menos eloqüente, mas não menos austero; e mil vezes mais
exagerado. Este, o abade de Mably, pode ser considerado o representante
do sistema que, conforme as máximas da liberdade antiga quer que os
cidadãos sejam completamente dominados para a que a nação seja
soberana, e que o indivíduo seja escravo para que o povo seja livre.
(CONSTANT, 1985, p.4).
Para Constant, a constituição do Estado e suas instituições, mesmo que
garantissem a participação popular acabaria por impedir a liberdade individual, fato
inaceitável nos tempos modernos vividos por Constant:
Devemos desconfiar Senhores, dessa admiração por certas reminiscências
antigas. Se vivemos nos tempos modernos, quero a liberdade que convêm
aos tempos modernos; se vivemos sob monarquias, suplico humildemente a
essas monarquias de não tornar emprestados às repúblicas antigas meios
de oprimir-nos (CONSTANT, 1985, p.5).
Constant considera que, do ponto de vista do homem moderno, a liberdade
dos antigos soa como uma forma de despotismo, pois a liberdade política implicava
automaticamente na renúncia da liberdade individual. Possuindo a participação
política importância, desde que não gerasse prejuízos às atividades cotidianas como
o comércio tão enaltecido por Constant. Dentro desta perspectiva, a necessidade de
tempo para o exercício da liberdade individual justificaria a representação, pois a
liberdade política dos antigos demandava muito tempo destinado a coisa pública:
Daí vem Senhores, a necessidade do sistema representativo. O sistema
representativo não é mais que uma organização com a ajuda da qual uma
13
nação confia a alguns indivíduos o que ela não pode ou não quer fazer
(CONSTANT, 1985, p. 6).
Por sua vez, e em sentido oposto, Rousseau argumentou que a
representação enfraquecia o poder soberano, transformando os cidadãos em
verdadeiros escravos:
A soberania não pode ser representada pela mesma razão que não pode
ser alienada; ela consiste essencialmente na vontade geral, e a vontade não
se representa: ela é a mesma ou é outra, não são nem podem ser
representantes, são apenas comissários; nada podem concluir
definitivamente. Toda lei que o povo em pessoa não ratificou é nula, não é
uma lei. O povo inglês pensa ser livre; está muito enganado, pois só o é
durante a eleição dos membros do parlamento; tão logo estes são eleitos,
ele é escravo, é nada. Nos curtos momentos de sua liberdade, o uso que
faz dela mostra bem que merece perdê-la (ROUSSEAU, 1983, p.107).
Quanto à censura, tratada por ambos em suas obras, Constant a vê como
uma espécie de vigilância moral e ineficaz para a criação de bons costumes,
contrariamente à posição rousseauista defendida no livro quatro do Contrato Social.
É possível afirmar que o genebrino e Benjamin Constant nutriram uma
verdadeira preocupação com a liberdade no Estado, mas divergiam em método, pois
Rousseau em seu republicanismo não concebia o cidadão como um ser individual e
isolado, enquanto Constant preservava a liberdade individual como valor inalienável.
Ainda dentro da perspectiva liberal, abordaremos agora um pensador
contemporâneo, Isaiah Berlin que também analisou e julgou Rousseau. Em seu
Rousseau e outros cinco inimigos da liberdade, publicada em 2002, Berlin assim
como Constant entende que há uma verdadeira intenção de Rousseau em
apresentar um pacto social fundado na liberdade, contudo, diverge quanto ao
alcance pensado
pelo
genebrino
e
vislumbra
resultados nefastos e até
contraditórios, assim escreveu Berlin (2002, p.51): “como conciliar o desejo de
liberdade dos homens com a necessidade de autoridade?”.
Para Berlin, há um dilema não solucionado na concepção de liberdade
Rousseauista, pois, como seria possível um indivíduo torna-se livre à medida que
está associado a outros, e consequentemente impedido de fazer tudo quanto
realmente desejar?
Para Berlin, não há nada de inovador no pensamento de Rousseau acerca da
liberdade, mero raciocínio dedutivo apresentado de forma convincente:
14
O seu conceito de liberdade e o seu conceito de autoridade são muito
diferentes dos pensadores anteriores e, embora empregue as mesmas
palavras, atribui-lhes um conteúdo muito distinto. Isto, na realidade, poderá
constituir um dos grandes segredos da sua eloqüência e da sua tremenda
eficácia, ou seja, embora pareça dizer coisas não muito diferentes das dos
seus antecessores, utilizando o mesmo tipo de frases e, aparentemente, os
mesmos conceitos de forma tal que produzem um efeito eletrizante no leitor.
(BERLIN, 2002, p.53).
Berlin chama a atenção para a obsessão de Rousseau pela liberdade ser
intensa a ponto de incapacitá-lo de fazer concessões ou ajustes em sua proposta,
em suas palavras:
Para Rousseau, a idéia em si mesma de fazer concessões à liberdade, de
se dizer “ bem, não podemos ter liberdade total porque isso conduziria à
anarquia e ao caos; não podemos ter autoridade absoluta, porque isso
conduziria à subjugação total dos indivíduos, ao despotismo e a tirania;
temos por conseguinte, de traçar a linha alures entre elas, de chegar a um
raciocínio” – este tipo de raciocínio é totalmente inaceitável. (BERLIN, 2002,
p.54).
Por esta perspectiva conclui-se que esta posição de Rousseau acabaria por
criar uma situação despótica, dado o seu caráter quase religioso, sagrado e até
mesmo fanático, tratando da liberdade de maneira rígida e autoritária.
Berlin demonstra certa perturbação com a ideia de associação defendida por
Rousseau, que acaba por tornar o cidadão livre como nunca fora antes, assim
lemos:
Isto seguramente confere um paradoxo, uma forma apropriadamente
paradoxal. Como podemos simultaneamente unirmos a outras pessoas,
fundando uma forma de associação que tem de exercer um certo grau de
autoridade, de coerção, muito diferente de ser inteiramente livre ou solitário
num estado de natureza – e, ainda assim, continuarem livres, ou seja, não
obedecermos a essas mesmas pessoas? (BERLIN, 2002, p.59).
Para Berlin, Rousseau nutria um amor desmedido por paradoxos; não
bastasse isso, o genebrino possuía soluções simplistas e até ineficazes para a
solução do conflito entre liberdade e autonomia, apelando para questões como
“amor de si” e virtude.
Quanto à vontade geral presente no Contrato Social, Berlin entende possível
apenas para homens da mesma condição de natureza, ou seja, não escravizados
pelo medo, não intimidados, não desviados de sua verdadeira natureza, daí se
conclui a impossibilidade da mesma se concretizar.
15
Para Berlin a concepção de “homem natural” pensada por Rousseau estava
equivocada e era fruto de suas vivências, pois o genebrino sofreu complexos de
inferioridade e pobreza na juventude, condenava os ricos, detestava a sofisticação
além de não gostar de círculos restritos e intelectuais, e segundo Berlin, o “homem
natural” de Rousseau era dotado de uma sabedoria instintiva e profunda, muito
diferente daqueles acostumados à sofisticação corrompida das cidades. Esta
espécie de anti-intelectualismo defendido por Rousseau acabou fazendo famosos
herdeiros como Charlyle, Nietzsche, Hitler e até Mussolini, como argumentou Berlin.
Sustenta Berlin (2002, p.74) que a substituição de uma liberdade natural pela
política fora do estado na natureza, mesmo que tornasse o homem livre, este estaria
rigidamente associado a outros, resultando na criação de uma monstruosa estrutura
estatal, por isso, assevera o pensador liberal, que esta concepção de liberdade
pensada por Rousseau teria inclusive influenciado figuras totalitárias, tais como os
Jacobinos, os nazistas, os fascistas e até os comunistas, “ foi um dos mais funestos
e formidáveis inimigos da liberdade em toda a história do pensamento moderno”..
É inevitável a associação do pensamento de Benjamin Constant àquele
defendido por Berlin, ambos pensadores liberais. Defendiam uma liberdade diversa
da praticada outrora por Esparta e Roma e enaltecidas por Rousseau. Se Constant
criticou em sua época os destinos tomados pela revolução Industrial, Berlin em seu
tempo fez as mesmas observações de governos como aqueles liderados por
Mussolini e Stalin, contudo ambos atribuíram a Rousseau a influência destas tristes
experiências.
Na perspectiva marxista, a figura de Louis Althusser, filósofo argelino, falecido
em 1990 merece atenção. Destaca Althusser em seu Política eHistória, de
Maquiavel a Marx, o paradoxo gerado por Rousseau com seu Contrato Social:
...a utopia de Rousseau, ou seja, o tema positivo silencioso, suas
pressuposições filosóficas que animam sua crítica. Donde o paradoxo do
filósofo que no século XVIII só concebeu a teoria mais materialista e mais
dialética da história humana para terminar no idealismo moral do Contrato
Social. Mas esses limites teóricos não passam de limites históricos dos
meios sociais que Rousseau representa: serão os próprios limites da ação
dos jacobinos e de Robespierre.(ALTHUSSER, 2007, p.106).
Ainda em relação ao Contrato Social, Althusser destaca a maneira como
Rousseau tratou o problema da alienação que o individuo faz no contrato, feito não
16
conseguido por Hobbes que vincula o indivíduo ao príncipe ou a uma assembleia,
poder soberano na perspectiva hobbesiana, como destaca o professor marxista:
No entanto, Rousseau ganha alguma coisa com esse status ambíguo da
comunidade. Ele ganha responder ao escandaloso problema representado
pela alienação total dos indivíduos no contrato. Permite acertar as contas
com as objeções e dificuldades de Hobbes, escapando às aporias da
filosofia política clássica. (ALTHUSSER, 2007, p. 381).
Ainda tratando da questão da alienação no contrato rousseauniano,
prossegue Althusser:
Rousseau responde ao problema da alienação total. São os mesmos
homens que figuram duas vezes no contrato. A alienação total é possível e
não contraditória, pois permanece interna. Possível e necessária, porque o
homem só se dá a si mesmo e, por esse fato, não é uma doação gratuita.
Essa alienação é feita em proveito da comunidade, cujos membros são
autores da própria alienação. Nos contratos clássicos, as duas Partes
Contratantes são diferentes, e é um verdadeiro contrato de troca, troca,
aliás, sempre parcial e não total. O individuo só cede uma parte de seus
direitos. Em Rousseau, o paradoxo é que o individuo deve dar tudo pra
receber algo em troca. Para receber esse algo em troca, é preciso que não
haja troca, mas alienação total. (ALTHUSSER, 2007, p. 381).
Ressaltando a primazia da soberania popular no Contrato de Rousseau,
ponto nuclear da teoria do genebrino, diferenciando-a da teoria hobbesiana, afirma
Althusser:
_ Problema das relações entre o Príncipe e Povo e do conflito possível. É
esse conflito entre as duas partes quais uma não é contratante, já que o
Príncipe não se comprometeu a nada perante o Povo.. Tudo isso é diferente
em Rousseau. É próprio do contrato excluir qualquer alienação na
exterioridade, fora do contrato. O contrato é firmado com uma segunda
Parte Contratante que é constituída por ele, que, em vez de ser exterior a
PC1, é idêntica a ela. Portanto, os homens se alienam a si mesmos, por
meio de uma alienação interior. O ato do contrato social. (ALTHUSSER,
2007, p. 382).
De maneira enfática e bem ao estilo marxista, Althusser reafirma o papel do
corpo social, advertindo que a democracia é fundamental para o sucesso da teoria
política pensada por Rousseau no seu Contrato:
Para Rousseau todo corpo político implica a legislação do povo pelo povo e
para o povo, mas nem todo corpo político implica o governo do povo por e
para o povo. Somente a democracia satisfaz esse requisito. (ALTHUSSER,
2007, p. 389).
Dessa forma, é possível pensar que o pensador argelino via na teoria política
de Rousseau elementos restauradores e historicamente caros aos marxistas:
17
É preciso eliminar os efeitos da desigualdade econômica, e, no Contrato
social, Rousseau restaura o sonho da independência econômica, capital no
segundo Discurso, anulando todos os efeitos da divisão do trabalho, ou
seja, todos os efeitos da história. (ALTHUSSER, 2007, p. 407).
Também na tradição marxista o filósofo italiano Galvano Della Volpe analisa
algumas questões relacionadas à obra de Rousseau tendo no Marxismo o
referencial, no seu Rousseau e Marx a Liberdade Igualitária, do qual destacaremos
alguns pontos, especialmente no capítulo III, denominado: Crítica Marxista em
Rousseau, tratando especificamente a questão da igualdade política.
Della Volpe procura demonstrar que Marx e parte da tradição marxista bem
como Rousseau pensaram seriamente o problema da desigualdade reinante entre
os homens. Segundo o filósofo italiano, Marx aponta na própria noção de direito a
manutenção da desigualdade entre os homens. Leiamos Marx citado por Lênin:
O direito igual equivale portanto a uma violação da igualdade e é uma
injustiça. Com efeito, cada qual recebe, por parte igual de trabalho social
fornecido, uma parte igual de produto social [...].Em paridade de trabalho e
portanto em paridade de participação no fundo social de consumo - conclui
Marx -, um recebe pois, efectivamente, mais que o outro, um é mais rico que
o outro, etc. Para evitar todas estas dificuldades, o direito deveria ser não
igual mas desigual. (DELLA VOLPE, p.109).
Nesse sentido prossegue Marx na crítica ao direito burguês que atribui
igualmente a homens desiguais:
E no entanto isto não é ainda o comunismo, e não elimina ainda o direito
burguês, que a homens desiguais e para uma quantidade desigual (desigual
de facto) de trabalho atribui uma quantidade igual de produtos [...] (DELLA
VOLPE, p.111).
Como Marx, Rousseau também se dedicou a compreender a delicada
questão que envolve a desigualdade, sendo o resultado principal seu Discurso sobre
a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, publicado em 1755.
Assim, Della Volpe vê a relação de proximidade entre a obra de Rousseau e
Marxismo ao tratar da desigualdade, tendo esse reformulado a dificuldade
enfrentada por Rousseau ao tratar do tema no século XVIII:
Voltemos a Rousseau para ver a solução que ele dá da dificuldade de
estabelecer um concurso proporcional da desigualdade ou diversidade dos
homens com a diversidade entre si ( ou juntamente com as dificuldades civis
instituídas e reguladas pela sociedade); dificuldade reformulada por Marx e
Lenine, inevitável desigualdade dos homens, e resolvida com seu critério
científico de uma sociedade comunista. (DELLA VOLPE, p.111).
18
É possível pensar que a teoria política em Rousseau fundada na igualdade e
liberdade contribuiu para o desenvolvimento de tais questões na tradição marxista a
partir do século XIX. Della Volpe salienta que Marx e Lênin procuraram reformular
questões ou problemas anteriormente tratados por Rousseau em relação à
desigualdade, o que nos dá a medida da importância do genebrino na filosofia e na
política nos séculos posteriores.
Della Volpe, oportunamente, lembra que Marx, Engels, Lênin, e Rousseau
trataram em sua obra do tema da desigualdade, e reconhece a dívida que o
marxismo possui junto ao cidadão de Genebra, leiamos:
Desta seqüência de textos de Lenine-Marx, Engels e Rousseau podemos
inferir que a extrema atenção posta pelo marxismo-leninismo no problema
de reconhecimento econômico-proporcional, por parte da sociedade
(comunista), das desigualdades ou diferenças dos indivíduos e suas
capacidades e necessidades, exprime – num novo plano histórico – a
continuidade e o desenvolvimento do pensamento igualitário antinivelador
de Rousseau. Por outras palavras, parece difícil contestar que – através do
abismo de métodos que separa o espiritualismo e o moralismo humanitário
e de direito-natural de Rousseau, por um lado, e o materialismo histórico do
critério da luta de classes, por outro – é o problema capital de Rousseau –
ou seja, que “tudo consiste em não deteriorar o homem da natureza [o livre
indivíduo] ao adaptá-lo à sociedade” (A nova Heloísa,V,8) -, é esse
problema que a hipótese científica suprema da fase definitiva do comunismo
reformulada para poder resolve-lo. (À parte a questão, que veremos, da
consciência histórica que marxismo-leninismo teve sua dívida para com o
igualitarismo de Rousseau) (DELLA VOLPE, p. 113).
Na forma de síntese o filósofo italiano considera o socialismo científico pronto
a enfrentar o problema da desigualdade, porém reconhece a importância de
Rousseau e sua obra preparando o caminho para a tradição marxista:
Pode concluir-se a propósito o seguinte: 1. Que o socialismo científico está
em condições de resolver com o seu método materialismo aquele problema
de uma igualdade universal e também mediadora de pessoas que foi
descoberto pelo moralista humanitário Rousseau com a sua concepção
igualitária-antiniveladora da pessoa humana: isto é, de um reconhecimento
social dos méritos e possibilidades desiguais de todos os homens mediante
os correspondentes serviços proporcionais prestados por cada um ao
Estado. (DELLA VOLPE, p. 113).
Por fim, ressalta o pensador italiano a forte influência de Rousseau para o
socialismo científico:
2. que nesta solicitude última do socialismo científico pelo valor da pessoa
humana se revela, indubitavelmente, a herança cristã que lhe foi transmitida
por Rousseau principalmente (mas quam mutatus ab illo!) (DELLA VOLPE,
p. 113).
19
Encerrando a perspectiva marxista de autores que lidaram com a obra de
Jean-Jacques Rousseau, abordaremos o artigo do professor Carlos Nelson
Coutinho, intitulado Critica e utopia em Rousseau, publicado em 1996.
Coutinho entende o Contrato Social como uma proposta utópica e alternativa.
É importante destacar que o genebrino não teve a pretensão de produzir um manual
programático ao escrever o Contrato. Como bem observou Coutinho, o Contrato
Social, escrito em 1762, encontra-se no “nível normativo” do “dever ser”, assim, seu
Discurso Sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens, de
1755, ao fazer uma análise crítica das desigualdades entre os homens dentro do
contrato histórico estaria situado no nível do “ser”. Nas palavras de Coutinho:
[...] é porque discorda profundamente do “ser” da desigualdade e da
opressão, por ele identificado com societé civile de seu tempo, que
Rousseau propõe o dever ser de uma formação social na qual liberdade e
igualdade se articulam indissociavelmente: a crítica do presente se completa
assim com a proposição de uma utopia alternativa. (COUTINHO, 1996, p.6).
Para Coutinho o filósofo genebrino enxergava no contrato a possibilidade de
articulação entre o público e o privado, e por meio desta sociabilidade haveria uma
evolução na própria individualidade dos homens; assim, este contrato não se
limitava a garantir a mera sobrevivência humana individualista por meio do
despotismo. Para Rousseau o homem poderia ser responsável pela criação de
condições favoráveis para boa convivência social em sociedade.
Carlos Nelson Coutinho destaca o fator “antropológico” na visão contratual de
Rousseau, ou seja, haveria um estágio intermediário no processo de socialização
situado entre o estado natural e o estado civil, desta forma, a transição do estado da
natureza para o civil não se dá de forma automática ou brusca. É possível afirmar
que tal estágio intermediário nos remete ao estado de guerra de que fala Hobbes e
no caso de Rousseau antecede o estado civil.
É possível pensar que a viabilidade do contrato pensado por Rousseau passa
necessariamente por um homem renovado que o integrará, uma vez que o indivíduo
do Contrato Social deverá renunciar qualquer egoísmo individualista, e praticar a
virtude. A “voz interior” ou o “diálogo consigo mesmo” citados no texto de Coutinho
20
são figuras típicas e necessárias em seu contrato, capacitando o homem a interagir
com a autoridade ou lei moral. Acredita-se que com isso, Rousseau reforce sua
crença na bondade natural do homem, já a virtude é tida como qualidade necessária
para a construção de uma República, como argumentou ao longo de seu Discurso
contra as ciências e as artes. Parece-nos importante destacar na leitura do ensaio
de Coutinho a necessidade da renovação da mentalidade humana para a formação
do cidadão do contrato. Em síntese, necessário se faz que o indivíduo renuncie aos
sentimentos individualistas e busque a virtude. Ainda em relação a essa
transformação necessária ao homem do contrato, assim escreve Coutinho:
Tanto no Contrato como no Emílio, Rousseau afirma sua crença na
possibilidade de transformação do homem como resultado dessa sua
plasticidade, transformação que ele coloca explicitamente como condição
para o êxito da sociedade livre e igualitária proposta no contrato
(COUTINHO, 1996, p.10).
Talvez alguns de seus críticos tenham dado pouca importância a este
componente pensado pelo genebrino, mas sua crença no homem e na sua
transformação assume papel vital na construção do contrato social, como escreveu
Rousseau, citado aqui por Coutinho (1996, p.10), “quem enfrenta a tarefa de dar
instituições a um povo deve, por assim dizer, sentir-se capaz de transformar a
natureza humana”.
Argumenta Coutinho que a liberdade em Rousseau manifesta-se mais como
processo do que necessariamente como conceito rígido e deve ser construído e
trabalhado arduamente por meio da práxis. Além desta liberdade política, a crítica à
desigualdade entre os homens é frequente em certas obras de Rousseau, tema que
seria retomado por Marx, cerca de um século depois como observou Coutinho e
demonstra a visão de vanguarda de Rousseau.
Pela análise da obra do genebrino, percebe-se que o fortalecimento do poder
executivo comum no modelo liberal era um risco à liberdade política; o contrato
rousseauniano é fundamentalmente garantidor da liberdade política, ainda que esta
seja de difícil compreensão para alguns comentadores. Coutinho aponta em seu
ensaio um ponto que normalmente gera a incompreensão e suscita controvérsias:
Nas palavras do próprio Jean-Jacques, o de encontrarem uma forma de
associação que defenda e proteja a pessoa e os bens de cada associado
com toda a força comum, e pela qual cada um, unindo-se a todos, obedece,
21
porém apenas a si mesmo, permanecendo assim tão livre como antes
(COUTINHO, 1996, p. 23).
Dentro de uma perspectiva marxista é relevante a constatação de Coutinho
da relação existente entre a perda da liberdade dos indivíduos e a desigualdade:
Na verdade, o que Rousseau critica não é tanto o fato de que os homens
dependam uns dos outros para satisfazer seus carecimentos, mas sim o
modo peculiar pelo qual se dá essa dependência, ou seja, nos quadros da
propriedade privada e da divisão do trabalho. Isso, segundo ele, leva à
perda da autonomia e, por conseguinte, da independência e da liberdade
dos indivíduos (COUTINHO, 1996, p.15).
Coutinho discorda que Rousseau tenha inspirado totalitarismos futuros, mas
que o genebrino tenha como modelo de democracia a Grécia antiga, afastando por
completo qualquer associação entre Rousseau e governos despóticos. A liberdade
política em Rousseau nos remete diretamente ao conceito de vontade geral, jargão
rousseauniano complexo, relacionado com o interesse comum, indispensável no
estado civil. Para que a liberdade seja uma realidade certas condições devem estar
presentes, como a igualdade e a supressão do individualismo, possíveis apenas se
o indivíduo voltar-se totalmente ao interesse comum e assim viver a liberdade
política, pois a liberdade natural foi possível apenas no estado da natureza.
Pela leitura do ensaio de Coutinho é possível concluir que o contrato
rousseauniano esta no campo do dever ser, um verdadeiro paradigma. O termo
utópico usado pelo professor no título de seu artigo não nos parece remeter à
impossibilidade ou a um mero devaneio, podendo ser tal obra política um
contraponto à sociedade burguesa e individualista na qual o próprio Rousseau viveu:
Rousseau, na verdade, é um implacável crítico dessa sociedade a apoiar
sua oposição não numa tentativa de retorno (ou conservação) da ordem
feudal historicamente ultrapassada, mas na utopia de uma sociedade
democrática e igualitária, que ele identifica, no Contrato, como uma
república autogovernada fundada na vontade geral (COUTINHO, 1996,
p.17).
As palavras finais da última citação de Coutinho fornecem a real dimensão
daquilo que representa o contrato social pensado por Rousseau, ou seja, uma
república fundada na vontade geral.
Invoquemos agora uma interpretação que mais do que invocar relações com
o anarquismo coloca Rousseau como um dos precursores das práticas coletivistas e
democráticas proposta por Patrizia Piozzi em seu Os Arquitetos da Ordem
22
Anárquica, de Rousseau a Proudhon e Bakunin publicado em 2003. Para Piozzi
(2003) o contrato de Rousseau poderia ser verdadeiramente uma maneira de
reconquistar a verdadeira liberdade, na obra rousseauniana encontram-se as bases
para a extinção das formas estatais coercitivas e autoritárias numa transformação
radical da forma mentis moderna.
Argumenta a autora que Rousseau se opõe à “razão calculista”, posto que a
ela é responsável por conflitos e desequilíbrios, criticando Hobbes, por atribuir ao
homem natural paixões e cálculos na vida civil, que poderíamos entender como uma
espécie de individualismo inerente. Entende, também, que a proposta de Rousseau
supera o pacto liberal, vez que o individuo torna-se parte integrante do conjunto,
semelhante aos organismos vivos e seus componentes, passando de inteiros a
frações, desta forma vinculada a noção de coletiva e bem comum. Esta visão não
nos remete apenas a uma reformulação jurídica do homem inserido no contrato, mas
também educativa, destaca a autora. Há o papel marcante da questão pedagógica
na obra do genebrino, sendo possível afirmar que se trata de um elemento
indispensável na construção da liberdade e consequentemente influindo diretamente
na formulação do contrato social como possível instrumento.
Piozzi discorre sobre a separação entre as sociedades rudimentares e a
civilização culta na obra de Rousseau, sendo que a primeira possui a imaginação no
mundo real e o coração livre para escutar a voz da natureza, diferente da segunda,
que vive no mundo fantasmagórico criado pela arte, iludidos por privilégios de sua
condição social.
Segundo a professora, no Emílio há um elogio ao trabalho por ser um dever
do homem social; a importância econômica e moral do trabalho e a condenação da
acumulação
do
excedente
antecipam
análises anticapitalistas feitas
pelos
reformadores do século XIX. Piozzi chama a atenção para a preferência que tinha
Rousseau pela simplicidade que poderia inclusive superar os males da sociedade,
possibilitando uma convivência igualitária e cooperativa. Assim, é possível afirmar,
que tanto a austeridade quanto o trabalho são importantes componentes do contrato
e até da teoria política rousseauniana.
23
Pela leitura da obra do genebrino, é possível afirmar que o comportamento
egoísta está totalmente afastado, pois o cidadão do contrato social abdica de sua
liberdade natural em favor da vida coletiva integrando o poder soberano.
Para Patrizia Piozzi a ordem social justa se baseia no equilíbrio entre o
interesse e o dever, garantindo a segurança e prosperidade a todos, no estado civil
é necessário que haja a superação do cálculo egoísta em favor do interesse público.
Mesmo reconhecendo a pureza do homem simples, Rousseau destaca a
importância do governante sábio no poder executivo, sendo possível concluir que a
virtude seja uma exigência indispensável para o magistrado ocupante deste cargo.
A regulamentação da propriedade privada visa impedir que haja uma
diferenciação excessiva do poder econômico, preocupação de Rousseau, em
diminuir os desníveis entre possuidores e despossuídos, buscando um equilíbrio
material, pois é impossível pensar em liberdade no estado de desigualdade.
É possível perceber na obra política de Rousseau, componentes coletivistas e
anárquicos, tais como a preferência pela democracia direta, a dissolução do exército
para uso de milícias compostas por cidadãos e a produção orientada pelas
necessidades reais, suas críticas às formas burocráticas e repressivas de Estado,
além da proposta de gestão autônoma da sociedade, o que confere um caráter
totalmente inovador e libertário ao pensamento de Rousseau.
O processo de educação e esclarecimento presente em Rousseau vai além
da cultura livresca ou do intelectualismo, o que se pretende é o fortalecimento do
corpo político e formação dos cidadãos, sendo interessante destacar, que além da
educação, as festas, solenidades e celebrações no fortalecimento ao sentimento de
pátria assumem um importante papel no sentimento de fortalecimento da pátria.
Para a autora a educação proposta no Emilio revela coerência com a utopia
republicana de Rousseau, onde a soberania é formada pelos cidadãos e assume um
papel central no cenário político, capaz de conciliar igualdade e cooperação, o que
também pode indicar elementos socialistas e democráticos.
A lei produzida pelo soberano e o processo de educação visando a formação
do homem possuem extrema importância como bem destacado por Piozzi, pois se
24
associando o homem deixa de ser uma ilha isolada para se tornar parte de um todo
indivisível.
Por fim, destaca a professora a relação presente entre o pensamento político
de Rousseau e importantes questões que seriam estudadas nos séculos XIX e XX,
como a propriedade privada, liberdade, Estado, escravidão, poder, Estado,
igualdade, democracia direta o que demonstra a importância histórica do genebrino
e seu papel de vanguarda ao antecipar teses socialistas e anarquistas em seus
textos. Ainda assim o texto em questão não nos parece aprofundar a questão da
liberdade política e sua relação com o tema por Piozzi exposto, porém é marcante
no texto a importância que assume a educação no contrato social, bem como o
vanguardismo de Rousseau pelos complexos temas abordados em pleno século
XVIII.
Encerrando a análise no campo do anarquismo, não poderíamos deixar de
abordar, ainda que brevemente, o trabalho de George Woodcock e sua História das
ideais e movimentos anarquistas.
Apesar de Bakunin, Kropotkin, Tolstoi Proudhon e Godwin,
célebres
anarquistas terem sua atuação no século XIX, o movimento anarquista tem uma
origem difusa e mais antiga, não sendo um produto daquele século, como afirma
Woodcock:
Paralelamente a essa busca de Kropotkin por um anarquismo popular,
anônimo e desarticulado, existe a pesquisa de outros historiadores do
movimento, tentando descobrir elementos anarquistas nas idéias de
filósofos e escritores do passado.Essas pesquisas resultaram na inclusão
dos nomes de Lao-Tsé e Zeno, Étienne de La Noétie, Fénelon e Diderot.
(Woodcock, 2005, p.39).
Dentre as muitas reivindicações presentes no ideário anarquista, é possível
pensar que a liberdade mereceu seu lugar ao longo da história, como afirma
Woodcock:
...e é nesse sentido que irei tratar o anarquismo, apesar de suas muitas
variantes: como um sistema de filosofia social, visando promover mudanças
básicas na estrutura da sociedade e, principalmente – pois esse é o
elemento comum a todas as formas de anarquismo -, a substituição do
estado autoritário por alguma forma de cooperação não- governamental
entre indivíduos livres. (Woodcock, 2005, p.12).
25
Como Rousseau, o movimento anarquista também buscou pensar a política
sem negligenciar a importância que tem a liberdade nesse contexto.
Proudhon, importante figura do anarquismo, ainda que não tenha sido
influenciado diretamente pela obra de Rousseau, demonstra certos momentos de
convergência com o Contrato Social, como é possível ler o trecho citado por
Woodcock:
“Para que eu possa permanecer livre, para que eu não esteja sujeito a
nenhuma lei, exceto aquelas que eu mesmo tenha criado, e para que eu me
governe, diz ele – é preciso reconstruir o edifício da sociedade, tendo como
base a ideia do contrato” (Woodcock, 2005, p. 20).
É possível pensar que a obra de Rousseau se fizera mais conhecida no
século XIX, sendo uma leitura possível aos anarquistas. Mesmo discordando do
genebrino em certos pontos, Willian Godwin, importante filósofo e anarquista do
século XIX, fora seu leitor, como afirma Woodcock:
A linguagem e até a forma como foram apresentadas as idéias no
Relatório... têm um „toque” francês, lembrando Helvetius, d‟Holbach e
Rousseau, os escritores franceses que Godwin vinha lendo desde 1781...Ao
Contrato social de Rousseau, opunha a ideia de uma sociedade vivendo de
acordo com as leis da moral; e à visão de Rousseau, que considerava a
educação um processo cujo objetivo seria impor um determinado molde à
mente do aluno, opunha o intercâmbio de idéias, mestre e aluno a
influenciar-se mutuamente, o que estimularia a mente da criança a
desenvolver tendências naturais. (Woodcock, 2005, p.68).
Rousseau e o movimento anarquista, ainda que por meios distintos,
procuraram pensar e agir por sociedade sem explorados e exploradores, baseada
na liberdade.
Como é possível ver ao longo dos últimos trezentos anos tem sido comum a
profunda divergência quando se trata de analisar o pensamento e a obra de JeanJacques Rousseau. Inspirador de totalitarismos, precursor do socialista, liberal,
inimigo da democracia, democrata, são alguns dos adjetivos normalmente dados ao
genebrino por críticos e admiradores. Contudo, um fato parece estar certo: não se
pode estudar com a honestidade merecida a filosofia política e em especial o tema
da liberdade sem dialogar com Rousseau e sua obra.
Oportuno salientar que não temos a pretensão de confrontar as posições dos
diversos
comentadores trazidos na presente pesquisa, o quadro exposto na
26
introdução serve apenas para darmos uma pequena dimensão da diversidade que
suscita a obra do genebrino. Nossa posição será melhor demonstrada em nossas
considerações finais.
E assim, dado esse quadro de intérpretes divergentes, avançaremos para o
primeiro capítulo onde investigaremos no seu tratado pedagógico e político
publicado em 1762 a ampla perspectiva de liberdade por Rousseau pensada.
27
CAPÍTULO I – EMÍLIO OU A PREPARAÇÃO DA LIBERDADE
POLÍTICA
Emílio ou da educação pode ser lido como um livro das possibilidades.
Pedagógicas, morais, filosóficas e também políticas. Para Salinas Fortes (1996,
p.79), “o Emílio trata das possibilidades pedagógicas de livrar um indivíduo da
corrupção circundante”. Para Wokler (2012, p.130), Rousseau “traça um programa
pedagógico em Emílio cujo objetivo central é libertar as crianças da tirania das
expectativas dos adultos”. Mas além de tais análises, nos deteremos na liberdade
que se encontra na obra, pois entendemos que a liberdade é um tema recorrente
dentro do Emílio.
Michel Launay (1999), em sua introdução à edição brasileira do Emílio, afirma
que a primeira versão do livro ficou pronta em fins de 1759, deixando seu autor
temeroso quanto a entregá-lo a um impressor parisiense prevendo possíveis
desentendimentos com a igreja católica e com o governo francês. Mesmo assim,
Emilio, bem como o Contrato Social, foram publicados em 1762, e, confirmando a
previsão do próprio Rousseau, encontraram resistências e perseguições tanto na
Sorbonne quanto na própria França, sendo inclusive queimados em praça pública.
Tais obras valeram ao genebrino uma condenação à prisão, evitada com sua fuga
para a Suíça.
Emílio ou da educação estrutura-se em cinco livros repletos de ensinamentos,
sentenças, máximas e pensamentos que procuram demonstrar as complexas fases
do processo de instrução de uma criança, iniciando com o seu nascimento e
findando já em idade adulta, por volta dos vinte e cinco anos de idade. A obra é
ficcional e procura retratar com detalhes a metodologia empregada pelo preceptor
Jean-Jacques ao seu aluno Emílio, menino saudável e órfão, conforme nos descreve
e explica o próprio cidadão de Genebra, que lembremos também fora órfão de mãe:
Emílio é órfão. Não importa que tenha pai e mãe. Encarregado dos deveres
deles, herdo todos os seus direitos. Deve honrar seus pais, mas só a mim
deve obedecer. É a minha primeira, ou melhor, minha única condição
(ROUSSEAU, 1999, p. 31).
A escolha de um jovem saudável não foi por acaso; a saúde física deve ser
a base de uma formação moral e cívica para Rousseau. Vejamos:
28
É preciso que o corpo tenha vigor para obedecer à alma; um bom servidor
deve ser robusto. Sei que a intemperança excita as paixões; a longo prazo,
ela também esgota o corpo. As macerações, os jejuns não raro produzem o
mesmo efeito por uma causa oposta. Quanto mais fraco é o corpo, mais ele
comanda; quanto mais forte ele é, mais obedece. Todas as paixões
sensuais habitam os corpos efeminados; quanto menos podem satisfazêlas, mais se excitam com elas (ROUSSEAU, 1999 p. 32).
