Estratégias de sustentabilidade para a clientela

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Estratégias de sustentabilidade para a clientela desinstitucionalizada
Maria Tavares Cavalcanti12
Resumo
Este texto trabalha as estratégias de sustentabilidade para a clientela
desinstitucionalizada pensando no dispositivo dos serviços residenciais terapêuticos
a partir de quatro dimensões – a dimensão da equipe que cuida, a dimensão dos
pacientes que neles habitam, a dimensão da instituição de referência do serviço, e a
dimensão da cidade que os acolhe e/ou hostiliza. São levantados alguns problemas
vivenciados na prática com esses serviços e apontados alguns caminhos de
encaminhamento dos mesmos.
“Às vezes me perguntam, me perguntam sempre isso: “Você não gostaria de morar
num centro grande para produzir livros? Você teria estímulos “maiores”. O estímulo
é abrir os olhos, é o cotidiano. Eu acho que a metafísica, a poesia, Deus repousam
nas coisas, nos objetos mais inusitados, mais surpreendentes, porque a poesia não
recusa absolutamente nada. Tudo é matéria da poesia. E vocês observem que os
místicos são pessoas muito corriqueiras. As vidas de santos são as coisas mais falsas
que eu já vi na minha vida. É falsozinho mesmo vida de santo, não tem vida de santo
desse jeito que nós vemos, não. Os santos são muito corriqueiros, eles são
absolutamente encardidos nas suas vidas. O que às vezes chama a atenção são dons
especiais, de milagre, de levitação, mas fora isso a santidade é um passeio no
cotidiano. E por quê? Porque a coisa mais difícil que tem é você aceitar essa miséria
do cotidiano, a pobreza do cotidiano, com tudo o que ele traz: velhice, doença, morte,
decepções, frustrações e por aí afora. Esse cotidiano, esse todo dia, o que todo
mundo tem: nós só temos isso, ninguém tem mais nada que isso, nem a rainha da
Inglaterra, não é verdade? Nós só temos 24 horas, louvado seja, só isso, só isso....
Então não terá grandes temas. Dizem que Santo Tomás de Aquino estava no
refeitório uma vez e os frades falaram com ele assim: “Olha, tem um boi voando,
corre depressa pra você ver! ” E ele não saiu do lugar, porque como teólogo, como
místico, como filósofo ele se admira do que é natural. Ortega y Gasset fala assim
num de seus livros: “Admirar-se do que é natural é o dom do filósofo”. Admirar-se
de um boi de duas cabeças qualquer idiota é capaz de fazer isso, não é? Todo mundo
sai correndo atrás. “Olha lá! Olha lá, galinha com três pernas! ” Fica no circo, a gente
vê..., mas admirar-se de uma galinha comum, esse bicho estúpido que é uma
galinha, admirável na sua estupidez e na sua aparente falta de sentido, é o trabalho
da arte e da poesia. ”
Adélia Prado3
1Professora
Adjunta da Faculdade de Medicina da UFRJ, Diretora Clínica do Instituto de Psiquiatria da UFRJ.
2
[email protected]
3
Prado, A. Arte como experiência religiosa. In Massimi M, Mahfoud M (Org.) Diante do mistério – psicologia
e senso religioso. São Paulo: Edições Loyola, 1999.
Qual o sentido de iniciar um texto sobre as “Estratégias de Sustentabilidade
para a Clientela Desinstitucionalizada” falando do cotidiano e mais do que do
cotidiano, falando da possibilidade de maravilhamento frente ao cotidiano? Porque
penso que a sustentabilidade de uma clínica com pessoas internadas há muitos anos,
pessoas “graves”. “Crônicas”, “fora de possibilidades terapêuticas” como se diz,
passa necessariamente pela capacidade de se manter esse maravilhamento aceso. E
esse maravilhamento não é outro se não o maravilhamento com o cotidiano, com o
dia a dia, com as dificuldades e facilidades mais banais do viver: comer, vestir,
dormir, se alegrar e se entristecer, falar e calar, sair de casa e nela permanecer etc.
Esse é o pano de fundo para toda e qualquer estratégia clínica de travessia com os
pacientes para um mundo novo, não asilar, não fechado em quatro muros. Essa é a
estratégia clínica necessária para que a cidade possa se tornar de fato asilo para os
nossos pacientes e que não seja mais necessária à criação de próteses de “asilos”,
em geral fechados, muitas vezes verdadeiros guetos, e que tem sempre mão dupla:
protegem a sociedade dos pacientes, mas também os pacientes da sociedade.
