Alberto Vizzotto

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IV ENCONTRO ANUAL DA ANDEHP
08 A 10 DE OUTUBRO DE 2008, VITÓRIA-ES.
GRUPO DE TRABALHO: DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E
CULTURAIS E POLÍTICAS PÚBLICAS DE DIREITOS HUMANOS. (GT4)
Políticas públicas em um estado democrático de direito e a função
social da propriedade.
Alberto Vizzotto
(Mestrando em Direito pela UNIb – SP)
Thiago Nicacio Lima
(Mestrando em Direito pela UNIb – SP)
Resumo:
O presente estudo visa a demonstrar que em um Estado Democrático de Direito, ou
seja, em um Estado pautado por leis que homenageiam o princípio fundamental da
dignidade da pessoa humana, as políticas públicas devem estar voltadas à busca
pelo princípio ético do bem comum, que por sua vez pode ser singelamente definido
como sendo o bem particular considerado como parte de um todo. Nesse contexto, a
propriedade privada assume fundamental importância, posto que pode ser
considerada a pedra angular de todo o direito privado. Sendo assim, função social
da propriedade, constitucionalmente prevista, deve ser interpretada de maneira
condizente com os preceitos de um Estado Democrático de Direito e homenagear a
dignidade da pessoa humana. Neste sentido o Estado deve reforçar ações que
incentivem a promoção da função social da propriedade e desestimular aquelas que
não a observem.
Palavras-chave:
Ética. Políticas públicas. Bem comum. Propriedade. Função social.
Introdução:
O preâmbulo da Constituição da República Federativa do Brasil
(CF/88), dispõe que o Estado Democrático de Direito brasileiro destina-se a
assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o
bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de
uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos. Ademais, insta salientar que
construir uma sociedade livre, justa e solidária, e promover o bem de todos,
constituem
objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, em
consonância com o que dispõe o artigo 3.º, incisos I e IV, da CF/88. O princípio ético
do bem comum, centro de gravidade da ética social, apóia seu conceito no valor
solidariedade social, característica essencial do Estado Democrático brasileiro, e se
apresenta intimamente relacionado à idéia de interesse público.
Neste diapasão, pode-se tomar o conceito de bem comum como sendo
correspondente à coexistência de um todo e das partes que o compõem 1, assim
como a unidade na multiplicidade. Sendo assim, temos que todos os dons recebidos
pelos homens, sejam dados pela natureza, sejam construídos por eles próprios, pela
sociedade ou pelo Estado, constituem um patrimônio inviolável, indisponível, que
obriga a todos – cidadãos, sociedade e Estado – pois cabe a estes os tutelarem,
protegerem e desenvolverem, como herança atual e para as gerações futuras; em
Portal academus – editorial. Roraima, indígenas, agricultores, e o bem comum.
<http://www.academus.pro.br/site/pg.asp?pagina=detalhe_artigo&titulo=Artigos&codigo=1570&cod_cate
goria=&nome_categoria=> acesso em 07 de set de 2008.
1
outras palavras, todos os dons recebidos pelos homens constituem um bem
comum.2
Não se pode olvidar que, nesse contexto, ao princípio ético do bem
comum corresponde o princípio jurídico do interesse público. A busca pela
consagração do interesse público é o fim último do Estado, neste sentido é a lição
de José Cretella Júnior3 para quem a busca pelo interesse público e sua supremacia
sobre o interesse particular traduzem o grande princípio informador do direito
público. A CF/88
exalta
os
valores
que,
consagrados,
correspondem
à
implementação do interesse público e por conseqüência à homenagem ao bem
comum. Dentre estes valores encontra-se a função social da propriedade que pode
ser extraída do mandamento de diversos artigos constitucionais como, v.g., o artigo
5.º, inciso XXII, que garante o direito da propriedade e, em seguida, o inciso XXIII
determina que a propriedade atenderá a sua função social; no artigo 170, inciso III, a
função social da propriedade é elencada como sendo um dos princípios
informadores da ordem econômica, ao lado da propriedade privada; já o § 2.º do
artigo 182 reza que a propriedade imobiliária urbana cumpre a sua função social
quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no
plano diretor, instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão
urbana, que por sua vez é obrigatório para cidades com mais de vinte mil habitantes;
o § 4.º do mesmo dispositivo, por seu turno, faculta ao Poder Público municipal,
mediante lei específica para área incluída no plano diretor, exigir, nos termos da lei
federal (que corresponde ao Estatuto da Cidade, Lei n.º 10.257/01), do proprietário
do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, que promova o seu
adequado aproveitamento, sob pena, sucessivamente, de parcelamento ou
edificação compulsórios, IPTU progressivo no tempo e desapropriação com
pagamento mediante títulos da dívida pública. Pertinente se faz destacar a Súmula
n.º 668 do Supremo Tribunal Federal que dispõe: “é inconstitucional a lei municipal
que tenha estabelecido, antes da Emenda Constitucional 29/2000, alíquotas
progressivas para o IPTU, salvo se destinada a assegurar o cumprimento da função
social da propriedade urbana”, isto porque a previsão da função social da
propriedade é fruto do Poder Constituinte originário4; quanto à propriedade rural, o
Portal academus – editorial. Congresso nacional, negação do bem comum.