Este processo educacional é longo, e podemos dividi-lo nas seguintes fases:
o livro I é dedicado exclusivamente aos bebês e classificado de “idade de natureza”;
o livro II corresponde a “ a idade da natureza”, que vai dos dois aos doze anos;
quanto ao livro III, este aborda a “idade da força”, que vai dos dozes aos quinze
anos de idade; o livro IV, “a idade de razão e das paixões”, volta-se para jovens de
quinze a vinte anos ; e, finalmente, o livro V, “ a idade de sabedoria e do
casamento”, que vai dos vinte aos vinte e cinco anos.
Rousseau, no inicio da obra, procura prevenir o leitor quanto ao método por
ele empregado, esclarecendo que Emílio, o aluno, terá uma educação que
respeitará o ritmo ditado pela natureza humana, ou seja, sem artificialismos e
imposições que contrariem esta sua natureza:
No que diz respeito ao que chamaremos a parte sistemática, que aqui não é
senão a marcha da natureza,é ela que mais desconcertará o leitor; será
também por aí, sem dúvida, que me atacarão, e talvez com alguma razão.
Acreditarão estar lendo menos um tratado de educação. Que fazer? Não é
sobre as idéias de outrem que escrevo, mas sobre as minhas. Não vejo as
coisas como os outros homens; faz muito tempo que me chamaram a
atenção para isto. Mas dependerá de mim dar-me outros olhos e exibir
outras idéias? Não (ROUSSEAU, 1999, p. 4).
Sobre a “educação da natureza” de que nos fala Rousseau em seu Emílio,
Danilo Streck procura conceituá-la da seguinte forma:
Rousseau sabe que o termo natureza é muito vago e por isso procura
explicá-lo, colocando-o ao lado de hábito para mostrar que a natureza é
algo diferente. A educação é um hábito, mas existe uma natureza
subjacente e anterior ao hábito e que se faz presente de formas previsíveis
ou imprevisíveis. Pode-se torcer uma planta, mas ela tenderá a crescer na
direção da luz. No caso da criança, Rousseau entende que a natureza lhe
dá o principio ativo, responsável pela sua capacidade de fazer perguntas e
aprender. Pode-se abafar esse princípio, mas no primeiro momento volta à
tona (Streck, 2004, p.34).
Ainda a este respeito Dent, no seu Dicionário Rousseau, assim escreve no
verbete “natureza”:
Rousseau aplica a ideia de natureza e do que é natural a muitos aspectos
da vida. Concebe o caráter do homem como naturalmente inato e criativo;
29
retrata a relação primitiva e inquebrantável do homem com a natureza;
baseia o saudável desenvolvimento educacional no respeito pela natureza;
descreve a relação de Deus com o mundo criado e o envolvimento do
homem nele na PROFISSÃO DE FÉ DO VIGÁRIO SABOIANO. No que se
refere ao próprio mundo natural, Rousseau estava entre aqueles que
instigaram a mudança na sensibilidade do desejo de “domesticar” a
natureza, de fazê-la ostentar a marca do plano do homem, para a
apreciação do rústico, do simples, do inato e aterrador na natureza, que é
característico do romantismo (DENT, 1996, p.172).
É possível afirmar que Emílio vai além deste campo pedagógico sendo
interpretado como um verdadeiro texto da filosofia política, pois sua leitura se
relaciona diretamente com o Contrato Social na medida em que ambos tratam de
temas fundamentais do pensamento ético e político do genebrino, enfocando
questões como o homem, a sociedade, a liberdade, a igualdade e o poder. A este
respeito, vejamos uma reflexão de Matthew Simpson acerca da intenção do
genebrino quando da escritura de Emílio:
Devemos também recordar que o livro não é, na realidade, sobre como
educar crianças. Tem um objetivo mais abstrato e filosófico de mostrar
como a tese da bondade natural do homem pode ser reconciliada com a
inegável imoralidade de muitos ou da maioria das pessoas, o que significa
dizer que ele apresenta uma teoria da natureza humana e da sociedade.
(SIMPSON, 2007, p.150).
Michel Soetard, professor e pesquisador francês, vê em seu Jean-Jacques
Rousseau, Coleção Educadores, uma profunda relação entre Emílio e o Contrato
Social, cabendo à educação o papel de recuperação da esfera política no corpo
social, lemos:
A realidade humana, daí em diante, será um processo essencialmente
educativo que requer uma reconstrução da humanidade na base de
interessas que cada um tem nela, começando pelo adolescente que tem a
vantagem de poder viver este processo desde a sua origem. E é graças à
educação que a política, ela mesma enredada em uma contradição sem
saída, pode de novo recuperar seu sentido. Com este raciocínio, apenas
tentamos recuperar a profunda relação entre Emílio e o Contrato social, tal
como pensava Rousseau. Efetivamente, ele atribuía mais importância ao
seu tratado de educação do que a seu opúsculo político, compêndio de uma
obra mais ampla sobre as instituições políticas que ele jamais pôde concluir;
se “os dois juntos formam um todo”, escreveu ele a um correspondente, fica
claro que o Contrato social “deve se tornar uma espécie de apêndice” ao
tratado de educação. É verdade que toda substância do Contrato social se
encontra no Livro V do Emílio, mas sob a forma de “proposições e
questões”, que devem ser examinadas e que não se transformam em
princípios, “antes de serem suficientemente resolvidas”. É dessa forma, que
se põe o dedo nas raízes da política no universo da educação (SOETARD,
2010, p.23).
À margem destas reflexões, efetivamente do que trata o Emílio? É uma obra
política? pedagógica? metafísica? mera literatura ficcional ou um trabalho que
30
engloba todas essas esferas ou tudo isso num só livro? Milton Meira do Nascimento,
ao prefaciar Rousseau, a educação na infância, de Beatriz Cerizara, indica a
dimensão que o livro escrito pelo genebrino quer atingir ao enfatizar o panorama
vivido por Rousseau no século das Luzes:
Nesse quadro de degradação dos costumes, de ausência de liberdade, em
que a desigualdade chegou ao seu ponto máximo, instaurando, de um lado,
os senhores e, de outro, os escravos, que tipo de educação seria possível?
A que reproduz a escravidão e a desigualdade? Esta é a que conhecemos:
a escola que ensina a aceitar o jogo das aparências, da polidez, da afetação
do saber. É contra essa instituição falida que Rousseau escreve seu: Emílio,
um aluno fictício, preparado acima de tudo para conservar sua liberdade
natural e para não se deixar levar pelo jogo as aparências e pela de
cadência que se instalou em todos os níveis da vida do homem na
sociedade. Resta saber se Emílio também não será arrastado pela
correnteza dos vícios (CERIZARA, 1990, p.9).
Assim, o que pretendemos neste segundo capítulo é entender o papel que
tem a liberdade na formação pedagógica de Emílio e na sua formação como homem.
Neste processo Rousseau destaca a existência de três tipos de educação que
interferem no conhecimento do indivíduo. São elas: 1) a educação que provêm dos
homens; 2) outra que se adquire pelas coisas e; por fim, 3) a educação adquirida
diretamente pela natureza, devendo as duas primeiras se direcionarem para a
última. A educação da natureza aqui destacada seria responsável pelo
desenvolvimento interno de nossas faculdades, responsável pelo aprendizado, pela
necessidade de questionar e criar o interesse natural pelas coisas. Fiel às suas
convicções, ao longo de seu texto, percebe-se a sua opção por uma educação
formadora de um indivíduo preparado para a coisa pública, distante, portanto, do
individualismo.
1.1. Emílio, um aluno para a liberdade.
Ao longo de sua vida Rousseau recebeu varias influências, que ficariam
evidenciadas em seus escritos. É possível afirmar que o filósofo grego Sócrates fora
uma dessas. No seu Discurso sobre as Ciências e as Artes, há uma passagem que
confirma essa admiração, que possivelmente o acompanhou por toda sua obra e
vida, conforme Rousseau (1983, p.340), “Aí está, pois, o mais sábio dos homens no
julgamento dos deuses e o mais sábio dos atenienses na opinião de toda Grécia,
Sócrates, fazendo o elogio da ignorância!”.
31
Assim, a abertura de Emílio ou da educação mostra um Rousseau que nos
remete a Sócrates, julgando-se quase incapaz de realizar seu intento:
Hesitei muito tempo antes de publicá-la e não raro ela me fez perceber,
durante o trabalho, que não basta ter escrito algumas brochuras para saber
compor um livro. Depois de vãos esforços para melhorá-la, creio que devo
entregá-la como está, julgando que é importante chamar a atenção do
público para este ponto e que, mesmo que minhas idéias fossem más, se
fizesse com que outras boas idéias nascessem em outras pessoas, não
teria perdido de todo meu tempo. (ROUSSEAU, 1999, p.3).
Por ser sido preceptor dos filhos do senhor de Mably em 1740 e ter conhecido
as reais dificuldades deste ofício, Rousseau assegura não possuir a capacidade
necessária para exercer tal atividade e garante ser conhecedor da grandeza dos
deveres que tem um preceptor. Rousseau prefere desenvolver sua narrativa
utilizando um aluno imaginário, de nome Emílio, sob a responsabilidade de um
preceptor até que ele atinja vinte e cinco anos de idade:
Sou muito consciente da grandeza dos deveres de um preceptor e sinto
demais a minha incapacidade para aceitar semelhante emprego, de
qualquer parte que seja oferecido, e o próprio interesse da amizade seria
para mim apenas um motivo de recusa. Acredito que, depois de terem lido
este livro, poucas pessoas serão tentadas a me fazer essa oferta, e peço a
quem poderia sê-lo que não faça a inútil proposta. (ROUSSEAU, 1999,
p.27).
Ao penetrarmos no texto, a percepção que se tem sobre o processo
educacional de Emílio é que ele está claramente baseado na liberdade e que esta se
torna o principal pilar de sustentação desta formação. Porém, em sentido oposto,
Starobinski afirma que na realidade o processo educativo de Emílio estava longe de
ser pautado pela liberdade tão defendida por Rousseau, estando Emílio preso a uma
poderosa teia de sutis coerções, como lemos:
A liberdade de Emílio é mantida inativa enquanto se governa a criança
apenas pela sensação. Sem dúvida, o preceptor tem a intenção de
favorecer – à sua hora – o despertar de uma responsabilidade plena. Mas
durante toda a duração dessa educação, o aluno é inteiramente manobrado
pelo preceptor. Se essa educação é uma educação para a liberdade, não é
certamente uma educação pelo apelo a uma liberdade autêntica. Emílio se
sente livre e não o é. Mil coerções invisíveis condicionam sua conduta: o
mundo “natural” em que vive é na realidade obra do preceptor. Emílio é o
cativo de uma armadilha refinada. Contudo, a maior parte dos leitores leu o
Emílio como se Rousseau os convidasse a imitar a espontaneidade
sensitiva da criança, e não a reflexão racional do preceptor que dirige a
espontaneidade de seu aluno (STAROBINSKI, 2011, p.294).
Reconhecendo o estado de escravidão em que se encontra o homem do seu
tempo, Rousseau procura relacionar a educação com o valor da liberdade na
32
formação de um indivíduo preparado para ser de fato livre. Observando a falta de
liberdade que persegue os indivíduos desde o nascimento Rousseau não poupa
críticas a um velho hábito de proteger as crianças e de enrolá-las em panos. Assim,
já nas primeiras páginas do Emílio, esta preocupação com os recém-nascidos,
tirando-lhes os movimentos pode demonstrar a preocupação de Rousseau com a
falta de liberdade destes pequeninos. Podemos pensar que a liberdade deve ser
uma conquista de todos e uma criança sem liberdade mesmo que de seus mais
básicos movimentos físicos pode, quando adulto, se acostumar com a servidão. Até
mesmo em pequenos casos cotidianos aparentemente sem importância podem
apontar para um referencial de liberdade na obra do genebrino, como se lê:
Mal a criança saiu do ventre da mãe e mal gozou da liberdade de
movimentar e esticar seus membros e já lhe dão novos laços. Põem-lhe
fraldas, deitam-na com a cabeça presa e com as pernas esticadas, com os
braços pendentes ao lado; é envolta em panos e bandagens de toda
espécie, que não lhe permitem mudar de posição. Feliz da criança se não a
apertaram a ponto de impedi-la de respirar, e se tiveram a precaução de
deitá-la de lado, para que as águas que deve devolver pela boca possam
caiar por si mesmas! Pois ela não teria a liberdade de voltar a cabeça para o
lado a fim de facilitar seu escoamento (ROUSSEAU, 1999. p.16).
Assim a liberdade, a naturalidade no trato com o bebê e até a simplicidade
são exigências necessárias como aponta Rousseau, criticando os costumes e
conhecimentos de sua época. Nesse sentido, a leitura de seus Discursos e, em
especial, o primeiro, pode descortinar o pensamento rousseauniano acerca das
ciências e seu uso. É possível pensar que esta rigidez e sobriedade de Rousseau se
devem à forte influência obtida pela leitura de Plutarco, passando a admirar os
romanos e os espartanos além dos filósofos estoicos dentre outros. Isto explica sua
defesa da simplicidade, seu apelo à vida rústica e sua crítica a uma erudição estéril
e às ciências que também aparecem ao longo de todo texto no Emílio. Aqui o
genebrino critica a medicina do seu tempo:
A única parte útil da medicina é a higiene, e mesmo assim a higiene é
menos uma ciência do que uma virtude. A temperança e o trabalho são os
dois verdadeiros médicos do homem: o trabalho aguça seu apetite e a
temperança impede que abuse dele (ROUSSEAU, 1999, p.35).
Além da critica à medicina, Rousseau refuta a erudição no processo
pedagógico, pois, a seu ver, se fosse possível dividir a ciência humana em duas
partes, sendo uma destinada aos doutos e eruditos e outra aos demais homens,
esta seria superior comparada àquela que foi destinada aos primeiros.
33
Rousseau se opõe a uma educação que se baseie exclusivamente nos
hábitos adquiridos maquinalmente. Para o genebrino, a própria natureza humana
pode se encarregar na instrução do Emílio, uma vez que é sábia, intrínseca e
naturalmente boa, contrapondo-se assim às instruções impostas pelos hábitos.
Rousseau (1999) alerta que o único hábito que devemos deixar a criança adquirir é
justamente
não
contrair
nenhum.
Rousseau
procura
indicar,
ainda
que
indiretamente, a força que a liberdade possui dentro de seu processo pedagógico ao
narrar situações domésticas, como aquela em que as crianças camponesas
expostas a certos insetos reagem sem qualquer receio, diferentemente das crianças
citadinas. Fica claro que em Rousseau o homem criado no campo leva ampla
vantagem em relação ao da cidade, a liberdade esta mais próxima da simplicidade e
da vida rústica. Por seus valores, a natureza e a vida silvestre assumem um
importante papel no pensamento do genebrino, como lemos na seguinte passagem:
No campo, tudo é diferente. A camponesa não fica todo o tempo junto ao
filho; ele é obrigado a aprender a dizer bem claramente e bem alto o que
necessidade que ela ouça. Nos campos, as crianças soltas, longe do pai, da
mãe e das outras crianças, exercitam-se em se fazer ouvir à distância e a
medir a força da voz pelo intervalo que as separa daqueles por quem
querem ser ouvidas (ROUSSEAU, 1999, p.60).
1.2. A idade da natureza
A segunda fase da vida, que vai dos dois aos dozes anos de idade, é
retratada no livro II de Emílio. A construção de um indivíduo que viverá para a
liberdade requer tempo e muito preparo. As dificuldades que Emílio enfrentará na
vida serão muitas. Assim, no melhor estilo espartano, o preceptor não poupa seu
pupilo:
Longe de estar atento a evitar que Emílio se machuque, eu ficaria muito
aborrecido se ele nunca se ferisse e crescesse sem conhecer dor. Sofrer é
a primeira coisa que ele deverá aprender, e a que ele terá maior
necessidade de saber (ROUSSEAU, 1999, p.66).
Rousseau nos remete ao referencial de educação Espartana, tendo nos
exercícios, no risco e na virtude algo útil à formação de seu jovem aluno. Emílio deve
brincar e viver em liberdade, mesmo que haja algum tipo de risco. Pequenos
incidentes sem importância devem fazer parte de sua formação, pois saber sofrer é
necessário. Os cuidados excessivos que são impostos às crianças, ainda que
motivados pela justa intenção de preservá-los, acabam por gerar indivíduos fracos e
34
despreparados. Não deverá ser assim com Emílio, pois pequenos danos são
largamente compensados quando se vive em liberdade:
Que eu saiba nunca se viu uma criança em liberdade que se tenha matado,
mutilado ou ferido seriamente, a menos que tenham colocado
impensadamente em lugares altos, ou a tenham deixado sozinha perto do
fogo, ou perto de instrumentos perigosos (ROUSSEAU, 1999, p.66).
A liberdade deve acompanhar a criança desde seus primeiros momentos,
sendo o cuidado excessivo dispensado pelos responsáveis considerado por
Rousseau nocivo na formação do adulto, sobretudo para a coragem pessoal, como
lemos:
O que dizer desses montes de aparelhos que juntamos ao redor da criança
para armá-la contra a dor, até que, tornando-se adulta, ela fique à sua
mercê, sem coragem e sem experiência, e acredite morrer à primeira picada
e desmaie ao ver a primeira gota de sangue? (ROUSSEAU, 1999, p.66).
Para Rousseau, as atividades físicas como as brincadeiras servem para
estimular a coragem e a força da criança, não devendo ser esta poupada destas
práticas, ainda que cause lesões. É possível perceber neste processo de educação
que cada ação ou mesmo inação do preceptor visa colher um resultado futuro, nada
é feito sem que antes seja cuidadosamente planejado. Saber lidar com a dor que
resulta de brincadeiras infantis, porém gozando de liberdade, passa a ser mais uma
lição do preceptor:
Em vez de deixá-lo estragar-se no ar corrompido de um quarto, que seja
levado diariamente até um prado. Ali, que corra, se divirta, caia cem vezes
por dia, tanto melhor, aprenderá mais cedo a se levantar. O bem-estar da
liberdade compensa muitos machucados. Meu aluno muitas vezes terá
contusões; em compensação, estará alegre (ROUSSEAU, 1999, p. 67).
Aqui Rousseau nos dá uma boa noção de sua perspectiva de liberdade
política, ou seja, todo dissabor passageiro será válido, quando reina a liberdade.
Emílio seria educado para a liberdade. Assim, é possível perceber que a pretensão
de Rousseau vai além da exposição das etapas de educação formal do jovem
Emílio. Entendemos tratar de um processo dinâmico e político a relação existente
entre Emílio e seu governante. Na realidade há uma forte busca pelas virtudes
necessárias à formação do futuro cidadão Emílio, preparando-o para a vida voltada
ao coletivo com valores republicanos. Assim Rousseau escreve a respeito:
35
Se não há objeto tão digno de riso quanto uma criança altiva, não há objeto
mais digno de piedade do que uma criança medrosa. Já que com a idade da
razão começa a servidão civil, por que antecipá-la com a servidão privada
(ROUSSEAU, 1999, p.83).
Porém, o genebrino tem ciência de que cada fase instrutiva deve adequar-se
à idade e condição de Emílio, pois o rigor educacional não poderá se confundir com
a nefasta intenção de transformar uma criança em homem precoce:
A natureza quer que as crianças sejam crianças antes de serem homens.
Se quisermos perverter essa ordem, produziremos frutos temporões, que
não estarão maduros e nem terão sabor, e não tardarão em se corromper;
teremos jovens doutores e velhas crianças. (ROUSSEAU, 1999, p. 86).
Deste modo, o primeiro de todos os bens que possui uma criança é a
liberdade e não a autoridade a que está submetido. A liberdade precede o controle a
que está submetida, pois o homem verdadeiramente livre é acima de tudo um ser
consciente, e só quer o que pode e faz o que verdadeiramente lhe agrada.
Rousseau atribui aos preconceitos e às instituições humanas a separação do
homem de suas inclinações humanas e a perda da liberdade. Para Rousseau, as
crianças no estado da natureza não gozavam de uma liberdade total, restrita apenas
aos adultos.
Assim, para proteção do pequeno aluno, seu preceptor, também
defendia uma liberdade controlada nos primeiros anos de vida de Emílio.
Emílio não será incentivado a ter qualquer comportamento egoísta. A
liberdade que o jovem Emilio esta em contato o capacitará para viver em
coletividade de maneira adequada. Interessante perceber que em Emílio, Rousseau
já começa a desenvolver o conceito de vontade geral, conforme o Contrato Social,
como é possível constatar na seguinte passagem do tratado político-pedagógico:
Se há um meio de remediar esse mal na sociedade, esse meio é substituir o
homem pela lei e armar as vontades gerais de uma real e superior à ação
de qualquer vontade particular. Se as leis das nações pudessem ter, como
as da natureza, uma inflexibilidade que nunca alguma força humana
pudesse vencer, a dependência dos homens voltaria então a ser a das
coisas; reunir-se-iam na república todas as vantagens do estado natural e
do estado civil; juntar-se-ia à liberdade que mantém o homem sem vícios a
moralidade que o educa para a virtude (ROUSSEAU, 1999, p.78).
Essa virtude que nos fala Rousseau será um componente indispensável em
sua teoria política. Assim o processo de educação de Emílio tem como traço
marcante a ausência de autoritarismo por parte do seu preceptor, isto é, é contrário
à educação praticada no século XVIII, fundada na pessoa do professor. Para
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Rousseau, a criança deve ser livre, a despeito dos limites necessários para garantir
a necessária liberdade. Assim, quando adulto, Emílio poderá amar a liberdade e dela
fazer bom uso. Crianças criadas como serviçais não podem ser homens livres.
Rousseau criticou severamente tal prática:
Por outro lado, quem não vê que a fraqueza da primeira infância aprisiona
as crianças de tantas maneiras que seria bárbaro somar a tal sujeição a de
nossos caprichos, retirando-lhes uma liberdade tão limitada, da qual podem
abusar tão pouco e da qual é de pouca utilidade tanto para elas quanto para
nós que as privemos? (ROUSSEAU, 1999, p.83).
Na realidade, a liberdade de que fala Rousseau deverá ser ensinada e
concedida desde a mais tenra idade, contudo, sempre de maneira ordenada. Vale
lembrar que para o genebrino a liberdade não deve ser confundida com a ausência
de deveres e obrigações os quais a criança deve se sujeitar:
Tentaram-se todos os instrumentos, menos um, exatamente o único que
pode dar certo: a liberdade bem regrada. Não se deve educar uma criança
quando não se sabe conduzi-la para onde se quer unicamente através das
leis do possível e do impossível (ROUSSEAU, 1999, p.89).
1.3. Educação negativa
A “educação negativa” pensada por Rousseau é evidenciada em cada
pequeno gesto, orientação e estratégia do preceptor em relação ao pequeno aluno,
sempre com a intenção de educá-lo além de levá-lo a conhecer a liberdade. O que o
educador pretende é mostrar à criança a importância da liberdade, mesmo que
nesse processo haja eventuais estragos materiais. O mais importante é a intenção
da criança, e esta invariavelmente é boa. A bondade natural do homem ganha revelo
neste importante trecho do seu Emílio:
Não quero dizer que nunca fará estragos, que não se ferirá, que porventura
não quebrará um móvel caro que se encontre ao seu alcance. Ela poderia
fazer muito mal sem agir mal, pois a má ação depende da intenção de
prejudicar, e ela jamais terá essa intenção. Se a tivesse uma única vez, tudo
estaria perdido; ela seria má quase inevitável mente (ROUSSEAU, 1999,
p.90).
Para explicar o conceito de “educação negativa” presente em Rousseau
Wokler escreveu:
Num programa de educação negativa, o conselho aos preceptores é que
abandonem os livros e deem aulas em que as crianças possam aprender
por experiência própria, às vezes em situações previamente engendradas
de modo que transpareça uma possível percepção de que tais situações
são decorrentes das coisas, e não dos homens, com isso preservando a
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liberdade deles, como a define Rousseau em Emílio (WOKLER, 2012,
p.139).
Nessa perspectiva, é possível pensar que ao optar por uma educação livre,
não formal na condução intelectual da criança, é deixá-la para que a natureza lhe
sirva de guia. A fase etária a qual se aplica tal preceito vai do nascimento até os
doze anos de idade, segundo o genebrino. Nesse sentido, adverte Rousseau que se
trata do mais perigoso intervalo da vida. Assim, o mais importante na preservação do
futuro cidadão, nas palavras de Rousseau (1999, p.91), “Consiste, não em ensinar a
virtude ou a verdade, mas em proteger o coração contra o vício e o espírito contra o
erro”.
Esta pureza pretendida por Rousseau será importante para a formação
posterior desta criança. Emílio pode ser visto como arquétipo de um cidadão de
coração puro, longe dos vícios e erros, pronto para viver a liberdade e suas
responsabilidades dentro num plano político como descrito no Contrato Social.
A preparação para o exercício da liberdade não deixa de ser penoso.
Rousseau é sabedor de que a obra de um preceptor é lenta. Lendo Emílio temos a
impressão de que seu autor procura na realidade demonstrar, na forma de
pedagogia, a marcha evolutiva que o indivíduo deve percorrer para tornar-se
participante efetivo da res publica; longa, complexa e repleta, com avanços e
retrocessos, tendo em Emílio o protagonista. A liberdade é o que se busca neste
processo, tendo a clara preocupação com o desenvolvimento pessoal, moral e físico
de Emílio, o que não exclui pequenas privações diárias para fortalecer-lhe o caráter:
Vosso filho díscolo estraga tudo o que pega. Não vos aborreçais. Ponde
fora de seu alcance o que ele puder estragar. Ele quebra os móveis que
usa; não vos apresseis em lhe dar outros, deixai que sinta o prejuízo da
privação. Ele quebra as janelas de seu quarto; deixai que o vento sopre
sobre ele noite e dia se vos preocupardes com o resfriado, pois é melhor
que ele esteja resfriado do que louco. Nunca vos queixeis dos incômodos
que ele vos causa, mas fazei com que seja o primeiro a senti-los
(ROUSSEAU, 1999. p. 101).
Como recorrente em Rousseau, o desenvolvimento da virtude é uma
preocupação constante na formação de Emílio o que lhe será útil na sua fase adulta.
1.4. Educação da natureza
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Para Rousseau, uma educação baseada no hábito, ou seja, na repetição
sistemática de atos, é nociva ao educando. Uma educação baseada na natureza,
além de preparar Emílio para a liberdade, também procura transmitir-lhe a
importância da virtude:
É preciso considerar mais o hábito da alma do que das mãos. Todas as
outras virtudes que ensinamos as crianças parecem-se com essa. E é
pregando-lhes essa sólidas virtudes que gastamos seus jovens anos de
tristeza! Essa não é uma educação sábia! (ROUSSEAU, 1999, p.107).
Qualquer processo de educação que se baseasse na servidão seria criticado
pelo genebrino, daí seu apreço pela educação da natureza e sua crítica indireta
àquela praticada nos liceus do século XVIII. Esta educação natural é fundamental,
sobretudo na idade que vai até os doze anos, pois poderá preservar o coração
daquilo que no futuro poderia vir a corrompê-lo. A intenção de Rousseau em garantir
a todo preço a liberdade de seu Emílio, ensiná-lo a ser livre desde cedo e amar a
liberdade, tem como objeto ensinar a seu aluno que este amor deve impulsioná-lo a
sacrifícios quando esta liberdade estiver em risco.
Desta forma, para Rousseau (1999, p.109) seria fundamental afastar Emílio
do mal, em especial de sua prática, essa seria sua lição maior na infância, “A única
lição de moral que convém à infância, e a mais importante em todas as idades, é de
nunca fazer mal a alguém”.
Mais importante do que estabelecer um rígido código moral, Emílio não
deverá fazer o mal ao seu semelhante. Podemos imaginar que este princípio seja
importante em sua condição de adulto, pois o contato com a sociedade e seus
membros exige virtude no comportamento segundo a visão idealizada pelo
genebrino. Rousseau chega a afirmar que todas as verdadeiras virtudes devem ser
negativas, como podemos ler:
“As mais sublimes virtudes são negativas; são também as mais difíceis, pois
são sem ostentação e superiores até o prazer tão doce para o coração do
homem que é deixar alguém contente conosco” (ROUSSEAU, 1999, p.
109).
Assim, o coração de Emílio deverá ser preservado de todo o mal. Aquele que
foi educado na liberdade e para a liberdade deverá ser virtuoso.
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1.5. Rousseau, aprendiz de liberdade
No Emílio encontramos uma série de referências a pensadores caros ao
cidadão de genebra. Virtude, simplicidade e coragem despontam como referencial
no Emílio, algumas passagens são curiosas como a história de Catão, que sendo um
garoto taciturno, teimoso e tido como imbecil, transforma-se em homem na
antecâmara de Sila ante a um desafio que a vida lhe propôs. Também são
frequentes as citações aos grandes feitos às repúblicas de Roma e Esparta. Para o
jovem Emílio, estes personagens devem-lhe inspirar amor pela virtude e pela
liberdade, conforme podemos compreender. No Emílio, Rousseau procura se
apresentar como alguém independente, não participante dos círculos intelectuais da
época, portanto sem preconceitos e apto a avaliar o processo educativo com mais
clareza, sem as afetações próprias dos filósofos com quem conviveu. Aqui uma
pedagogia que se baseia numa vida rústica e natural deve prevalecer à erudição:
Leitores, lembrai-vos sempre de que aquele que vos fala não é nem douto,
nem filósofo, mas um homem simples, amigo da verdade, sem partido, sem
sistema; um solitário que, vivendo pouco com os homens, tem menos
oportunidades de impregnar-se de seus preconceitos, e mais tempo para
refletir sobre o que impressiona em seu comércio com eles (ROUSSEAU,
1999, p.117).
Esta postura dura do genebrino em relação aos filósofos fica evidenciada em
alguns de seus textos. Para Dent, a convivência com estes intelectuais desagradou
profundamente Rousseau:
E fica evidente nos seus demais escritos que, mesmo discordando
freqüentemente de seus pontos de vista, nutre particular admiração por
outros grandes escritores filósofos, como Platão, Montaigne e Hobbes.
Entretanto, de um modo geral, evidenciou desprezo pela filosofia e os
filósofos – se bem que, possivelmente, só porque achava que quem
professava a disciplina ou ostentava esse nome tinha-a pervertido,
deturpando o seu caráter próprio... Pode ser que o desdém do próprio
Rousseau em relação aos filósofos tenha-se originado em seu
constrangimento na presença dos philosophes , os intelectuais, parisienses
que, com seu espírito ágil e contundente capacidade de argumentação,
freqüentemente o faziam sentir-se obtuso e tolo. Mas alguns dos pontos que
ele assinala a respeito de filosofia e filosóficos são poderosos e
convincentes, e não são aplicáveis apenas à sua época (DENT. 1996.p,
134).
Justamente por essa independência intelectual que Rousseau parece ter
cultivado ao longo de sua jornada, alguns trechos do Emílio podem soar
contraditórios, em especial quando o genebrino refuta métodos tradicionais de
educação, baseados exclusivamente em livros, mapas, cálculos e hábitos. Nesta
40
perspectiva, Rousseau não poupa sequer o uso da leitura na formação do pequeno
Emílio. A esse respeito, Soetard tem a seguinte explicação:
Não menor é o mal-entendido dos pedagogos, que têm confundido a
proposição de um princípio de ação com uma diretiva que deve ser aplicada
tal e qual. Quando Rousseau retarda, o mais possível, o acesso de Emílio à
leitura, ele não quer dizer de modo algum que rechaça os livros, como
tampouco que o Discours sur lês sciences et lês arts [Discurso sobre as
ciências e as artes] visa à destruição da cultura. O que quer dizer Rousseau
é que caso se apresente, prematuramente, à criança, textos já elaborados,
juízos estabelecidos e abstrações sem sentido, encerram-se ela em um
mundo pré-fabricado, no qual só se pensa por intermédio de outros (
SOETARD. 2010. p.20).
Desta forma, para a preservação de sua bondade natural Emílio terá seu
primeiro contato com a literatura somente quando completar doze anos. Vejamos:
A leitura é o flagelo da infância, e é quase a única ocupação que sabem dar.
Assim que completar doze anos, Emílio saberá o que é um livro. Mas pelo
menos, dirão, é preciso que ele saiba ler. Concordo, é preciso que ele saiba
ler quando a leitura lhe for útil; até então, só servirá para aborrecê-lo
(ROUSSEAU, 1999. p. 127).
A leitura de Emílio permite interpretar uma crítica indireta não só a educação
de época, mas também a própria formação moral do homem. É possível perceber na
educação dispensada a Emílio uma tentativa de identifica-lo, ainda que vagamente,
com a imagem do bom selvagem citado na obra política de Rousseau.
O genebrino condena a falta de independência e submissão tão comum no
homem de seu tempo. Para Rousseau (1999), o jovem Emílio seria o “aluno da
natureza”, dotado de interessantes características, meio estoico, meio selvagem, ou
ambos, como lemos no Emílio:
Quanto a meu aluno, ou antes, ao aluno da natureza, desde cedo treinado a
bastar a si mesmo tanto quanto possível, ele não se habitua a recorrer
continuamente aos outros, e muito menos a lhes exibir seu grande saber.
Em compensação, julga, prevê, raciocina sobre tudo o que se relaciona
imediatamente com ele mesmo. Não fala muito, mas age; não sabe uma
palavra do que se faz na sociedade, mas sabe muito bem o que lhe convém
(ROUSSEAU, 1999, p.131).
Rousseau procura demonstrar em seu tratado pedagógico-político a
importância capital que a liberdade exerce na formação de Emílio. Como já dito, o
genebrino não é adepto da educação formal, é possível acreditar que a razão esteja
na falta de liberdade que a mesma proporciona; mas apesar de árdua tarefa, é
importante saber lidar com a liberdade. Para que entenda a liberdade, Emílio terá um
41
longo processo pedagógico. A qualquer momento, seu preceptor poderá se valer de
uma nova situação, usando até métodos não convencionais. Até mesmo situações
que poderiam constituir motivo para reprimenda acabam por ser tornar motivos de
elogios, pois como já afirmou o genebrino, a liberdade é o que busca incutir em seu
aluno, mesmo a custa de pequenos contratempos:
Jamais conseguireis criar homens sensatos se antes não criardes
moleques; assim era a educação dos espartanos: em vez de coloca-los aos
livros, começavam por ensina-los a roubar seu jantar. Será que por isso os
espartanos eram grosseiros quando adultos? Quem conhece a força e a
finura de suas réplicas? Sempre criados para vencer, esmagavam os
inimigos em toda espécie de guerra, e os atenienses tagarelas temiam tanto
suas palavras quanto seus golpes (ROUSSEAU, 1999. p.132).
É possível afirmar que o processo educativo de Emílio baseado em quatro
importantes pilares: “perder” o
tempo, leitura remediada até os doze anos, e a
preservação do coração de todo mal e a liberdade, nos aponta um referencial
socrático, ao fazer da ignorância uma importante estratégia de aprendizagem para o
jovem aluno, como lemos.
Senhores, estais enganados; ensino a meu aluno uma arte muito longa,
muito difícil, que vossos alunos certamente não têm: é a arte de ser
ignorante, pois a ciência daquele que só acredita saber o que sabe reduzse a pouquíssima coisa. (ROUSSEAU, 1999.p. 141).
Além destas questões, a criação de um homem virtuoso também implica em
certas exigências de ordem física. Assim, a formação de Emílio não desprezará uma
certa influência espartana impressa em Rousseau.
