Lições 45/46 – 12ºA 02-11-2011 (quarta-feira) Sumário: Conclusão da FTG 4. Entrega e correção de trabalhos dos alunos corrigidos e classificados. As áreas pré-frontais. As lesões de Phineas Gage e de Elliot. A questão da origem da consciência – problematização. Notas sobre o papel das áreas pré-frontais O córtex pré-frontal é, nas palavras do psicólogo russo Alexander Luria (1902-1977), «a sede da humanidade», pois é aí que residem as funções intelectuais superiores que permitem distinguir a espécie humana de todas as outras espécies. Essas funções são, fundamentalmente, as seguintes: - a reflexividade (o pensamento abstracto); - a imaginação; - a memória de trabalho, ou memória de curto prazo; - os comportamentos de antecipação/previsão; - a planificação de actividades/projectos para o futuro; - a capacidade de concentração (atenção) para resolução de problemas complexos; - a capacidade de deliberação e de decisão; - a sede (possível) da consciência das funções cerebrais superiores, da identidade pessoal, do «eu»; - a capacidade de regular e de filtrar as emoções; - provavelmente a capacidade cognitiva de tomar decisões morais e de avaliar as consequências das nossas acções e das outras pessoas; - a capacidade de processamento de informação relacionada com a compreensão da linguagem oral e escrita. Os casos de lesões cerebrais, como o do soldado russo Zasetsky, ou os casos de lesões neurológicas de Phineas Gage e de Elliot, revelam até que ponto os danos no córtex pré-frontal alteram profundamente as capacidades cognitivas e emocionais do ser humano, gerando inclusivamente mudanças drásticas na personalidade das pessoas afectadas. A lesão no córtex pré-frontal de Phineas Gage teve como principal consequência a alteração comportamental da personalidade, afetando a moralidade, a distinção entre o que é certo e errado fazer em sociedade. A lesão no córtex pré-frontal de Elliot teve como principal efeito comportamental a incapacidade de tomar decisões práticas no quotidiano, registando-se uma inquietante clivagem entre o plano racional e o domínio das emoções (Consultar as páginas 54 a 59 da obra O Erro de Descartes). Um aspeto comportamental interessante na descrição deste caso clínico era a indiferença ou ausência total de emoção do paciente acerca das circunstâncias negativas que afetaram toda a sua vida pessoal: Elliot compreendia tudo o que lhe tinha acontecido de mau na sua existência, mas era incapaz de expressar uma simples emoção, ou sentir o que quer que fosse. Esta impassibilidade ou neutralidade emocional acerca de si próprio e de factos básicos da sua vida pessoal tornou-se uma pista importante para entender o défice de Elliot e o papel importante das emoções na regulação dos processos de raciocínio e de decisão. Uma pessoa sabe, mas não sente, eis o enigma que Elliot apresentava a António Damásio. Este caso poderia classificar-se como uma anosognosia emocional, mas o termo científico correto é alexitimia, isto é, um défice mental que se traduz na ausência de experiência subjetiva das emoções. António Damásio defendeu uma explicação muito discutida a partir da análise de casos semelhantes, a hipótese dos marcadores somáticos. A ideia básica é que sem um suporte neurológico emocional, a decisão racional torna-se ineficaz, errática, sem sentido. Não é possível separar a razão da emoção. A título de exemplo descritivo, para mostrar a pertinência do estudo das lesões cerebrais no córtex pré-frontal, o neurologista português, Alexandre Castro Caldas, refere no capítulo 14 (“As funções geralmente atribuídas aos lobos frontais”) da sua obra A Herança de Franz Joseph Gall, um caso clínico que acompanhou e estudou: “Detenhamo-nos na história do doente M.L. que tivemos ocasião de observar. Tratava-se de um emigrante português em França que desempenhava uma profissão modesta numa instituição comercial. Era um homem tímido, que fazia a sua vida entre o trabalho e a casa onde vivia com a mulher e a filha. Não era dado ao convívio social, e em casa falava pouco. Numa das vindas a Portugal, a conduzir o carro que poucas vezes usava, teve um acidente de que resultou uma extensa lesão cerebral comprometendo ambos os lobos frontais. Esteve no hospital, em coma durante muito tempo, tendo depois recuperado lentamente de tal forma que regressou a casa sem defeitos de motricidade. Havia, no início, alterações graves do comportamento e por isso foi reformado, regressando ao seu país natal com