Para organizar o nosso pensamento a respeito das “Estratégias de
Sustentabilidade para a Clientela Desinstitucionalizada” e não esquecendo que o pano
de fundo de toda a nossa discussão é o maravilha mento com a galinha de duas
pernas, gostaria de propor que pudéssemos esquematicamente dirigir essas
estratégias para quatro grandes grupos, sabendo-se de antemão que todos eles se
entrecruzam: à equipe que cuida, aos pacientes “desinstitucionalizados”, à instituição
de tratamento dos pacientes e de vinculação da equipe e à cidade aonde eles serão
“reinseridos”. Poderíamos começar trazendo à cena alguns problemas encontrados
em nosso dia a dia relacionados a cada um desses grupos e, em seguida, a partir dos
problemas, pensar caminhos para solucioná-los, ou, pelo menos, encaminhá-los.
Em relação à equipe que cuida poderíamos dizer que um dos primeiros
problemas por ela enfrentado é o fato de trabalhar no território em uma cultura
institucional ainda não muito permeável a essa nova lógica de funcionamento da
assistência no campo da saúde mental. Assim sendo, nem sempre a instituição
responde de pronto frente aos problemas vivenciados pela equipe e pelos pacientes
ao adentrarem na cidade – problemas que podem ser desde uma privada entupida,
uma lâmpada queimada, um enguiço na máquina de lavar roupa, uma infiltração, ou
ainda, desentendimentos com um ou mais vizinhos, com o proprietário do imóvel
alugado, com a imobiliária etc. Isso para não falar dos problemas que envolvem
diretamente os próprios pacientes, quais sejam, reagudizações de sintomatologia
produtiva psicótica, problemas clínicos diversos etc. Ora, não há equipe assistencial
que aguente por muito tempo essa sensação, e mais do que sensação, muitas vezes
realidade, de isolamento e solidão, a que ficam relegados ao saírem juntamente com
os pacientes do hospício.
Em relação aos pacientes, há todo um reaprendizado de estar no mundo a ser
feito, reaprendizado que só pode ser feito em conjunto com a equipe, com os demais
moradores da casa, com os vizinhos etc. Estar inserido na cidade e no mundo significa
estar inserido através de relações humanas. Ninguém se insere simplesmente porque
mudou de arquitetura física, a reinserção passa pela rearquitetura humana. Novas
relações, novas formas de relação com antigos vínculos, ampliação do universo de
relações etc.
Em relação à instituição, como vimos, é toda a lógica de funcionamento
institucional que tem que ser revista. A lógica asilar manicomial é, se pudermos criar
um novo termo, institucionalocêntrica, ou seja, tudo tem que vir à instituição e a
instituição não sai de si para nada, nem para ninguém. “Se o paciente chegar até
mim, eu cuido dele, se ele não chegar não é meu problema”. Uma moradia no
território, por mais que seja uma moradia, é ocupada por pessoas que estiveram
internadas por muitos anos em várias instituições e que demandam um tipo de
atenção diferenciada, estando em um serviço residencial terapêutico exatamente por
esse motivo. A instituição, e quando falamos em instituição estamos falando em seus
membros, pois a instituição por si só não existe, o que existe são as pessoas que
compõem a instituição, precisam começar a entender que a estratégia de
sustentabilidade dos pacientes desinstitucionalizados passa pela inserção da
instituição junto aos seus pacientes de outra forma. Não há desinstitucionalização
(apesar da contradição do termo) de pacientes graves, sem a presença da instituição
na comunidade, seja através da sustentação da equipe que cuida, seja através do
suporte material, seja através do apoio de retaguarda etc. Um comentário do Prof.
José Miguel Caldas de Almeida, diretor de saúde mental da Organização Panamericana de Saúde (OPAS), a este respeito, nos pareceu relevante. Contava-nos
ele que enquanto a “reforma psiquiátrica” estava apenas no papel, todos os membros
de um determinado departamento de psiquiatria de uma universidade europeia eram
altamente favoráveis ao tratamento dos doentes mentais, mesmo graves, na
comunidade, mas, quando isso passou a se tornar realidade e eles perceberam que
também eles teriam que sair dos muros do hospital e da universidade para o
território, a história mudou de figura. Isso deixa claro que não são apenas os
pacientes que se encontram institucionalizados, mas são sobretudo os profissionais
que têm mais dificuldade de abandonar os seus castelos rumo ao desafio do novo,
do incerto, do aparentemente e/ou potencialmente menos seguro etc.