<http://www.academus.pro.br/site/pg.asp?pagina=detalhe_artigo&titulo=Artigos&codigo=1335&cod_cate
goria=&nome_categoria=> acesso em 10 de ago de 2008.
3
CRETALLA JÚNIOR, José. Tratado de direito administrativo. v. 10. Rio de Janeiro: Forense, 1972.
4
Neste mesmo sentido, aponta o RE 153.771-MG, rel. Min. Moreira Alves, 20.11.1996, DJ 05.09.1997,
encontradiço no informativo STF n.º 54.
2
artigo 185, parágrafo único, estabelece que a lei é que fixará normas para o
cumprimento dos requisitos relativos a função social da propriedade; o artigo 186,
por sua vez, estabelece que, quanto à propriedade rural, a função social é atendida
quando observa simultaneamente aos requisitos de aproveitamento racional e
adequado, utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do
meio ambiente, observância das disposições que regulam as relações de trabalho,
exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.
Importante ressaltar o que dispõe o artigo 243, que impõe a expropriação imediata, e
sem indenização, de glebas onde forem localizadas culturas ilegais de plantas
psicotrópicas, e vincula a destinação destas terras ao plantio de produtos
alimentícios e medicamentosos.
Nesta esteira, o presente estudo justifica-se em razão das teorias
liberal-individualista e social-coletivista gerarem aparente antagonismo entre o bem
comum e o bem individual, além dos reflexos sobre como as políticas públicas são
desenvolvidas, em especial quanto à propriedade privada e sua função social.
I - Sobre o bem comum:
A importância de se conhecer o conceito de bem comum sempre foi
destacada tanto pela doutrina estrangeira quanto pela a doutrina brasileira. Já no
ano de 1819, José da Silva Lisboa5, o Visconde de Cairu, em sua obra “Estudos do
bem comum e economia política” ao tratar do capítulo “a necessidade e importância
dos estudos do bem comum” dispunha:
Viver, e viver bem, é o voto de todos os povos. Vivendo os
habitantes de qualquer País Independente, de uma porção dos
produtos da Geral Indústria, que constituem a Riqueza Nacional;
devendo a Renda do Estado ser mui considerável parte dessa
Riqueza, posta à disposição do governo para os Serviços
Públicos, sem obstar, antes mais abrir, as Fontes da mesma
Riqueza; proporcionando-se a Prosperidade das Nações à
abundância do necessário e cômodo à vida, à segurança das
pessoas e propriedades, e a certeza de útil emprego dos
indivíduos, que tal Riqueza e Renda podem dar; é manifesto o
interesse dos Estudos do Bem Comum, e do melhor Sistema de
Economia Política (...).
Deve-se ressaltar que texto supramencionado foi engendrado durante o
período em que nosso país se encontrava na condição de colônia de Portugal e,
LISBOA, José da Silva. Estudos do bem comum e economia política. Rio de Janeiro: IPEA/INPES,
1975. p. 67.
5
também, que as idéias nele manifestadas sofreram incisiva influência do
pensamento de Adam Smith. A despeito disso, podem-se destacar várias
características como, v.g., o fato de o Estado ter sua renda sendo vista como
proveniente da atividade particular e de dever ser devolvida a estes por meio de
serviços públicos, de garantia à vida, à segurança e à propriedade, além de
propugnar por não haver desperdício de esforço humano em razão de
desorientação.