As pessoas criadas muito delicadamente só conseguem pegar no sono
sobre plumas; as pessoas habituadas a dormir sobre tábuas conseguem
dormir em qualquer lugar, não há cama dura para quem adormece ao deitar
(ROUSSEAU, 1999. p.148).
Este ideal de virtude, coragem e amor pela liberdade, que é transmitido
cuidadosamente ao jovem Emílio por seu preceptor nos remete às posições que são
caras e foram defendidas pelo próprio Rousseau tanto em suas obras biográficas
como em seus projetos constitucionais, os quais abordaremos oportunamente em
nosso terceiro capítulo.
1.6. Emílio e a escolha de seu ofício
Emílio vai adquirindo uma formação interessante. Não faz qualquer distinção
entre diversão e trabalho, sendo este a realização de algo bom e também
42
construtivo. É possível compreender a importância dada por Rousseau ao trabalho
como forma de ocupação, porém a liberdade e a virtude devem nortear tal prática.
Assim, ao escolher um ofício para Emílio seu preceptor foi criterioso, optando
pela marcenaria. Esta preferência se baseou na utilidade prática que a marcenaria
apresenta, além de ser limpa e criativa, também permitindo exercê-la com a
liberdade que não possui outros trabalhadores que necessitam de proprietários dos
meios de produção para exercê-la, como escreveu Rousseau:
Enfim, não gostaria dessas estúpidas profissões cujos trabalhadores, sem
indústria e quase como autônomos, só aplicam as mãos num mesmo
trabalho; os alfaiates, os costureiros de meias, os que talham pedras, de
que serve empregar nessas profissões homens de senso? É uma máquina
que leva outra Tudo bem considerado, o ofício que eu preferiria que fosse
do gosto de meu aluno é o de marceneiro. É limpo, é útil, pode ser feito em
casa; cansa suficientemente o corpo; exige do trabalhador habilidade e
inteligência, e a elegância e o gosto não estão excluídos da forma das obras
que a utilidade determina (ROUSSEAU, 1999. p. 258).
É possível afirmar que a utilidade para a vida prática e até a liberdade para
executar tal ofício deve servir de parâmetro na escolha de Emílio. Rousseau
condena as profissões que afeminam e amolecem o coração. O genebrino é
cáustico em comentar sobre certos ofícios, pois a seu ver, não contribuem para a
manutenção de importantes valores como a coragem e a virtude, como podemos ler,
certas profissões não escapam de sua pesada pena:
Nunca um jovem rapaz aspirou a ser alfaiate; é preciso ter arte para levar a
esse ofício de mulheres o sexo para o qual ele não foi feito. A agulha e a
espada não poderiam ser manejadas pelas mesmas mãos (ROUSSEAU,
1999. p. 256).
A influência dos antigos no pensamento de Rousseau também se manifestará
na escolha do ofício de Emílio, onde a robustez, a utilidade e a liberdade
caracterizam tal atividade.
Como se percebe no texto há um constante apelo a temas como a liberdade,
a virtude e a simplicidade, que transmitida em lições práticas também é destacada
pelo preceptor como indispensável na formação de Emílio. Leiamos o preceptor num
banquete com seu pupilo:
A comparação de um jantar simples e rústico, preparado pelo exercício,
temperado pela fome, pela liberdade, pela alegria, com aquele banquete tão
magnífico e tão ordenado bastará para fazer com que perceba que, todo o
aparato do banquete não lhe tendo dado nenhum proveito real, e saindo do
43
estômago igualmente satisfeito da mesa do camponês e daquela do
financista, não havia nada mais em uma do que na outra que ele pudesse
chamar de verdadeiramente seu (ROUSSEAU, 1999. p.243).
1.7. Emílio e o Contrato Social: o tema da liberdade
Ao ser preparado para a liberdade, Emílio deverá saber viver como homem
livre em sociedade. Emílio e Contrato Social foram escritos pelo genebrino e
publicados em 1762, sendo possível fazer uma associação entre estas obras e
interpretar Emílio como a representação do cidadão ideal de uma sociedade
democrática, descrita no Contrato Social. Escreveu Streck sobre a relação existente
entre os dois textos de Rousseau:
O contrato social está colocado à educação. As duas obras , Emílio e O
contrato social, são escritas no mesmo ano (1762), e toda educação do
Emílio é conduzida para que ele possa, no fim, viver numa sociedade regida
pelo contrato (STRECK, 2008. p. 32).
Ao prefaciar o livro de Cerizara, Milton Meira do Nascimento também indica o
liame existente entre Emílio e o Contrato Social:
A questão que o próprio Rousseau se coloca é a possibilidade de reversão
desse quadro. Ou seja, até que ponto um povo, há muito sob o jugo da
servidão, conseguindo recuperar a liberdade, numa condição muito mais
propícia à reprodução da dominação do que o desejo da liberdade? Tanto
no plano individual quanto no social, em dois textos memoráveis, Emílio e
Do Contrato Social, Rousseau nos convida a pensar sobre esta questão. No
“Livro quinto” do Emílio, depois de completar o processo educacional,
Rousseau dá entender que seu aluno mereceria viver em outro século. Isto
é, sua proposta educacional é incompatível com a situação vigente de
degradação dos costumes, de ausência de liberdade e de crescimento da
desigualdade. Mas há uma fresta na janela. Quem sabe, num século
futuro.No Contrato Social, quando tudo parece irremediavelmente perdido,
há talvez, uma última chance (CERIZARA, 1990, p.10).
Desta forma, entendemos ser possível ver no Emílio um verdadeiro projeto
político que se encaixa no pacto social idealizado no Contrato Social.
Voltando a Emílio e suas ocupações, ao aprender um ofício, seu preceptor lhe
assegura mais que uma profissão, mas a possibilidade de exercer sua liberdade
pessoal, e assim não ser oneroso aos demais. Rousseau deplora aqueles que vivem
de rendas do Estado, chegando até mesmo a adjetivá-los como ladrões. A
perspectiva política rousseaniana está numa sociedade utópica, regida por princípios
de justiça, solidariedade e liberdade, também fundada no trabalho e no esforço
pessoal de cada individuo, como lemos abaixo:
44
“Quem come na ociosidade o que não ganhou por si mesmo rouba-o, e um
homem que vive de rendas, que o Estado paga para fazer, pouco difere, a
meu ver, de um ladrão que vive à custa dos passantes” (ROUSSEAU, 1999.
p.250).
Nesta última lição do preceptor ao jovem aluno, é possível pensar que temos
uma amostra da moral rousseauniana possivelmente oriunda de sua
origem
calvinista e que também seria em parte aceita pelo marxismo clássico defensor da
cooperação e esforços mútuos.
Voltando à relação entre Emilio e o Contrato, é possível afirmar que uma
interpretação possível do tratado político-pedagógico nos remete para uma espécie
de resgate da bondade natural do homem, personificado na figura de Emílio, pois ao
educá-lo seu preceptor demonstra sua esperança no gênero humano, ou seja, ainda
poderá haver um projeto para uma sociedade justa, igualitária e livre formada por
Emílios. Assim, as duas obras podem apontar tal possibilidade ou uma utopia
“possível” como defendeu Carlos Nelson Coutinho. O jovem Emílio possuirá uma
formação compatível para viver nesta sociedade idealizada, porém, no íntimo, será
um homem natural e livre, como lemos:
Há muita diferença entre o homem natural que vive no estado de sociedade.
Emílio não é um selvagem ao ser relegado aos desertos, é um selvagem
feito para morar nas cidades. É preciso que saiba encontrar nelas o
necessário, tirar partido dos habitantes e viver, senão como eles, pelo
menos com eles (ROUSSEAU, 1999. p.265).
Assim Emílio possuirá o que há de melhor do homem natural, porém
preparado para viver no estado social. Trata-se da monumental tarefa de seu
preceptor, ainda que Rousseau acreditasse que o homem fosse inclinado
naturalmente para o bem.
Nessa perspectiva, invoquemos a breve reflexão de Arlei de Espíndola nos
Reflexos de Rousseau, ao tratar da questão da bondade natural da criança, afirmou
Arlei (2007, p.82): “Rousseau considera que a inclinação natural da criança é para a
benevolência, mas o curso da vida gera mudanças que a fazem má”.
O texto pedagógico de Rousseau mostra uma clara evolução do jovem aluno
e aproveita para destacar pontos importantes de sua incipiente e virtuosa
personalidade que nos remete a certos elementos do estoicismo, admirado e lido por
Rousseau. Nesta perspectiva, a liberdade pode gerar mais do que uma vida íntegra
45
e valorosa, também pode ensinar a sair da vida em paz, após uma existência
laboriosa, pois o homem sábio que vive conforme a natureza também deve saber a
hora de partir. Escreveu Rousseau:
Emílio é laborioso, temperante, paciente, firme, cheio de coragem. Nem um
exaltada, sua imaginação nunca aumenta os perigos; é sensível a poucos
males e sabe sofrer com firmeza, já que aprendeu a lutar contra o destino.
Com relação à morte, ainda não sabe bem o que seja, mas, acostumado a
suportar sem resistência a lei da necessidade, quando for preciso morrer ele
morrerá sem gemer e sem se debater; isso é tudo o que a natureza permite
nesse momento odiado por todos. Viver livre e depender pouco das coisas
humanas é o melhor meio de aprender a morrer (ROUSSEAU, 1999. p.
269).
Retrocedendo à questão da influência estóica em Rousseau e acreditamos
também figurar na educação de Emílio, defende o professor Arlei de Espíndola que
Rousseau fora leitor do filósofo estoico Sêneca e sua filosofia moral, contudo nada
obsta que o genebrino tenha tido contato com outros filósofos da Stoa. Em
particular, Arlei defende uma especial conexão entre o estoicismo senequiano e o
pensamento de Rousseau a partir de uma análise do Emílio ou da educação:
Com essa leitura do Émile, que se limitou ao recorte de tal alguns de seus
princípios morais mais relevantes, pude passar a ideia do teor do primeiro
remédio quer Rousseau apresenta para fugir dos males que atingem o
homem na sociedade. Enquanto não chega ao problema das paixões,
reflete muito claramente seu nexo com os livros de Sêneca e os demais
estóicos (MARQUES et al. 2007. p.89).
É conhecida a simpatia que nutre Rousseau em relação à vida simples e
voltada para a natureza. A figura do homem rústico e simples sempre foi apreciada
pelo filósofo suíço. Não seria difícil que tal figura servisse de modelo para a
educação de Emílio. Rousseau nutre grande simpatia pelos selvagens, não só por
sua coragem, rusticidade e liberdade, mas por seu desprezo pelas luzes. O
preceptor de Emílio não escondia sua admiração:
De todos os homens do mundo, os selvagens são os menos curiosos e os
menos entediados; tudo lhes é indiferente; não gozam das coisas, mas de si
mesmos; passam a vida a não fazer nada, e não se entediam jamais
(ROUSSEAU, 1999. p. 300).
Como se percebe ao longo da leitura do Emílio a liberdade é um tema
importante, pois a servidão seria o pior dos males a sobrecarregar sua vida. É uma
preocupação constante do preceptor que o jovem aluno possa entender quão
importante é a liberdade, como Rousseau (1999, p. 323) faz questão de destacar no
46
texto, “Tendo crescido em meio à mais absoluta liberdade, o maior dos males que
pode conceber é a servidão”, bem ao estilo de La Boité.
1.8. Religião e liberdade no Emílio
A religião e a espiritualidade são temas frequentes nos textos de Rousseau. O
Contrato Social e o Emílio não deixam de abordar esta dimensão da vida humana,
mesmo que dentro de uma perspectiva aparentemente política. É importante
destacar que a “profissão de fé do vigário de Sabóia”, texto integrante do Emílio, lhe
valeu grandes perseguições políticas e religiosas tanto de franceses como de
suíços. Interessante notar que é nesta fase da narrativa que é apresentado a Emílio
a ideia do sagrado e de Deus.
Ainda sobre a profissão de fé, é possível afirmar que não se trata de um
capítulo estranho à narrativa de cunho pedagógico-político, pois para Rousseau a
religião também forma a base de uma boa educação. Dent no seu Dicionário procura
interpretar a intenção do cidadão de Genebra o incluí-lo no tratado texto pedagógicopolítico:
O seu pretexto para incluir A profissão de fé neste ponto do livro é a
necessidade de apresentar a Emílio idéias de religião e de expor o gênero
de crença e obediência religiosa que seria apropriado à sua educação, de
acordo com os requisitos adequados ao cultivo e preservação da natureza
inata. Rousseau estivera considerando essas questões independentemente
do resto do Emílio, e esta obra dificilmente teria sido afetada, exceto na
dimensão religiosa específica que A profissão de fé lhe confere, se tivesse
sido publicada em separado (como foi ulteriormente) ( DENT, 1996, p.186).
Toda crítica e perseguição que se abateram sobre Rousseau se devem à
maneira como fora abordada a religião na profissão de fé. Traçando uma rota oposta
àquele das religiões tradicionais de seu tempo, é possível entender que a liberdade
também deveria estar presente na relação com Deus, não havendo a necessidade
de intermediários ou estruturas hierarquizadas para se corresponder com o sagrado.
Uma simples observação aparentemente, porém perigosa se compreendida por
muitos. Era inevitável que o texto sofresse pressões do clero, contudo para o jovem
Emílio esse ensinamento fora transmitido da seguinte maneira:
Se Deus dissesse ao homem para destruir as paixões que lhe dá, Deus
quereria e não quereria; estaria se contradizendo. Ele nunca deu essa
ordem insensata, nada de semelhante está escrito no coração humano, e o
que Deus quer que um homem faça não manda outro homem dizer, ele
47
próprio o diz e o escreve no fundo de seu coração (ROUSSEAU, 1999, p.
273).
Rousseau reconhece a importância do sagrado na formação de Emílio, ainda
que tenha retardado a exposição destes temas ao aluno. Haveria o momento
oportuno onde a fé em Deus deveria ser cultivada, certamente em liberdade.
Também a religião teve sua importância no Contrato Social, tanto no aspecto
religioso quando político, vez que seria uma religião civil.
1.9. Sofia, amor e liberdade
Com seu amadurecimento, Emílio passa a ter novas lições e aventuras. É
desta forma que seu encontro com a jovem Sofia é narrado no último livro do
tratado. Além deste encontro, algumas ideias relativas ao Contrato Social figuram
neste livro V. Com boa carga de ternura Rousseau vai apresentando lentamente a
relação entre Emílio e Sofia, acompanhado de seu preceptor,além dos pais da
jovem. O texto procura traçar um perfil de Sofia com certas características
semelhantes a Emílio, sendo uma moça simples, recatada e dotada de certa
afetuosidade. Ao apresentar Sofia na trama, o genebrino aproveita para reunir
alguns preceitos morais na educação feminina, ainda que atualmente possam ser
interpretadas como autêntico machismo, fornecem interessante material de análise
sobre a representação do universo feminino aos olhos de Rousseau em pleno
século XVIII, como lemos abaixo:
A primeira e a mais importante qualidade de uma mulher
para obedecer a um ser tão imperfeito quanto o homem,
cheio de vícios e sempre tão cheio de defeitos, ela deve
suportar até a injustiça, assim como os erros de seu
queixar, não é por ele, mas por si mesma que ela
(ROUSSEAU,1999, p. 511).
é a doçura; feita
tantas vezes tão
aprender cedo a
marido, sem se
deve ser doce
Após contextualizar seu texto, é possível interpretá-lo como um verdadeiro
elogio ao comportamento austero, corajoso, paciente, semelhante às mulheres de
sua querida Esparta. As referências à Grécia antiga também são empregadas
quando o tema se volta para a educação feminina por formar indivíduos virtuosos.
Rousseau idealiza a mulher conhecedora de seu papel na constituição matrimonial e
na formação da sociedade, fortes e ao mesmo tempo frágeis por sua feminilidade, é
esta dualidade que confere a beleza da mulher rousseauniana e as distinguem dos
homens:
48
Os encantos não se desgastam como a beleza, eles têm vida própria,
renovam-se sem cessar e ao cabo de trinta anos de casamento uma mulher
de bem que tenha seus encantos agrada a seu marido como no primeiro dia
(ROUSSEAU, 1999, p. 574).
Como sabemos, Emílio tem uma educação alinhada à natureza humana, ou
como escreveu Rousseau a respeito do jovem, um selvagem a viver fora do estado
da natureza. Emílio necessita de uma mulher com semelhantes características. Esta
era a real preocupação do preceptor de Emílio, segundo o genebrino (1999, p. 500),
“Depois de ter procurado formar o homem natural, vejamos como deve formar-se
também a mulher que convém a esse homem”.
Ao tratar da jovem companheira de Emílio, Rousseau prossegue fazendo uma
interessante reflexão sobre as mulheres. Como na antiga Grécia, o genebrino
acredita na importância dos jogos e brincadeiras na formação destas. A liberdade
também deve nortear a criação das meninas, exatamente como foi feito com Emílio.
Mesmo pesando sobre Rousseau críticas contemporâneas por sua abordagem
feminina, é possível afirmar que a liberdade na criação das meninas que reclamou o
torna vanguardista para seu tempo. Para viver com um homem que foi criado em
liberdade para ser livre, Sofia também deveria estar preparada para ser livre:
Neste ponto, os conventos, onde as pensionistas têm uma alimentação
grosseira, mas também muitas diversões, corridas, jogos ao ar livre e nos
jardins, são preferíveis à casa paterna, onde a menina, alimentada
delicadamente, sempre mimada ou repreendida, sempre sentada sob as
vistas da mãe num recinto bem fechado, não ousa levantar-se, nem andar,
nem falar, nem murmurar, e não tem nenhum momento de liberdade para
brincar, pular, correr, gritar e entregar-se à petulância natural de sua idade;
sempre ou relaxadamente perigoso ou severidade mal compreendida;
nunca de acordo com a razão (ROUSSEAU, 1999, p. 504).
Liberdade, ainda que usada para brincar. Ser livre como fundamento de vida
e uma condição irrenunciável de qualquer indivíduo vivo. Possivelmente as
brincadeiras e os jogos não buscassem somente fortalecer os corpos das crianças,
talvez haja um sentido mais profundo na ideia do genebrino, porque não o
aprendizado político? Brincar em liberdade para viver em liberdade como adulto.
Semelhante à cultura indígena brasileira, onde os pequenos índios brincam de caçar
e quando adultos tornam-se exímios caçadores. Observando o lento trabalho do
preceptor, se conclui que a liberdade é um processo que se constrói de forma dura e
demorada, mirando um objetivo que vale a pena ser buscado.
49
Rousseau critica certas artificialidades que ponham em risco aquilo que a
própria natureza encarregou de tornar belo. Enfeites e ornamentos que algumas
mulheres usam são prejudiciais, segundo o genebrino. Não contrariar a natureza
também pode ser uma forma de vivê-la em sua essência, e, portanto, ser livre. A
vaidade e o uso de enfeites são condenados por Rousseau, como fizera
anteriormente em seu primeiro Discurso, leiamos no Emílio:
Tudo que atrapalha e constrange a natureza é de mau gosto. Isso é
verdade a respeito dos ornamentos do corpo quanto dos ornamentos do
espírito. A vida, a saúde, a razão e o bem-estar devem vir em primeiro lugar;
(ROUSSEAU, 1999, p. 506).
Novamente temos a herança grega e seu ideal de virtude, saúde e
simplicidade tão cara a Rousseau e cuidadosamente transmitida a Emílio.
Também as mulheres e a questão da bondade natural são tratadas no Emílio
de forma interessante, exposto pelo preceptor:
Dizem que as mulheres são falsas. Elas se tornam falsas. O dom que lhes é
próprio é a habilidade, não a falsidade; nas verdadeiras inclinações de seu
sexo, mesmo ao mentir, elas não são falsas (ROUSSEAU, 1999, p.537).
Emílio foi educado para virtude, para a liberdade e para a sociedade, seu
processo educacional, semelhantemente aos jovens gregos, deverá ter duração de
vinte e cinco anos de acordo com seu preceptor. A união com uma mulher virtuosa
também fora pensada, e uma vez concretizada poderia coroar o encerramento da
tarefa de seu preceptor, conforme escreveu Rousseau (1999, p.491) logo na
abertura do livro V: “Não é bom que o homem esteja só, e Emílio é homem;
prometemos-lhe uma companheira, é preciso dar-lha. Essa companheira é Sofia”.
Todo conhecimento adquirido por Emílio lhe será útil, pois além de estar sem
seu velho preceptor, também passará a ter novas responsabilidades de marido.
Amar uma mulher é a abertura de uma nova dimensão para Emílio, e viver tal
sentimento também é gozar de liberdade. Porém o caminho para a felicidade é longo
e acidentado, a liberdade sempre cobrará seu tributo. Antes do enlace definitivo, seu
preceptor continuará a ministrar conselhos úteis a seu ainda aluno:
Se quereis prevenir os abusos e fazer casamentos felizes, abafai os
preconceitos, esquecei-vos das instituições humanas e consultai a natureza.
Não unais pessoas que só se convenham numa dada condição e que já não
se convirão se tal condição vier a mudar, mas sim pessoas que se
convenham em qualquer situação em que se encontrem, em qualquer lugar
50
onde morem e em qualquer posição social em que possam cair
(ROUSSEAU,1999, p. 569).
Além da liberdade como importante valor na criação de Emílio, a virtude para
enfrentar as dificuldades do cotidiano sempre esteve presente nos ensinamentos de
seu preceptor. O casamento é um ambiente perfeito para tais contratempos, mesmo
que haja amor e cumplicidade, as dificuldades são inevitáveis, porém, o preceptor
enfatiza a importância da união de ambos:
Sim, afirmo que, ainda que todas as desgraças imagináveis devessem cair
sobre os dois esposos bem unidos, eles gozariam de uma felicidade mais
verdadeira chorando juntos do que a que conseguiriam com todas as
riquezas da terra, envenenados pela desunião dos corações (ROUSSEAU,
1999, p. 569).
A mulher de Emílio deverá se parecer o máximo com seu marido. De alguma
maneira a criação rígida que teve o jovem rapaz também deverá encontrar eco em
sua futura esposa Sofia. Dentre as muitas características que Rousseau aprecia nas
mulheres, aparentemente a simplicidade é a que mais chama a atenção na leitura do
texto. É possível afirmar que Rousseau não se opõe que as mulheres adquiram
conhecimento, mas sua crítica está na erudição que desvia dos valores
fundamentais que o individuo necessita para ser virtuoso:
Mas eu preferiria ainda cem vezes uma moça simples e educada rudemente
a uma moça erudita e intelectual que viesse estabelecer em minha casa um
tribunal de literatura de que se faria presidenta. Uma mulher intelectual é o
flagelo de seu marido, de seus filhos, de seus amigos, de seus empregados.
(ROUSSEAU, 1999, p. 573).
Tal passagem se mostra coerente com a escolha pessoal do genebrino, que
casa-se com uma mulher simples e de pouca formação, permanecendo juntos até a
morte do filósofo.
O relacionamento de Emílio e Sofia se desenvolve na narrativa de Rousseau,
sendo possível perceber lições sobre a liberdade, mesmo que figurem de forma
indireta no texto. É importante destacar que Sofia também fora criada com boa dose
de liberdade, o que pode ser evidenciado com a rápida e segura autorização dada
por seus pais para iniciar o namoro com o jovem Emílio. Outra situação para análise
ocorre quando Emílio faz uma tentativa de beijar-lhe furtivamente, a negativa de
Sofia dá início a uma pequena briga de namorados; mais tarde e à guisa de
reconciliação na presença dos pais da moça e do preceptor, Emílio, desta vez com
51
sucesso, beija sua namorada. Rousseau também nos fornece uma reflexão sobre a
liberdade e responsabilidade no diálogo que se dá entre mãe de Sofia e Emílio:
Consultai vosso amigo sobre vossos deveres; ele vos dirá que diferença há
entre as brincadeiras que a presença de um pai e de uma mãe autoriza e as
liberdades que se tomam longe deles, abusando de sua confiança e
transformando em armadilhas os mesmos favores que, diante deles, são
apenas inocentes (ROUSSEAU, 1999, p. 601).
Como se sabe, a liberdade tem seu preço e nem todos estão preparados para
vivê-la. Segundo crê a mãe de Sofia, aplicando uma ligeira admoestação em Emílio,
a liberdade para um homem honrado consiste em respeitar a liberdade concedida,
devendo o individuo agir como se estivesse à vista de todos, o que nos remete ao
imperativo categórico kantiano, assim se lê:
Dir-vos-á, senhor, que minha filha em nada errou para com o senhor, a não
ser por não ver desde a primeira vez que nunca deveria tolerar; dir-vos-á
que tudo o que se toma por favor torna-se um favor, e que é indigno de um
homem honrado abusar da simplicidade de uma menina para usurpar em
segredo as mesmas liberdades que ela pode tolerar diante de todos. Pois
sabemos o que a decência pode tolerar em público, mas não sabemos até
onde vai, na sombra do mistério, que se erige em único de suas fantasias
(ROUSSEAU, 1999, p. 601).
Pelo
diálogo
citado
se
depreende
que
liberdade
não
significa
necessariamente fazer tudo o que se quer. Ser livre também implica em reconhecer
certos limites impostos. Emílio não tinha liberdade para fazer tudo o que quisesse
em relação a Sofia. Ser livre também implica em reconhecer limites. Não deixa de
ser um princípio aplicado na liberdade que se quer em sociedade.
Não se pode falar em liberdade sem pensar numa educação para tanto, que
trate a criança nesses ditames. Emílio foi criado para a liberdade:
Não é esse caso de Emílio, que, nada tendo feito na infância que não fosse
voluntário e feito com prazer, ao continuar a agir da mesma forma quando
só acrescenta o domínio do hábito às doçuras da liberdade (ROUSSEAU,
1999, p. 608).
Contudo a educação negativa a que recebeu Emílio, fundada na liberdade,
não pode gerar distorções. Como conta Rousseau a educação voltada para a
liberdade, longe de tornar Emílio individualista ou ocioso, o fez virtuoso e mesmo a
saudade de Sofia não o atormenta, como lemos:
Nos dias em que não a vê, não fica ocioso nem sedentário. Nesses dias,
ainda é Emílio; não mudou de modo algum. No mais das vezes, percorre os
campos das redondezas e estuda sua história natural; observa, examina as
52
terras, suas produções, sua cultura; compara os trabalhos que vê com os
que conhece; procura a razão das diferenças; quando considera outros
métodos preferíveis aos da região, ensina-os aos agricultores; se propõe um
melhor tipo de arado, manda fazer um conforme seus desenhos; se
encontra uma pedreira de marga, ensina-lhes sua utilidade, desconhecida
no lugar; não raro, ele mesmo põe mãos à obra; todos ficam admirados
vendo-o manejar as ferramentas com mais facilidade do que eles próprios...
(ROUSSEAU, 1999, p. 613).
A
liberdade
como
pensou
Rousseau
é
um
processo
que
deve
permanentemente ser construído, não é algo que se tenha por acabado ou pronto.
Como oportunamente escreveu Coutinho, a liberdade deverá ser construída na
práxis, o que poderia ser aplicado a esta fase de Emílio:
Em outras palavras, a liberdade rousseauniana ainda que tenha uma
gênese "natural" - atualiza-se através da práxis social, manifestando-se
mais como um processo do que como um estado, É preciso levar em conta
essa dimensão social e dinâmica do conceito de liberdade em Rousseau se
se quer compreender plenamente o significado político da liberdade que ele
irá colocar como pressuposto e resultado da sociedade gerada pelo contrato
social legítimo (COUTINHO, 1996, p.12).
O aluno da liberdade, em sua formação, também deveria provar sua virtude.
Deixar temporariamente Sofia para empreender viagem foi a maneira encontrada
pelo preceptor. Mais do que levar Emílio a conhecer outros governos e povos,
podemos imaginar que o preceptor pretendia ensinar mais uma lição: a verdadeira
liberdade não comporta amarras, e o sentimento de amor e a pessoa de Sofia
podem ser amarras para Emílio. Não resta outra opção a Emílio senão seguir
viagem com seu preceptor:
Que é, então, o homem virtuoso? É aquele que é capaz de vencer suas
afeições, pois então ele segue a razão, a consciência; faz seu dever,
mantém-se na ordem e nada o pode afastar dela. Até agora só eras livre em
aparência; tinhas somente a liberdade precária de um escravo a quem nada
foi ordenado. Sê, agora, livre de fato; aprende a ter tornares teu próprio
senhor; governa teu coração, Emílio, e serás virtuoso (ROUSSEAU, 1999.
p.627).
Ao retornar Emílio finalmente desposa Sofia. O relato final deste
relacionamento descrito por Rousseau informa sobre a gravidez da moça. Emílio
solicita a seu preceptor e amigo que também desempenhe o mesmo papel por seu
filho, pedido para qual não houve uma resposta.
1.10. Emílio e Émile e Sophie ou os solitários e a liberdade
53
Émile e Sophie ou os solitários foi escrito em 1762 e publicado postumamente
em 1780, tendo como objeto dar continuidade na biografia de Emílio que fora
publicada em 1762, em Emílio ou da educação. Mesmo não sendo considerado um
texto político, além de inacabado, Rousseau nos fornece interessantes elementos
relativos à sua perspectiva de liberdade. A narrativa é concebida na forma epistolar,
quando Emílio escreve a seu antigo preceptor, narrando suas desventuras desde
que se separaram o que envolve a traição de Sofia, a separação do casal e a
escravidão na qual caiu Emílio.
Emílio inicia sua carta afirmando que era livre e feliz, o que demonstra a
importância do tema da liberdade neste pequeno texto de Rousseau (2010, p.23),
“Eu era livre, era feliz, oh, mestre! Você fizera em mim um coração apropriado para
desfrutar da felicidade, e me dera Sophie” .
Infelizmente as cartas demonstram que Emílio não encontrou a felicidade que
em outrora experimentara no inicio de seu relacionamento com Sofia. Ambos se
desviaram das orientações dadas pelo preceptor, pois ao passo que Emílio se
encantou com as atrações da cidade, Sofia o traiu com o marido de sua amiga,
tendo como resultado desastroso uma gravidez indesejada.
Em tom triste, Emílio faz uma longa reflexão sobre seu aprendizado e seus
anos ao lado de seu mentor, reconhecendo a importância que a liberdade teve neste
processo, como lemos:
Minha felicidade foi precoce; começou quando nasci, iria acabar antes de eu
morrer. Todos os dias de minha vida infância foram afortunados, vividos em
liberdade, em alegria como em inocência; nunca aprendi a distinguir minhas
instruções de meus prazeres (ROUSSEAU, 2010, p.25).
A mudança de comportamento é reconhecida com pesar, pois também
perdeu aquilo para o qual foi devidamente criado, a liberdade, como escreveu a seu
preceptor:
Todos meus laços tinham se afrouxado, todos os meus afetos tinham
esfriado: no lugar da realidade, eu pusera um jargão de sentimento e moral.
Era homem galante sem ternura, um estóico sem virtudes, um sábio
ocupado com loucuras, do seu Emilé só me restavam o nome e alguns
discursos. Minha franqueza, minha liberdade, meus prazeres, meus
deveres, você, meu filho, a própria Sophie, tudo o que outrora animava,
elevava meu espírito e fazia plenitude de minha existência, desvencilhandome pouco a pouco de mim parecia desvencilhar a mim mesmo, e só deixava
54
em minha alma abatida um sentimento importuno de vazio e aniquilamento
(ROUSSEAU, 2010, p.31).
Em relação à traição sofrida, Emílio alterna momentos entre a mágoa e a
responsabilidade no fato. Contudo a franqueza de Sofia na confissão de certa
maneira atenuou sua conduta:
Depois de refletir mais detalhadamente sobre sua conduta e sua espantosa
declaração, o que eu sentia, ao ver esta mulher tímida e modesta vencer a
vergonha com a franqueza, rejeitar um afeto que seu coração renegara(...)
Que força em não admirava naquela coragem de indizível grandeza, que
nem ao preço da honra e da vida podia rebaixar-se à falsidade, e até no
crime levava a intrépida audácia da virtude (ROUSSEAU, 2010,p.50).
Desiludido após saber do adultério Emílio abandonou seu lar e inicia uma
série de andanças onde desempenha funções que foram assimiladas quando estava
com seu preceptor. Conforme narra na segunda carta escrita ao antigo mentor,
acaba por se tornar escravo, neste ponto da narrativa Rousseau tece considerações
interessantes acerca da liberdade. Diante de sua inédita situação de serviçal Emílio
procura estoicamente compreender e aceitar rapidamente esta condição, como
lemos:
Estou mais livre que antes. Émile escravo! Continuava, eh! Em que sentido?
O que perdi de minha liberdade primitiva?Acaso não nasci escravo da
necessidade?Que novo jugo os homens podem me impor?O
trabalho?Quando era livre, não trabalhava? A fome?Quantas vezes não
suportei voluntariamente! A dor? Todas as forças humanas não me trarão
mais dor do que a que um grão de areia pudesse me fazer sentir. A
opressão? Será mais dura que a de minhas primeiras correntes, de que eu
não queria me libertar? (ROUSSEAU, 2010, p.81).
É possível afirmar que no pequeno e inacabado texto de continuação,
Rousseau nos apresenta um Emílio envolto em diversos sofrimentos, porém
virtuoso, portando-se como um legítimo estoico.
Emíle e Sophie ou os solitários também remete à liberdade, pois a história se
dá num contexto onde Emílio, além de sofrer terrível decepção amorosa, também é
feito prisioneiro, ambiente totalmente diverso daquele que seus primeiros leitores
imaginariam. O que temos neste texto é a reflexão de um homem esmagado pelas
circunstâncias que o cercam, bem ao estilo das tramas kafkianas. Liberdade para
Emílio é viver de acordo com a necessidade ou com a natureza, mesmo que no jugo
da escravidão física:
55
Por estas reflexões, cheguei à conclusão que minha mudança de condição
era mais aparente que real; que se a liberdade consistisse em fazer o que
se quer, homem algum seria livre, que todos são fracos, dependentes das
coisas, da dura necessidade; que aquele que melhor sabe querer tudo o
que esta ordena é o mais livre, já que nunca é forçado a fazer o que não
quer. (ROUSSEAU, 2010, p.82).
Nascido para liberdade, ainda que saiba “carregar o julgo da necessidade”
Emílio se recente de sua condição de escravo e lidera um movimento de resistência
aos maus-tratos impostos pelo inspetor. Na presença do patrão que vem se certificar
do movimento paredista, Emílio sabe argumentar com inteligência e ganha a
simpatia do feitor, que o nomeia novo inspetor. É de se depreender pela sequência
do texto que Emílio em seu novo cargo soube usá-lo de forma justa e humana,
seguindo sua formação.
Infelizmente, o livro permanece inacabado. Contudo, a impressão que fica é a
da emancipação de seu protagonista maior, transformando o aparente fracasso em
oportunidade para a virtude, bem ao estilo do genebrino. Emílio gozou a liberdade
ainda que interiormente e quando esta lhe faltou por completo, lutou por melhores
condições para si e para os seus, reconquistando-a ainda que parcialmente. Desta
forma, a liberdade esteve presente no decorrer de toda narrativa, seja no Emílio,
onde o personagem nos é inicialmente apresentado, seja na continuidade
inacabada, mostrando sua fase adulta e tumultuada.
Após a investigação que este capítulo se propunha, passaremos a analisar no
próximo capítulo a liberdade no livro V do Emílio, que lança as bases iniciais do
pacto social e o próprio Contrato Social, ambos publicados em 1762.
56
CAPÍTULO II – DO CONTRATO SOCIAL OU A LIBERDADE POLÍTICA
EM PARADIGMA
Inegavelmente o Contrato Social é um texto de extrema importância na obra
composta pelo genebrino. Seja por sua importância histórica, vide sua influência na
Revolução Francesa, seja pelo impacto que teve na história da filosofia política nos
últimos séculos. Como adverte Rousseau na abertura do livro, sua intenção era
produzir um tratado maior, porém é importante enfatizar que parte do conteúdo
tratado no Contrato também se encontra de forma mais resumida, em seu Emílio ou
da educação, publicado no mesmo ano, do qual ainda trataremos, antes de
investigarmos a liberdade no Contrato Social.
