Os fundamentos da dignidade da pessoa humana José Carlos Garcia de Freitas é professor de Filosofia Geral e Filosofia do Direito (curso de Direito); de Direito Constitucional Comparado e de Ética e Filosofia Política (curso de Relações Internacionais); e, de Filosofia do Direito e da Justiça (curso de pósgraduação em Direito) da Universidade Estadual Paulista – UNESP – “Campus” de Franca/ SP. Talita Tatiana Dias Rampin é mestranda em Direito pela UNESP, Franca/SP; pesquisadora bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES. Certamente, qualquer ensinamento, por mais enigmático ou popular que se nos apresente, na expressividade da tradição oral ou escrita, possui, inegavelmente, uma dimensão de densidade e profundidade de nos causar extrema perplexidade. Neste sentido, há uma perfeita sintonia, entre o “verbo” teológico e o “logos” filosófico. No mundo inteligível, ambos promovem o desenvolvimento de processos criativos. No Antigo Testamento, desde os seus prolegômenos, há a presença marcante deste “verbo” criador: “Faça-se a luz!” (Gênesis 1,3). Efetivamente, a luz é indispensável para a formação e a manifestação do conhecimento. Prosseguindo a narrativa bíblica, há mais um indicativo da presença do “verbo” teológico: “Deus criou o homem à sua imagem; criou-o à imagem de Deus, criou o homem e a mulher” (Gênesis 1,27). Pormenorizadamente, tem-se aqui a primeira notícia histórica da origem do princípio da isonomia constitucional, que é consagrada pelas democracias contemporâneas. Presente, neste indicativo bíblico, a inspiração para a criação dos direitos fundamentais. Concluída a obra da criação, a partir da exteriorização do “verbo” teológico, Deus, então, descansou. Eis, pois, a mensagem bíblica: “Assim foram acabados os céus, a terra e todo o seu exército. Tendo Deus terminado no sétimo dia a obra que tinha feito, descansou do seu trabalho. Ele abençoou o sétimo dia e o consagrou, porque nesse dia repousara de toda a obra da criação.” (Gênesis 2,2-3). Nas relações trabalho-capital, o homem instituiu o descanso semanal remunerado. Aqui está presente a inspiração para a criação dos direitos sociais. E o interessante, ainda, é que o indicativo bíblico coloca o homem na condição de eterno guardião das políticas públicas corretamente ambientais. Neste sentido, a precisa determinação divina: “Eis que eu vos dou toda a erva que dá semente sobre a terra, e todas as árvores frutíferas que contêm em si mesmas a sua semente, para que vos sirvam de alimento. E a todos os animais da terra, a todas as aves dos céus, a tudo o que se arrasta sobre a terra, e em que haja sopro de vida, eu dou toda a erva verde por alimento.” (Gênesis 1, 29-30). O Estado Democrático de Direito brasileiro, com suas propostas consagradas no artigo primeiro e no seu parágrafo único da Constituição Federal, tem a sua inspiração nos preceitos bíblicos. As relações jurídicas humanas, na verdade, correspondem ao resultado de um processo de dessacralização, pois que, o Antigo Testamento tem o destaque especial de ser a matriz mais antiga do processo de criação do Direito Positivo. Mais do que a história da caminhada do povo hebreu, o Antigo Testamento tem a expressividade de ser o verdadeiro núcleo de muitas das instituições jurídicas contemporâneas. A Constituição Federal assim prescreve: Art.1º. A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I – a soberania; II – a cidadania; III – a dignidade da pessoa humana; IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; 1 V – o pluralismo político; Parágrafo único. Todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos, ou diretamente, nos termos desta Constituição.” Inicialmente, o ser humano era nômade e depois tornou-se sedentário. Também, é no Velho Testamento que há o primeiro indício de uma sociedade politicamente organizada. Eis, pois, o registro bíblico: “Caim conheceu sua mulher. Ela concebeu e deu à luz Henoc. E construiu uma cidade, à qual pôs o nome do seu filho Henoc.” (Gênesis 4,17). Desde então, o homem aprendeu a se organizar, politicamente. Posteriormente, há, no mundo ocidental, um especial destaque para a “polis” grega e para a “urbe” romana, verdadeiros símbolos político-administrativos. A cidade é o centro ideal para a formação do processo cultural da humanidade. Com os hebreus, o homem aprendeu a desenvolver o verdadeiro sentido da religiosidade; com os gregos, houve o início do aprendizado da reflexão filosófica; e, com os romanos, a organizar e a universalizar as