Em tempos mais recentes destacam-se os estudos de Eduardo Prado
de Mendonça e de Ives Gandra da Silva Martins Filho.
Para Ives Gandra da Silva Martins Filho6 o conceito de bem comum
envolve o conhecimento de cinco noções básicas, quais sejam: a de Finalidade, de
bondade ou bem, de participação, de comunidade e de ordem. Para o referido autor,
a noção de finalidade se confunde com a de causa final, da teoria das causas de
Aristóteles, segundo a qual o objetivo ou a finalidade a que algo se destina é a
melhor forma de compreendê-lo e explicá-lo. Já a noção de bem pressupõe o
conhecimento da teoria aristotélica hilemórfica, segundo a qual o bem é a causa final
que atua no ser em busca de perfeição, de modo que perfeito é o ente que possui
todas as perfeições que lhe são próprias, no entanto, se não tem alguma delas dizse que o ente está em potência de adquiri-la. Nesse sentido, pode-se dizer que o
bem é o ser aperfeiçoador de outro ser e quanto mais perfeito e universal for a mais
seres atrairá. Quanto à participação, esta pode ser encarada segundo dois
enfoques: segundo o conceito latino, significa dividir um todo material entre os
participantes, estes ficaram com as partes e ao antigo todo restará apenas uma
relação histórica; o conceito grego, por sua vez, define participar como ter
parcialmente o que o outro possui totalmente, neste sentido, temos o exemplo de um
atleta olímpico que se alegra plenamente por ter ganhado uma medalha, seus
familiares e amigos, ao saberem da vitória, também se alegram sem que essa
alegria diminua a experimentada pelo atleta vencedor, ao contrário a aumenta. A
noção de comunidade se traduz na comunhão entre aqueles que participam de uma
mesma natureza e tendem a um mesmo fim; comum é aquilo que se predica ou que
pertence a vários. Para que se compreenda a noção de ordem, faz-se necessária a
análise de três aspectos: um elemento semelhante deve aglutinar a multiplicidade de
indivíduos (distinção com conveniência); aquilo que falta a um deve ser suprido por
MARTINS FILHO, Ives Gandra da Silva. O princípio ético do bem comum e a concepção jurídica de
interesse público. Disponível em: <http://www.jusnavigandi.com.br> acesso em 09.ago.2008.
6
aquele que possui (Cooperação); e, por fim, deve haver um objetivo comum a
nortear os membros da comunidade (fim). Nesta esteira, podem-se distinguir duas
espécies de ordem: a intrínseca, que envolve as partes entre si, subordinadas umas
às outras segundo uma hierarquia; e a extrínseca, que compreende a ordem do todo
ao fim, ou seja, a busca de todos pelo bem comum. Entende-se que a ordem
extrínseca se sobrepõe à intrínseca, pois só pode haver uma ordem interna se as
partes convierem em um fim ordenador comum. Neste diapasão, o bem particular
buscado por cada indivíduo isoladamente é diverso do bem comum, este sim é
determinante quanto ao modo de organização e quanto ao objetivo que une os
homens em sociedade.
Assim sendo, nenhum indivíduo pode alcançar seu fim particular senão
enquanto parte de um todo em que está inserido, de modo que apenas colaborando
na consecução do fim comum e ajudando os demais membros da sociedade a
alcançar seu bem particular é que se atinge o próprio bem.
Para este mesmo sentido apontam os estudos de Eduardo Prado de
Mendonça7, para quem a noção de bem comum é fundamental, pois toda forma de
organização social depende de seu significado. É em torno do significado de bem
comum que se vai estruturar a sociedade, uma vez que este sustentará o espírito
das instituições sociais, os instrumentos da vida social, colunas em que se assenta a
vida humana nas suas intercomunicações. No entanto a palavra bem geralmente é
imprecisa. O bem pode ser prático ou útil, quando satisfaz o plano da necessidade
prática, seu valor é instrumental; pode ser estético, quando satisfaz ao sentimento
estético, por exemplo, o belo; pode ser psicológico, é o que se encontra na
impressão psicológica de satisfação, prazer e alegria; pode ser metafísico, quando
satisfaz à natureza de um ser.