2.1. A liberdade no livro V do Emílio: a semente do Contrato Social
Neste capítulo continuaremos investigando a liberdade política em Rousseau.
É possível afirmar que a liberdade sempre foi uma real preocupação de Rousseau.
Como se sabe, Emílio ou da educação tem na educação seu objeto, porém como
visto, a importante questão da liberdade nunca foi negligenciada por seu autor ao
longo do livro.
Trabalharemos com o último capítulo do Emílio, pois lá encontramos os
fundamentos iniciais do contrato social rousseauniano. Para tanto investigaremos
duas questões presentes: a liberdade como objeto de aprendizagem do Emílio
amadurecido quando de sua viagem e separação de Sofia; e por fim, a gênese do
Contrato Social já presente no tratado pedagógico e político.
Importante destacar que semelhante ao Emílio, o Contrato Social foi
publicado em 1762. Sobre esta conexão entre as obras escreveu Dent:
Se o amor deles se consumar em casamento e família, então, como chefe
de uma casa, Emílio converter-se-à em membro de um Estado. Rousseau
pensa ser essencial que ele aprenda sobre a natureza e a base da ordem
civil, pelo que inclui o que é, em substância, um breve sumário das
principais ideias do CONTRATO SOCIAL (DENT. 1996. p.124).
Além de ser considerado um tratado pedagógico, Emílio ou da educação
também nos remete ao Contrato Social, pois o genebrino insere de maneira
resumida temas como governo, poder, participação, direito, democracia, contudo
57
estas questões ganhariam melhor relevo em sua obra especificamente política e que
lhe resultaria, além de perseguições, muita popularidade, o Contrato Social.
Procuraremos analisar o processo educacional de Emílio com foco na
compreensão
da
liberdade.
Para
tanto enfatizaremos sua viagem,
breve
distanciamento de Sofia e posterior retorno a sua cidade.
Emílio ainda não está pronto para compreender a liberdade em sua essência.
Por toda a trajetória de Emílio narrada na extensa obra homônima chega-se ao
entendimento de que o mesmo possui bom conhecimento acerca da liberdade, pois
foi educado para este fim e agora o processo educacional aproxima-se de seu fim,
como narrado no último livro do tratado. O jovem Emílio necessita conhecer o
significado da liberdade em sua integralidade e para tanto foi planejada
cuidadosamente por seu preceptor uma viagem educacional, mas que também pode
reservar a Emílio certas apreensões sentimentais.
2.1.2. A viagem de Emílio
Como descrevemos e analisamos no capítulo I da presente, por determinação
do preceptor e na sua companhia, Emílio faz uma viagem de cunho educativo com
duração de dois anos. Na prática, é como se Emílio passasse por um derradeiro
teste para se tornar de fato livre. Renunciar, ainda que de maneira temporária, aquilo
que se ama, pode ser um bom teste para ser de fato livre.
A liberdade que deve experimentar Emílio não pode conviver com qualquer
forma de subjugação ou paixões, ainda que seja o doce amor de sua Sofia. As
inclinações de Emílio devem se nutrir de valores imperecíveis, como narrou o
preceptor:
Assim, se quiseres viver feliz e sabiamente, dá teu coração apenas à beleza
imperecível; que tua condição limite os teus desejos e teus deveres vençam
tuas inclinações; estende a lei da necessidade às coisas morais, aprende a
perder o que pode ser tirado; aprende a deixar tudo quando a virtude o
ordena, a colocar-te acima dos acontecimentos, a afastar deles o teu
coração antes que eles o dilacerem, a ser corajoso na adversidade, para
nunca seres miserável, a ser constante em teu dever, para nunca seres
criminoso (ROUSSEAU, 1999, p. 629).
Rousseau retrata com clareza o perfil do homem virtuoso, vivendo segundo a
natureza e, como bem escreveu, “acima dos acontecimentos”. Para Rousseau,
58
“aprender a deixar tudo quando a virtude o ordena” será para Emílio a oportunidade
de realmente provar ser livre, pois ao empreender uma viagem e afastar-se
temporariamente de Sofia, certamente experimentaria a liberdade dos homens
virtuosos, cumpridores de seus deveres, a liberdade daqueles que a nada se
prendem.
Conceitos como soberania, vontade geral e liberdade são apresentados ainda
que de forma pouco profunda no último livro do Emílio, sendo mais bem
aprofundadas no Contrato Social. Assim lemos ainda no Emílio:
Tendo os particulares se submetido apenas ao soberano e não passando a
autoridade soberana da vontade geral, veremos como cada homem, ao
obedecer ao soberano, só obedece a si mesmo e como somos mais livres
no pacto social do que no estado de natureza (ROUSSEAU, 1999, p. 652).
Portanto, para Rousseau, viver o contrato social com base na vontade geral
pode tornar o homem mais livre do que teria sido em pleno estado da natureza.
Provavelmente aqui Rousseau procura dimensionar a importância que teria a
vontade geral em sua teoria política, colocando-a como elemento capaz de criar uma
liberdade que exceda àquela outrora primitiva e selvagem.
Regressando de viagem e refletindo naquilo que viu e experimentou, Emílio
desabafa com certa melancolia sobre a liberdade:
Quanto mais examino a obra dos homens em suas instituições, mais vejo
que, de tanto quererem ser independentes, eles se tornam escravos, e que
gastam a própria liberdade em vãos esforços para garanti-la (ROUSSEAU,
1999, p. 667).
Aqui temos um Rousseau constatando a dificuldade para se alcançar a
liberdade
numa
sociedade
movida
pelo
individualismo
e
aprisionada.
A
impossibilidade que tem o indivíduo de interferir nos destinos políticos de sua
localidade também gera um estado de escravidão, ainda que tal fato não seja
percebido pelo homem.
O trabalho do preceptor se aproxima do seu fim e seu jovem aluno parece
compreender a verdadeira importância dos ensinamentos já transmitidos, como
podemos ler numa reflexão que trata da liberdade:
Acho que para nos tornarmos livres nada temos de fazer; basta não querer
deixar de sê-lo. Foste tu, ó meu mestre, que me fizeste livre ensinando-me
a ceder à necessidade.Venha ela quando quiser, deixar-me-ei levar sem
59
constrangimento, e, como não quero combatê-la, a nada me apego para me
segurar. (ROUSSEAU, 1999, p. 667).
Para ser livre é importante não fazer aquilo que obste a liberdade. Não se
trata de um imobilismo qualquer, mas de viver em conformidade com certas
necessidades, algo comum no pensamento estoico, que certamente influenciou o
genebrino.
É possível afirmar que a semente do Contrato Social está presente nas
últimas páginas do Emílio, mais precisamente no seu quinto livro. Como se sabe,
Emílio foi publicado em 1762, mesmo ano do Contrato Social, e não será exagero
afirmar que tais obras se complementam.
É visível a influência que exerceu Montesquieu no pensamento político de
Rousseau, pois segundo escreveu o genebrino aquele estaria apto a produzir uma
boa obra sobre o direito político, porém dedicou-se exclusivamente ao direito
positivo, contrariamente a Grotius e Hobbes que não trataram adequadamente do
tema, atraindo a crítica costumeira do genebrino.
Os fundamentos iniciais do direito político, que viria a se tornar no Contrato
Social são apresentados na forma de ensinamento ao jovem Emílio para sua boa
formação social, como lemos:
No entanto, quem quer julgar de modo sadio os governos tal como existem
é obrigado a reunir os dois estudos; é preciso saber o que deve ser para o
bem julgar o que é. A maior dificuldade para elucidar essas importantes
matérias é interessar um particular a discuti-las e a responder a estas duas
questões: O que me importa? E o que posso fazer? Colocamos o nosso
Emílio em condições de responder a ambas (ROUSSEAU, 1999, p.647).
Questões como escravidão, alienação, liberdade se interligam na concepção
contratualista pensada pelo genebrino e compartilhada com o Emílio. Aqui Rousseau
procura didaticamente trazer o germe do contrato social como pacto, demonstrando
sua importância e fundamento:
E então, se um escravo não pode alienar-se sem restrições a um senhor,
como pode um povo alienar-se sem restrições a um chefe? E, se o escravo
permanece sendo juiz da observação do contrato por seu senhor, como o
povo não permanecerá sendo o juiz da observação do contrato por seu
chefe? (ROUSSEAU, 1999, p.650).
Diante de uma questão tão complexa como pensar num instrumento que
possibilitasse o homem ser livre mesmo fora do estado da natureza, trazendo
60
liberdade e igualdade dentro de um cenário injusto e iníquo, Rousseau apresenta ao
leitor do Emílio a ideia do contrato como base da sociedade civil, mecanismo capaz
de garantir a liberdade política:
Já que antes de eleger para si mesmo um rei o povo é um povo, o que
então o tornou tal senão o contrato social? O contrato social, portanto, é a
base de toda sociedade civil e é base de toda sociedade civil e é na
natureza desse ato que se deve procurar a da sociedade que ele
forma(ROUSSEAU,1999, p.650).
O preceptor procura apresentar embora resumidamente o contrato ideal para
o jovem Emílio, dimensionando este importante instrumento social, inclusive tratando
da vontade geral, ponto alto em sua teoria política, como lemos:
Procuraremos saber qual é o teor desse contrato e se não podemos
enunciá-lo aproximadamente por esta fórmula: Cada um de nós põe em
comum seus bens, sua pessoa, sua vida e toda a sua potência, sob a
suprema direção da vontade geral, e recebemos em bloco cada membro
como parte indivisível do todo. (ROUSSEAU, 1999, p.650).
Nesta fase da narrativa do Emílio, onde o genebrino apresenta as primeiras
linhas de sua perspectiva contratualista, são trazidos conceitos indispensáveis para
a compreensão do funcionamento do mecanismo político e social os quais também
seriam tratados no Contrato Social. Estes termos permitem um primeiro contato com
a governança pensada por Rousseau, pois ainda que de forma resumida, procura
tratar das questões relacionadas ao corpo político, o soberano, o Estado e o poder,
temas caros ao pensamento político do autor:
Suposto isso, para definir os termos de que precisamos, observaremos que,
no lugar da pessoa particular de cada contratante, esse ato de associação
produz um corpo moral e coletivo, composto de tantos membros quantas
vozes há na assembleia. Essa pessoa pública toma em geral o nome de
corpo político, o qual é chamado por seus membros de Estado quando é
passivo, de soberano quando é ativo e de poder quando comparado a seus
semelhantes. Com relação aos próprios membros, eles recebem o nome de
povo, coletivamente, e chamam-se em particular cidadãos, como membros
da cidade ou partícipes da autoridade soberana, e súditos, como
submetidos à mesma autoridade (ROUSSEAU, 1999.p.650-651).
Tanto o papel do soberano como a vontade geral, ideias fundamentais no
contrato, já são tratados com certa clareza desde o Emílio, o que nos dá a
verdadeira importância destes na obra política do genebrino. A esta ideia se liga de
forma radical a liberdade do indivíduo. O soberano como instância interna e vital
para o funcionamento do contrato poderia, inclusive, garantir uma liberdade maior
que aquela desfrutada no estado da natureza, segundo escreveu Rousseau:
61
Tendo os particulares se submetido apenas ao soberano e não passando a
autoridade soberana da vontade geral veremos como cada homem, ao
obedecer ao soberano, só obedece a si mesmo e como somos mais livres
no pacto social do que no estado da natureza (ROUSSEAU, 1999. p.652).
De maneira apropriada para um resumo do Contrato Social, Rousseau
também faz breve análise sobre as três possíveis formas de governo: democracia,
aristocracia e governo real. Detalhe curioso reside no fato que desta feita Rousseau
não coloca a Democracia como uma forma de governo restrita aos deuses, mas
limita-se a afirmar que na situação em que o soberano confia a guarda do governo a
todo o povo ou a maior parte do povo, teremos aí a democracia.
Rousseau aproveita varias oportunidades na narrativa para demonstrar suas
posições morais. Emílio faz uma reflexão relacionando a liberdade e as poses
materiais, o que na visão de Rousseau não constitui tarefa simples. Para Emílio,
jovem abastado, seria fundamental afrouxar qualquer laço que pudesse separá-lo da
virtude, pois como afirmou o próprio jovem: “Rico ou pobre serei livre. Não o serei
apenas em tal país, em tal região; sê-lo-ei por toda a terra”.
Posteriormente Emílio terá a oportunidade de comprovar tal disposição,
quando se torna escravo em terras distantes e ainda assim declara sentir-se
completamente livre.
Para que se viva a liberdade o indivíduo deve estar em conformidade com a
natureza, sujeito às dificuldades e sobressaltos neste percurso, segundo acreditava
o genebrino. Do final da narrativa emerge um Emílio forte e virtuoso, convicto de seu
papel na sociedade, como lemos na passagem abaixo:
Que me importa minha condição na terra? Que me importa onde estou? Em
toda a parte onde há homens, estou junto a meus irmãos; em toda a parte
onde há homens, estou em casa. Enquanto puder permanecer
independente e rico, terei com que viver e viverei. Se minha riqueza me
subjugar, abandoná-la-ei sem problemas, tenho braços para trabalhar e
viverei. Se meus braços me faltarem, viverei se me sustentarem, morrerei
se me abandonarem; também morrerei ainda que não me abandonem, pois
a morte não é um problema da pobreza, e sim uma lei da natureza. Venha a
morte quando vier, desafio-a, ela nunca me surpreenderá fazendo
preparativos para viver; nunca me impedirá de ter vivido (ROUSSEAU,
1999. p. 668).
Ainda na parte final do texto do Emílio, o genebrino faz uma relação entre a lei
formal e a liberdade. Por lei formal podemos considerar aquela de maneira diversa
da vontade geral tratada no Contrato Social. Assim o cidadão de genebra aponta a
62
fragilidade das leis para lidar com temas delicados e ao mesmo tempo fundamentais,
como a liberdade dos homens. Para Rousseau, estas leis serviriam para criar um
cenário impróprio para a liberdade, responsáveis pela manifestação do interesse
particular e paixões pessoais entre os homens. A verdadeira liberdade deveria ser
escrita no coração do homem por sua consciência e razão em leis eternas, como
lemos:
É em vão que aspiramos à liberdade sob a salvaguarda das Leis. Leis!
Onde elas existem e onde são respeitadas? Em toda parte só viste reinar
sob esse nome o interesse particular e as paixões dos homens. Mas as leis
eternas da natureza e da ordem existem. Para o sábio, são como uma lei
positiva; são escritas no fundo do seu coração pela consciência e pela
razão; é a elas que deve sujeitar-se para ser livre, e só é escravo quem age
mal, pois fá-lo sempre contra a vontade (ROUSSEAU, 1999, p.669).
A liberdade também é escrita no coração humano, pela consciência e pela
razão, como fora ensinado ao jovem Emílio. A lei positiva sem a liberdade nada mais
será que um repositório de letras mortas e que escravizam.
Rousseau afirma que a liberdade vai além dos governos e suas formas, mas
em lugar especial, bem longe dos homens vis, como lemos abaixo:
A liberdade não está em nenhuma forma de governo, ela está no coração
do homem livre; ele a carrega consigo por toda parte. O homem vil arrasta a
servidão por toda parte. Um seria escravo em Genebra, e o outro, livre em
Paris (ROUSSEAU, 1999, p. 669).
É possível pensar que além de toda complexidade dos temas apresentados
no Emílio ou da educação, em especial seu último livro, em nosso entender, tem o
grande mérito de indicar as primeiras linhas do contrato social rousseauniano,
introduzindo seu leitor na densidade e importância que o tema possuiu.
2.2. O Contrato Social legitimo
Ao abrir o Contrato Social Rousseau enfatiza a importância de nascer em
Genebra, um Estado livre, pois ainda que não fosse príncipe ou legislador, sentia-se
a vontade para lidar com um tema tão complexo. Resultado final de uma obra que
pretendia ser mais extensa, o Contrato Social é composto de quatro livros, publicado
em 1762, e trata fundamentalmente da organização social e política ideal aos olhos
de Rousseau, ainda que seja reiteradamente interpretado no nível normativo do
dever-ser.
63
Starobinski vê uma dimensão profunda no Contrato Social de Rousseau, algo
belo e comovente pensado por Rousseau:
Supondo-se que uma sociedade possa edificar-se na transparência,
suponde-se que todos os espíritos cosintam em abrir-se uns para os outros
e que abdiquem de toda vontade secreta e “particular” – essa é a hipótese
do Contrato social -, então nada permite privilegiar o indivíduo à sociedade
(STAROBINSKI, 2011, p.65).
Dessa forma o contrato rousseauniana pressupõe doação, onde os cálculos
egoístas estão completamente descartados.
Rousseau abre o primeiro capítulo com uma passagem que se tornou
marcante em sua produção política, pois reconhece o estado de escravidão do
homem ainda que aparentemente tenha nascido livre:
O homem nasce livre e por toda parte se encontra sob grilhões. Aquele que
mais acredita ser o senhor dos outros não deixa de ser mais escravo do que
eles. Como ocorreu esta mudança? Ignoro-o. O que pode torná-la legítima?
Creio poder resolver essa questão (ROUSSEAU, 1996, p.70).
Importante destacar que o genebrino não propunha necessariamente uma
ruptura ou revolução. Podemos entender que revolucionárias são as ideias de
Rousseau, não sua proposta em si. Na realidade, suas ideias são vanguardistas, na
medida em que colocam os indivíduos coletivamente no centro de sua política.
Como já dito, a obra está no campo do dever-ser, mas Rousseau procura refletir
como legitimar um cenário sem liberdade, tornando o homem livre mesmo que fora
do estado da natureza.
Podemos interpretar que em certos momentos a obra de Rousseau parece se
relacionar, como vimos entre o Emílio e o Contrato Social. Para Robert Wokler há
uma estreita conexão entre o Contrato social e o segundo Discurso:
De fato, o Contrato social parece abordar às avessas o tema do Discurso
sobre a origem da desigualdade, retratando um pacto de associação que
une os cidadãos, em vez de separá-los, e salvaguardando os ideais
igualitários de participação pública que consolidam sua liberdade, em vez
de destruí-la (WOKLER, 2012,p.85).
Seja pelas polêmicas que ganhou, por suas rejeições e naturalmente por seus
defensores, o Contrato Social acabou por se tornar um clássico na filosofia política.
A sua interpretação não pode ser considerada uma tarefa das mais fáceis, como
64
bem destacou Robert Derathé, em seu Rousseau e a ciência política de seu tempo,
como lemos:
Em virtude mesmo das múltiplas alusões que ele traz, e cujo sentido escapa
ao leitor atual, o Contrato Social continua sendo um dos textos mais difíceis
da literatura política (DERATHÉ, 2009, p.22).
Pelas diversas interpretações que mereceu ao longo dos anos demonstrada
brevemente em nossa introdução, concordamos com a afirmativa de Derathé sobre
a complexidade do texto político de Rousseau.
O Contrato Social tem seu fundamento na vontade popular de seus cidadãos.
A liberdade e a igualdade constituem, portanto, elementos nucleares deste pacto,
sendo que a força e a brutalidade não podem gerar normas de conduta ou o direito
estabelecido, como afirmou Rousseau (1996, p.73): “Convenhamos então que a
força não estabelece o direito, e que só se está obrigado a obedecer aos poderes
legítimos”.
2.2.1. A liberdade como valor inalienável
Pode-se afirmar que a ideia de liberdade aparece em toda extensão do
Contrato Social, pois Rousseau não enxerga seu modelo social operando de forma
autoritária. Sua concepção de liberdade também foi construída pela influência de
pensadores que foram importantes na sua formação. Rousseau cita em seus textos
com mais frequência Platão, Maquiavel, Plutarco e Montesquieu. Para o genebrino,
o homem de fato nasce livre, ainda que em essência, e mesmo que pretendesse
alienar-se, não conseguiria, pois as futuras gerações, como seus filhos já nasceriam
livres:
Mesmo que cada um pudesse alienar a si próprio, não poderia alienar seus
filhos; esses nascem homens livres, sua liberdade lhes pertence e ninguém
pode dispor dela a não ser eles mesmos (ROUSSEAU, 1996, p.74).
A liberdade é um bem inalienável, pois ao nascer o homem se faz livre. O
genebrino em sua reflexão sobre a liberdade faz oposição expressa à escravidão:
Renunciar à sua liberdade é renunciar à sua condição de homem, aos
direitos da humanidade, e até mesmo aos próprios deveres. Não é possível
qualquer compensação para alguém que renuncie tudo. Tal renúncia é
incompatível com a natureza do homem, e destruir sua vontade de toda a
natureza é o mesmo que destruir suas ações de toda moralidade. Enfim,
trata-se de uma convenção vã e contraditória estipular, de um lado, uma
65
autoridade absoluta,e, de outro, uma obediência sem limites.Não fica
evidente que não se está absolutamente comprometido com aquele de
quem se tem o direito de exigir tudo, e que essa única condição, sem
equivalência, sem troca, acarreta a nulidade do ato? Pois que direito terá
meu escravo contra mim, uma vez que tudo aquilo que ele tem me pertence,
e que seu direito sendo o meu, esse meu direito contra mim mesmo é uma
palavra sem sentido? (ROUSSEAU, 1996, p.75).
Para Rousseau, ao renunciar a liberdade deixamos de ser humanos. A
liberdade assume um papel de destaque no contrato por ele idealizado. Não
desprezando de sua percepção o homem selvagem e o estado da natureza,
Rousseau pensa a política mais adequada para o homem do estado civil em sua
teoria política.
Rousseau se coloca contrário à escravidão política e física, como se pode
compreender de seus textos políticos, além disso, seu contrato pode ser interpretado
como uma consagração da liberdade:
Assim, qualquer que seja a forma de se encarar as coisas, o direito de
escravidão é nulo, não somente porque é ilegítimo, mas porque é absurdo e
não tem qualquer significado. Palavras como escravidão e direito são
contraditórias, excluem-se mutuamente (ROUSSEAU, 1996, p.77).
A servidão e a liberdade não podem conviver harmoniosamente no contrato
social pensado por Rousseau, pois se excluem. Rousseau vê na liberdade política
uma possibilidade de resgatar a liberdade natural perdida.
2.2.2. Contrato Social e a liberdade natural
Segundo Rousseau, o homem no estado de natureza, livre e sem regras
sociais, foi desenvolvendo novas práticas visando sua conservação. Em certo
momento, foi necessária a união de forças e novas regras sociais como narrado no
segundo Discurso. É a esta complexa questão que Rousseau volta a se dedicar no
primeiro livro do Contrato Social, em suas palavras:
Ora, como os homens não podem engendrar novas forças, mas apenas unir
e dirigir as que já existem, não têm outra forma de se conservar, a não ser
formar por agregação um somatório de forças que possa agir sobre a
resistência, movido por um único interesse e agindo em conjunto
(ROUSSEAU, 1996, p.78).
Sobre este tema, pode-se afirmar que os indivíduos no estado da natureza e
em face dos obstáculos encontrados acabaram por construir um pacto que os
conservasse. Nesse sentido leiamos Starobinski:
66
Quanto ao Contrato social, atribui ao obstáculo uma função que não é
menos importante: por terem-se chocado com os obstáculos, os homens
descobrem a necessidade do pacto social: “Presumo os homens chegados
a esse ponto em que os obstáculos que prejudicam a sua conservação no
estado de natureza prevalecem por sua resistência sobre as forças que
cada indivíduo pode empregar para manter-se nesse estado”. Novo
exemplo de uma mutação decisiva que se efetua em virtude de um esforço
contra o obstáculo. A adversidade das coisas determina a invenção de uma
forma de existência e de uma organização social inteiramente novas. Podese dizer, sem receio de deformar o pensamento de Rousseau tal como se
exprime no segundo Discurso e no Contrato, que a humanidade cria a si
mesma no contato com o obstáculo (STAROBINSKI, 2011, p.298).
A necessidade do pacto aproximou os homens, formado em outrora um pacto
iníquo. O pacto justo, livre e igualitário, presente no Contrato Social faz o
contraponto a uma sociedade que vive sob os grilhões, ainda que não perceba.
É possível acreditar que o homem no estado da natureza gozava de uma
liberdade natural, pois não vivia em sociedade, com as limitações que esta impõe.
Com a formação da sociedade a liberdade foi diminuindo, devido a disputas e
interesses entre os homens. Este cenário por certo incomodou Rousseau que, em
pleno século XVIII marcado por disputas políticas, governos autoritários e ausência
de liberdade política em grande parte da Europa, desenvolveu uma argumentação a
favor de outro modelo de sociedade. Assim o genebrino apresenta no seu texto o
problema central a ser trabalhado no Contrato Social:
Encontrar uma forma de associação que defenda e proteja a pessoa e os
bens de cada associado de toda a força comum, e pela qual cada um,
unindo-se a todos, só obedeça a si mesmo, permanecendo tão livre quanto
antes. Esse é o problema fundamental que o contrato social soluciona
(ROUSSEAU, 1996, p.78).
Esse Contrato Social pode ser pensado como uma associação humana onde
a obediência a si mesmo garanta a liberdade política em substituição àquela
liberdade natural existente quando o homem esteve no estado da natureza. Este
contrato deveria resgatar o homem da escravidão originada com a perda da
liberdade existente no estado da natureza, momento em que se forma o pacto social
injusto e iníquo. Rousseau pensa numa liberdade política que possa substituir a
liberdade natural existente no estado da natureza. Porém o genebrino adverte sobre
a necessidade de uma coesão para o sucesso deste pacto social. Assim ele escreve
a respeito:
As cláusulas desse contrato são de tal forma determinadas pela natureza do
ato, que a menor mudança as tornaria vãs e sem efeito, de modo que,
67
mesmo sendo formalmente enunciadas, são as mesmas em toda parte
tacitamente admitidas e reconhecidas (ROUSSEAU, 1996, p.79).
Seria possível não mais estar no estado da natureza e mesmo assim ser
livre? Sim, garante Rousseau. Vale ressaltar que no estado da natureza o individuo
sentiu a necessidade de se agregar a outros indivíduos para garantir a sobrevivência
mútua, dando início a uma longa história de dominação e falta de liberdade, pois
este pacto se mostrou iníquo e lucrativo para alguns em detrimento de muitos.
Refletindo sobre a situação, o recurso pensado por Rousseau no Contrato Social foi
um pacto voltado para o interesse público, com certa inspiração nas antigas
repúblicas gregas e romanas por ele tão admiradas. Assim, alienar sua liberdade
pessoal em favor da coletividade não é simples, mas como garantiu o genebrino, o
que se pretende é permanecer tão livre quanto antes, como fora no estado da
natureza. Vejamos:
Todas essas cláusulas se reduzem claramente a uma, a saber, a total
alienação de cada associado com todos os seus direitos, a toda a
comunidade: primeiramente, dando-se cada um por inteiro, a condição é
igual para todos, e sendo a condição igual para todos, ninguém terá
interesse em torná-la onerosa aos outros (ROUSSEAU, 1996, p.79).
A alienação total de cada associado é a condição indispensável para o
funcionamento do pacto social, que indica uma moral republicana.
Esse republicanismo que emerge em Rousseau pode ter influências diversas.
Dentre essas, é possível pensar que a própria Constituição de Genebra tenha sido
marcante para produção do Contrato Social, porém não é essa a opinião de
Derathé:
Se o contrato social teve na política e nas polêmicas genebrinas um papel
de primeiro plano, ele não contudo um livro de inspiração genebrina.
Rousseau o compôs sem conhecer seriamente as disposições da
constituição de Genebra, e quando as circunstâncias o levaram a estudá-la
de perto, ele pôde constatar até que ponto ele se distanciava de seus
princípios, já que finalmente ele pediu sua revisão (DERATHÉ, 2009, p.49).
Em que pese tal controvérsia, nos parece correto afirmar que a leitura dos
antigos, sobretudo relacionada à história das repúblicas grega e romana marcaram
a obra do genebrino.
2.2.3. O soberano e a liberdade
68
O soberano exerce papel de extremo relevo no pacto pensado por Rousseau.
Podemos pensar que a existência do contrato social se dá exclusivamente pela
figura do soberano e suas atribuições políticas. Nas palavras de Rousseau o
indivíduo do contrato possui um duplo engajamento ora desempenhando um papel
ora outro distinto, como lemos:
Por meio dessa reflexão fica claro que o ato de associação compreende um
engajamento recíproco do público com os particulares, e que cada
individuo- por assim dizer, contratante consigo mesmo – encontra-se
engajado sob uma dupla relação, a saber, como membro do Soberano, em
relação aos particulares e como membro do Estado, em relação ao
Soberano (ROUSSEAU,1996, p.80-81).
A soberania de que nos fala Rousseau está diretamente ligada a vontade
geral, sendo aquela o exercício desta, garantindo a liberdade:
Afirmo então que, nada mais sendo a soberania que o exercício da vontade
geral, não pode alienar-se, e que o soberano, que é apenas um ser coletivo,
só pode ser representado por ele mesmo: o poder pode muito bem ser
transmitido, mas não a vontade (ROUSSEAU, 1996, p. 87).
Milton Meira do Nascimento, em recente artigo publicado na revista CULT por
ocasião da comemoração dos trezentos anos de nascimento de Rousseau, vê o
soberano como instância máxima de poder na comunidade política no contrato
social, como lemos:
Dentre as questões políticas mais importantes do Contrato Social e que
provocaram tanta polêmica, desde a publicação da e de sua recepção
extraordinária durante a Revolução Francesa, podemos destacar a ousadia
de Rousseau em afirmar, contrariamente à tradição, que o soberano, isto é,
aquele que detém o poder máximo na comunidade política, não é mais o rei,
mas o povo. Além disso, a afirmação de que o governo não manda, mas
obedece, seria algo muito difícil de ser aceita, principalmente por parte
daqueles que se encarregavam da administração pública. (NASCIMENTO,
2012, p. 27).
Em pleno século XVIII, uma obra política que desloca o poder soberano para
os cidadãos, reduzindo o papel do príncipe, não poderia deixar de causar todas as
polêmicas e perseguições que a história tratou de mostrar. No mínimo, Rousseau
fora ousado em seu tratado.
2.2.4. Forçado a ser livre
Rousseau desenvolve um interessante argumento sobre o complexo papel do
soberano e da liberdade na ordem social. Importante destacar que quase trezentos
69
anos passados da publicação do Contrato, a questão do poder soberano ainda
suscita dúvidas e dificuldades na compreensão de sua dimensão no pensamento
político de Rousseau. Resumidamente é possível pensar no soberano como a
instância necessária para o pleno funcionamento do pacto social idealizado e
segundo as palavras do genebrino (1996, p.80), “é a pessoa pública na forma ativa”.
Desta forma, há uma íntima relação da liberdade no pacto e o poder soberano, pois
ao pertencer ao soberano o individuo realmente é livre, mesmo que Rousseau não
deixe muitas opções aos desobedientes, senão a força da obrigação. Aqui o
genebrino lança mão do paradoxo para demonstrar a força do poder soberano e sua
relação com a liberdade, como lemos:
Para que então o pacto social não seja um acordo vão, está compreendido
nele, mesmo de forma tácita, esse engajamento que sozinho pode dar força
aos outros, de forma que quem recusar obedecer à vontade geral será
obrigado a isso por todo o corpo: o que não significa outra coisa a não ser
que será forçado a ser livre [...] (ROUSSEAU, 1996, p. 82).
Maria Constança Peres Pissarra em nota ao Contrato Social procura
esclarecer a polêmica passagem de Rousseau da seguinte forma:
A força é legítima e necessária como garantidora do direito; por isso, aquele
que recusar a obediência à vontade geral, ou seja, recusar a liberdade
estabelecida por convenção,coloca-se contra o soberano e deve ser forçado
a ser livre – obedecer às leis- pelo Estado (ROUSSEAU, 1996, p.197).
Simpson, ainda que em livro introdutório, fornece elementos explicativos
sobre questão em Rousseau:
Apesar de os leitores nunca se cansarem de interpretar este comentário de
maneiras sinistras, o ponto de Rousseau era simples. Qualquer cidadão que
transgride as leis da comunidade também transgride o pacto social e,
consequentemente, pela natureza do caso, viola a lei que havia legislado
para si mesmo. Puni-lo seria simplesmente força-lo a obedecer as regras
que livremente estabeleceu para si mesmo (SIMPSON, 2007, p.126).
O mesmo comentador vê a íntima relação entre a liberdade e a
autolegislação, ou seja, a lei que o indivíduo estabeleceu a si mesmo no contrato de
Rousseau. Pode-se até argumentar que este seria um ponto fundamental em sua
teoria política, como podemos ler:
Essa linha de pensamento tem consequências importantes para a teoria da
liberdade moral de Rousseau. Uma é que ser livre, no sentido de ser
autônomo, não tem nada a ver com o sentir livre. Uma vez que o pacto é
estabelecido, a autolegislação aplica-se mais na forma da ação do que aos
sentidos do agente. O critério para a liberdade é saber se uma ação está ou
não em conformidade com a lei que a pessoa estabeleceu para si mesma.
70
Se esse é o caso, então, o ato é autônomo de acordo com a definição de
Rousseau. Portanto, por exemplo, se o bem como exige que um indivíduo
abra mão de algumas das suas propriedades para o uso da comunidade, a
liberdade, que é implícita nesta perda, não tem nada a ver com o fato de a
pessoa em questão querer ou não querer. A autonomia é definida pela
conformidade à lei que a pessoa estabeleceu como forma de autolegislação
(SIMPSON, 2007, p.126).
Nas palavras do próprio Rousseau, a liberdade moral adquirida no estado civil
pode torná-lo senhor de si. Assim lemos o genebrino:
Como relação a isso que foi dito, é possível acrescentar a liberdade moral à
aquisição do estado civil, a única que torna de fato o homem senhor de si
mesmo, uma vez que apenas o impulso do puro apetite significa escravidão,
e a obediência à lei que se prescreveu significa liberdade (ROUSSEAU,
1996.p.83).
Oportunamente voltaremos a tratar dessa questão em nossas considerações
finais.
2.2.5. Contrato Social: a liberdade civil como garantia
É possível pensar no Contrato Social como basicamente um garantidor da
liberdade civil. Como escreveu Rousseau, no estado da natureza e em gozo de sua
liberdade natural o indivíduo possuía direito ilimitado a tudo que estivesse em seu
alcance. Rousseau faz um balanço das perdas e ganhos que se tem no contrato
social, como lemos:
Vamos reduzir todo esse balanço a termos fáceis de comparação. O que o
homem perde através do contrato social é sua liberdade natural e um direito
ilimitado a tudo que o tenta e que pode alcançar; o que ganha, é a liberdade
civil e a propriedade de tudo o possui. Para que não haja engano nessas
compensações é necessário distinguir a liberdade natural, que só tem como
limites as forças do indivíduo, da liberdade civil, que é limitada pela vontade
geral, e a posse, que nada mais é que a força ou direito do primeiro
ocupante, da propriedade que só pode estar fundada num título positivo
(ROUSSEAU, 1996, p.83).
Rousseau afirma que uma vez no pacto social idealizado, a liberdade e os
bens passam a ser tutelados pelo poder soberano e são objetos de convenções
sociais estabelecidas. Desta forma, apesar da força que tem o poder Soberano, há
limites impostos a este, não devendo ultrapassar tais convenções para não pode
tornar-se um fardo social, como lemos:
Assim, fica claro que o poder Soberano, por mais que seja totalmente
absoluto sagrado e inviolável, não ultrapassa nem pode ultrapassar os
limites das convenções gerais, e que todo homem pode dispor plenamente
dos seus bens e da sua liberdade naquilo que foi estipulado por essas
71
convenções; de modo que o Soberano nunca tem direito de sobrecarregar
mais um súdito que o outro, uma vez que seu poder não é mais competente,
quando o assunto se torna particular (ROUSSEAU, 1996, p.94).