instituições jurídicas. São três momentos profundamente históricos, na trajetória da civilização humana... Religião, Filosofia e Direito, a trindade da formação e da sustentação da cultura humana, desde os tempos mais remotos da História. É a sagrada trindade da consciência dos valores que dignificam todas as dimensões que formam a essência espiritual do ser humano. O conceito de Estado é, praticamente, muito recente, na história da Filosofia Política. O termo designativo de uma estrutura política organizada vai surgir com Maquiavel, no livro “O Príncipe”. É a época de propostas mais humanas, verdadeiro processo dessacralizador. Na verdade, Maquiavel – e, tempos depois, Hobbes, na mesma trajetória reflexiva – pretende explicar a origem do Direito e do Estado, sem transcender a dimensão do razoavelmente humano. Tem-se, aqui, o princípio científico do contratualismo. O Estado Democrático de Direito reflete o estado crescente de maturidade político-administrativa de um grupo social, que, após alguns ritos de passagem, atinge um estágio mais avançado na condição de sociedade politicamente organizada. Neste sentido, é o auge da fase contratualista. Praticamente, desde a Constituição de 1891 – a primeira republicana -, passando pelas de 1934, de 1937, de 1946, de 1967 e a Emenda Número 1 de 1969, esta, de 1988, é a primeira a incluir o termo Democrático na expressão Estado de Direito. A Constituição Federal em vigor expressa uma intimidade com as Constituições portuguesa e espanhola, respectivamente, de 1976 e de 1978. As três mantêm proximidade com o processo de democratização de seus respectivos Estados, e atuam como constituições garantistas ao preocuparem-se com os direitos fundamentais de seus cidadãos. Esta preocupação pode ser constatada, inclusive, através da topografia da tutela dos direitos fundamentais nestes Estados, pois referidas constituições trazem “ab initio” o arrolamento destes direitos, que atuam como cláusulas prospectivas para a realização dos objetivos e fundamentos do Estado. Além do princípio democrático, permeia o espírito constitucional destes países o princípio da separação de poderes. É notável também o reconhecimento da dignidade da pessoa humana como objeto de tutela, preceito este que configura uns dos núcleos fundamentais das Constituições portuguesa, espanhola e brasileira. O artigo 1º da Constituição portuguesa de 1976 afirma que o Estado português é “uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidaria”. A Constituição espanhola de 1978 (que transformou o regime franquista de 1975 numa monarquia constitucional) revela o seu compromisso no artigo 10, ao afirmar que “A dignidade da pessoa, os direitos invioláveis que lhe são inerentes, o livre desenvolvimento da personalidade, o respeito á lei e aos direitos dos demais são fundamento da ordem política e da paz social”. A Constituição brasileira de 1988, por sua vez, preconiza em seu artigo 1º caput e inciso III que o Brasil constitui-se em um Estado Democrático de Direito que tem como fundamento, dentre outros, a dignidade da pessoa humana. A dignidade humana se destaca tanto no processo de democratização social como no de dessacralização e positivação do Direito. O primado da lei no Estado corroborou os esforços para limitar a esfera de atuação do poder estatal sobre o indivíduo e os valores arraigados nestes movimentos foram, de certa forma, universais. O constitucionalismo – movimento revolucionário em certos países como Portugal, mas também pactuado em outros como Espanha e Brasil - buscou a consecução do binômio neutralidade/positivação. A neutralização política do órgão judiciário pôde ser alcançada com a separação dos poderes, e o poder político, antes centralizado na figura do monarca, 2 passou a representar uma espécie de freio ao próprio poder, limitando-o e proporcionando o resgate e amparo do princípio da liberdade. Quanto à positivação, esta se deu com a hierarquização das leis, que passaram a ser formalizadas em documentos escritos e escalonadas dentro de um sistema normativo específico. Mas há certa ordem de bem que foge á tudo quanto possa ser materializado. Há uma ordem de direito cuja compreensão foge à objetividade e imediata determinação, havendo o recurso à Filosofia e à Religião para vislumbrar deu dimensionamento: é a dignidade humana. Nesse sentido, notamos que aquela tríade Religião, Filosofia e Direito convergem, encontrando na tutela do homem enquanto ser e espírito a única via para a realização da humanidade. 3