Em relação à cidade há um trabalho colossal a ser feito, que, a nosso ver, mal
começou a engatinhar, se tanto. Durante duzentos anos, a estratégia principal da
sociedade dita normal frente aos doentes mentais graves foi de colocá-los à parte,
de preferência fora das vistas dos homens de bem. Podemos dizer que esse
panorama tenha se modificado nas primícias do século XXI? A epopeia vivida pela
equipe da moradia do IPUB/UFRJ ao tentar entrar em um apartamento de classe
média de Copacabana alugado dentro da Lei, é paradigmática da distância que nos
separa de uma cidade acolhedora aos doentes mentais. Creio que vale a pena relatar
minimamente parte dos acontecimentos, a fim de deixar registrado as dificuldades
que enfrentamos e que devem fazer parte de qualquer discussão a respeito das
estratégias de sustentabilidade para a clientela desinstitucionalizada. Primeiramente,
todos aqueles que já se viram frente à tarefa de alugar um imóvel para um serviço
residencial terapêutico sabem das dificuldades que isso acarreta. Dificilmente alguém
em sã consciência aceita alugar o seu imóvel para uma instituição pública, seja ela o
Instituto de Psiquiatria da UFRJ, a Secretaria Municipal de Saúde ou qualquer outra.
Vencida essa primeira barreira, que não é simples, há ainda que enfrentar uma
segunda barreira, a vizinhança, que, em geral, entra em pânico quando descobre a
finalidade do imóvel – servir de moradia para oito doentes mentais. Ninguém fala em
preconceito, pois essa é uma palavra banida do vocabulário de todos, uma palavra
feia, quase um palavrão. Mas, se mergulharmos no cerne da questão, temos que
admitir que no mínimo essa possibilidade tem que ser levantada. Oito mulheres,
pobres e doentes mentais, mas que vinham de quatro anos em um apartamento em
Botafogo sem nenhuma ocorrência desagradável, pelo contrário, depois de um início
também difícil – “essas malucas do Instituto de Psiquiatria vão dar problema aqui e
desvalorizar o nosso patrimônio” – tornaram-se as “queridinhas” do prédio, a ponto
do síndico lamentar a venda do apartamento e a necessidade de saída das suas
moradoras. O prédio de Copacabana, no entanto, ao tomar conhecimento de que as
pacientes viriam morar ali, reuniu-se em verdadeira cruzada contra a sua vinda,
antes mesmo de vê-las. Um morador chegou inclusive a impetrar uma ação
extrajudicial contra o ingresso das moradoras no apartamento legalmente alugado.
Na reunião de condomínio de que participamos, os motivos alegados eram inúmeros
– a impropriedade de colocá-las no oitavo andar; a tragédia que ocorreria caso o
prédio viesse a pegar fogo e elas não pudessem sair, dado que o apartamento fora
gradeado; a periculosidade das mesmas; a rotatividade de moradoras no
apartamento; a desvalorização do imóvel; a incompreensão de que um serviço
residencial terapêutico é uma moradia e não um serviço assistencial (isso, na
verdade, a nosso ver, demandaria uma discussão bem mais aprofundada e que
aponta para o fulcro da discussão a respeito das moradias assistidas – é uma casa,
um serviço, ou ambos? -, bem como levanta o fato de que as moradias assistidas
são e serão múltiplas e diversas na dependência dos pacientes que nelas forem morar
[mais ou menos autônomos etc.]). Diante de toda essa confusão e julgando que seria
muito ruim para as pacientes entrarem em um prédio completamente hostil à sua
presença, a direção do Instituto de Psiquiatria optou por recuar e não as colocar lá,
apesar de conhecer de perto a dificuldade de conseguir alugar um outro imóvel. Não
pude deixar de pensar e de sentir ao longo de todo esse processo uma certa “pena”
dos moradores daquele prédio que se privaram da possibilidade de conviver com
aquelas mulheres. Vinte anos de vida dedicados e convivendo com doentes mentais
me enriqueceram de uma forma que nem eu mesma saberia dimensionar e me
tornaram sem dúvida nenhuma uma pessoa muito melhor. Mas para que a sociedade
venha a poder experimentar isso é preciso um longo e constante trabalho nosso,
inclusive de grande mídia, pois há que se modificar uma mentalidade, ideias
profundamente arraigadas no imaginário social, tais como a de que todo louco é
perigoso e que apareceram de maneira límpida durante todo esse episódio do prédio
de Copacabana. Não faremos uma revolução na assistência psiquiátrica, não
colocaremos os doentes mentais na comunidade, no território, se não prepararmos
esse território para acolhê-los e toda a literatura a respeito da desinstitucionalização
dos doentes mentais é unânime nesse ponto.
Frente a todos
poderíamos laborar?
esses problemas, que
estratégias de
enfrentamento
Em relação à equipe, penso que acolhê-la é fundamental. Acolhê-la em suas
demandas, em suas dificuldades, em suas alegrias, ou seja, fazer rede com ela e não
a deixar isolada como se os pacientes, a moradia, os problemas, fossem dela e
apenas dela.