No contrato rousseauniano os indivíduos fariam uma espécie de troca
vantajosa comparativamente à vida que levavam no estado da natureza, pois em
sociedade além de possuírem a liberdade política, teriam segurança e direitos
garantidos pela vontade geral, como se lê abaixo:
Uma vez admitidas essas diferenças, soa de maneira falsa que haja no
contrato social, por parte dos particulares, uma verdadeira renúncia, já que
por causa desse contrato sua situação se torna realmente preferível à que
exista antes, e que, ao invés de uma alienação, só fizeram uma troca
vantajosa de maneira de ser incerta e precária por outra melhor e mais
segura, da independência natural, pela liberdade, do poder de nutrir a
outrem, pela sua própria segurança, e de sua força que os outros poderiam
dominar, por um direito que a união social torna invencível (ROUSSEAU,
1996, p.94).
Desta forma, essa troca vantajosa tende a gerar segurança e liberdade, pois,
o pacto social seria responsável pela manutenção da liberdade política, em
substituição à liberdade natural possível somente no estado da natureza.
Uma das características marcantes dessa liberdade política possível no
contrato social é a possibilidade do cidadão atuar como legislador. Na teoria política
de Rousseau, tal situação não é excepcional, mas regra, viabilizada pelo poder
soberano que é concentrado nos cidadãos. Atualmente, nas democracias
representativas, o processo legislativo, em regra, passa ao largo do cidadão. Mais
uma vez, Rousseau tem o mérito de propor a inversão desta situação fazendo do
cidadão o destaque na vida política de seu tratado. Em Rousseau, a lei vem da
vontade geral, que por sua vez é a expressão direta dos cidadãos; e ao cumpri-la o
indivíduo é livre, pois não está a obedecer outro indivíduo, exceto a si próprio,
segundo Rousseau:
Baseando-se nessa ideia, percebe-se que não mais é preciso perguntar a
quem compete fazer as leis, uma vez que são atos da vontade geral; nem
se o Príncipe está acima das leis, uma vez que é membro do Estado; nem
se a lei pode ser injusta, uma vez que ninguém é injusto consigo mesmo,
nem como se é livre e submetido às leis, uma vez que elas não passam de
registros de nossas vontades. (ROUSSEAU, 1996, p.98).
É possível pensar que nos deparamos com o núcleo do pacto rousseauniana,
na medida em que ao indivíduo que o integra são
reservadas duas grandes
atribuições que lhe exigirão profundo engajamento: atuar como cidadão e, portanto,
72
membro do soberano, e, simultaneamente. como súdito, cumprindo as diretrizes da
vontade geral.
Como já comentado, sabemos que Rousseau também buscou inspiração no
passado para tentar compreender as questões de seu tempo. No Contrato
encontramos sua exaltação à Esparta e à ilha de Córsega que defendeu em armas
sua liberdade, exemplo de virtude para o cidadão de Genebra. Nesse sentido,
Rousseau adverte o leitor que um povo ao perder sua liberdade dificilmente voltaria
a ser o mesmo povo, ainda que a recupere por meio de recursos legais e
diplomáticos, pois, o ímpeto e o amor pela liberdade restarão comprometidos:
Nem mesmo poderiam ocorrer duas vezes com o mesmo povo, pois este só
pode tornar-se livre, quando é bárbaro, não podendo mais fazê-lo, quando o
recurso civil é usado. Então, os distúrbios podem destruí-lo, sem que as
revoluções possam restabelecê-lo, e assim que seus grilhões se quebram,
cai desfeito e não existe mais: necessita, de agora em diante, de um senhor
e não de um libertador. Povos livres lembrai-vos desta máxima: Pode-se
adquirir a liberdade, mas jamais recuperá-la (ROUSSEAU, 1996, p.104).
É possível afirmar que para Rousseau, o cultivo da virtude e o amor à
liberdade seriam características indispensáveis para povos prósperos. Os grilhões
que historicamente prendiam as nações encontraram na figura do genebrino um
crítico mordaz, sendo especialmente no contrato social o resultado dessa
insatisfação.
2.2.6. O legislativo e a liberdade
No jogo político criado pelo contrato social, seu autor procura delimitar as
atribuições cabíveis tanto ao legislativo quanto ao poder executivo. Usando recursos
de linguagem para melhor explicar o papel destes poderes, Rousseau compara o
poder legislativo à vontade enquanto o executivo seria a força, o que o difere de
Montesquieu no seu Contrato Social, pois o genebrino privilegia o poder legislativo,
observa Maria Constança Peres Pissara (1996, p.203) “[...] Enquanto Montesquieu
atribui igual importância a ambos os poderes, Rousseau privilegia o legislativo”.
A preferência de Rousseau por um poder legislativo exercido inteiramente
pelos cidadãos sem intermediários também demonstra seu apreço pela liberdade e
pela igualdade. É possível pensar que Rousseau tenha produzido uma proposta
destoante em pleno século XVIII colocando o indivíduo no centro da política
73
retirando a concentração de poder do príncipe. Assim, é inegável o destaque que
possui o poder legislativo na perspectiva contratualista de Rousseau, contudo, o
governo ou poder executivo, também possuirá sua limitada importância, sendo
responsável pela manutenção da liberdade civil conquistada no contrato social.
Assim lemos:
O que é então Governo? Um corpo intermediário estabelecido entre os
súditos e o Soberano, para sua mútua correspondência, encarregado da
execução das leis e da manutenção da liberdade, tanto civil quando política
(ROUSSEAU, 1996, p.115).
Ainda sobre o papel do executivo que para Rousseau seria o corpo
intermediário entre o povo e o soberano prossegue o genebrino:
Sem nos embaraçarmos nessa multiplicação de termos, é suficiente
considerar o Governo como um novo corpo dentro do Estado, diverso do
povo e do Soberano, e intermediário entre um e outro (ROUSSEAU, 1996,
p.118).
No decorrer de seu texto Rousseau não foge das classificações e definições
buscando demonstrar toda a força e dimensão de sua utopia social. É assim que faz
uma análise sobre as formas de governo. Argumenta o genebrino sobre a
possibilidade de dividi-lo em três formas: a democracia, onde o governo é confiado à
maior parte do povo, a Aristocracia, regime onde o governo está nas mãos de um
pequeno número de cidadãos e finalmente a Monarquia onde há um único
magistrado.
Rousseau, em tom melancólico, reconhece a impossibilidade de uma
democracia na verdadeira acepção do termo, sendo praticamente impossível aos
homens experimentarem a beleza desta experiência política, pois em suas próprias
palavras:
Tomando-se o termo no rigor da acepção, nunca existiu a verdadeira
Democracia e jamais existirá. É contra a ordem natural que o maior número
governe e que o menor seja governado. Não se pode imaginar que o povo
permaneça constantemente reunido para deliberar sobre os negócios
públicos, e se compreende, claramente, que não se poderia estabelecer
comissões para isso sem que se mude a forma de administração
(ROUSSEAU, 1996, p.124).
Apesar de nobre, desejada e inspiradora, a democracia não se constitui como
algo simples e facilmente aplicável na concepção de Rousseau (1996, p.125) que
74
escreveu sobre ela: “Se existisse um povo de Deuses, ele se governaria
Democraticamente. Um Governo tão perfeito não convém aos homens”.
Tal assertiva não pode ser interpretada como uma defesa ao totalitarismo,
pois a liberdade pensada e desejada por Rousseau em sua teoria política não fica
prejudicada pela impossibilidade de alcançar a democracia, segundo a perspectiva
de Rousseau. O pacto de Rousseau visava uma estrutura política mais realista, com
o poder legislativo concentrado nos cidadãos, em conjunto com o poder executivo
além da figura do legislador.
Sobre esta questão, Milton Meira, no mesmo artigo publicado na revista
CULT, edição 172, afirma que Rousseau considerava a democracia uma verdadeira
temeridade. Assim conclui o professor da USP:
É nesse sentido que Rousseau descarta a democracia como regime mais
adequado, porque, segundo ele, seria uma temeridade se todos os
membros da comunidade política fizesse parte do governo. (NASCIMENTO,
2012, p.27).
Um ponto curioso encontrado no Contrato Social se dá na relação entre
liberdade, povos e clima. O genebrino se vale de um princípio estabelecido por
Montesquieu para este argumento. Segundo Pissara (1996) em sua na nota 121,
comenta que além de Montesquieu, Aristóteles também já via semelhante relação
entre o clima, o povo e o tipo de governo, afirmando que em climas frios a liberdade
é uma característica normal destes povos, enquanto os povos asiáticos e seus
climas mais quentes tendem à submissão. Desta forma no Contrato Social podemos
nos deparar com semelhante argumento:
Não sendo a liberdade um fruto de todos os Climas, não está ao alcance de
todos os povos. Mais se medita sobre esse princípio estabelecido por
Montesquieu, mais se percebe sua verdade, e quanto mais é contestado,
mais se tem oportunidade de comprová-lo através de novas provas.
(ROUSSEAU, 1996, p.133).
Considerando a relativa importância que tem o governo no contrato de
Rousseau, pois, é no poder soberano que está a força do sistema social,
sabiamente o genebrino previu conflitos iminentes entre estes dois poderes
estabelecidos, resultando possivelmente em danos para o bom funcionamento do
contrato e para a manutenção da liberdade política que dele deriva. Sobre isso
escreveu Rousseau:
75
De sorte que no instante em que o Governo usurpa a soberania, o pacto
social rompe-se e todos os simples Cidadãos, que por direito voltaram à sua
liberdade natural, são forçados, mas não obrigados a obedecer.
(ROUSSEAU, 1996, p.141).
Segundo Rousseau esta usurpação do poder promovida pelo governo ao
romper o contrato social faz com que os indivíduos voltem à sua liberdade natural,
ou seja, há a quebra do pacto, voltando o homem à condição que tinha no estado da
natureza quanto à sua liberdade. Para Rousseau, a autoridade soberana é
indivisível, pois sua divisão implica em sua própria destruição. Pensando a política
de forma macro, Rousseau defende a independência das nações, pois não seria
aceitável uma nação submetida a outra, vez que a essência do corpo político está
entre a obediência e a liberdade. Para Rousseau, os termos “súdito” e “soberano”
são construções idênticas, remetendo a ideia de cidadão dentro do duplo
engajamento o qual nos referimos anteriormente e descrito por Rousseau no
Contrato:
Quanto aos associados, tomam coletivamente o nome de povo e
particularmente chamam-se Cidadãos, quando participantes da autoridade
soberana, e súditos, quando submetidos às leis do Estado (ROUSSEAU,
1996, p.80).
Como a história antiga já ensinara, Rousseau adverte para o perigo que ronda
o corpo Soberano, pois não faltarão situações em que o governo tentará enfraquecêlo, e certamente o conseguirá se encontrar um povo que não ame a liberdade. Assim
lemos:
Esses intervalos de suspensão durante os quais o Príncipe reconhecia ou
deveria reconhecer um superior atual sempre pareceram perigosos, e essas
assembleias do povo, que são a proteção do corpo político e o freio do
Governo, foram sempre o horror dos chefes; por isso nunca pouparam
apreensões, objeções, dificuldades e promessas para dissuadir os Cidadãos
de realizá-las. Quando esses avaros, lascivos, pusilânimes, mais amantes
do descanso do que da liberdade, não se opõem por muito tempo aos
esforços redobrados do governo. É assim que a força de resistência
aumenta sem cessar, por fim a autoridade Soberana desfalece, e amaior
parte das cidades desmoronam e perecem antes do tempo. (ROUSSEAU,
1996, p.147).
Pela importância que assumia o poder soberano no tratado de Rousseau, não
nos causa espanto que houvesse tal preocupação em sua conservação, em virtude
dos possíveis conflitos com o poder executivo na figura do príncipe.
2.2.7. Representação política: ilusão de liberdade
76
Executar serviços com os próprios braços e não usando apenas o dinheiro
pode ser considerado sinal de virtude, simplicidade e até de liberdade, bem ao estilo
descrito no Emílio. Aplicando esse princípio de forma mais ampla, é possível afirmar
que em Rousseau, não é possível a transferência de certas responsabilidades
políticas, como podemos ler:
Cede-se uma parte de seu lucro, para aumenta-lo como lhe aprouver. Dai
dinheiro e logo tereis grilhões. A palavra finança é uma palavra de escravos,
não sendo conhecida na Cidade. Em um Estado verdadeiramente livre, os
Cidadãos fazem tudo com os braços e nada com o dinheiro: ao invés de
pagarem para se isentarem de seus deveres, pagarão para poderem
cumpri-los por si mesmos (ROUSSEAU, 1996, p.147).
Rousseau se opõe à representação política, o que anularia o papel do poder
soberano, peça-chave no contrato social. A representação também pode ser
interpretada como algo contrário à liberdade política nascida no pacto justo.
Lembrando do exemplo dos ingleses, Rousseau os via como um povo livre por curto
espaço de tempo, porém escravos por conta da representação da qual se
orgulhavam, como lemos abaixo:
Logo, os deputados do povo não são nem podem ser seus representantes,
são apenas seus comissários, não podem concluir nada definitivamente.
Toda lei que não foi ratificada pelo Povo em pessoa, é nula; não é de forma
alguma uma lei. O povo Inglês julga ser livre; engana-se redondamente,
pois só durante a eleição dos membros do Parlamento ele é livre; tão logo
eles são eleitos, é um escravo, não é nada. Ouso que fez de sua liberdade
nos curtos momentos que a teve bem justifica que a perca (ROUSSEAU,
1996, p.148).
Amante da liberdade, defensor da vontade geral, Rousseau expõe de forma
clara sua discordância em relação à representação parlamentar, pois feriria a
liberdade possível num regime de fato republicano ideal. Práticas tais como: nomear,
pagar e até delegar poderes eram resultados da frouxidão que acometia as nações.
Nesse sentido, afirmou Rousseau (1996, p.147), “É a confusão do comércio e das
artes, é o ávido interesse do ganho, é a moleza e o amor pelas comodidades que
trocam os serviços pessoais pelo dinheiro”.
O Contrato Social, tratado de princípios de direito político, além de fornecer o
modelo ou paradigma político, também produz uma contundente crítica feita à
política de seu tempo, marcado pelo absolutismo e falta de liberdade. A este respeito
escreveu Carlos Nelson Coutinho ao afirmar que o contrato social estava no nível
77
normativo do “dever ser” em face ao “ser” percebido e vivido pelo genebrino. Na
mesma interpretação Starobinski vê a dimensão normativa presente no Contrato:
(...) Rousseau não situa sua hipótese jurídica em uma fase determinada da
história concreta da humanidade: não determina o gênero de ação que
poderá tornar possível sua realização. O pacto social não se cumpre na
linha de evolução descrita pelo segundo Discurso, mas em uma outra
dimensão, puramente normativa e situada fora do tempo histórico
(STAROBINSKI, 2011, p.48).
Essa caracteriza atemporal do Contrato Social fornecendo bases norteadoras
ou inspiradoras ou no dizer de Starobinski, “normativas”, o diferencia de obras de
cunho mais prático ou situadas no campo do “ser”, portanto rígidas e específicas
para certo tempo.
2.2.8. Vontade Geral: a liberdade em ação
A vontade geral é um ponto de extrema importância na obra política de
Rousseau, pois torna o indivíduo, coletivamente, em protagonista central do contrato
e seu funcionamento. É possível relacionar a vontade geral ao interesse comum
mais nobre e necessário dentro da comunidade política pensada por Rousseau.
Contudo se trata de uma ideia complexa, sofisticada e até de certa maneira obscura
na teoria política do genebrino. A vontade geral se liga diretamente ao bem comum
que se espera no contrato social. Em suas palavras:
Quando muitos homens reunidos se consideram como um único corpo, têm
uma única vontade, que diz respeito à conservação de todos e ao bemestar. Então, todas as relações do Estado são rigorosas e simples, sua
máximas são claras e transparentes, não há interesses confusos ou
contraditórios; o bem comum evidencia-se por toda partes e só precisa de
bom sendo para ser percebido (ROUSSEAU, 1996, p. 156).
A autoridade suprema não pode ser alienada, a vontade geral é dos cidadãos
e somente por eles deve ser exercida; aqui reside a liberdade política em Rousseau.
Obedecer a um senhor á escravizar-se; obedecer ao soberano é obedecer a si
mesmo, sendo livre, portanto:
Primeiramente, a autoridade suprema não pode nem modificar-se nem
alienar-se; limitá-la seria destruí-la. É absurdo e contraditório que o
Soberano se atribua um superior; obrigar-se a obedecer a um senhor é
entregar-se em plena liberdade (ROUSSEAU, 1996, p.151).
78
Comentando sobre a generalidade da lei no Contrato, Louis Althusser
relaciona a vontade geral à generalidade da lei e ao povo reunido, como podemos
ler:
A generalidade da lei é a generalidade da sua forma: “quando todo o povo
estatui sobre todo o povo...”. Todo o povo = a totalidade do povo reunido,
estatuindo sobre si mesmo enquanto “coletivo”, abstração feita das
vontades particulares. A vontade deste colectivo é a vontade geral.
Podemos, portanto escrever: generalidade da lei= vontade geral
(ALTHUSSER, 1976.p.73).
Sem o exercício do poder concentrado nos indivíduos, não se pode falar em
vontade geral e consequentemente em liberdade política. Novamente nos valeremos
da explicação de Dent que em termos simples define a vontade geral assim:
Para Rousseau, o corpo soberano compreende todos os membros adultos
do Estado. Assim, a vontade geral, como vontade do corpo soberano, é, de
certo modo, a vontade do todos os membros desse Estado (DENT, 1996,
p.216).
Como qualquer ambiente onde há homens, o conflito pode acontecer e o
contrato social também poderá encontrar resistências de alguns indivíduos.
Rousseau procurou pensar em todas as possibilidades, como lemos:
Se há opositores fora do pacto social, sua oposição não invalida o contrato,
apenas impede que sejam inseridos nele: são estrangeiros entre os
Cidadãos. No momento da instituição do Estado, o consentimento está no
fato de aí residir; habitar o território é submeter-se à soberania. Fora desse
contrato primitivo, a voz do maior número submete sempre os outros, tratase de uma continuação do próprio contrato. Mas, pode-se perguntar, como
um homem pode ser livre e forçado a se conformar com vontades que não
são as suas. Como os opositores podem ser livres e submetidos a leis às
quais não deram consentimento? (ROUSSEAU, 1996, p.159).
Ao último questionamento responde Rousseau:
Minha resposta é que a questão está mal colocada. O Cidadão dá seu
consentimento a todas as leis, mesmo àquelas que foram aprovadas sem
sua anuência e até mesmo àquelas que o punem, quando ousa violar
alguma delas. A vontade constante de todos os membros do Estado é a
vontade geral; é por meio dela que são cidadãos e livres (ROUSSEAU,
1996, p.160).
É importante salientar, na íntima relação feita por Rousseau entre a vontade
geral e a liberdade, pois fora do estado da natureza, os indivíduos somente serão
livres, integrando o poder soberano. A liberdade política pensada por Rousseau
implica em não estar sob os grilhões de um príncipe ou uma assembleia de homens.
79
Para Milton Meira Nascimento a vontade geral é a própria vontade da
comunidade política, tendo o mérito de permitir que o cidadão não obedeça a
nenhum particular, o que na prática corresponde a ser livre nesta comunidade:
Mas o ponto forte deste último capítulo do Contrato é a condenação a todas
as religiões que praticam a intolerância e a afirmação do caráter sagrado
das leis que devem obrigar a todos os cidadãos a se comportarem tendo
como referência última a vontade geral. Isto é, a vontade da comunidade
política, como condição para a afirmação da liberdade política, já que, ao
obedecer à vontade geral, nenhum cidadão obedeceria a vontades
particulares, escapando, dessa forma, à possibilidade de submissão à
vontade particular de alguém. (NASCIMENTO, 2012, p.26-27).
Assim, a liberdade no contrato efetiva-se no cumprimento da lei que provém
exclusivamente da vontade geral.
Em síntese, é possível afirmar que o Contrato Social constitui uma das
grandes obras do pensamento político e da filosofia política, como faz provar a gama
de comentadores clássicos e a vasta pesquisa realizada sobre o tema.
Ainda assim, não foram pequenas as críticas, e a concepção de liberdade
defendida por Rousseau encontrou resistências. Como visto em nossa introdução,
parte do pensamento liberal nutriu discordâncias em relação à teoria política de
Rousseau. Para Simpson, a questão envolvendo a democracia e a liberdade
constitui a controvérsia entre Benjamin Constant e Rousseau:
A maneira mais fácil de entender a diferença entre Constant e Rousseau é
que o anterior estava mais desejoso do que o último a sacrificar a
democracia em função da liberdade individual. Rousseau, porém, não foi ao
outro extremo; ele não sacrificou simplesmente os direitos individuais à
democracia. Na verdade, assim como sua teoria da liberdade civil, ele
tentou reconciliar uma defesa robusta dos direitos individuais como uma
possível teoria da soberania; e seu discurso da democracia tentou também
reconciliar essa mesma teoria de direitos com a necessidade para o coletivo
autogovernado (SIMPSON, 2007, p.141).
O Contrato Social, segundo pensamos situa-se no campo do dever ser,
porém é possível acreditar que Rousseau desejou um dia vê-lo inspirando povos. A
relação entre a obra de Rousseau e a revolução francesa em certa medida cumpriu
esse papel. Assim, a densa obra do genebrino, além de fornecer importantes
elementos para análise e reflexão, também forneceu bases para situações concretas
e reais. Trata-se do Rousseau no campo do “ser”, o legislador. Neste próximo
capítulo estudaremos duas propostas políticas feitas por ele na efetividade das
coisas:
os
projetos
constitucionais
para
a
Córsega
e
para
a
Polônia.
80
CAPÍTULO 3 – CÓRSEGA E POLÔNIA: A LIBERDADE POLÍTICA NA
PRÁTICA, A LIBERDADE POSSÍVEL.
Passaremos agora a investigar a perspectiva prática ou a experiência política
propriamente
dita
presente
no
pensamento
político
de
Rousseau.
Reconhecidamente um destacado pensador político do século XVIII, em especial por
seus Discursos e o Contrato Social, tendo este último influenciado os revolucionários
jacobinos em 1789, tais obras podem ser lidas como textos normativos ou da
filosofia moral do genebrino. Aqui nos deparamos com o filósofo mergulhado nas
circunstâncias, com os olhos fitos na prática e nos fatos, chamado a ser um
reformador ou legislador ou talvez ambos. Trata-se de um aspecto fundamental para
se considerar nas reflexões de Rousseau, um filósofo acostumado à análise e à
normatividade em seus textos; passar a desempenhar o papel daquele que propõe
as mudanças e reformas necessárias como um típico legislador. Dois povos
mereceram a atenção do genebrino: os corsos e os poloneses. A Córsega acossada
pelos genoveses e a pedido de Pasquale Paoli recebeu de Rousseau um breve
ensaio na forma de projeto de Constituição; quanto aos Poloneses, representados
pelo conde Wielhorski, membro da Confederação de Bar, organização de resistência
polonesa, descontente com a forte influência e dominação russa em território
polonês, solicitaram ao genebrino um projeto de reforma, para tanto forneceram
diversas informações sobre a Polônia e seu povo, o que possibilitou a elaboração do
trabalho, ainda que Rousseau não tenha se deslocado até aquele país.
Mais atentamente, o que percebemos são duas nações em busca de
liberdade. O homem das ideias e das letras não se furtou diante desta nova e
concreta situação. É neste percurso que continuaremos a investigar a liberdade nos
textos práticos de Rousseau. Assim, iniciaremos nossas reflexões com o Projeto de
Constituição para a Córsega, escrito entre 1764 e 1765, e, posteriormente, suas
Considerações sobre o governo da Polônia, de 1772.
3.1. A Córsega
A Córsega é uma pequena ilha situada ao sul da França e a oeste da Itália. A
ilha esteve sob o domínio de Gênova e Pisa obrigando os corsos a travar duros
combates por sua liberdade. Deixemos que o próprio genebrino nos fale mais desta
bela ilha sedenta por liberdade. Segundo escreve o genebrino no Projeto:
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Montanhas, bosques, rios, pastagens- não se acreditaria estar lendo a
descrição da Suíça? Também outrora se encontraria na Suíça o mesmo
caráter que Diodoro atribui aos corsos: equidade, humanidade e boa-fé.
(ROUSSEAU, 1962, p. 202).
A ilha enfrentava dificuldades em virtude de constantes conflitos com nações
vizinhas, o que Rousseau fez questão de destacar no texto:
Os fatos já comprovaram que a ilha da Córsega, mesmo estado de
abandono e esgotamento em que se encontra, basta à subsistência de seus
habitantes, pois, durante os trinta e seis anos de guerra nos quais lidaram
mais com as armas do que com as charruas, para seu consumo não entrou
um único carregamento de gêneros e víveres de qualquer espécie
(ROUSSEAU, 1962, p. 208).
Contudo, apesar da dificuldade, a Córsega possuía boas perspectivas de
sustentabilidade por sua rica diversidade, como afirmou Rousseau:
Possui mesmo tudo de que precisa, além dos víveres de qualquer espécie.
Possui mesmo tudo de que precisa, além dos víveres, para chegar a
manter-se numa situação florescente, sem nada tomar emprestado do
exterior. Possui lã para os tecidos, cânhamo e linho para as telas e
cordames, couro para os sapatos, madeira de construção para a marinha,
ferro para as forjas, cobre para os utensílios e para a moeda de trôco.
Possui sal para o consumo e o terá em maior quantidade se restabelecer as
salinas de Alleria, que os genoveses com tanto trabalho e despesas
conseguiram levar à destruição e que, apesar disso, ainda davam sal.
(ROUSSEAU, 1962, p. 209).
3.2. O projeto de Constituição para a Córsega
Ainda que o projeto desenvolvido por Rousseau para a ilha de Córsega não
tenha se transformado efetivamente numa Constituição, ele teve o mérito de
demonstrar o esforço do genebrino em transitar da teoria à pratica.
Rousseau já nutria pelos corsos um velho apreço, como o demonstrou em
seu Contrato Social, como podemos constatar numa citação elogiosa relacionada à
luta pela liberdade desse povo:
Ainda há na Europa um país apto a ser bem legislado: é a Ilha de Córsega.
O valor e a constância com a qual esse bravo povo soube recuperar e
defender sua liberdade, bem merece que algum homem sábio o ensine a
conservá-la. Tenho algum pressentimento de que um dia essa pequena ilha
surpreenderá e Europa. (ROUSSEAU, 1996,p.110).
Importante destacar que por volta de 1734-35, ainda que sem sucesso, os
corsos rebelam-se contra a exploração exercida pelos genoveses, voltando a
empreender novos combates sob o comando de Pasquale Paoli. É neste cenário
que em 1764 Matteo Buttafoco, representante de Paoli, solicita a Rousseau a
82
elaboração de um projeto de Constituição para a Córsega, escrito entre 1764 e 1765
e publicado postumamente somente em 1861.
Pasquale Paoli, tido como herói nacional na Córsega, era também muito
admirado por Rousseau, conforme se pode perceber em carta deste endereçada a
Buttafuoco, representante de Paoli, como se pode ler:
Permiti-me, porém, uma curiosidade que me inspiram a estima e a
admiração. Gostaria de saber tudo o que diz respeito ao Sr. Paoli: que idade
tem? É casado? Tem filhos? Onde aprendeu a arte militar? Como a
felicidade de sua nação o colocou à frente de suas tropas? Que funções
exerce na administração política e civil? esse grande homem se conformaria
em ser um mero cidadão de sua própria pátria depois de ter sido seu
salvador? (ROUSSEAU, 1962, p.246).
Lourival Gomes Machado, em sua introdução à edição brasileira do Projeto de
Constituição para a Córsega, esclarece que o elogio feito por Rousseau, em seu
Contrato Social, à pequena ilha, conquistou definitivamente o coração dos corsos,
que acabaram por lhe incumbir tão importante tarefa:
Não é de surpreender, pois, que no Contrato Social (livro II, capítulo X), haja
um período afirmando que um único país em toda a Europa, ainda poderia
receber legislação compatível com a verdadeira liberdade humana – a
Córsega, a ilhazinha que, dizia Rousseau, poderia assombrar a Continente
orgulhoso (MACHADO, apud ROUSSEAU, 1962, p.183).
Além do desafio a que foi submetido Rousseau, passando das letras à
prática, segundo Lourival Machado, os corsos tinham um expectativa imensa em
relação ao trabalho oferecido:
Numa carta, datada de Mézières, 31 de agosto de 1764, Buttafuoco, em
termos verdadeiramente desvanecedores, incita Rousseau a assumir, na
Córsega, a função quase divina que o Contrato destinava ao Legislador, ao
mesmo tempo que demonstrava conhecer, como verdadeiro homem de
cultura, a letra e o espírito dessa obra. (MACHADO, apud ROUSSEAU,
1962, p. 183).
Rousseau já era um escritor bem conhecido na Europa à época em que
escreveu este ensaio político; seus Discursos, além do Contrato Social e do Emílio,
garantiram tal reconhecimento. Desta forma não foi uma total surpresa que fosse
convidado para exercer o papel de legislador reformador de duas nações que
procuravam reerguer-se de seus escombros. Para Wokler, a sensibilidade aos
costumes locais demonstrada por Rousseau em seu Contrato Social foi decisivo
para tais convites, como lemos:
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A visível sensibilidade de Rousseau aos costumes locais e tradições
nacionais no Contrato social, ao par de sua firme adesão aos critérios do
certo, granjeou-lhe admiradores em toda a Europa, e talvez principalmente
nos países que lutavam contra o domínio estrangeiro ou procuravam
preservar uma liberdade autóctone durante as guerras civis que eram
presas fáceis de poderes externos. Em 1764, quando o patriota Mathieu
Buttafoco convidou Rousseau para ser o legislador de um Estado livre que
ele já declarara ser extremamente adequado à legislação, e em 1770,
quando o conde Michel Wielhorski foi visitá-lo para conversar sobre os
esforços da Confederação Polonesa de Advogados para libertar a Polônia
da tirania russa, em ambas as vezes Rousseau reagiu com entusiasmo.
(WOKLER, 2010, p.108).
Rousseau inicia seu projeto de Constituição da Córsega afirmando que os
corsos são “naturalmente inclinados” a receber um bom governo, o que na prática
facilitaria o recebimento de uma Constituição; é possível acreditar que tal afirmativa
se fundamente no histórico de lutas pela liberdade que o povo corso empreendeu,
sua virtude além de sua diminuta dimensão territorial. Assim escreveu o genebrino:
Pede-se um plano de governo adequado para a Córsega: é pedir mais do
que se pensa. Há povos que, em quaisquer condições não podem ser bem
governados, pois não se submetem às leis, e um governo sem leis não pode
ser um bom governo. Não afirmo que seja esta a condição do povo corso;
ao contrário, tenho a impressão de que nenhum povo é tão bem inclinado
pela natureza a receber uma boa administração. (ROUSSEAU, 2003,
p.179).
Ao percorrer o texto, o que se percebe inicialmente é uma real preocupação
de Rousseau para não transformar em “mil cadeias e ferros” certas medidas ou
ações que ainda que usados com boa-fé poderiam ter efeitos funestos na vida dos
poloneses. Para administrar não bastam apenas boas intenções.
Rousseau vê com otimismo o futuro dos Corsos, mesmo diante de
dificuldades resultantes dos constantes conflitos com os genoveses, contudo, o povo
corso necessita eliminar certos preconceitos, pois, felizmente não contraíram os
vícios de outras nações, salienta Rousseau em seu texto:
Vigorosos e saudáveis, os corsos podem dar-se um governo que mantenha
o seu vigor e a sua saúde. No entanto, mesmo agora a criação desse
governo terá que vencer alguns obstáculos. Os corsos ainda não adotaram
os vícios de outras nações, mas já assumiram os seus preconceitos; são
estes que precisarão ser combatidos e eliminados para que seja possível
criar boas instituições. (ROUSSEAU, 2003, p.180).
Em face da grave situação que passava a Córsega, castigada por quarenta
anos de guerra gerando pobreza e diversas outras dificuldades, Rousseau acredita
que o objetivo primeiro desta nação seria o alcance de sua estabilidade, pois seria
84
impossível sem a existência de seus próprios recursos, o que causaria uma
interminável dependência de outras nações. Fica patente que mesmo em face da
sua delicada situação política e social, a Córsega granjeou o respeito e a admiração
de Rousseau devido a seu ímpeto nas lutas pela independência e liberdade contra
os genoveses, ainda que seja a Córsega pequena em dimensões, como escreveu o
genebrino:
Dignos corsos, quem melhor do que vocês pode saber tudo o que são
capazes de fazer sozinhos? Sem amigos, sem apoio, sem dinheiro, sem
exército, escravizados por senhores poderosos, sozinhos conseguiram
libertar-se dos seus grilhões (ROUSSEAU, 2003, p.181).
A resistência do povo corso e sua luta pela liberdade foram pautadas por
princípios que se distanciam do dinheiro ou interesses pessoais. Rousseau faz uma
atenta análise desta questão e reconhece o empenho que os corsos tiveram em
preservar sua liberdade:
Viram unidos em aliança contra a Córsega, uma por uma, as potências mais
respeitadas da Europa, a inundar a sua ilha com exércitos
estrangeiros.Tudo conseguiram superar. A sua resistência conseguiu o que
o dinheiro nunca teria conseguido; se tivessem querido preservar a sua
riqueza, teriam perdido a liberdade. (ROUSSEAU, 2003, p.181).
Rousseau foi um homem de leituras, tendo contato com a literatura ainda
criança pelas leituras feitas por seu pai. Dos muitos pensadores lidos por Rousseau,
um que certamente o impressionou devido às próprias citações feitas pelo genebrino
em seus textos, foi o filósofo italiano Maquiavel (1469 – 1527). Por seu claro
republicanismo, Maquiavel mereceu o elogio de Rousseau, que definitivamente foi
leitor do pensador florentino. É possível afirmar que a própria leitura do projeto de
Constituição da Córsega carrega em si reminiscências do pensamento político de
Maquiavel e suas lições dadas aos Médicis em meio ao caos político da época.
Como já afirmamos, o genebrino reconhece em Maquiavel um grande pensador,
como escreveu em seu Contrato Social:
Foi isso que Samuel expôs com ênfase aos Hebreus; foi isso que Maquiavel
demonstrou com evidência. Fingindo dar lições aos Reis, deu grandes lições
aos povos. O Príncipe de Maquiavel é o livro dos republicanos
(ROUSSEAU, 1996, 128).
Dentro desta perspectiva Salinas Fortes, em Rousseau da Teoria à Prática,
ao problematizar a figura de Rousseau como homem prático, em especial no projeto
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constitucional para a Polônia, lançando a dúvida quanto o caráter conservador do
genebrino, inverte a própria afirmativa de Rousseau:
Sua técnica de conservação do corpo político, uma vez abandonadas as
alturas da abstração teórica, revelar-se-ia, ao contato com a realidade
concreta, uma técnica neutra a serviço dos poderosos e o rousseauismo, na
prática, nada mais seria do que um maquiavelismo envergonhado.
Parafraseando o próprio Rousseau e invertendo sua fórmula sobre
Maquiavel, pareceria lícito dizer que o que ele faz, na realidade, fingindo dar
lições ao povo, é ensinar os poderosos do momento. (FORTES, 1976, p.34).
3.3. A importância da agricultura
Ao percorrer certos textos de Rousseau nos deparamos com sua conhecida
defesa da simplicidade, cultivo da virtude e busca por uma autossuficiência como
vimos em especial nas lições recebidas por Emílio. Assim, o conhecimento da terra e
também da agricultura já se constituindo uma importante prática para o homem
rousseauniano.