Para este mesmo autor, determinar o que é o bem do homem é ao
mesmo tempo determinar o que é para o ser humano o mal. O mal para o ser
humano é o que destrói total ou parcialmente a sua integridade; é o que impede no
ser humano o desenvolvimento e domínio da sua natureza. Já quanto ao bem da
sociedade, cabe ressaltar que esta não é um ser metafísico, mas sim, um todo
moral, instituído de pessoas humanas, e estas sim são seres metafísicos; o bem da
sociedade deverá ter sentido igualmente em vista do bem do homem. É neste
MENDONÇA, Eduardo Prado de. In: Anais do III Congresso Nacional de Filosofia. Realizado em São
Paulo, de 9 a 14 de novembro de 1959, em comemoração dos centenários de CLÓVIS BEVILAQUA e
PEDRO LESSA e do cinqüentenário da morte de EUCLIDES DA CUNHA. São Paulo, Instituto Brasileiro
de Filosofia, 1959. p. 187-192.
7
sentido que se deve entender o conceito de bem comum como o bem próprio à
sociedade. Bem comum não é o bem produzido pela comunidade na edificação de
um Estado político que seria tomado como entidade metafísica, neste caso seria
uma utopia, ou seja, um bem que, pretendendo ser de todos, na verdade não é de
ninguém.
Não se trata de uma comunhão de bens que destrói a propriedade
privada e desestimula a produção do próprio bem público. Bem comum é o bem que
é de todos, sendo de cada um e de todos os membros de uma sociedade. Isso é
possível porque o bem é comum por ser idêntico para cada um e é neste sentido
que o bem é de cada um e de todos. É de todos porque mantém a integridade do
corpo social e de cada um dos seus membros, respeitados na sua pessoa.
Desta forma, não se pode olvidar que a noção de bem comum consiste
no próprio bem particular de cada indivíduo enquanto membro de um todo ou de
uma comunidade, insta salientar que o fim do todo é o fim de qualquer de suas
partes, ou seja, o bem da comunidade é o bem do próprio indivíduo que a compõe.
Desta forma, o bem dos demais não é alheio ao bem próprio e não pode ser visto
como um mal próprio. Através do equilíbrio de direitos e deveres, cada pessoa deve
poder participar proporcionalmente do bem comum, que é o fim último da sociedade.
II - Sobre o interesse público e as políticas públicas:
Interesse pode ser definido, segundo Celso Pedro Luft8 como ganho,
desejo pessoal, manifestação volitiva de um sujeito em relação a um bem.
Todo ente tem uma bondade intrínseca que, pelo simples fato de
existir, o faz capaz de ser tido como um bem por algum sujeito (bem simpliciter,
segundo Aristóteles). No entanto, apenas alguns bens corresponderão ao bem
próprio do sujeito que o busca, de modo a ser adequado a sua natureza e capaz de
satisfazê-lo e aperfeiçoá-lo (bem secundum quid, segundo Aristóteles).
Cabe ressaltar que ao princípio ético do bem comum corresponde o
princípio jurídico do interesse público. Neste sentido, temos que o interesse público
é a relação entre a sociedade e o bem comum que ela almeja. Deste modo, em uma
sociedade politicamente organizada, cabe ao administrador público perseguir o bem
comum, externando, por meio de suas ações o interesse público, fim último do
Estado.
LUFT, Celso Pedro; FERNANDES, Francisco; GUIMARÃES, F Marques. Dicionário brasileiro globo.
43.ª ed. São Paulo: Globo, 1996.
8
O Estado, sob uma perspectiva histórica de suas características, de
acordo com as idéias de Ricardo Lobo Torres9, passou por uma fase chamada de
patrimonialista, caracterizada pela confusão entre o público – ou o que deveria ser
público - e o privado do rei notadamente quanto ao patrimônio, ou seja, entre a res
publica e a res principi; após passar pelo chamado Estado de polícia, em que se
acentuaram as características do absolutismo, o Estado assume a característica de
Estado fiscal em que os tributos são cobrados pelo próprio povo, por meio de seus
representantes eleitos, observada uma capacidade contributiva.
Adverte J.J. Gomes Canotilho10 que quando se fala em Estado de
Direito, em razão das diversas formas de estilos culturais, este assumiu várias
formas manifestáveis através de conceitos como rechtsstaat, rule of law, état legal,
não obstante todas estas manifestações procurassem alicerçar a juridicidade estatal.
Importante contribuição traz Marçal Justen Filho11 ao esclarecer que o
surgimento do Estado de Direito foi determinante para submeter o Estado, ou o
governo, à impessoalidade da lei, além de romper com os critérios de dominação
tradicional e carismático e privilegiar o modelo racional, expostos por Max Weber12.