Em relação aos pacientes há que se ver situação a situação e estudar que tipo
de moradia é mais adequado para cada um deles. Temos muitos pacientes
institucionalizados que jamais poderão prescindir de cuidados básicos de saúde,
pacientes extremamente dependentes para as mais simples atividades da vida diária.
Esses seguramente necessitarão de ambientes mais protegidos e alguns deles até
mesmo hospitalares. Outros poderão com o auxílio da equipe profissional habitar em
espaços mais abertos, mais livres. Muito poucos, a nosso ver, dentre os pacientes
internados há muitos e muitos anos poderão prescindir completamente de uma
equipe de referência que os auxiliem a adentrar na sociedade e na comunidade, que
ajude a mediar essas relações, por vezes tão difíceis e ásperas. Não podemos
esquecer que a nossa clientela psicótica grave tem como uma de suas principais
dificuldades exatamente a possibilidade de mediação na relação com o outro.
Em relação à instituição há também um trabalho enorme a se fazer. Desde a
instituição de referência da moradia, até as instituições superiores, como as
secretarias municipais e estaduais de saúde e o próprio ministério da saúde. A
maioria das amplas desistitucionalizações realizadas na Europa, Estados Unidos e
Canadá, forma feitas com muito investimento de dinheiro público – compra de
imóveis, construção de dispositivos mais adequados para os pacientes muito graves
institucionalizados, pagamento de bolsas para os pacientes e para famílias dispostas
a acolhê-los, investimento em pessoal (contratação de profissionais, melhoria dos
salários etc.). Sem investimento novo e sem a garantia de que o dinheiro
economizado com a diminuição do número de pacientes internados nos grandes
hospitais psiquiátricos fique na saúde mental não iremos, ao meu ver, muito longe,
pois logo esbarraremos na sobrecarga dos profissionais que tentam compensar o
investimento exíguo com o investimento de seus próprios corpos (e muitas vezes de
seus próprios bolsos). Em relação à instituição de referência há que se trabalhar na
direção de uma compreensão mais ampla e mais complexa do que seja a própria
instituição, ou seja, é a instituição que se espalha e adentra pelo território juntamente
com seus pacientes. Ela os acompanha até ali e aprende com eles a habitar esses
novos espaços.
Em relação à cidade, já adiantamos algumas ideias, como a de amplas e
constantes campanhas na mídia, filmes, eventos culturais etc., tal como a
Organização Mundial da Saúde empreendeu em 2001, ao nomear aquele o ano da
saúde mental e fazer do dia 7 de abril daquele ano, o dia mundial da saúde mental,
com eventos no mundo inteiro a esse respeito. Isso, no entanto, é uma parte da
questão, a outra se dá a nível mais micro, das relações cotidianas no espaço da
cidade, no qual temos que estar inseridos, juntamente com os nossos doentes
mentais. Temos um papel fundamental de mediação dessas relações. Para além, é
claro, de garantir um tratamento adequado e de qualidade nas instituições das quais
fazemos parte.
Por fim, resta, entre muitos outros elementos, a discussão conceitual a
respeito do que seria um serviço residencial terapêutico – é uma casa, um serviço ou
ambos? Por um certo ângulo é sem dúvida nenhuma uma casa, a casa dos pacientes
que ali moram. Eles têm a chave, entram e saem à hora que querem, cuidam das
suas coisas, arrumam o seu espaço como desejam etc., Mas também poderíamos
argumentar que por outro ângulo a moradia assistida poderia ser vista como um
serviço – a instituição é paga pelo SUS para prestar esse serviço e é ela quem paga
o aluguel do imóvel, em muitas moradias há cuidadores com os pacientes, há uma
equipe técnica de referência etc. Penso que ao invés de ficarmos discutindo a questão
a partir dessa dicotomia, deveríamos tomá-la de forma mais global, pois do meu
ponto de vista, essa é uma falsa dicotomia. É uma casa e é um serviço e caminhará
mais para um lado ou para outro na dependência dos pacientes e da equipe. É claro
que o horizonte é sempre, a princípio, da maior autonomia possível, e nesse caso, a
palavra possível é fundamental. A casa implica na habitação do espaço e esse espaço
é habitado tanto pelos pacientes, quanto pela equipe, pelos vizinhos, amigos e
familiares. A habitação de uma casa se faz em seu cotidiano e aqui retomamos o
início de nosso texto, no qual eu, apropriando-me de Adélia Prado, dizia que o mais
difícil é exatamente o mergulho no cotidiano. Desafio que a clínica com os doentes
mentais nos coloca a cada instante. O desafio de dia após dia continuarmos a nos
maravilhar com a galinha de duas pernas!
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