Para melhor entendermos a importância dada a agricultura no século XVIII,
vez que o próprio Rousseau dá a ela grande destaque, necessário se faz consultar o
verbete “agricultura” na enciclopédia organizada por Diderot e D‟Alembert, fruto
deste mesmo século. Diderot que se encarrega do verbete, faz uma ampla
exposição da importância histórica, política e de subsistência que teve a agricultura
desde os egípcios, passando por gregos e romanos. Para que tenhamos uma ideia
do papel dado a agricultura no século de Rousseau, leiamos o início do verbete :
A agricultura, como a própria palavra indica, é a arte de cultivar a terra. É a
primeira, mais útil, mais extensa e talvez a mais essencial das artes. Os
egípcios atribuíram a Osíris o mérito de sua invenção; os gregos, a Ceres e
Triptolemo, seu filho; os italianos a Saturno ou a Jano, seu rei, que foi
colocado entre os desuses em reconhecimento por este benefício.
(DIDEROT, 2006, p.25).
Voltando à obra de Rousseau, também podemos recorrer à dupla lição dada
pelo preceptor a Emílio, no episódio descrito no livro II do seu Emílio ou da
educação, envolvendo o jovem aluno e o jardineiro Robert, primeiro ocupante da
terra onde Emílio pretendia cultivar. Aqui é possível pensar que Rousseau nos
fornece a importância que tem o conhecimento das técnicas de agricultura na
formação do jovem Emílio, bem como o reconhecimento do direito do primeiro
proprietário, escreveu Rousseau:
86
Trata-se, pois, de voltar à origem da propriedade, pois é de lá que a primeira
ideia deve nascer. Vivendo no campo, a criança terá tido alguma noção dos
trabalhos campestres; para isso, só é preciso lazer e olhos, e ela terá essas
coisas. Em todas as idades, e sobretudo na sua, a criança quer criar, imitar,
produzir, dar mostras de potência e de atividade. Não terá visto duas vezes
levarem um jardim, semearem, germinarem e crescerem os legumes, e
quererá também cultivar um jardim. (ROUSSEAU, 1999, p.98).
Importante lembrar que Rousseau reconhece a importância do cultivo de
terras também em seu Discurso sobre a desigualdade:
Na medida em que se multiplicou o número de trabalhadores, menos mãos
houve para atender à subsistência comum, sem que com isso houvesse
menos bocas para consumi-la, e, como uns precisam de comestíveis em
troca do ferro, outros por fim encontram o segredo de empregar o ferro na
multiplicação dos comestíveis. Nasceram assim, de um lado, a lavoura e a
agricultura e, de outro, a arte de preparar os metais e de multiplicar-lhes o
emprego. (ROUSSEAU, 1983, p. 266).
Ainda no segundo Discurso, leiamos:
Quanto à agricultura, conheceu-se o princípio muito antes de ser prática
estabelecida e absolutamente não é possível que os homens, ocupados
continuamente em obter sua subsistência das árvores e das plantas, não
formassem rapidamente a idéia das vias empregadas pela natureza para a
geração dos vegetais [...](ROUSSEAU, 1983, p.265).
Voltando para os corsos e sua situação econômica, é possível pensar que
embora tenham a duras penas conseguido sua independência, acabaram se
perdendo em brigas e divisões internas, o que na prática serviu para torná-los mais
fracos e dependentes.
A Córsega necessitaria da paz interna e liberdade, e pensando nisso
Rousseau formula alguns princípios que seriam os fundamentos da nova
Constituição:
(...) recorrer em toda a medida do possível ao seu país e ao seu povo;
cultivar e reagrupar as suas forças; depender exclusivamente delas; não dar
mais atenção às potências estrangeiras, agindo como se não existissem
(ROUSSEAU, 2003,p.182).
Importante destacar que o projeto constitucional para a Córsega destaca o
papel e a força que tem a agricultura pela subsistência que permite, gerando a
esperada independência externa e também pela vigorosa formação que esta garante
ao homem do campo, como escreveu o genebrino:
Lavrar o solo torna os homens pacientes e robustos, qualidades necessárias
para fazer bons soldados. Os recrutas recolhidos nas cidades são frouxos e
indisciplinados; não podem suportar as fadigas da guerra; desfalecem sob a
87
tensão das longas marchas; são consumidos pela doença; disputam entre si
e fogem do inimigo. As milícias treinadas são os melhores soldados, e mais
confiáveis. A verdadeira formação de um soldado é trabalhar no campo
(ROUSSEAU, 2003, p.184).
Reconhecendo a pobreza reinante na Córsega, Rousseau entende ser
necessária uma forma de governo propícia à agricultura, semelhante a um Estado
republicano e democrático, pois assim a distribuição dos produtos agrícolas será
feita de forma igual à população, a exemplo do que ocorria em sua Suíça.
É possível pensar que a agricultura corsa tenha merecido destaque neste
projeto constitucional, pois além de ser uma atividade apreciada por Rousseau,
como já demonstrado em outras obras, também poderia possibilitar uma
possibilidade de emancipação econômica à pequena ilha, e por fim sua liberdade em
relação a outras nações.
3.4. Regime de governo
Para Rousseau, as dimensões de uma nação influem diretamente no seu
regime político. Assim, um país de grandes dimensões poderia apresentar sérias
dificuldades para possuir um regime onde as pessoas possuíssem uma participação
política efetiva. Poderíamos pensar que a existência de um corpo soberano ativo
seria mais adequado em territórios de pequena dimensão. A herança democrática
greco-romana seria apenas uma referência perdida no tempo? Para o genebrino,
mesmo sendo a Córsega uma ilha relativamente pequena, as dificuldades na
implantação de um regime sem representação eram flagrantes, razão pela qual se
faria necessário certa delegação de poder, formando na prática um regime
aristocrático ou misto. Aqui temos um Rousseau distante daquele defensor do poder
soberano sem representantes, como lido em seu Contrato Social, porém ao mesmo
tempo nos deparamos com o mesmo Rousseau que estabeleceu princípios de
diretito político, defendeu
o paradigma e o dever ser no seu Contrato, é este
Rousseau que sabiamente se rende às circunstâncias reais e suas demandas da
nação corsa e redige o Projeto de Constituição para a Córsega com olhos fitos no
Contrato. Essa aristocracia não era vitalícia, devendo sofrer alterações periódicas,
como escreveu Rousseau:
A Córsega precisa de um governo misto, onde o povo possa reunir-se por
partes, e no qual os depositários do poder sejam mudados com intervalos
frequentes ( ROUSSEAU, 2003, p.186).
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Títulos de nobreza pertencentes à elite na Córsega devem ser desprezados
nesta importante etapa na luta pela independência. Para Rousseau a liberdade e a
igualdade superariam qualquer título real que pudesse ser concedido, como lemos:
Além da virtude a democracia não conhece outra nobreza a não ser a
liberdade; a aristocracia também não conhece outra nobreza senão a
autoridade. Tudo o que é estranho à constituição deve ser cuidadosamente
banido do organismo político. Deixemos pois aos outros Estados os títulos
de marquês e de conde, que envilecem os simples cidadãos. A lei
fundamental da nossa constituição deve ser a igualdade (ROUSSEAU,
2003, p.188).
A exemplo do que já foi tratado em outros momentos de sua obra, em
especial no Primeiro Discurso, neste projeto de Constituição Rousseau volta
criticar o homem citadino, atribuindo a este
a
a responsabilidade pela tirania que
assola a Córsega, pois sua covardia os fez valorizarem pequenos privilégios. A
virtude de um povo continua a ser um ponto vital na reflexão de Rousseau:
Povoadas de mercenários, as cidades venderam a nação para conservar
alguns pequenos privilégios que com a sua malícia os genoveses sabem
valorizar; punidas como justiça pela sua covardia, eles são os ninhos da
tirania, enquanto o povo corso já goza, gloriosamente, da liberdade que
conquistou como o seu sangue (ROUSSEAU, 2003, p.190).
Ao ler a última citação de Rousseau, não é possível esquecer La Boétie em
sua crítica àqueles que afundados na servidão e tirania permanecem em profunda
inércia, como citara Rousseau há pouco:
Mas, oh, bom Deus! O que pode ser isso? Como o denominaremos? Que
desgraça é essa? Ou que vício? Ou, antes, que vício infeliz? Ver um
número infinito de homens não obedecer, mas servir, não serem
governados, mas tiranizados; não terem nem bens, nem pais, nem filhos,
nem a própria vida a lhes pertencer! Sofrer as pilhagens, a libertinagem, as
crueldades, não de um exército, não de um campo de bárbaros contra o
qual tinham de derramar o sangue e a vida futura, mas de um só! Não de
um Hércules, nem de um Sansão, mas de um único homúnculo e muitas
vezes, o mais covarde e efeminado da nação, não acostumado à pólvora
das batalhas, mas, a muito custo, às areias dos torneios; não ao que possa
comandar os homens à força, mas ao impedido de servir vilmente à menor
femeazinha! (LA BOÉTIE, 2003, p.26).
É possível perceber que até aqui o texto de Rousseau altera descrições do
cenário político, social e histórico de Córsega e propostas estruturais objetivando de
certa maneira a reconstrução da ilha. Para Rousseau a igualdade é um fator decisivo
para o futuro da Córsega. Para que este processo possa alcançar sucesso não será
admitido qualquer tratamento que venha a criar privilégios a certos grupos sociais,
devendo ser inclusive reconhecido o valor do homem do campo, pois no ensaio de
89
Rousseau, a agricultura passa a ser uma atividade fundamental e estratégica na
economia corsa. Neste sentido, deve reinar na ilha o espírito “terra di commune”,
algo que nos remete à isonomia de direitos ou à ideia do coletivo como prática
política.
3.5. A liberdade
Após concluir suas primeiras reflexões sobre a Córsega, e antes de tratar com
mais detalhes questões de governo, Rousseau faz um relato sobre a sua Suíça,
entendendo ser o modelo ideal para os corsos. O genebrino traça um perfil virtuoso
dos suíços, como adeptos da simplicidade e amantes da liberdade, características
fundamentais para a construção de uma nação, em suas palavras:
(...) quando se vê a firmeza inabalável, a constância, a determinação com
que esses homens terríveis emprestam aos combates, decididos a morrer
ou vencer e sem alimentar sequer a ideia de distinguir a sua vida da
liberdade, não se terá dificuldade em imaginar os prodígios que fizeram para
defender o seu país e a sua independência, nem nos surpreenderemos de
ver as três maiores potências e os soldados mais belicosos da Europa
fracassar reiteradamente nos seus ataques contra nação heroica cuja
simplicidade tornava quase invencível, tanto aos ardis como ao combate.
Este é o modelo que os corsos devem seguir para retornar à sua situação
original. (ROUSSEAU, 2003, p.194).
Porém, o encantamento de Rousseau pelos seus compatriotas não é
absoluto, pois, apesar do belo retrato do homem suíço feito há pouco, o genebrino
alerta que o dinheiro, o gosto pelo luxo e as artes acabaram por corrompê-los. A
liberdade dos suíços foi seriamente comprometida pelo estilo de vida por eles
adotado, distante da visão virtuosa de outrora, assim lemos:
A vida ociosa introduziu no Estado a corrupção, aumentando o número dos
indivíduos mantidos pelas potências estrangeiras; extinguindo-se em todos
os corações o amor da pátria, substituído pelo amor ao dinheiro (...). No
passado a Suíça se impunha à França; hoje, enriquecida, ela treme como o
mero franzir de sobrancelhas de um ministro francês (ROUSSEAU, 2003,
p.196).
Ao analisar certas passagens como a última, é fácil compreender as intensas
perseguições sofridas pelo genebrino; seu estilo e verve inconfundíveis granjearam
diversos inimigos.
A liberdade da Córsega em relação a nações estrangeiras, bem como sua
independência econômica, ganharam grande destaque no texto em análise de
Rousseau. A agricultura que já nos referimos merece atenção e certa proteção para
90
que sua finalidade não seja deturpada e se torne um item comercializado e gerador
de lucros pessoais. Curiosamente, a circulação de dinheiro também deve ser
restringida, pois, na prática, este é o símbolo da desigualdade e a Córsega possui
fartamente tudo que é necessário para sua sobrevivência, certamente devido às
suas favoráveis condições ambientais, clima e sua localização privilegiada.
Como bom leitor dos antigos e por eles influenciado, Rousseau vê com bons
olhos a divisão da nação corsa em três classes, que apesar de manter a
desigualdade pessoal, suprimiria a desigualdade de raça e habitação resultante do
sistema feudal então reinante. Desta forma a primeira classe seria composta por
cidadãos, a segunda por patriotas e a terceira por aspirantes, sendo possível a
evolução do individuo, migrando de uma classe inferior para uma superior desde que
atendidos certos requisitos.
Tratando das finanças do Estado, Rousseau repete uma ideia frequente em
alguns de seus textos, a questão moral e da virtude, no caso da Córsega, itens
necessários a sua reconstrução:
Evitemos aumentar o tesouro monetário às custas do tesouro moral: na
verdade, é este último que nos assegura a posse dos homens e de toda
potência, enquanto com o primeiro só se consegue a aparência dos
serviços, e não se pode comprar a vontade genuína de presta-los
(ROUSSEAU, 2003, p.214) .
O projeto de Constituição para a Córsega não chegou a ser concluído por
Rousseau, e o que temos não passa de um fragmento desta obra, assim algumas
questões vitais ficaram ausentes ou foram tratadas sem a dimensão esperada para
um filósofo político como Rousseau. Acreditamos que no presente projeto
constitucional, onde o genebrino se lança como legislador, a liberdade individual
como elemento indispensável não mereceu a mesma atenção dispensada ao texto
normativo do Contrato Social, onde instâncias como o soberano e a vontade geral
foram bem explorados. Em seu projeto Rousseau não recomenda um regime
totalmente democrático, ideal para pequenas cidades, e como explicou as
dimensões da ilha eram desproporcionais para tal intento. Nada impede de
pensarmos que a situação de extrema fragilidade e dependência externa da ilha
também não fossem propícias a um regime democrático, preferindo Rousseau outra
alternativa mais adequada à Córsega, a aristocracia.
91
A percepção que temos ao ler o projeto de Constituição para a Córsega é
uma real preocupação de seu autor em estabelecer um plano emergencial para
garantir a independência financeira em relação às nações vizinhas, em especial os
genoveses. Não temos neste texto um tratado político complexo a exemplo do
Contrato Social, mas uma tentativa de sanear no menor prazo possível as
dificuldades enfrentadas pela ilha, principalmente com base na agricultura.
Neste contexto de turbulência política e financeira vivida pela Córsega, não
causa espanto que o genebrino tenha reservado pouco espaço para tratar da
liberdade política individual, como fizera no Contrato Social, preocupando-se mais
com a liberdade da Córsega como nação, buscando sua independência
internacional a exemplo dos suíços, como salientou Rousseau. A esse respeito
escreveu Salinas Fortes em seu Rousseau da Teoria à Prática:
Se nos voltarmos para as obras práticas na esperança de encontrar
elementos capazes de preencher a lacuna, não apenas nossa expectativa
se frustra rapidamente, como, além disso, um novo Rousseau parece surgir
diante de nós. O Projeto de Constituição para Córsega não parece apto a
nos ajudar, na medida em que tal; como na perspectiva do Contrato, tratarse-ia aí apenas de organizar politicamente uma nação que, aos olhos de
Rousseau, dentre todas as que lhe são contemporâneas, é a única a
preencher as condições que tornam um povo próprio para a Legislação
(FORTES, 1976, 30).
Classificar Rousseau como conservador ou pouco ousado após a leitura do
projeto para Córsega, ao compararmos com o Rousseau do Contrato Social, nos
parece inadequado, pois há uma grande diferença entre um texto normativo e a
figura real do legislador, em especial se tratando de uma nação castigada por toda
sorte de dificuldades e carências como a Córsega, porém possuindo como maior
patrimônio seu ímpeto para a liberdade, o que para Rousseau certamente já é um
belo início.
3.6. A experiência polonesa
Rousseau terá mais uma oportunidade de produzir um texto político, e
novamente colaborar com outra nação por meio da força de sua pena.
Como
ocorreu com os corsos, temos novamente Rousseau chamado ao papel de
reformador. Neste momento de nossa investigação e reflexão enfatizaremos o
problema da liberdade política, agora na experiência que o genebrino compartilhou
com os confederados poloneses. Suas impressões, conselhos e análises a respeito
92
estão reunidas nas Considerações sobre o governo da polônia e sua reforma
projetada, ao que se sabe concluída em 1771. Pouco se sabe sobre as condições
em que se encontrava o genebrino ao redigir seu último texto político; é o que diz
Lourival Gomes Machado em sua introdução ao segundo volume de Obras de JeanJacques Rousseau:
Restam até hoje imprecisas asa circunstâncias exatas em que foram
redigidas as Considerações sobre o Governo da Polônia, o que facilmente
se explica pela orientação de vida nessa ocasião adotada por seu autor.
Rousseau ao voltar para Paris, em julho de 1770, já experimentara a inteira
cadeia de grandes e pequenas misérias, reais e imaginarias, que
atormentaram suas estadas na Suíça e na Inglaterra e que acompanharam
certos incidentes de monta, como, por exemplo, a condenação de seus
livros.(MACHADO, apud ROUSSEAU, 1962, p.257).
Essa perspectiva prática ou do campo do “ser” justifica-se nessa fase de
nossa pesquisa, pois dessa vez poderemos acompanhar Rousseau diante de
problemas e circunstâncias reais, e de certa forma graves, que atingiam a Polônia na
esfera política. Rousseau foi chamado por alguns poloneses a propor uma reforma
com todas as suas implicações. Qual tratamento que o genebrino dará à liberdade,
liberdade esta que defendera em outras obras?
Como salienta Ricardo Monteagudo no seu Entre o direito e a história, a
concepção do legislador em Rousseau, o genebrino é chamado a exercer um papel
de destaque na história polonesa:
O legislador nada mais é do que o intérprete esclarecido do julgamento que
o povo faz da vontade geral [...]. O legislador surge com a necessidade
desse esclarecimento. Por isso Rousseau precisaria dispor de todas as
informações sobre a Polônia de maneira absoluta (na sua totalidade) e
desinteressada (de forma divina) para assumir historicamente a função
teórica do legislador. (MONTEAGUDO, 2006, p.168).
É importante salientar que nas Considerações de Rousseau não encontramos
o “igualitarismo republicano do Contrato”, para usar a expressão de Salinas Fortes.
Apenas para argumentar e sem querer antecipar nossa conclusão do capítulo, em
nosso entender, o que temos nas Considerações é a proposta de um pensador que
não perdeu a capacidade de observar as circunstâncias que o cercavam à época,
alguém que mergulhou na dura realidade dos poloneses e pensou numa reforma
possível para a situação, tendo no Contrato Social uma espécie de paradigma citado
inúmeras vezes no texto aos poloneses. Rousseau analisou cuidadosamente a
situação vivida por aquele povo e apresentou, segundo seu juízo, um projeto
93
adequado ao conturbado momento político dos poloneses, onde a ideia de ruptura
drástica fora rejeitada pelo genebrino que declarou no texto ser necessário não
abalar nunca “muito bruscamente a máquina” ao se referir a administração polonesa,
ou como bem observou Salinas Fortes:
Desde a primeira leitura das Considerações, a alergia pela mudança ressalta
nitidamente. Conselhos de prudência repetem-se ao longo do texto como um
leitmotiv. Desde o primeiro capítulo, os poloneses são advertidos a não tocar
na Constituição a não ser com uma circunspeção extrema. (FORTES, 1976,
p.30).
Torna-se importante nesta fase da pesquisa investigar a relação existente
entre as Considerações e o Contrato Social. Ler as Considerações e concluir que
Rousseau afastou-se dos princípios do Contrato pode nos parecer algo precipitado,
neste sentido vale a leitura de Salinas Fortes, em sua apresentação à edição
brasileira das Considerações, comentou:
À primeira vista, o texto surpreende pela moderação das propostas. Quando
se esperava, à luz do igualitarismo republicano do Contrato, o mesmo
radicalismo, Rousseau propõe apenas algumas tímidas transformações
para uma constituição monárquica que excluí da participação na soberania
os burgueses e camponeses, ou seja, a maioria da população. Por outro
lado, o princípio da representação por meio de deputados, que Rousseau
criticara de forma tão intransigente no Contrato, também aqui parece
submetido a uma espécie de reabilitação. Não se trata de reabrir a questão
da coerência de Rousseau. Basta lembrar as constantes remissões
explícitas ao Contrato contidas no texto para perceber a preocupação do
autor e compreender que nos achamos aqui diante de uma aplicação no
sentido mais rigoroso do termo. (ROUSSEAU, 1982, p.12).
Neste percurso, além do Contrato Social, obra que entendemos manter
relação com as Considerações, trabalharemos com o Discurso sobre a origem e os
fundamentos da desigualdade entre os homens aproximando-a das Considerações.
Nesse sentido Salinas procura relacionar o segundo Discurso com a sociedade
polonesa do século XVIII:
A hipótese com a qual trabalha o Legislador ideal do Contrato é a de um
verdadeiro corpo político, de uma verdadeira República constituída de
acordo com os princípios do direito. A sociedade polonesa, ao contrário,
acha-se na linha do Discurso sobre a Desigualdade, no plano da má
história, da passagem viciosa para o estado civil comandada pelo pacto
mistificador feito sob o patrocínio dos ricos e em seu benefício. (FORTES,
1976, p. 33).
A Polônia dos tempos de Rousseau vivia uma forte influência russa, pois nas
palavras de Lourival Gomes Machado:
94
Consequentemente, caberá apenas realçarmos o que, da nota de Petitain,
se depreende acerca do momento especialíssimo em que a Rousseau se
pediu um esboço de constituição. A esse tempo, a Polônia não se
encontrava livre: Estanislau Poniatowski, o amante de Catarina II que os
russos haviam inculcado no trono polonês, não passava de um lastimável
títere da corte de São Petersburgo (MACHADO, apud ROUSEAU, 1962,
p.258).
É nesse cenário, onde há pouca liberdade e a política necessita de urgentes
reformas, segundo acreditava alguns poloneses, que um certo Wielhorski, conde
polonês e representante da “confederação” de Bar, encarrega Rousseau de preparar
um projeto de reforma das instituições polonesas. Posteriormente, declararia o
genebrino que esta tarefa lhe consumira seis meses. Segundo Lourival Gomes
Machado, é possível acreditar que Rousseau nutria grande respeito e admiração
pelo conde Wielhorski, além do povo polonês, o que permitiu voltar a escrever um
texto político, pois não tinha mais esta pretensão:
No mais, temos a certeza de que o convite de Wielhorski pareceu merecer
de Rousseau uma exceção notabilíssima, pois não trepidou em tomar
novamente a pena depois de jurar nunca mais servir-se dela. (MACHADO,
apud ROUSSEAU, 1962, p.258).
Como retrata a história polonesa, pouco tempo depois do término do texto de
Rousseau, a Polônia foi dividida e os confederados fracassaram em sua tentativa de
reforma, permanecendo o projeto reformador do genebrino sem a sua efetiva
aplicação real.
Fica bem evidente a simpatia que desde as primeiras linhas de suas
Considerações tem Rousseau pela causa dos confederados de Bar e seu intento de
libertar a Polônia do jugo russo, bem como o próprio povo polonês que por diversas
vezes é exaltado no texto do genebrino. Não nos espanta que Rousseau tenha se
lançado nesta empreitada libertária a exemplo da experiência com os corsos, pois a
liberdade e sua defesa sempre foi sua freqüente preocupação, mesmo nunca tendo
sido um revolucionário ou coisa semelhante. Depois de ter sido procurado pelo
conde Wielhorski, solicita a este todas as informações necessárias para produzir
suas Considerações, e assim ofertar aos poloneses um projeto de reforma política
com certa riqueza de detalhes. digna de um polonês nativo. Rousseau mostra
desembaraço ao analisar questões internas e pontuais na política polonesa,
demonstrando seriedade e estudo a partir das informações que lhe foram
apresentadas pelo representante dos confederados.
95
A luta dos poloneses pela sua liberdade, frente ao inimigo externo, encantou o
genebrino e por certo pesou na sua decisão de apoiar os confederados. Havia uma
clara admiração do genebrino pelo empenho que os poloneses tinham em libertar-se
dos inimigos externos e garantirem sua soberania, assim escreveu Rousseau (1982,
p.24), “Ela está sob grilhões e discute meios de se conservar livre!”.
Com todos os problemas existentes, Rousseau ainda via a Polônia como uma
nação livre ou ao menos com vocação para a liberdade, mesmo que perturbada por
inimigos externos e mergulhada em anarquia interna. Para Salinas, a corrupção
ainda não havia devorado a Polônia, o que permite manter o terreno fértil para a
liberdade.
Em nenhum momento, neste primeiro capítulo, é posta em dúvida a
liberdade da nação: apesar de estar sob grilhões, ela discute os meios de
se “conservar livre”. Se assim é, a atitude do Legislador é compreensível:
diante de uma nação livre, ainda não corrompida, o que se tem a fazer é
tratar de conservar a liberdade existente. (FORTES, 1976, p.36).
Monteagudo, tratando do mesmo assunto, procura explicar as razões pelas
quais Rousseau considerava a Polônia uma nação livre, ainda que aparentemente
não tenhamos tal impressão:
Rousseau chama aqui o corpo legislativo polonês de legislador porque não foi
subjulgado pelo poder executivo: “O enfraquecimento da legislação na
Polônia se fez de uma maneira peculiar e talvez única: é que ela perdeu sua
força sem ter sido subjulgada pelo Poder Executivo. Neste momento ainda o
Poder Legislativo conserva toda sua autoridade; está na inação, mas sem
nada ver acima dela”. Esse é o motivo pelo qual, de um lado, a anarquia
polonesa ainda não destruiu o Estado, e, de outro, trata-se de um Estado
moderno que não precisa perder a esperança de se tornar verdadeiramente
livre (MONTEAGUDO, 2006, p.172).
É perceptível pela leitura das Considerações que o genebrino de fato via a
Polônia por um olhar diferenciado, tentando passar ao largo dos graves problemas
existentes. Lourival Gomes Machado procura fornecer uma importante chave para
leitura do projeto aos poloneses:
Não se pode, pois, ler as Considerações à luz do desencantamento que a
posterior história da Polônia lançou sobre essas esperanças. Nem, sequer,
em direto confronto com a realidade então reinante na Polônia e conhecida
de Rousseau. Ele pensava numa nação que, se não era propriamente nova,
desejava renovar-se inteiramente, num povo que, se propriamente não
nascia, ansiava por renascer. Fiado nessa certeza, cuja exatidão objetiva
seria inócuo hoje aferir, elaborou o texto que entregaria a Wielhorski para
apresentar, tarde demais, à confederação geral dos poloneses rebelados.
(MACHADO, apud ROUSSEAU, 1962, p.259).
96
Pensando em propostas adequadas à realidade dos poloneses, Rousseau
não pode deixar de fora de seus cálculos todas as dificuldades envolvidas nesta
tarefa. Uma nação que sofre com o peso do despotismo de seu rei e a ameaça do
dominador externo, ainda que tenha um povo admirável e amante da liberdade,
poderá o tempo acalmar este desejo e fazer com que se prefira a paz dos grilhões à
luta pela liberdade. Manter a liberdade sempre constituirá uma das mais árduas
tarefas de um povo, e não será diferente no caso dos poloneses:
Vós amais a liberdade, sois dignos dela; vós a defendestes contra um
agressor poderoso e ardiloso, que fingindo vos apresentar os laços da
amizade, vos impôs os grilhões da servidão. Agora, cansados das
perturbações de vossa pátria, suspirais pela tranquilidade. Creio ser muito
fácil obtê-la; mas conservá-la com a liberdade, eis o que me parece difícil. E
no seio desta anarquia, vos garantiram do jugo. Elas dormiam em um
repouso letárgico; a tempestade despertou-as. Após terem quebrado as
algemas que lhes destinavam, sentem o peso da fadiga. Gostariam de aliar
a paz do despotismo às doçuras da liberdade. Tenho medo de que queiram
coisas contraditórias. O repouso e a liberdade parecem-me incompatíveis; é
preciso optar. (ROUSSEAU, 1982, p.24).
A advertência de Rousseau nos remete à famosa frase atribuída a Flavius
Vegetius, escritor romano do século IV d.C e propagada ao longo dos séculos.: “ si
vis pacem para bellum”, ou seja, se queres a paz, prepara-te para a guerra, e
demonstra a preocupação sobre a ilusão que o despotismo poderia gerar no seio
dos poloneses já esgotados por duras lutas internas e externas pela paz e liberdade.
Render-se ao despotismo é um dos caminhos para encontrar a paz, mas
seguramente o pior, se pode concluir da leitura das Considerações. O despotismo
pode apresentar sua face enganosa, confundindo os poloneses com a ideia de paz.
O genebrino já advertirá seus leitores em célebre passagem do Primeiro Discurso:
Enquanto o Governo e as leis atendem à segurança e ao bem-estar dos
homens reunidos, as ciências, as letras e as artes, menos despóticas e
talvez mais poderosas, estendem guirlandas de flores sobre as cadeias de
ferro de que estão eles carregados, afogam-lhes o sentimento dessa
liberdade original. (ROUSSEAU, 1983, p.334).
Prevendo certa dificuldade na proposição de uma reforma, Rousseau fornece
nas Considerações uma série de recomendações que julgava necessárias ao povo
polonês e sua realidade político-social, porém três exigências são destacadas no
texto visando à construção desta Polônia: a necessidade que o polonês busque a
virtude, amar sua pátria e também a liberdade. Em seus textos políticos, em especial
o Contrato Social, fica clara a importância dada por Rousseau a ação legislativa no
97
corpo político. A partir daí, foram construídas as noções de “vontade geral”,
“soberano” e “legislador”. Estes princípios não foram esquecidos por Rousseau em
sua experiência polonesa, assim a lei deveria atingir o coração humano, para que
produzisse sua boa eficácia, como advertiu Rousseau:
Nunca haverá boa e sólida constituição além daquela em que a Lei reinará
sobre os corações dos cidadãos. Enquanto a força legislativa não for até lá,
as leis serão sempre eludidas. Mas como chegar aos corações? É nisso que
os nossos instituidores, que só veem a força e os castigos, nunca pensam e
é ao que talvez as recompensas materiais não conseguiram melhor
conduzir; mesmo a justiça mais íntegra não leva até aí porque a justiça é,
assim como a saúde, um bem de que gozamos sem sentir, que não inspira
entusiasmo e de que só sentimos o preço depois de tê-la perdido.
(ROUSSEAU, 1982, p.25).
Como poderão a Constituição e as leis atingirem o coração humano? Para
Rousseau tudo pode começar na infância, o meio adequado para que a lei chegue
ao coração do homem na idade adulta e deve ser feito por meio dos jogos infantis,
assegurou Rousseau. Aqui temos uma clara remissão ao seu Emílio, destacando a
importância da aprendizagem precoce nos assuntos relacionados à política.
Rousseau reconhece a grandeza de homens como Moisés, Licurgo e Numa.
Importantes legisladores que a seu modo e época conseguiram alcançar o coração
dos homens, que certamente serviriam de exemplo aos poloneses.
Ao longo da obra percebemos a importância que Rousseau atribui a uma
completa mudança de sentimento por parte dos poloneses, caso realmente desejem
de fato reformar o país. As referências aos “corações” são constantes, e é nele que
devem ser escritos virtude, coragem, e amor à pátria e liberdade. Nas
Considerações o apelo ao sentimento vai ficando demonstrado em especial pelos
usos dos termos corações, coragem e virtude funcionando como verdadeiro
elemento psicológico aos poloneses cansados das dificuldades políticas. A este
respeito escreveu em suas Considerações:
Não vejo no estado presente de coisas a não ser o único meio de lhe dar
essa consistência que lhe falta: é de infundir, por assim dizer, em toda a
nação a alma dos confederados; é de estabelecer de tal forma a República
nos corações dos poloneses, que neles subsista apesar de todos os
esforços de seus opressores. É este, ao que parece, o único asilo em que a
força não pode nem atingi-la nem destruí-la. Acabamos de ter disso uma
prova para sempre memorável. (ROUSSEAU, 1982, p.30).
Ainda em relação ao sentimento em Rousseau, esta questão também foi
trabalhada por ele em outras de suas obras políticas, pois além de enfatizar a
98
necessidade de um coração puro e virtuoso, também serviu para desnudar a forte
influência greco-romana do genebrino, como analisar no encerramento do seu
premiado Primeiro Discurso:
Oh! Virtude, ciência sublime das almas simples, serão necessários, então,
tanta pena e tanto aparato para conhecer-te?Teus princípios não estão
gravados em todos os corações? E não bastará, para aprender tuas leis,
voltar-se sobre si mesmo e ouvir a voz da consciência no silêncio das
paixões? (ROUSSEAU, 1983, p.352).
Rousseau trabalha o tema da liberdade desde as primeiras linhas de suas
Considerações, inicialmente por uma perspectiva mais ampla e espacial, mais
precisamente a defesa externa polonesa, para posteriormente apresentá-la como
algo necessário a cada indivíduo. Como vimos, o genebrino entendia que os
poloneses conservavam o germe da liberdade, mesmo sendo acossados por
inúmeros problemas, os longos anos de disputa pelo poder e lutas internas não
tiraram dos poloneses este amor pela liberdade, ressaltado por Rousseau em suas
Considerações:
A Polônia estava sob as algemas do russo, mas os poloneses
permaneceram livres. Grande exemplo que mostra como podeis enfrentar o
poderio e a ambição de vossos vizinhos, Não seríeis capazes de impedir
que vos engulam, façam, ao menos, que não possam vos digerir. Seja como
for que fizemos, antes que tenhamos dado à Polônia tudo o que lhe falta
para ficar em estado de resistir a seus inimigos, ela por eles será cem vezes
esmagada. (ROUSSEAU, 1982, p.30).
As instituições políticas polonesas, em especial as Dietas, mesmo que
necessitando de reformas, ainda garantiam a primazia do poder legislativo sobre o
executivo, razão pela qual Rousseau cria na liberdade daquele povo.
Rousseau (1982), em forma de elogio, afirma que a virtude e o amor à pátria
comum nos poloneses poderiam ser responsáveis na garantia da própria soberania
do país. Como ensina a sabedoria popular, para grandes problemas, grandes
remédios, porém no caso dos poloneses este remédio não deveria ser tão grande
assim, seria necessário apenas assumir-se como um verdadeiro polonês, buscar sua
identidade e voltar-se para pátria, como escreveu Rousseau (1982, p.30): “Se
fizerdes de maneira a que um polonês jamais possa se tornar um russo, respondo
que a Rússia não subjugará a Polônia.”
Importante destacar que este projeto de reforma proposto por Rousseau faz
constantes reminiscências a algumas de suas obras, em especial, o Contrato Social,
99
citado nominalmente algumas vezes, além de encontrarmos referências ao Emílio, a
exemplo da passagem onde Rousseau sugere aos poloneses a prática de exercícios
corporais aos jovens, por sua importante finalidade:
Finalmente, o gosto pelos exercícios corporais desvia de uma ociosidade
perigosa, dos prazeres efeminados e do luxo do espírito. É sobretudo por
causa da alma que é preciso exercitar o corpo e eis o que os nossos
sabiozinhos estão longe de ver.” (ROUSSEAU, 1982, p.34).
Salinas Fortes salientou esta proximidade entre o Contrato Social e as
Considerações da seguinte maneira:
O objetivo estratégico de Legislador parece o mesmo que o Contrato define:
trata-se de fazer da sociedade polonesa um verdadeiro corpo político, uma
autêntica República, na qual a autoridade soberana seja exercida pela
vontade geral. (FORTES, 1976, p. 35).