Nos dizeres de Marçal Justen Filho:
A idéia de Estado de Direito resultou da doutrina alemã do
século XIX, com forte conotação formalista, e se traduziu,
originalmente, na conjugação de quatro postulados
fundamentais, a saber: a supremacia constitucional, a
tripartição dos poderes, a generalização do princípio da
legalidade e a universalização da jurisdição.(...).
Antes da afirmação do Estado de Direito, a atividade
administrativa do Estado era pouco permeável ao direito e ao
controle jurisdicional. Os atos do governante não comportavam
controle, sob o postulado de que o rei não podia errar ou que o
conteúdo do Direito se identificava com a vontade do príncipe.
A consagração do Estado de Direito refletiu a tendência a
eliminar os critérios religiosos e carismáticos como fundamento
da legitimação do poder político. Num Estado de Direito
prevalecem as leis, e não a vontade dos governantes.
Já quanto ao Estado Democrático de Direito, Canotilho13 - que se vale
da expressão Estado de Direito Democrático – destaca que este surge:
TORRES, Ricardo Lobo. A idéia de liberdade no estado patrimonial e no estado fiscal. Rio de Janeiro:
Renovar, 1991.
10
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7.ª ed. Coimbra:
Livraria Almedina, 2003.
11
JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. 2.ª ed. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 9-10.
12
WEBER, Max. Economia e sociedade. v. I. Brasília: UnB, 2000.
13
Op. cit. p. 98.
9
(...) como uma ordem legitimada pelo povo. A articulação do
“direito” e do “poder” no Estado constitucional significa, assim,
que o poder do Estado deve organizar-se e exercer-se em
termos democráticos. O princípio da soberania popular é, pois,
uma das traves mestras do Estado constitucional. O poder
político deriva do “poder dos cidadãos”.
Neste mesmo sentido se posiciona Marçal Justen Filho14 ao explicar
que o Estado Democrático de Direito surge em razão de uma evolução histórica
ocasionada pelo fato de que um poder político necessita de observar a soberania
popular e primordialmente respeitar os direitos fundamentais; vejamos:
(...) o conceito original de Estado de Direito foi sendo
enriquecido pela evolução histórica. As experiências trágicas
dos regimes totalitários alemão e soviético, vividas ao longo do
século XX, conduziram à constatação de que nenhum poder
político pode ser legitimado sem a observância dos princípios
da soberania popular e do respeito aos direitos fundamentais.
O Estado Democrático de Direito caracteriza-se não apenas
pela supremacia da Constituição, pela incidência do princípio
da legalidade e pela universalidade da jurisdição, mas pelo
respeito aos direitos fundamentais e pela supremacia da
soberania popular. (g. n.).
Cabe ressaltar que para Luiz Carlos Bresser-Pereira15, o Estado, sob
um outro ângulo, enquanto liberal, se serviu da burocracia weberiana, caracterizada
pela
rigidez
formal,
impessoalidade,
hierarquização
do
sistema,
rotina,
especialização, etc. No entanto, este sistema se mostrou ineficiente a partir do
momento em que a democracia permitiu que os trabalhadores e as classes médias
aumentassem a demanda por serviços sociais, notadamente após as guerras
mundiais, dando ensejo a uma forma de Estado na qual é atribuído importante valor
ao consumo coletivo relativamente igualitário, o Estado social. Esta forma de Estado
demanda do poder público maior eficiência na elaboração e execução de políticas
públicas.
No entanto, em consonância com os mandamentos constitucionais que
determinam a essência do Estado brasileiro, esta pretensa eficiência não deve ser
buscada a qualquer custo, como se os fins justificassem os meios, pois, como visto,
o ser humano não pode ser visto como meio, mas sempre como fim. Esta eficiência
só pode ser entendida legitimamente se for traduzida em políticas públicas
Op. cit. p. 13.
BRESSER-PEREIRA, Luiz Carlos. Instituições, bom estado e reforma da gestão pública. In:
Economia do setor público no Brasil. Ciro Biderman e Paulo Arvate (orgs). São Paulo: Campus Elsevier,
2004.