Ainda em relação à educação, o capítulo IV das Considerações é dedicado a
este tema e como já ocorrera no Emílio, o genebrino volta a dar à educação grande
importância na reconstrução da nação polonesa. Ainda que o capítulo seja de
pequena extensão, não deixa de desempenhar um papel fundamental na reforma da
sociedade polonesa, como afirmou Rousseau (1892, p.36), “É a educação que deve
dar às almas a forma nacional e dirigir de tal forma suas opiniões e seus gostos, que
elas sejam patriotas por inclinação, por paixão, por necessidade.” Em outro
momento do texto Rousseau usa sua conhecida verve e emoção para tratar um
pouco mais da relação entre educação e liberdade:
Todo verdadeiro republicano sugou com o leite de sua mãe o amor de sua
pátria, isto é, das leis e da liberdade. Esse amor faz toda sua existência; ele
não vê nada além da pátria e só vive para ela; assim que está só, é nulo; a
partir do momento em que não tem mais pátria, não existe mais; e se não
está morto, é pior do que isso. (ROUSSEAU, 1982, p.36).
Para melhor compreendermos o entusiasmo republicano e sua exaltação pela
virtude recorremos a uma passagem de seu elogio À República de Genebra escrito
décadas antes:
Teria desejado nascer num país no qual o soberano e o povo não
pudessem alimentar senão um único e mesmo interesse, a fim de que todos
os movimentos da máquina tendessem somente para a felicidade comum.
Não podendo tal coisa suceder,a menos que o povo e o soberano não
sejam senão uma mesma pessoa, conclui-se que eu desejaria ter nascido
sob um governo democrático, sabiamente equilibrado. Teria desejado viver
e morrer livre, isto é, de tal modo submetido às leis que nem eu, nem
ninguém, pudesse sacudir o honroso jugo, esse jugo salutar e suave que as
100
cabeças mais orgulhosas tanto mais docilmente suportam, quanto mais
afeitas são a não suportar qualquer outro. (ROUSSEAU, 1983, p.218).
3.7. Da educação
Rousseau tem uma especial preocupação com a importância que a educação
possui na formação do homem. Leitor dos antigos, como Platão e Aristóteles e
admirador dos espartanos, Rousseau sabe que a educação é um importante fator na
consolidação de sua sociedade e não seria diferente ao aconselhar os poloneses.
Nâo é raro classificar Rousseau como educador, em especial pelo seu Emílio ou da
educação, exemplo de Streck e Soetard, autores citados na presente pesquisa.
O genebrino abre seu capítulo IV que trata da educação com as seguintes
palavras, já citadas anteriormente:
Eis o ponto importante. È a educação que deve dar às almas a conformação
nacional e de tal modo orientar suas opiniões e gostos, que se tornem
patriotas por inclinação, paixão e necessidade. Uma criança, ao abrir os
olhos, deve ver a pátria e até a morte não deverá senão vê-la.
(ROUSSEAU, 1962, p. 277).
Nas Considerações Rousseau defende uma educação comum a todos e não
sendo possível oferecê-la totalmente gratuita, deverá haver um preço que seja
acessível principalmente aos mais pobres, nas próprias palavras de Rousseau:
Não aprecio de modo algum a distinção entre colégios e academias, que
leva a nobreza rica e a nobreza pobre a serem educadas de modo diferente
e separadamente. Sendo todos iguais pela constituição do Estado, devem
ser educados juntos e do mesmo modo e, se não se pode estabelecer uma
educação pública inteiramente gratuita, é preciso pelo menos atribuir-lhe um
preço que os pobres possam pagar. (ROUSSEAU, 1962, p.278).
Liberdade e igualdade estão presentes na obra do genebrino. A educação dos
poloneses deve prepará-los para a liberdade e o amor à pátria e também deve ser
conduzida de forma igualitária.
Os jogos e brincadeiras que integram o processo educacional deveriam reunir
todas as crianças, privilegiando a coletividade e o espírito público, inclusive com
situações que simulassem algumas práticas de governança pública, o que segundo
nos informa Rousseau, era chamado de “Estado exterior” em Berna. É possível a
importância que tem a educação no processo de reforma polonesa. Para Rousseau,
como ficara demonstrado no seu Emílio, a educação está relacionada na formação
do indivíduo virtuoso e na Polônia se bem providenciada pela administração também
101
poderia ser decisiva
para a geração de cidadãos modelares, a exemplo dos
espartanos de outrora.
A ideia de educação pensada por Rousseau está mais evidenciada em seu
Emílio, contudo o genebrino nos deixou outras importantes reflexões sobre esta
questão em suas Considerações. A educação assume importante papel na reforma
polonesa e seus princípios também podem ser encontrados no seu Primeiro
Discurso:
Se a cultura das ciências é prejudicial Às qualidades guerreiras, ainda o é
mais às qualidades morais. Já desde os primeiros anos, uma educação
insensata orna nosso espírito e corrompe nosso julgamento. Vejo em todos
os lugares estabelecimentos imensos onde a alto preço se educa a
juventude para aprender todas as coisas, exceto seus deveres.
(ROUSSEAU, 1983, p.347).
Nestas Considerações, Rousseau retoma sua antiga crítica aos Estados de
grande extensão e suas consequentes dificuldades de administração em razão
desta característica espacial, como lemos no próprio Rousseau:
Quase todos os pequenos Estados, Repúblicas e Monarquias
indiferentemente, prosperam pelo simples fato de que são pequenos;
porque todos os cidadãos se conhecem mutuamente e vêm uns aos outros,
porque os chefes podem ver por si mesmos o mal que se faz, o bem que
têm a fazer; e porque suas ordens se executam sob seus olhos. (
ROUSSEAU, 1982, p.40).
É possível pensar que o genebrino possuía uma convicção que não se abalou
ao longo dos anos em relação à necessidade de Estados com pequena extensão
territorial para sua melhor administração, lembrando que no seu Contrato Social o
genebrino vincula que para cada extensão territorial caberia um regime de governo
adequado. Em seu elogio à República de Genebra, escrevera a esse respeito:
Se tivera de escolher o lugar de meu nascimento, teria escolhido uma
sociedade de tamanho limitado pela extensão das faculdades humanas, isto
é, pela possibilidade de ser bem governada e na qual, bastando cada um a
seus encargos, ninguém fosse obrigado a incumbir outros das funções de
que fora encarregado[...](ROUSSEAU, 1982, p.217).
Mantendo certa unidade em relação a essa questão Rousseau se pronunciou
no Livro II do seu Contrato Social:
Da mesma forma que a natureza deu limites bem determinados à estatura
de um homem, e se, ultrapassados, produz Gigantes ou Anões, da mesma
forma há limites em relação à melhor constituição de um Estado quanto à
sua extensão, para que não seja nem muito grande, para poder ser bem
102
governado, nem, muito pequeno, para se manter por si mesmo.
(ROUSSEAU, 1996, p. 105).
O espaço de vinte e dois anos que separa o Primeiro Discurso das
Considerações não parece alterar o modo com que Rousseau pensava a educação
e sua importância na construção de um novo homem e no caso da Polônia uma
nova nação.
Como já fizera no Contrato Social, as grandes dimensões polonesas
chamaram a atenção do genebrino devido a dificuldade de condução desta nação,
seria algo praticamente impossível para a inteligência, nas palavras de Rousseau
(1982, p.41), “Só Deus é capaz de governar o mundo e seria necessário faculdades
mais do que humanas para governar grandes nações”. Diante disso, a primeira
reforma que os poloneses deveriam fazer envolve a questão do tamanho do território
polonês, sendo sugerido por Rousseau a formação de governos federativos,
vinculados ao corpo da República. Em virtude da extensa dimensão polonesa,
comparativamente a sua Suíça, é possível pensar que Rousseau foi ousado e
vanguardista em sugerir um modelo federativo, certamente algo visto como absurdo
para os detentores do poder do século XVIII, mas amplamente utilizado nos
próximos séculos.
Como vimos, Rousseau entende que a Polônia possuía uma extensão
territorial desfavorável para uma boa administração. A este respeito Lourival Gomes
Machado oportunamente escreveu:
Mesmo que ignorasse, escreveria o capítulo por fidelidade à sua antiga e
firme fé na felicidade política dos pequenos povos. Eis porque, na pior das
hipóteses, parece-lhe muito útil que pequena Polônia, grande Polônia e
Lituânia se constituíssem como corpos políticos autônomos e interligados
numa confederação suficientemente flexível. (MACHADO, apud
ROUSSEAU, 1962, p.261).
Ainda em seu Contrato Social, Rousseau procurou demonstrar que um
Estado de grandes proporções pode ser governado por um monarca, desde que
esse tenha certas qualidades:
Para que um Estado monárquico possa ser bem governado, é necessário
que sua grandeza ou sua extensão sejam medidas pelas faculdades
daquele que governa. É mais fácil conquistar do que reinar. Com um
instrumento adequado, é possível mover o mundo com um dedo, mas para
sustentá-lo são necessários os ombros de Hércules. Mesmo que um Estado
seja grande, quase sempre o Príncipe é muito pequeno. Quando, ao
contrário, acontece de o Estado ser muito pequeno para seu chefe- o que é
103
raro- aquele é mal governado, porque o chefe, sempre seguindo a grandeza
de sua visão, esquece os interesses dos povos, e não os faz menos
infelizes pelo abuso dos talentos que tem em excesso, do que um chefe
limitado pela ausência dos que lhe faltam (ROUSSEAU, 1996, p. 129).
É possível pensar que a vastidão territorial de um país pode facilmente
degenerar sua vida política, fato que inevitavelmente abalaria a liberdade de seus
cidadãos, nos parece a conclusão que chegou o genebrino ao se deparar com a
extensão da Polônia e preferir um modelo confederativo.
A partir das informações concedidas pelo conde Wielhorski, representante
dos confederados de Bar, o texto de Rousseau procura permear o máximo que pode
as principais esferas políticas e sociais da Polônia, visando produzir um projeto de
reforma mais adequado e amplo possível. Assim, ao analisar o papel que cabe ao
rei, Rousseau abre o texto com uma grave advertência:
É um grande mal que o chefe de uma nação seja o inimigo nato da
liberdade de que deveria ser o defensor. Esse mal, a meu ver, não é de tal
maneira inerente a esse posto a ponto de não podermos dele isolá-lo ou, ao
menos, diminuí-lo consideravelmente. Não há tentação sem esperança.
(ROUSSEAU, 1982, p.59).
Desde o Contrato Social, Rousseau não se posicionara contra o regime
monarquista mantendo essa posição nas Considerações. Além dos regimes sua
preocupação se situava na afronta à liberdade aos cidadãos. A esse respeito
escreveu no seu Contrato Social:
Para que um Estado monárquico possa ser bem governado, é necessário
que sua grandeza ou sua extensão sejam medidas pelas faculdades
daquele que governa. É mais fácil conquistar do que reinar. (ROUSSEAU,
1996, p. 129).
Em suas Considerações, Rousseau rejeitou a hereditariedade sucessória da
coroa polonesa pela simples razão de atentar contra a liberdade tão necessária a
essa conturbada nação. Nas palavras de Rousseau (1982, p.61): “Estejam seguros
de que, a partir do momento em que essa lei for promulgada a Polônia pode dizer
adeus para sempre à sua liberdade.”
Podemos perceber ao longo do texto a preocupação com a necessidade de
se reconstruir a Polônia baseada na liberdade que deveria reinar entre os indivíduos.
Rousseau procurou certificar-se que a figura do monarca não turbasse a liberdade,
pois como já dito não se trata de atribuir os males à figura do rei, mas a potenciais
104
problemas que um reinado hereditário poderia trazer aos poloneses, como, por
exemplo, o enfraquecimento do poder legislativo e consequentemente a perda da
liberdade do povo polonês. Assim, o filho não deveria suceder jamais o pai-rei na
proposta rousseauniana, em nome da liberdade da Polônia:
Ao invés dessa fatal lei que tornaria a coroa hereditária, proporei uma bem
contrária que, caso fosse admitida, manteria a liberdade da Polônia: seria
ordenar, por uma lei fundamental, que nunca a coroa passaria do pai ao
filho e que todo filho de um rei da Polônia seria para sempre excluído do
trono.(ROUSSEAU, 1982, p.62).
Pensava Rousseau que esta proibição à coroa hereditária garantiria, além da
liberdade, a prosperidade do Estado, uma vez que a ambição pelo poder contínuo
ficaria esmagada, sobrando apenas lugar para a virtude.
Para melhor investigação e compreensão do pensamento de Rousseau,
necessário se faz uma análise em conjunto de suas obras, assim, não podemos
esquecer que o genebrino desde suas primeiras obras já tinha uma noção muito
clara do modelo virtuoso de governante, como lemos lá no Primeiro Discurso:
Oh, Fabrício! Que teria pensado vossa grande alma, se, voltando à vida,
para vossa infelicidade, vísseis a face pomposa dessa Roma salva por
vosso braço e que vosso nome respeitável ilustrou mais do que todas as
suas conquistas? “Deuses”,teríeis dito, “em que se transformaram esses
tetos de choupanas e esses lares rústicos nos quais outrora habitavam a
moderação e a virtude? (ROUSSEAU, 1983, p.341).
Rousseau sabia da importância da liberdade, como já se posicionara em suas
obras, também sabia e já alertava aos poloneses do risco que a liberdade está
sempre a correr ao longo da história das sociedades. Aqui Rousseau faz um elogio
às confederações polonesas, responsáveis por garantir a liberdade polonesa:
Por toda a parte em que a liberdade reina, ela é incessantemente atacada e
muito frequentemente com perigo. Todo Estado livre em que as grandes
crises não foram previstas, está, a cada tempestade, em perigo de perecer.
Só os poloneses é que de suas crises mesmas souberam tirar um novo
meio de manter a constituição. Sem as confederações, há muito tempo que
a República da Polônia não mais existiria; e tenho muito medo que não dure
muito depois delas, caso se adote o partido de aboli-las. (ROUSSEAU,
1982, p. 68).
Ainda que Rousseau nunca tenha proposto ou praticado a agitação política, o
rompimento político ou a revolução, em relação aos poloneses e seu momento
político grave, o genebrino não tardou em se alinhar aos rebelados poloneses.
105
Métodos distintos, mas ideias semelhantes. Derathé nos traz interessante reflexão a
respeito desta característica do genebrino, ao comentar sobre o Contrato Social:
Rousseau sempre se defendeu de ter escrito um libelo e não quer ser
confundido com um agitador político. Ele não aspira, de modo algum, a
exercer o papel de um homem de Estado, como será o caso de Turgot, por
exemplo. Suas ambições são de outra ordem e situam-se em outro plano.
“Perseguido pela lembrança dos legisladores antigos, Sólon, Licurgo e
Moisés, ele acreditou-se capaz, “por uma inspiração celeste”, de revelar aos
homens o que é uma lei “no Estado” e fundar, assim, o direito político”
(DERATHÉ, 2009, p.103).
Como se sabe Rousseau não se colocou na condição daquele que em armas
buscou o poder, contudo ao colaborar com a Córsega e a Polônia, vai além do
direito político para se tornar um “homem de Estado”, para usar a expressão de
Derathé, passando a ser um reformador político unicamente pela força de suas
ideias e de sua pena, as armas que dispunha. Vale aqui a reflexão de Bento Prado
Junior em seu prefácio intitulado “Rousseau: filosofia política e revolução, presente
na edição brasileira do Contrato Social publicado pela editora Vozes:
Mas Groethuysen não se limita a opor, assim, a consciência do autor às
consequências de sua obra. Mesmo se Rousseau não é revolucionário, não
deixa de antecipar a Revolução, embora ela não corresponda a um voto
íntimo de seu coração. (ROUSSEAU, 1996, p. 13).
3.8. As leis da Polônia
Rousseau viu a necessidade de diminuir o número de leis na Polônia, e
advertiu seus leitores sobre a importância de que estas sejam completamente
acessíveis a todo polonês, sendo inclusive ensinada nos colégios. Desta forma, a
legislação polonesa não seria objeto do conhecimento de uma pequena elite
esclarecida, tais como advogados e juízes, mas até mesmo as crianças e servos
poderiam conhecer e apreciar suas leis.
Para Rousseau, a lei polonesa deveria ser curta, porém, seu conteúdo
deveria ser adequado ao povo, robusta e alcançar a compreensão de todo e
qualquer polonês. Seria importante que uma lei não viesse cair em desuso ou
perdesse o respeito dos poloneses, neste caso, seria melhor revogá-la, defendeu
Rousseau. Ao transportar esta recomendação de Rousseau para os dias atuais, um
debate que se intensifica no campo da filosofia, sociologia e do direito procura
investigar o fenômeno da produção excessiva de leis como resposta às mais
diversas demandas que os países enfrentam, criando uma complexa e incontrolável
106
teia de normas e regras legais, o que poderá gerar como resultado uma verdadeira
descrença do papel do poder legislativo e das próprias leis. Em suas Considerações
escreve Rousseau a respeito:
De resto, não se deve jamais admitir que alguma lei caia em desuso. Fosse
ela indiferente ou má, é necessário abrogá-la formalmente ou mantê-la em
vigor [...] Em França olha-se como uma máxima de Estado o fechar os olhos
em relação a muitas coisas; é a que o despotismo sempre obriga: mas, em
um Governo livre, é o meio de enervar a legislação e abalar a constituição.
Poucas leis, mas bem digeridas e sobretudo bem conservadas.
(ROUSSEAU, 1982, p.72).
A lei deva ser praticamente reverenciada pelos cidadãos, seu uso deve estar
ligado à manutenção da paz, da virtude e da liberdade, a força da lei deve ser
preservada:
Todos os abusos que não são proibidos são ainda sem consequência: mas,
que fala de uma lei em um Estado livre, fala de uma coisa diante da qual
todo cidadão trene, e o rei em primeiro lugar. Em uma palavra, admiti tudo,
menos gastar a força das leis; pois, quando essa força é gasta, o Estado
está perdido sem recurso. (ROUSSEAU, 1982, p.73).
Como já afirmamos anteriormente, é possível perceber a relação existente
entre o Contrato Social e as Considerações, seja pelas citações do Contrato
encontradas nas Considerações sobre o governo da Polônia ou porque temos a
nítida impressão que o genebrino procura seus próprios princípios de direito político
presente no Contrato Social como norteador para propor uma reforma para os
poloneses. Assim, não é recomendável tratar o Contrato Social como uma obra
meramente especulativa, nesse sentido comentou Derathé:
Vê-lo como uma exposição de um programa de reformas ou um caderno de
reivindicações seria, portanto, falsear seu espírito da obra. [...] Perseguido
pela lembrança dos legisladores antigos, Sólon,Licurgo e Moisés, ele
acreditou-se capaz, “por uma inspiração celeste”, de revelar aos homens o
que é uma lei “ no Estado” e de fundar, assim , o direito político. (DERATHÉ,
2009, p.103).
Ainda tratando da legislação polonesa, fica claro que Rousseau tinha a
preocupação de garantir o fortalecimento do poder legislativo local, como observara
em seu Contrato. É possível pensar que toda força do sistema legislativo polonês
pensado pelo genebrino mantém os nobres objetivos por ele um dia apontados em
seu clássico texto de 1762:
Se indagarmos exatamente em que consiste o maior dos bens, qual deve
ser o objetivo de todo o sistema legislativo, concluiremos que se reduz a
107
dois objetivos principais: a liberdade e a igualdade. (ROUSSEAU, 1996, p.
110).
3.9. A simplicidade como valor fundamental
O capítulo XI das Considerações é dedicado ao sistema econômico.
Notemos que Rousseau não trata especificamente neste capítulo de um complexo
sistema, discorrendo sobre juros, câmbio, sistema bancário dentre outros temas
inerentes, contrariamente o genebrino procura fornecer apenas certas bases ou
princípios para que um novo sistema econômico floresça mais equilibrado e justo.
Certas posições defendidas por Rousseau nesta fase do texto nos remetem ao
Primeiro Discurso, em especial ao tratar da necessidade da busca da simplicidade
como um dos pilares na construção de uma nação livre, igualitária e virtuosa:
Mas se por acaso preferirdes formar uma nação livre, pacífica e sábia, que
não tem medo nem necessidade de ninguém, que se baste a si mesma e
que é feliz; então é preciso adotar um método completamente diferente,
manter, restabelecer entre vós costumes simples, gostos sadios, um espírito
marcial sem ambição; formar almas corajosas e desinteressadas; aplicar
vossos povos à agricultura e às artes necessárias à vida, tornar o dinheiro
desprezível e, se possível, inútil, buscar, encontrar para operar grandes
coisas, móveis mais poderosos e mais seguros. (ROUSSEAU, 1982, p.74,
75).
Esta forte valorização da simplicidade que desde os primeiros textos de
Rousseau, e que também aparece em suas Considerações, provavelmente é uma
reminiscência da reforma de Licurgo, legislador espartano, e figura sempre admirada
pelo genebrino, como podemos ler pela pena de Plutarco:
Decidido a tacar mais ainda o luxo e suprimir a cobiça da riqueza, introduziu
a terceira e mais bela de suas instituições, a criação da sissíta, para que
jantassem uns em companhia dos outros, comendo pães e pratos
determinados e comuns, e não tomassem as refeições reclinados em casa,
entre o fausto das mesas e dos leitos, engordando à sombra pela mão de
servos e cozinheiros, como animais gulosos, a corromper juntamente o
caráter e o corpo, entregue a todos os apetites e satisfações, que requerem
sonos prolongados, banhos quentes, muito repouso e, por assim dizer,
cuidados diários de enfermagem. (PLUTARCO, s/d,p.21).
A virtude, a coragem e o espírito coletivo que reinaram em Esparta, nunca
deixaram de funcionar como um modelo a ser seguido, inclusive para a Polônia,
como lemos Rousseau (1962, p.310): “Licurgo, para expulsar a cupidez de Esparta,
não enfraqueceu a moeda, mas estabeleceu uma de ferro.”
108
Ainda nesta fase do texto, Rousseau volta a defender a necessidade de se
reduzir a extensão territorial da Polônia, bem como sua preferência por um modelo
federativo, associando este raciocínio à ideia de liberdade, como podemos ler:
Se a Polônia fosse, segundo o meu desejo, uma confederação de trinta e
três pequenos Estados, ela reuniria a força das grandes Monarquias e a
liberdade das pequenas Repúblicas; mas seria preciso para isso renunciar à
ostentação e tenho medo que esse ponto seja o mais difícil. (ROUSSEAU,
1982, p. 80).
3.10. A defesa militar
Cercada de países beligerantes, Rousseau reconhece a fragilidade do
sistema militar polonês e afasta a possibilidade de tornar os poloneses em
conquistadores, algo incompatível para quem quer ser livre nas palavras do
genebrino:
Seria uma ainda maior fazer conquistas e vos dar uma força ofensiva; ela é
incompatível com a forma de vosso Governo. Quem quer ser livre não deve
ser conquistador (ROUSSEAU, 1982, p.83).
A figura do conquistado e do conquistador, comum entre as nações no
século de Rousseau, não era adequada àquela Polônia em frangalhos, que deveria
aprofundar sua vocação para a liberdade. Conquistado e conquistador poderiam ser
a mesma coisa quando reina o contrato iníquo, como observado por Rousseau
(1996, p.70) no início do seu Contrato Social: “Aquele que mais acredita ser o senhor
dos outros não deixa de ser mais escravo do que eles.”
Neste difícil momento para a nação polonesa, talvez a solução seja
encontrada na virtude, como em outrora fizeram os espartanos ao tempo de Licurgo,
assim Rousseau procura recorrer a estratégias elevadas como resposta direta,
confiando no povo polonês e seu amor pela liberdade:
Mas tereis logo, ou, melhor dizendo, já tendes, a força conservadora, que,
mesmo subjugados, vos garantirá da destruição e conservará vosso
governo e vossa liberdade no seu único verdadeiro santuário, que é o
coração dos poloneses. (ROUSSEAU, 1982, p.83).
Diante dos custos e da complexidade de se manterem as força armadas do
rei, Rousseau propõe a criação de milícias populares permanentes. Desta forma,
todo cidadão seria um soldado pronto a servir o Estado. Tal iniciativa proposta pelo
genebrino, além de interessante para as finanças públicas seria indispensável para
109
garantir a liberdade que a Polônia buscava diante de outras nações invasoras, como
defendeu Rousseau (1982, p.84), “Todo cidadão deve ser soldado por dever,
nenhum deve sê-lo por mister. Tal foi o sistema militar dos romanos; tal é hoje o dos
suíços; tal deve ser o de todo Estado livre e sobretudo da Polônia”.
O projeto de Rousseau se pauta por certo pacifismo em relação aos países
vizinhos. O que se percebe é a preocupação de Rousseau na reestruturação
polonesa, garantindo em primeiro lugar a autonomia e a liberdade da nação.
Contudo, a defesa do território e da liberdade será de fundamental importância para
os poloneses, transformando-os em virtuosos defensores da pátria se necessário:
No plano que imagino, e que acabarei logo de traçar, toda a Polônia tornarse-à guerreira, tanto para a defesa de sua liberdade contra as empreitadas
do príncipe quanto contra as de seus vizinhos; e eu ousaria dizer que este
projeto uma vez bem executado, poder-se-ia suprimir o cargo de Grande
General e reuni-lo à coroa, sem que disso resultasse o menor perigo para a
liberdade, a menos que a nação não se deixasse engodar por projetos de
conquista e nesse caso não responderei mais por nada. (ROUSSEAU,
1982, p.87).
A liberdade do povo polonês tem fundamental destaque no projeto do
genebrino. A elaboração de mecanismos e estratégias militares devem estar
alinhadas com a busca e conquista pela liberdade da Polônia para o seu povo, como
lemos:
É um mau conselho para povos livres o de ter praças fortes; elas não
convém ao gênio polonês e por toda parte, mais cedo ou mais tarde,
tornam-se ninhos de tiranos. Os lugares que acreditardes fortificar contra os
russos, vós os fortificareis infalivelmente para eles; e eles se tornarão para
vós entraves de que não vos libertareis. (ROUSSEAU. 1982, p.88).
Como sabemos, ao escrever este texto Rousseau tinha diante de si uma
Polônia em situação política extremamente delicada, convivendo com a ingerência
russa dentro do território polonês, bem como a ausência de uma administração que
zelasse por liberdade e igualdade de seu povo. Mesmo que pareça uma solução
simples, elementos como o amor à pátria, a liberdade e a virtude poderiam tornar a
Polônia uma nação próspera e vigorosa, segunda acreditava Rousseau desde seu
Primeiro Discurso. Em suas Considerações escreveu a esse respeito, como fizera
outras vezes:
Uma coisa basta para tornar impossível subjugá-la: o amor à pátria e à
liberdade animada pelas virtudes que dele são inseparáveis. Acabais de dar
nesse sentido um exemplo para sempre memorável. Enquanto esse amor
110
queimará nos corações, não vos garantirá talvez de um jugo passageiro;
mas mais cedo ou mais tarde fará sua explosão, sacudirá o jugo e vos
tornará livres. Trabalhai, pois sem descanso, sem cessar, para elevar o
patriotismo ao mais alto grau em todos os corações poloneses.
(ROUSSEAU, 1982, p.89).
Homem identificado com a liberdade é possível pensar que Rousseau
concordou com a elaboração deste projeto de reforma aos poloneses por realmente
acreditar na intenção popular de modificar e transformar politicamente a Polônia
acossada pelos russos. Tarefa semelhante também foi confiada à Mably,
personagem tão criticado quanto fora Rousseau no texto que compara a liberdade
dos antigos e a liberdade dos modernos, da autoria de Benjamin Constant. De
qualquer maneira o projeto destinado aos poloneses escrito por Rousseau tornou-se
mais conhecido no campo da filosofia política, o que foi comentado por Lourival
Gomes Machado, do qual nos valemos:
Como, para infelicidade da Polônia, nem os planos de Rousseau, nem as
propostas utilitárias de Mably puderam encontrar aplicação ou produzir
efeito, as Considerações haveriam de ganhar, no julgamento da
posteridade, uma importância que jamais alcançaria o minucioso receituário
que lhe é contemporâneo.[...] o livro de Rousseau alça-se imediatamente às
ideias gerais, se não chega mesmo a refutar a utilidade das reformas
meramente técnicas, senão como surgiram no trabalho de Mably que
provavelmente desconhecia, ao menos como podemos supor
se
apresentassem nas notas ou memória de Wielhorski. Antes das minúcias
burocráticas, rituais e protocolares, impõem-se examinar os princípios de
uma constituição e mesmo os problemas práticos de maior parte- dos quais,
embora brevemente, cuidará – dependem, para fixar-se, duma exata noção
dos objetivos fundamentais a que devem corresponder. Eis como
Rousseau, tratando da Polônia, tratará também de transpor para o plano da
aplicação real quanto, teoricamente, estabelecera no Contrato Social, ao
qual faz, no novo texto, constantes referencias (MACHADO, apud
ROUSSEAU, 1962, p.259).
A simpatia de Rousseau por este bravo povo fica evidenciado em certas
passagens de suas Considerações:
Acreditei falar a um povo que, sem estar isento de vícios, tinha ainda vigor e
virtudes; e, supondo-se isto, meu projeto é bom. Mas, se já a Polônia
chegou neste ponto em que tudo seja venal e corrompido até à raiz, é em
vão que busca reformar suas leis e conservar sua liberdade; é preciso que a
ela renuncie e que dobre sua cabeça sob o jugo. (ROUSSEAU, 1982, p.92).
A reforma proposta buscava uma marcha gradual onde haveria uma evolução
e ascensão das camadas mais populares, como os servos, além dos burgueses.
Nada deveria ser feito de forma brusca e sem planejamento. Como já sustentamos,
a liberdade pautou muitos dos textos políticos de Rousseau, e desta feita não
deveria ser diferente ao ser chamado a participar da efetividade das coisas, não
111
mais no campo da normatividade, ainda que tais propostas possam parecer tímidas.
Esta ascensão, além de garantir uma verdadeira coesão política, também visa
manter a liberdade daqueles que pouco dispõem desta, como bem escreveu
Rousseau:
O segundo meio, sem o qual o primeiro não é nada, é abrir uma porta aos
servos para adquirir a liberdade e aos burgueses para adquirir a nobreza.
(ROUSSEAU, 1982, p.94).
Mas diferentemente daquilo que se imagina, a libertação destes servos não
deve constituir um problema a seus senhores, mas motivo de verdadeira honra:
Pois seria absolutamente necessário fazer de sorte que ao invés de ser
onerosa ao senhor a libertação do servo se lhe tornasse honrosa e
vantajosa; é claro que para evitar o abuso, estas liberações não se fariam
pelos senhores, mas nas dietinas, por julgamento e apenas o número fixado
pela Lei. (ROUSSEAU, 1982, p.96).
Como vimos, a liberdade vai ganhando espaço dentro do texto escrito por
Rousseau aos poloneses. Não só a liberdade em relação aos russos, mas também a
liberdade política que cada cidadão deve gozar e amar. Rousseau enxerga nela a
verdadeira possibilidade de se construir uma nova mentalidade e uma nação
virtuosa e preparada para arrostar todas as dificuldades. A libertação dos servos e
suas famílias também formaria um efetivo útil a própria segurança da nação
polonesa, segundo defendeu o genebrino:
Quando se tiver liberado sucessivamente um certo número de famílias em
um cantão, poder-se-iam liberar vilarejos inteiros, formar neles pouco a
pouco comunas, atribuir-lhes alguns fundos, algumas terras comunais como
na Suíça, estabelecer oficiais comunais; e, quando tivermos conduzido por
graus as coisas até poder, sem revolução sensível, acabar a operação em
grande, restituir-lhes enfim o direito, que lhes deu a natureza, de participar
da administração de seu país enviando deputados às dietinas.(ROUSSEAU,
1982, p.96).
A passagem citada revela pontos importantes da teoria política de Rousseau.
Tendo como fio condutor a liberdade que deverá ser devolvida aos servos e suas
respectivas famílias, o genebrino antecipa questões que viriam a ser tratadas por
anarquistas e comunistas, quando propôs a formação de comunas, além de garantir
que estes indivíduos possam participar ativamente da vida política polonesa,
enviando deputados às dietinas, importante instância política polonesa da época:
112
Feito tudo isso, armar-se-ia todos os camponeses, tornados homens livres e
cidadãos, arregimentá-los-ia, exercitá-los-ia e acabando-se por ter uma
milícia verdadeiramente excelente, mais do que suficiente para a defesa do
Estado. (ROUSSEAU, 1982, p.96).
É válida a reflexão feita por Derathé sobre o papel dos deputados frente aos
princípios do Contrato Social, onde o soberano está concentrado nas mãos dos
cidadãos:
Assim, segundo os princípios do Contrato Social, o povo pode designar os
deputados, com a condição, todavia, de que estes não tenham “nenhum
direito legislativo”, que eles se limitem a preparar, propor e redigir as leis, o
povo permanecendo sempre livre para ratifica-las ou rejeitá-las por seus
sufrágios. Mas , quando os próprios deputados exercem a potência
legislativa, quando votam as leis, eles se tornam, durante toda a duração de
seu mandato, os únicos senhores do Estado. (DERATHÉ, 2009, p. 394).
É possível pensar que em relação aos poloneses, onde Rousseau não
recomendou o uso da vontade geral, como apresentado no Contrato, o papel do
legislativo guarde certa proximidade com os princípios do Contrato, como escreveu
Derathé.
3.11. Os reis e a liberdade
Favorável à manutenção da monarquia na Polônia, Rousseau se opõe à
hereditariedade da coroa e na escolha de um monarca que não seja polonês. A
liberdade que este rei deve garantir a seus súditos também ganha a previsão no
texto de Rousseau (1982, p.99),“Todas essas dificuldades se reduzem à de dar ao
Estado um chefe cuja escolha não cause perturbações e que não atente contra a
liberdade” . Lembremos que Salinas Fortes (1986, p.69) em seu opúsculo sobre o
Iluminismo e os reis filósofos, ao tratar da filosofia de Rousseau, então
incompreendida em seu século, escreveu: “Liberdade e Soberania, mais do que
„Liberdade e Igualdade‟, são, então, as duas grandes noções centrais dessa filosofia
incompreendida.”
Rousseau propõe em seu projeto um interessante método de avaliação post
mortem para os reis que seguramente poderá influenciar suas ações ainda em vida.
Trata-se de um pronunciamento feito por um tribunal composto por cidadãos, com a
atribuição de declarar por sentença como “bom e justo príncipe”, tendo seu nome
escrito na honrosa lista dos Reis da Polônia. Em sentido contrário, o mau governo
assim declarado pelo já citado tribunal, terá sua justa paga, sendo considerado
113
culpado, e seu rei enterrado sem honrarias reais, recaindo o peso desta decisão nos
filhos do rei, pois seriam privados do título de príncipe. É interessante perceber o
zelo que possuía o genebrino em relação à liberdade do povo polonês, vez que o
monarca ainda que falecido, ao ser submetido ao exame dos súditos, poderia ter sua
memória desonrada, dentre outras ações, o desrespeito à liberdade pública, como
proporia nas Considerações Rousseau (1982, p.104): “Caso, ao contrário, fosse
considerado culpado de injustiça, de violência, de malversação e sobretudo de ter
atentado contra a liberdade pública, sua memória seria condenada e estigmatizada”.
A título de esclarecimento, é sempre importante lembrar que Rousseau
destoa dentre seus pares, por não ser entusiasta dos “déspotas esclarecidos”, como
bem escreveu Salinas Fortes, no seu já citado O iluminismo e os reis filósofos:
O que é inegável é o extraordinário prestígio de Frederico junto aos filósofos
e homens de letras da época. Exprimindo certamente um ponto de vista
geral, dele disse, d‟Alembert, uma vez: “Os filósofos e os homens de letras
de todas as nações vos consideram há muito tempo, majestade, como o seu
chefe e o seu modelo”. Também Emmanuel Kant, em um texto de 1789, dos
mais importantes para a compreensão da época, declara que o século XVIII
poderia ser chamado de Século das Luzes ou século anterior como século
de Luiz XIV [...] Ele é amigo pessoal e correspondente de Voltaire. É amigo
mais ainda de d‟Alembert e também de Diderot. (FORTES, 1986, p.76).