14
15
unificadoras de uma ética exercida de modo a homenagear o bem comum e a
existência digna dos membros da comunidade, pois a não implementação de ações
que visem à consecução do bem comum pode acarretar a deterioração da
sociedade em aspectos fundamentais da sua existência, primordialmente a
dignidade da pessoa humana.
III - Sobre a função social da propriedade:
A CF/88 estabelece que a propriedade observará a sua função social
em diversos dispositivos, em especial no artigo 5.º, inciso XIII.
Função, do latim functione, significa o exercício de órgão ou aparelho,
ou, complexo dos direitos, obrigações e atribuições de uma pessoa dentro de sua
atividade
profissional
específica16.
Logo,
pode-se
dizer
que
função
é
o
funcionamento, integrante de determinado mecanismo destinado à implementação
de uma finalidade específica.
Sendo assim, quando se fala de função em Direito, não mais se pode
conceber um Direito estático, isolado da realidade social, como o fora em momentos
em que era preponderante uma visão individualista do Direito.
Sobre o princípio da dignidade da pessoa humana, Célia Rosenthal
Zisman
17
dispõe que tal princípio é irrenunciável e sua preservação depende da
proteção e garantia aos direitos fundamentais. Acrescenta, ainda, que os direitos
fundamentais que compõem a dignidade humana são exercíveis independentemente
de positivação pelo Estado e que quando este o faz, tal ato tem caráter apenas
declaratório; tanto é assim que, quando o Estado não positiva os direitos
fundamentais ou mesmo quando descumpre as normas positivadas, a dignidade
humana deve ser garantida pela comunidade internacional. Neste sentido, Marçal
Justen Filho18 ressalta que o consenso entre os cidadãos que legitima o Estado
imprescinde da observância dos direitos fundamentais; vejamos:
O tema da legitimação se relaciona com o modo de
comunicação entre o governo e a sociedade. Se o direito não
encontra seu fundamento de validade em uma base religiosa
ou puramente moral, e como não pode manter-se pela via da
força, então a única alternativa restante é o consenso dos
cidadãos. Esse consenso, na democracia, é obtido por meio do
respeito a procedimentos.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Hollanda. Pequeno dicionário brasileiro da língua portuguesa. 11.ª ed.
Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira SA, 1985. p. 578.
17
ZISMAN, Célia Rosenthal. O princípio da dignidade humana. São Paulo: IOB Thomson, 2005.
18
Op. cit.p.11.
16
Mas esse consenso pressupõe, primeiramente, a possibilidade
de cada indivíduo ser tratado como igual, como titular de
direitos insuprimíveis. Não há consenso entre indivíduos que se
qualificam como desiguais. Portanto, é indispensável o
reconhecimento dos direitos fundamentais para haver o
consenso.
Desta maneira, pertinente se faz recordar os pensamentos de Marcio
Sotelo Felippe19, pelos quais:
O conceito burguês de “livres e iguais” remete à totalidade
ideológica, indivíduos que oferecem no mercado a força de
trabalho, mas que sofrem o constrangimento econômico
próprio do capitalismo. (...).
A consciência jurídica forjada pelo jusnaturalismo e pelo
Iluminismo pretende os indivíduos construindo uma experiência
jurídica e moral em que o outro recebe o tratamento
correspondente ao conceito de uma totalidade de partes
universais-concretas, o que corresponde à idéia de que
nenhum homem é meio, ou todo homem é fim em si mesmo.
Nesse sentido deve ser entendida, por exemplo, a norma
constitucional que diz que os homens são livres e iguais, e
aceita a tensão lógica que resulta dessa hermenêutica em face
da estrutura social dada. Essa tensão lógica é, mais uma vez, o
dualismo “tradição-dignidade”, o juízo de valor sobre o que é
dado, e que está na base de nossa intervenção, potencial ou
efetiva, sobre o existente. A diferença é que, nesta quadra
histórica, não se reivindica outra norma, mas um sentido
específico, aquele que se descortina ante o postulado segundo
o qual os homens são livres e iguais: a totalidade real e
concreta.
Tal passagem denota a importância da forma como se analisa a norma
posta. Não se pode analisar um dispositivo isoladamente do sistema em que se
encontra, tampouco analisá-lo em discordância com os princípios e valores
fundamentais que compõem a essência deste mesmo sistema.
Contudo, não se pode olvidar que as proposições até aqui levantadas
não podem se resumir à mera retórica inútil e ineficiente, de forma que políticas
públicas coerentes com os princípios e valores constitucionalmente consagrados
sejam viabilizados de modo concreto. Outro não é o entendimento de Marçal Justen
Filho20, vejamos:
(...) a atividade administrativa estatal continua a refletir
concepções personalistas de poder, em que o governante
pretende imprimir sua vontade pessoal como critério de
validade dos atos administrativos e invocar projetos individuais
19
20
FELIPPE, Marcio Sotelo. Razão jurídica e dignidade humana. São Paulo: Max Limonad, 1996.
Op. cit. p. 19.
como fundamento de legitimação para a dominação exercida. A
concepção de Estado Democrático de Direito é muito mais
afirmada (semanticamente) na Constituição do que praticada
na dimensão governativa. Isso deriva da ausência de
incorporação, no âmbito do direito administrativo, de
concepções constitucionais fundamentais. É a visão
constitucionalizante que se faz necessária para o direito
administrativo brasileiro, o que importa a revisão dos conceitos
pertinentes ao chamado regime de direito público(...).
Neste diapasão, insta salientar que a concepção da função social da
propriedade encontra sua mais remota inspiração na idéia tomista de que o
proprietário é um procurador da comunidade para a gestão de bens destinados a
servir a todos, embora pertençam a um só. E sua mais próxima inspiração, conforme
lembra Maria Sylvia Zanella Di Pietro21, é:
a doutrina social da Igreja, tal como expostas nas encíclicas
Mater et Magistra, do Papa João XXIII, de 1961, e Populorum
Progressio, do Papa João Paulo II, nas quais se associa a
propriedade a uma função social, ou seja, à função de servir de
instrumento para a criação de bens necessários à subsistência
de toda a humanidade.
Henrique Ferraz de Mello22 acrescenta, além da encíclica Mater et
Magistra, de João XXIII, referida por Maria Sylvia Zanella Di Pietro, as encíclicas
Rerum Novarum de Leão XIII, e a Quadragesimo Ano de Pio XI. Sobre o papel da
Igreja na formação do entendimento de que a propriedade deveria ser menos
individualista, ressalta o mesmo autor:
No conceito cristão, a propriedade do essencial é o que basta
para o homem, direito nato, e por assim dizer, de natureza
absoluta. Quanto ao supérfluo, a propriedade seria limitada e
relativa, espécie de propriedade fiduciária, uma hipoteca oculta
em favor da coletividade.
Tal afirmação remonta aos pensamentos de John Locke23, para quem a
terra e toda produção espontânea da natureza, como frutas e animais selvagens,
pertencem à humanidade em comum. Ninguém possui originalmente o domínio
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 15. ed. São Paulo: Atlas, 2003. p. 123.
MELLO, Henrique Ferraz. Função social da propriedade e sua repercussão no registro de imóveis. In:
NERY, Rosa Maria de Andrade (coord.). Perspectivas do direito privado 1: função do direito privado no
atual momento histórico. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p.309.
23
LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo civil: ensaio sobre a origem, os limites e os fins
verdadeiros do governo civil. Magda Lopes e Marisa Lobo da Costa (trad.). Petrópolis: Vozes, 1994.
21
22
privado,
privado excluindo o resto da humanidade, sobre os bens que se encontram, ainda,
em seu estado natural.
natural Neste estágio o domínio é coletivo.
coletivo A propriedade é
constituída por meio do trabalho, isto é com a transformação dos bens naturais. Tal
direito, porém, não era absoluto, pois como limite para o direto de propriedade o
homem só pode se apropriar,
apropriar através do trabalho,
trabalho do suficiente para sua existência
sem desperdício.
Insta salientar que é corrente na doutrina o entendimento de que a
função social não integra o conceito de propriedade, apenas o limita. Corroboram tal
posicionamento as idéias de Luis Edson Fachin24:
A doutrina da função social da propriedade corresponde a uma
alteração conceitual do regime tradicional; não é, todavia,
questão de essência, mas sim pertinente a uma parcela da
propriedade que é a sua utilização.