Como já destacamos, mesmo não se posicionando contrariamente à
monarquia como forma de governo, Rousseau não se deixou deslumbrar pelos reis
filósofos, e no caso da Polônia, orientou a manutenção deste regime, contudo teve a
cautela de fornecer elementos para extrair deste formato o melhor resultado. É
possível pensar que a rejeição do genebrino estava num regime monárquico
absolutista, como comentou Derathé:
Rousseau utiliza contra o regime representativo o próprio argumento do qual
se servira para combater a monarquia absoluta. O que não deve nos
espantar, já que para ele “a soberania não pode ser representada pela
mesma razão que não pode ser alienada.” (DERATHÉ, 2009, p. 394).
Para Rousseau o fundamental seria manter a liberdade que segundo seu
entender os Poloneses estavam destinados. É possível pensar que as obras
políticas mais lidas e comentadas do genebrino têm a liberdade como fio condutor,
não constituindo o projeto para Polônia exceção a nosso ver, apesar de visões
distintas sobre o alcance ou intenções destas obras, tema que tratamos em nossa
introdução. Ernest Cassirer comentou a questão da liberdade em Rousseau e suas
controvérsias:
114
Neste ponto, contudo, necessita-se de uma interpretação para pisar um
terreno difícil e escorregadio. Pois de todos os conceitos de Rousseau, o
seu conceito de liberdade é o que passou pelas interpretações mais
diversas e mais contraditórias. Nesta disputa de quase dois séculos travada
em torno dele, este conceito perdeu quase completamente a sua
determinação. “Foi puxado ora para cá ora para lá, pelas facções do ódio e
da benevolência; tornou-se um mero slogan político que cintila hoje em
todas as cores e foi colocadoa serviço dos mais diferentes objetivos da luta
política” (CASSIRER, 1997, p.55).
Em relação à Polônia entendemos não ter sido diferente, ou seja, apesar das
aparentes controvérsias envolvendo a defesa dos representantes legislativos e a
ausência da vontade geral em seu projeto polonês, temas tratados por Salinas
Fortes, entendemos acima de tudo, que Rousseau tencionava garantir a liberdade
da nação Polonesa em relação ao inimigo externo, bem como, a liberdade política
do cidadão polonês.
O conceito de liberdade em Rousseau pode ser compreendido pois esta
colocado com certa clareza em suas obras, é a opinião de Cassirer, o qual leremos
novamente:
Ele [Rousseau] definiu com clareza e segurança o sentido específico e o
verdadeiro significado fundamental de sua ideia de liberdade. Para ele,
liberdade não significa arbítrio, mas a superação e a exclusão de todo
arbítrio. (CASSIRER, 1997, p. 55).
3.12. A conclusão do projeto para a Polônia
Rousseau termina suas Considerações lembrando aos poloneses do estado
de anarquia e fraqueza que se encontra a Polônia, e fazendo referência ao seu
Contrato Social, recomenda um intervalo de tranquilidade para então agir e
rejuvenescer sua constituição. Certamente o genebrino sabe as drásticas
consequências de ações bruscas e impensadas quando se trata de ações políticas.
A liberdade como valor deve pautar esta reforma e mais um conselho é
dirigido ao bravo povo polonês que tem na Rússia uma constante ameaça a esta
liberdade:
Não sereis nunca livres enquanto restar um só soldado russo; e sereis
sempre ameaçados de deixar de sê-lo enquanto a Rússia se meter em
vossos assuntos. (ROUSSEAU, 1982, p.106).
Rousseau (1982, p.110) conclui seu projeto, novamente solicitando calma na
sua condução: “Não abaleis nunca muito bruscamente a máquina”. Importante se
115
faz, pensa Rousseau, em aproveitar os cidadãos poloneses dispostos a fazer a
reforma proposta:
Não podendo criar de uma hora para outra novos cidadãos, é preciso
começar por tirar partido daqueles que existem; e oferecer uma rota nova À
sua ambição é o meio de dispô-los a segui-la.(ROUSSEAU, 1982, p.110).
Temos aqui o último texto político de Jean-Jacques Rousseau, que termina de
forma singela, mas que dá a exata medida da postura do genebrino:
Talvez tudo isso não é mais do que um amontoado de quimeras, mas eis
minhas ideias. Não é minha culpa se parecem tão pouco às dos outros
homens; e não dependeu de mim organizar minha cabeça de uma outra
maneira. (ROUSSEAU, 1982, p. 110).
3.13. A dialética Rousseauniana
Em seu último texto político, As Considerações, o genebrino se situa
definitivamente no campo do ser e atua como uma espécie de reformador convidado
por um grupo de confederados poloneses. Contudo o genebrino se notabiliza como
um pensador político, homem de letras e reflexão, no campo do dever ser. Qual
Rousseau se sobressaiu nesta última empreitada política? Entendemos ser o
Rousseau da síntese, aquele que com o coração voltado para a sua teoria, ao
adentrar na prática, produziu uma síntese entre o que pensou e o que propôs, tanto
aos corsos quanto aos poloneses. Seria completamente impossível transformar o
Contrato Social ou mesmo adaptá-lo como um código legal a estes povos. Os
leitores de Rousseau estão habituados a esse personagem de mil faces e de difícil
classificação, como bem lembrou Salinas Fortes:
Seria Rousseau iluminista, iluminado, iluminador? Não se sabe. O que se
sabe de efetivo é que sua obra é mesmo muito complicada, com mil
meandros e aparentes contradições insuperáveis. Ele parece desdizer em
uma página o que disse na outra. (FORTES, 1986, p.72).
Acerca da indagação que abre nosso subtítulo, é importante refletir na árdua
tarefa da qual se incumbiu o genebrino ao fornecer aos Poloneses um projeto de
reforma que sugeria formas de atingir os corações poloneses e não somente uma
simples alteração nas leis vigentes. Uma leitura desatenta das Considerações pode
passar uma impressão inicial de um Rousseau contraditório em suas propostas aos
poloneses, principalmente comparando-o com o Contrato Social, contudo,
116
acreditamos que o cidadão de Genebra tinha clara consciência de seu papel e o que
fazia.
Para Derathé, o genebrino foi obrigado a adotar uma postura mais
conciliadora e realista na elaboração do projeto aos poloneses, vez que o Contrato
Social espelha princípios norteadores:
Assim, o rigorismo que Rousseau adotava em 1762 no Contrato social deu
lugar, em 1772, a uma atitude mais conciliatória e, sobretudo, mais realista.
(DERATHÉ, 2009, p. 409).
A relação do Contrato Social com as Considerações pode ser de proximidade;
é o que defende Salinas Fortes na sua conclusão de Rousseau, da Teoria à Prática:
Retornemos às Considerações sobre o Governo da Polônia. Vemos como,
longe de contrariar a perspectiva teórica, o texto se constitui como aplicação
sistemática dos princípios doutrinários do Contrato. (FORTES, 1976, p.
126).
Rousseau procurou sugerir aos poloneses as soluções mais adequadas frente
aos problemas encontrados, tendo no seu Contrato um referencial teórico, e não
uma cartilha prática, como já observara Derathé em outro momento.
Assim, o
legislador deve conhecer a realidade que lhe cerca, incluindo os homens e as
instituições, para que análise e o caminho indicado sejam compatíveis. Nesse
sentido, recorreremos novamente a Salinas:
É em respeito ao primeiro princípio do método do Legislador, de acordo com
o qual as leis devem ser apropriadas à situação particular, que Rousseau
traça os limites do se trabalho. (FORTES, 1976, p. 126).
Ainda sobre a relação do Contrato Social e as Considerações, Derathé com
acuidade escreveu sobre o tema:
Quando redige suas Considerações sobre o Governo da Polônia (1772),
Rousseau tem consciência de propor reformas destinadas a “um grande
Estado” no qual não se trata de aplicar literalmente os princípios do Contrato
social. (DERATHÉ, 2009, p.404).
Nas Considerações, Rousseau não vê a solução dos problemas e impasses
poloneses com a proposta de uma reforma legal e política, como fizera Mably. Para
o genebrino seria fundamental que as mudanças não fossem bruscas e que o
coração dos homens pudessem ser alcançados. Não deveria haver muitas leis, e as
poucas existentes deveriam estar acima dos homens. Seriam estes os pontos-chave
de seu projeto ao nosso ver. Uma reforma que procurou se apoiar na crença de que
117
a virtude do homem polonês seria decisiva para seu êxito, como fora para os
espartanos e o projeto de Licurgo. Salinas Fortes de forma breve resume a solução
para o problema polonês, segundo acreditava o genebrino:
Em seguida, ele se coloca de um ponto de vista sistemático para contestar
que uma solução para os problemas poloneses possa vir como
consequência apenas de uma reforma da sua legislação. Indica, então, qual
é o problema essencial e, finalmente, mostra os poloneses qual o caminho
que devem seguir para resolvê-lo. Estabelece, assim, duas coisas: 1) a
reforma das leis não deve ser radical porque elas não são tão más como se
pretende; 2) não é apenas reformando em parte estas leis que se poderá
resolver os problemas poloneses, uma vez que a sua causa não está na
deficiência das leis, mas no seu abuso: os abusos é que devem ser
atacados e o meio para fazê-lo não é substituir as leis, mas colocar a lei
acima dos homens. (FORTES, 1976, p.128).
A leitura do derradeiro texto político do cidadão de Genebra vai revelando um
filósofo, que a exemplo de seu apreciado Licurgo, preocupou-se em atingir mais o
coração dos homens a apresentar um conjunto de leis positivas. Rousseau, de certa
maneira, perfaz o caminho político de Maquiavel, dois séculos antes, mas
substituindo a virtú do príncipe, pela virtude do homem polonês, elementos vitais em
suas propostas. O pensador de Florença é especialmente admirado pelo genebrino,
que não lhe poupa elogios no Contrato Social, citando-o diversas vezes. Ficou
conhecida a afirmativa de Rousseau (1996, p.128): “foi isso que Maquiavel
demonstrou com evidência. Fingindo dar lições aos Reis, deu grandes lições aos
povos. O Príncipe de Maquiavel é o livro dos republicanos”.
Esta fase Rousseau se entrega a um projeto dentro da efetividade das coisas,
nos remete a experiência de dois autores comprovadamente lidos pelo genebrino,
Platão e sua experiência frustrada em Siracusa e o já citado Maquiavel, que além
de atuar como chanceler da república florentina, forneceu, como ressaltou o próprio
Rousseau, lições valiosas não só a príncipes como ao povo. É possível interpretar
que esta rica e breve experiência vivida por Rousseau o aproxima destes autores,
que transitaram do dever ser ao ser.
Assim a lei deve ir até o coração do homem, que não deverá estar acima
daquela. Como conseguir esse extraordinário feito? O próprio Rousseau nos
responde por meio da pena de Salinas Fortes:
Trata-se de recorrer a instituições aparentemente ociosas, capazes de
formar os costumes do povo, dando-lhe a capacidade de amar as leis e a
pátria. Estas instituições ociosas, como ele mostrará a seguir, são, de um
118
lado, os jogos e espetáculos públicos e, de outro, a educação pública.
(FORTES, 1976, p. 132).
Da sua curta experiência como legislador ou reformador na Polônia, o legado
construído por Rousseau, em nosso entender, é a figura do filósofo que mesmo
sendo homem de paradoxos, não abdicou da coerência, seu texto aos poloneses
mantém unidade com os princípios apresentados por ele décadas antes, em
especial o primeiro e o segundo Discurso, Emílio e finalmente o Contrato Social,
paradigma maior do projeto polonês. Rousseau procurou se ajustar ao tempo e às
circunstâncias que o cercava naquele momento e corajosamente aceitou o convite
proposto pelo conde Wielhorski . O que se vê é uma real preocupação em eliminar
qualquer arbítrio e consequentemente garantir a liberdade no solo polonês.
Rousseau não alcançou o mesmo êxito de Licurgo, Sólon e Moisés, pois seu projeto
jamais fora aproveitado pelo polonês, contudo no campo da filosofia política as
Considerações texto tornou-se fundamental para a compreensão que a liberdade
tem na filosofia de Rousseau. Assim qualquer aparente contradição entre os textos
do dever ser e do ser do genebrino merece ser dissipada, pois temos uma
verdadeira dialética entre o Rousseau teórico, das obras políticas e o Rousseau
interagindo com as realidades da Polônia e da Córsega; a síntese é a produção dos
dois projetos de reforma tratados neste capítulo. Não vemos qualquer traço de
contradição no Rousseau reformador, pois seus textos dialogam com situações
reais, graves e seu direito político (Contrato Social) norteia, inspira e é o paradigma
de seus textos reformadores. A esse respeito escreveu Derathé ao comentar as
Considerações sobre o governo da Polônia:
Essa obra é o testemunho do realismo político de Rousseau e nos mostra
em que sentido seus discípulos atuais devem interpretar sua doutrina para
adaptá-la às condições da vida política nos grandes Estados modernos.
(DERATHÉ, 2009, p.409).
119
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Há exatos cinquenta anos instaurava-se no Brasil um regime político que ficou
marcado por se contrapor violentamente à liberdade. Pelas ações que protagonizou
durante vinte e um anos, o regime militar se caracterizou pela perseguição e
violência impostas a inúmeros cidadãos, cerceando liberdades, cassando mandatos,
suspendendo direitos políticos e promovendo a tortura. Nesse contexto, diversos
brasileiros resistiram a esse regime autoritário, o que resultou na redemocratização
brasileira em 1985. Dentre esses inúmeros brasileiros, destaca-se um célebre
estudioso da obra do genebrino, Luiz Roberto Salinas Fortes, que não recuou às
lutas de seu tempo e como o genebrino, também conheceu a força da perseguição e
da prisão, o que lhe permitiu, naturalmente, exaltar a importância da liberdade.
Leiamos Salinas:
O que me reserva este domingo, segundo dia de reclusão? Que horas
serão? Já bate forte a luz do dia quando alguém anuncia, através do
postigo, que se abre de súbito, a dádiva do senhor, alimento para as feras,
pão duro e um copo de plástico cheio de café com leite, cujo gosto é até
hoje páreo para as maiores iguarias e se classifica entre os primeiros na
tábua dos valores palatais. Estendo a mão, pego o copo, o pão duro. Um
gole, um pedaço de pão, quente o pão, duro o gole, duro-quente a refeição
matinal, a luz brilhando, despejando-se generosa, como é bom viver em
liberdade. Mas o alimento se evapora e as cadeias se enrolam no
pensamento. Como me safar desta? Qual foi, afinal, o crime cometido?
Terei, também, direito à anistia? (FORTES, 1988, p. 52).
Se Salinas Fortes pagou com sua liberdade o preço de se contrapor a um
governo despótico, seu mentor não chegou a conhecer a prisão, mas sua
preocupação com o despotismo e a liberdade retratadas em seus textos lhe valeu
seguidas perseguições das autoridades de seu tempo.
Porém, ainda que Rousseau tenha se mostrado um cidadão profundamente
incomodado com tais questões, foi considerado como grande inspirador de
totalitarismos e até inimigo da liberdade.
Para um pensador do porte de Rousseau, chega ser perfeitamente
compreensível a existência de interpretações distintas de suas obras, em razão de
uma série de circunstâncias. Uma em especial que destacaríamos é a visão política
ou ideológica do leitor ou comentador que pode influir diretamente na interpretação
daquilo que se lê.
120
Em nossa introdução apresentamos um pequeno quadro das diferentes
visões ideológicas em Rousseau, passando por diferentes comentadores com
interpretações voltadas ao campo do marxismo, anarquismo e finalmente o
liberalismo, possibilitando apresentar diferentes perspectivas sobre o genebrino.
No campo do pensamento marxista, apresentamos, ainda que brevemente,
três autores que se puseram a pensar Rousseau: Althusser, Della Volpe e o
brasileiro Carlos Nelson Coutinho.
Destacou Althusser a importância da questão relacionada à alienação do
indivíduo na teoria política de Rousseau, reconhecendo essa superior a de Hobbes,
ao tratar do problema do contrato, pois em Rousseau a figura do príncipe não possui
o destaque que lhe deu o filósofo inglês.
Por sua vez, Della Volpe faz uma relação de proximidade entre o marxismoleninismo e a teoria política de Rousseau, ao tratar do tema da igualdade. Para o
filósofo italiano, Rousseau possuiu o mérito de identificar e tratar inicialmente do
problema, abrindo o caminho para que o socialismo científico pudesse eliminar a
desigualdade reinante, fruto de um direito burguês que perpetuava tal desigualdade
entre os homens.
Encerrando a perspectiva marxista, o professor Carlos Nelson Coutinho que
ressaltou a crença que nutria Rousseau numa transformação do indivíduo
demonstrada no seu Contrato Social e também no Emílio, possibilitando a criação de
uma sociedade solidária. Também é importante destacar que Coutinho via no
Contrato a materialização de uma república autogovernada fundada na vontade
geral, democrática e igualitária.
No campo do anarquismo, nos valemos da análise de George Woodcock.
Destacamos que tanto Rousseau quanto as mais diversas correntes existentes de
anarquistas tiveram o interesse comum pela liberdade, ainda que por meios
distintos. Ao destacar na obra o pensamento de Proudhon, importante teórico
anarquista, é possível perceber em certos momentos uma proximidade com o
pensamento político de Rousseau, ainda que não possamos afirmar que o genebrino
tenha sido uma influência direta para o anarquista francês. Para Robert Wokler, a
121
crítica feita por Rousseau à propriedade privada e o contrato iníquo, pode ter
influenciado Proudhon:
A noção de que “ a propriedade é um roubo”, defendida por Proudhon e
outros socialistas no século XIX, deve muito a esse argumento.(WOKLER,
2012, P.64).
Contudo, outro importante pensador anarquista, Willian Godwin, foi leitor de
Rousseau, segundo relado Woodcock.
Ainda no anarquismo, apresentamos a professora Patrizia Piozzi, que
também buscou na obra de Rousseau relações com o anarquismo. Destaca a
importância do Contrato Social como instrumento para reconquistar a verdadeira
liberdade e extinguir práticas estatais coercitivas e autoritárias. Destaca a presença
de questões fundamentais, tais como a regulamentação da propriedade privada, a
diminuição da desigualdade entre possuidores e despossuídos, democracia direta,
escravidão, liberdade, além da importância da educação na formação do cidadão.
Para Benjamin Constant, representante do liberalismo antigo, a liberdade
individual não fora respeitada dentro dos modelos republicanos de Esparta e Roma
antiga, sendo considerados ultrapassados, pois estavam voltados unicamente à
participação política e à coisa pública, o que inviabilizaria pela falta de tempo,
interesses privados. Para Constant a liberdade dos antigos não seria conveniente ao
homem de seu tempo. Ainda dentro da perspectiva liberal, apresentamos talvez seu
maior expoente, Isaiah Berlin, pensador contemporâneo e crítico de Rousseau, o
qual retomaremos oportunamente.
Ainda que tenha recebido títulos pouco honrosos tais como inimigo da
liberdade e inspirador de totalitarismos, temos em Rousseau um autêntico defensor
da liberdade, não só por sua obra política, pois nos deparamos com um filósofo
profundamente preocupado com a liberdade, dos Discursos aos Devaneios o tema é
sempre tratado e problematizado. Também a própria vida de Rousseau nos revela
um homem que procurou na medida de suas forças não se deixar escravizar por
instituições, amizades, governos, títulos e cargos, e até seus rompimentos e
contradições também refletem em certa medida seu espírito libertário, tendo um dia
escrito:
122
Renunciar à sua liberdade é renunciar à sua condição de homem, aos
direitos da humanidade, e até mesmo aos próprios deveres. Não é possível
qualquer compensação para alguém que renuncie a tudo. Tal renúncia é
incompatível com a natureza do homem, e destituir sua vontade de toda a
liberdade é o mesmo que destituir suas ações de toda moralidade.
(ROUSSEAU, 1995, p. 74).
Retomemos assim a leitura crítica de Isaiah Berlin, pois além de atual, o
respeitado pensador liberal, viu em sua análise de Rousseau traços reais e
inspiradores do totalitarismo. A leitura de seu Rousseau e outros cinco inimigos da
liberdade nos releva um Rousseau paradoxal, amante da liberdade, mas na prática
se constituindo no seu potente inimigo, mesmo que de forma inconsciente:
Nesse sentido, não é minimamente paradoxal afirmar que Rousseau, que
reivindica ter sido o amante mais ardente e apaixonado da liberdade
humana que alguma vez viveu, que procurou libertar todas as grilhetas, os
constrangimentos da educação, da sofisticação, da cultura, da convenção,
da ciência, da arte, de tudo o que seja, porque todas essas coisas de
algum modo o violavam, todas essas coisas de alguma forma limitavam a
sua liberdade natural como homem – Rousseau, apesar de tudo isso,foi um
dos mais funestos e formidáveis inimigos da liberdade em toda a história do
pensamento moderno. (BERLIN, 2005, p.74).
Sustenta Berlin que a concepção de liberdade defendida por Rousseau tinha
como herdeiros funestas figuras como Hitler e Mussolini. O pacto social de
Rousseau se transformaria num instrumento opressor, na medida em que
desprezaria o indivíduo, frágil e incapaz de fazer escolhas corretas. Nessa
perspectiva, esse corpo social deveria pensar escolher e agir por esse indivíduo,
portanto escravizando-o. Nesse sentido escreveu o pensador liberal:
Quando impeço um homem de prosseguir fins perversos, mesmo quando o
ponho na prisão para impedi-lo de prejudicar outros homens bons, mesmo
que o execute como um criminoso dissoluto, faço-o apenas por razões
utilitárias, para oferecer felicidade a outros; nem mesmo por razões
punitivas, para o castigar pelo mal que pratica. Faço-o porque é aquilo que
o próprio eu interior, melhor, mais real, teria feito se lhe fosse permitido
exprimir-se. Instituo-me como a autoridade, não apenas sobre as minhas
acções, mas sobre as suas. É esse o significado da célebre frase de
Rousseau acerca do direito da sociedade de forçar os homens a serem
livres. (BERLIN, 2005, p. 71).
Sustenta Berlin em seu texto, que ao longo dos tempos a filosofia política tem
se ocupado da complexa questão que envolve autoridade e liberdade e os limites de
cada qual. Lembra o filósofo liberal, que esta clássica questão também está presente
no Contrato Social e segundo crê, tal problema não fora resolvido por Rousseau. Na
visão de Berlin, a descrição feita no Contrato poderia gerar uma estrutura
completamente autoritária, pois dentre as diversas atribuições reservadas ao corpo
123
social rousseauniana haveria o questionável e paradoxal papel de se obrigar o
individuo a ser livre. Leiamos Berlin:
Forçar um homem a ser livre é forçá-lo a comportar-se de uma forma
racional. É livre o homem que obtém aquilo que deseja; aquilo que
verdadeiramente deseja é um fim racional. Se não deseja um fim racional,
não deseja verdadeiramente; se não deseja um fim racional, aquilo que
deseja não é a verdadeira, mas a falsa liberdade. Forço-o a fazer coisas que
o farão feliz. Ele ficar-me-á grato se alguma vez descobrir o seu próprio eu
verdadeiro: é esse o âmago da sua famosa doutrina e não há um ditador no
Ocidente que depois de Rousseau não tenha utilizado esse monstruoso
paradoxo para justificar o seu comportamento. Os Jacobinos, Robespierre,
Hitler, Mussolini, os Comunistas, utilizaram todos esse método
argumentativo, de afirmar que os homens não sabem o que
verdadeiramente querem – e, assim, ao querê-los por eles, ao desejá-lo em
seu nome, damos-lhes o que num sentido oculto, sem que eles próprios
saibam, desejam “ realmente”. ( BERLIN, 2005, p. 72).
Desta forma, é nesse famoso paradoxo de Rousseau que Isaiah Berlin
encontrou subsídios para classificar o genebrino como inimigo da liberdade e
manipulador de homens, como fizeram Hitler e outros. Acreditamos que Berlin tenha
levado demasiadamente a sério a famosa frase de Rousseau, “forçado a ser livre”,
depreendendo um sentido diverso daquele que seu autor tencionou. Escreveu o
genebrino a famosa passagem:
Para que então o pacto social não seja um acordo vão, está compreendido
nele, mesmo de forma tácita, esse engajamento que sozinho pode dar força
aos outros, de forma que quem recusar obedecer à vontade geral será
obrigado a isso por todo o corpo: o que não significa outra coisa a não ser
que será forçado a ser livre, uma vez que essa é a condição que cada
Cidadão dá à Pátria e que o garante de toda a dependência pessoal.
Condição essa que faz o artifício e o jogo da máquina política, e a única que
torna legítimos os compromissos civis que sem ela seriam absurdos,
tirânicos e sujeitos aos maiores abusos. (ROUSSEAU, 1996, p. 82).
É possível afirmar que Rousseau jamais teve qualquer pretensão de inspirar
regimes totalitários, pois toda sua obra política e em especial o Contrato Social têm a
marca da liberdade, sendo tal obra um verdadeiro conjunto de princípios universais,
atemporais e republicanos não devem ser interpretados como um manual
programático, equívoco que talvez Berlin tenha cometido. Além disso, é possível
pensar que os diversos paradoxos presentes na obra política de Rousseau seriam
recursos úteis para criticar os filósofos e a filosofia de seu tempo, e demonstrar a
versatilidade e inquietação de um autor criativo e provocador.
A questão do “ser forçado a ser livre” também pode indicar um Rousseau
pronto a defender a primazia da vontade geral e popular como única e verdadeira
124
instância de poder legislativo. A obra política do genebrino inspira a força
comunitária sempre pronta a partilhar e autolegislar, voltada ao bem comum nos
moldes republicanos. Assim o poder soberano deve ser concentrado nas mãos dos
cidadãos e não pode sofrer qualquer ameaça, seja do príncipe ou de qualquer
súdito, sob pena de fazer perecer todo o Estado.
Na perspectiva de Rousseau “forçado a ser livre”, implica unicamente a ser
forçado a cumprir normas as quais livremente concordou com sua existência
previamente, na medida em que forma o pacto social e participa da vontade geral,
como cidadão. Não há nada de despótico ou misterioso na afirmativa de Rousseau,
trata-se de uma questão fundamental para a manutenção do Estado e da vontade
geral, o cumprimento das leis que de maneira coletiva, republicana e democrática foi
gerada.
Atualmente, ser forçado a ser livre corresponde a observar e cumprir normas,
ainda que eu discorde, mas que livremente as concebi, participando diretamente por
canais diretos tais como plebiscito ou indiretamente por meus representantes.
Na republica de Rousseau, liberdade e igualdade são importantes pilares de
sustentação e é na própria autoridade desse corpo social que encontramos a
garantia dessa liberdade socializada que substitui a liberdade natural, como
argumentou Lourival Gomes Machado:
Eis como tudo se origina de uma convenção e, por seu intermédio, dandose cada um, total e igualmente, a todos, preserva-se a sua igualdade a sua
liberdade, sendo que esta última apenas se transforma, porquanto em lugar
da liberdade natural irrestrita, instala-se agora uma liberdade convencional,
uma existência livre porém socializada. (MACHADO, apud ROUSSEAU,
1962, p.11).
Assim, a existência livre e sociabilizada dentro do pacto de Rousseau implica
na assunção de responsabilidades, pois o individuo vive coletivamente, e como
alterna a condição de cidadão e súdito, quando necessário, o corpo social do qual é
membro deverá forçá-lo a ser livre, ou seja, forçá-lo a obedecer às normas, por ele
livremente legislado, como observou Antonio Ruzza:
Para Rousseau, defensor da soberania popular, o poder executivo está em
posição subalterna, como sua emanação, nunca alienação, para permitir a
ligação entre Estado ou República passiva, composta pelos cidadãos que
devem seguir as leis da sua cidade, e o mesmo Soberano ou República
ativa, detentor do poder legislativo. (RUZZA, 2010, p. 144).
125
Desta forma, não se pode pensar em liberdade política em Rousseau, sem
falar em estar associado o que nos remete diretamente à vontade geral, versão
rousseauniana da àgora e tinha como finalidade tornar o homem tão livre quanto
fora no estado da natureza:
Encontrar uma forma de associação que defenda e proteja a pessoa e os
bens de cada associado de toda a força comum, e pela qual um, unindo-se
a todos, só obedeça a si mesmo, permanecendo tão livre quanto antes.
Esse é o problema central que o contrato social soluciona. (ROUSSEAU,
1995, p.78).
Essa liberdade política possível num estado civil onde a vontade geral é a
marca, que viria a intrigar liberais como Berlin, é possível quando se associa o
Contrato de Rousseau a uma perspectiva notadamente republicana. Nesse sentido,
Antonio Ruzza em seu Rousseau e a moralidade republicana no contrato social vê
na vontade geral a verdadeira concretização de um ideal republicano:
A noção de Vontade Geral representa a contribuição mais original do
pensamento rousseaniano e fornece a base da moralidade republicana no
Contrato Social. (RUZZA, 2010, p.77).
Em Rousseau a liberdade política está atrelada ao funcionamento e
manutenção do corpo político e, portanto, não pode ser confundida com uma
independência individual, só possível no estado da natureza. Novamente Berlin e
Rousseau distanciam-se quando a questão é a liberdade, pois, em Rousseau, a
liberdade pressupõe responsabilidades, pois é sociabilizada dentro de princípios
republicanos, contudo Berlin vê na liberdade rousseaniana a possibilidade de tudo
fazer. Leiamos Berlin:
Como pode um ser humano ser absolutamente livre (pois se não for livre,
não é humano) e, no entanto, não lhe ser permitido fazer absolutamente
tudo o que desejar? Mas, se é impedido, como podo ser livre? Pois o que é
a liberdade, senão fazer o que se deseja e não ser impedido de o fazer?
(BERLIN, 2005, p.57).
Rousseau procura esclarecer a importante diferença existente entre liberdade
e independência em sua oitava carta, de suas Cartas escritas da montanha:
É inútil querer confundir a independência e a liberdade. Essas duas coisas
são tão diferentes que até mesmo se excluem mutuamente. Quando cada
um faz o que bem quer, faz-se freqüentemente o que desagrada aos outros
e isso não se chama Estado livre. A liberdade consiste menos em fazer sua
vontade do que em não ser submetido à vontade de outro; ela consiste
ainda em não submeter a vontade de outro à nossa. (ROUSSEAU, 2006, p.
371).
126
Ainda que tenha dedicado parte considerável de sua obra a tratar da
liberdade, o genebrino de forma sintética a define magistralmente num texto de sua
maturidade, a sexta caminhada, em Os devaneios do caminhante solitário:
Nunca acreditei que a liberdade do homem consistisse em fazer o que
quisesse, mas sim em nunca fazer o que não quisesse, e esta é a liberdade
que sempre reclamei, muitas vezes preservei e pela qual mais escandalizei
meus contemporâneos. (ROUSSEAU, 2008, p.85).
Poderíamos ainda argumentar contra Berlin ao apresentar um texto da
maturidade, onde novamente nos deparamos com um Rousseau preocupado com a
liberdade e no despotismo que subjuga e obriga, é desse fenômeno que está a falar
Rousseau, quando afirma que a liberdade consiste em não fazer aquilo que não se
quer. É o Rousseau que se opõe à escravidão, como lemos em Émile e Sophie ou
os solitários:
Por estas reflexões, cheguei à conclusão que minha mudança de condição
era mais aparente que real; que se a liberdade consistisse em fazer o que
se quer, homem algum seria livre; que todos são fracos, dependentes das
coisas, da dura necessidade; que aquele que melhor sabe querer tudo o
que esta ordena é o mais livre, já que nunca é forçado a fazer o que não
quer.( ROUSSEAU, 2010, p. 82).
Em Rousseau os conceitos de liberdade nem sempre são claros. Assim no
Contrato social encontramos os termos liberdade política, civil e também natural. No
livro I da obra citada o genebrino assegura que no pacto civil o homem perde sua
liberdade natural e o direito ilimitado a tudo o que pode alcançar por uma liberdade
civil e a propriedade do que possui. Na mesma obra, Rousseau reserva ao governo
a penosa tarefa de garantir tanto a liberdade civil como a liberdade política, o que
sinaliza para possíveis
diferenças entre elas, ainda que não estejam claras no
Contrato. Assim preferimos usar o termo liberdade política , pois , ao nosso ver
retrata de maneira mais ampla a ideia de liberdade possível apenas no estado civil,
porem com um forte apelo moral criador de uma nova consciência no homem que
integra esse pacto. Essa liberdade política transcende as regras do jogo social e
político, pois permite que o homem
se reconheça como figura central na polis,
adentrando também o campo da moral e da ética. Assim nos e dado pensar que a
liberdade civil na perspectiva de Rousseau se liga a idéia do homem e suas
responsabilidades civis, tendo como limite a vontade geral, ao passo, que a
liberdade política nos remete a um conceito mais amplo, geral e moral, razão pela
qual preferimos essa terminologia em nossa pesquisa.
127
Para um homem do século XVIII, admirador dos antigos e tendo nascido
numa pequena República que lhe deu o orgulho de se sentir livre, tratar do tema da
liberdade acabou sendo uma consequência natural, e Rousseau o fez de forma
radical e também pedagógica.
No campo do dever ser, com Emílio e Do Contrato Social, é possível
conhecer um Rousseau que vai da pedagogia até os princípios de direito político,
tendo na liberdade seu fio condutor. Por essa força contida no texto, aproxima-se de
rebeldes e revolucionários, e, assim como Platão em Siracusa, o genebrino transita
da filosofia para a efetividade das coisas, fazendo-se legislador em duas ocasiões,
com os poloneses e os corsos. Ainda que esses projetos no campo do ser não
tenham sido aproveitados pelas respectivas nações, novamente a exemplo de
Platão, para o leitor do genebrino fica o legado da coerência de um homem que em
todas as trincheiras que esteve, do dever ser ao ser, associou a liberdade à
condição humana, afirmando ser indissociáveis. Quando nos referimos ao ser em
Rousseau, estamos fazendo menção da verdade efetiva das coisas, histórias e a
própria experiência humana com as instituições e com os agentes políticos de seu
tempo.
Liberalismo, marxismo ou anarquismo buscam a liberdade, contudo quem
historicamente manteve maior proximidade com a concepção de liberdade em
Rousseau? A perspectiva de liberdade na obra política do genebrino, em especial no
Contrato Social, está profundamente relacionada a temas tais como: o poder
soberano que é concentrado nos cidadãos, o republicanismo, a simplicidade, o valor
do trabalho e a igualdade dentre outros. Assim, é possível pensar que a tradição
marxista ou o chamado pensamento político de esquerda possui fortes relações com
a liberdade política pensada por Rousseau. A leitura de Althusser, Della Volpe e
Carlos Nelson Coutinho, necessários em nossa introdução, não nos motivou a
pensar diferente.
Hoje no Brasil, tempo do ser, onde a sociedade organizada tem questionado o
modelo de democracia representativa como nas manifestações de Junho de 2013,
quando os canais de participação direta dos cidadãos são quase inexistentes, a
teoria política de Rousseau em parte concentrada em seu Contrato Social ainda
pode ser inspiradora, pois o objetivo que motivou seu autor, o de resgatar a
128
liberdade que em outrora o homem gozava no estado da natureza, agora uma
liberdade política, e fazendo uma inversão que ainda esperamos ansiosamente por
ocorrer; tirando a histórica soberania do príncipe e entregando-a ao cidadão, sem
nunca renunciar à liberdade, como sua pena um dia imortalizou:
Renunciar à sua liberdade é renunciar à sua condição de homem, aos
direitos da humanidade, e até mesmo aos próprios deveres. (ROUSSEAU,
1995, p.74).
129
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