Data maxima venia, apesar de a função social da propriedade se
manifestar por meio de limitações ao uso ou da propriedade, seu conceito não mais
pode ser analisado apenas por esta faceta. O próprio conceito de direito implica o de
limite, o de dever. Em um Estado Democrático de Direito, que pelo simples fato de
descrever direitos acaba por delimitá-los, em um momento em que o Direito se volta
ao atingimento do bem comum, tutelando o interesse público, não se pode conceber
direitos absolutos, ou seja, direitos que não tragam para o seu titular quaisquer
espécies de responsabilidades. O enfoque mais adequado acerca do direito de
propriedade é aquele que traz no seu bojo a idéia de função social; idéia esta que
integra a sua estrutura. Só há propriedade se houver função social.
O direito de propriedade não pode mais ser encarado de modo
estático, tampouco com tendo o caráter absoluto que em outros tempos lhe foi
conferido. Nesse sentido, também se encontram os pensamentos de Melhim
Namem Chalhub25:
A estrutura do direito de propriedade reflete a realidade
econômica, política e social de cada época, de modo que sua
concepção é fruto de contínua adaptação de acordo com as
transformações por que passa a organização social.
FACHIN, Luiz Edson. A função social da posse e a propriedade contemporânea (uma perspectiva de
usucapião imobiliária rural). Porto Alegre: Fabris, 1988. p. 18.
25
CHALHUB, Melhim Namem. Propriedade imobiliária: função social e outros aspectos. Rio de Janeiro:
Renovar, 2000. p. 1.
24
Nesta esteira, corrobora tal entendimento a obra de Fábio Konder
Comparato26:
Quando se fala em função social da propriedade não se
indicam as restrições ao uso e gozo dos bens próprios. Estas
últimas são limites negativos aos direitos do proprietário. Mas a
noção de função, no sentido em que é empregado o termo
nessa matéria, significa um poder, mais especificamente, o
poder de dar ao objeto da propriedade destino determinado, de
vinculá-lo a certo objetivo. O adjetivo social mostra que esse
objetivo corresponde ao interesse coletivo e não ao interesse
do próprio dominus: o que não significa que não possa haver
harmonização entre um e outro. Mas, de qualquer modo, se se
está diante de um interesse coletivo, essa função social da
propriedade corresponde a um poder-dever do proprietário,
sancionável pela ordem jurídica. (g.n.).
Nesse diapasão, é lídimo afirmar que a propriedade não mais poderá
figurar como um direito a que o Estado deva ter uma postura estática ou indiferente.
Tal afirmação surge da necessidade de o Estado intervir nos conflitos sociais
decorrentes da aplicação do modelo liberal puro nas relações sociais. Isso significa
que a sociedade deve extrair benefícios do exercício do direito de propriedade, e
que o interesse coletivo não pode ser subjugado pelo interesse particular. Em razão
do todo exposto, pode-se concluir que a função social da propriedade não pode ser
interpretada de outro modo senão como sendo essencial ao direito de propriedade,
integrando a sua estrutura e encarando-a como uma riqueza destinada à produção
de bens que satisfaçam as necessidades sociais como um todo.
Conclusão:
Em razão do fato de o bem dos demais não ser alheio ao bem próprio,
ao passo que o fim do todo é o fim de cada uma de suas partes, o conceito de bem
comum pode ser explicado pelo bem próprio considerado como parte de um todo, o
que faz com que as políticas públicas não possam ser formuladas ou exercidas pelo
Estado de maneira a restarem distantes de uma ética exercida com o propósito de
homenagear o bem comum e consagrar a existência digna de cada uma das partes
que o compõem.
Isto em razão de que a própria essência de um Estado Democrático de
Direito, e o que o legitima enquanto tal, consiste na busca eficiente pela
concretização do princípio da dignidade da pessoa humana.
COMPARATO, Fábio Konder. Função social dos bens de produção. In: Revista de direito mercantil. v.
63. São Paulo, 1986. p. 75.
26
Desta forma, não se pode conceber a idéia de direitos absolutos, de
modo que o próprio conceito de propriedade trazido pela CF/88 contempla no seu
bojo a idéia de função social. Em outras palavras, não há na CF/88 propriedade
senão aquela que observa a sua função social.
Não se pode olvidar que, somente entendendo o sistema jurídico pátrio
e, até mesmo, o próprio Estado Democrático de Direito brasileiro desse modo é que
se torna legítimo considerar que vivemos em uma sociedade fraterna construída
sobre os valores liberdade, justiça e solidariedade, com o fim de promover o bem de
todos, por meio de políticas públicas eficientes e condizentes com o fator legitimador
do Estado que é a promoção da dignidade de todas as pessoas que o compõem.
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