toda a família. Quando o observámos a primeira vez, tinham decorrido já dois anos sobre a data do acidente. Não vamos aqui relatar toda a história deste doente, mas tão-só salientar alguns aspectos que nos orientarão na discussão. Segundo a mulher, o seu marido era agora um homem extrovertido, falador, gostava de contar histórias e de conviver com outras pessoas – “até falava demais” confessava a mulher com alguma vergonha. Por outro lado, tinha arranjado um emprego como decorador depois de ter entrado numa loja de artigos de decoração e ter tido uma longa conversa com o dono, que acabou por convidá-lo para seu colaborador. Salienta-se aqui a mudança de personalidade e da atitude social. Uma noite, a mulher do doente levantou-se por não se sentir bem e perdeu os sentidos. M. L. acordou, levantouse e ficou muito ansioso ao lado da mulher até ela acordar e lhe pedir ajuda, que ele imediatamente deu. Porém, foi incapaz de tomar qualquer decisão naquele contexto da mulher caída no chão, sem sentidos. Perguntámos-lhe, na consulta onde nos relataram este episódio, o que seria apropriado fazer numa circunstância daquelas, ao que ele respondeu, de imediato, que se se deveria telefonar para o número de emergência médica, e para a filha, levantar a mulher do chão, e levá-la para a cama, ou fazer qualquer manobra de reanimação. No entanto, a verdade é que não fez nada daquilo que sabia dever fazer-se. Regista-se aqui uma dissociação entre o conhecimento abstracto e o pragmatismo da acção.” (Op. cit., pp.254-5) Uma conclusão provisória que se pode deduzir de toda esta descrição é que não podemos imputar uma função específica ou singularmente unitária às áreas pré-frontais, pelo contrário, o seu funcionamento parece ser holístico, articulando as funções mentais superiores com outras regiões cerebrais por meio de intrincadas redes neuronais. A origem da consciência – o problema e as questões que são suscitadas «O universo não foi feito à medida do ser humano, mas tão pouco lhe é adverso: é-lhe indiferente». Carl Sagan Se o mundo nos parece indiferente, frio, distante, nós, pelo contrário, não conseguimos ser indiferentes ao próprio mundo: a consciência é o que nos leva a procurar dar um entendimento a todo o cosmos. Mas, então, o que é a consciência? A consciência será uma função localizada em alguma área do córtex cerebral, sobretudo, no córtex pré-frontal? Ou será uma função global, holística, inerente a todo o cérebro, considerando o seu funcionamento numa perspectiva sistémica? A posição contemporânea dos neurocientistas inclina-se para a segunda opção explicativa. A teoria da visão dualista do cérebro, proposta por Platão e mais tarde por Descartes (celebrizada na oposição entre a «res extensa» e a «res cogitans»), foi afastada do domínio científico – o modelo monista do cérebro, de teor reducionista, defende que a consciência, a identidade, a personalidade, o «eu», não são mais do que estados funcionais do cérebro. É inútil separar a mente do cérebro, que é a sua base física e química, matéria viva, orgânica. Descartes despertou a atenção para a ligação entre a mente e o corpo, ao avançar com a célebre hipótese da «glândula pineal», tinha de haver alguma ligação, ao nível do cérebro, com a mente consciente. Hoje em dia, a maioria dos cientistas e dos filósofos concordam substancialmente com a ideia de que a consciência é uma propriedade emergente do cérebro entendido como um todo organizado, uma consequência do processamento paralelo de informação levado a cabo por milhões de neurónios. Pode parecer surpreendente que algo tão «físico», como os diversos processos electro-bioquímicos que ocorrem no interior do cérebro possam gerar algo tão intangível (feérico) como a consciência, mas é isso o que acontece, só que nós é que ainda não sabemos como. O que sabemos, em geral, até agora, é algo como isto: a consciência pode ser associada com áreas particulares do cérebro, que ao nível do córtex interagem entre si numa rede neuronal muito ampla: o lobo frontal (essencial para a atenção), e os lobos parietais, occipital e temporal. A ideia desta correlação entre os vários lobos cerebrais reforça a ideia de que a consciência precisa de um córtex altamente desenvolvido como o nosso, o que só se verifica nos mamíferos. Além do córtex, parece que há áreas mais primitivas envolvidas nos mecanismos neuronais da consciência, embora, por si só, não sejam suficientes para causar a consciência. Outra evidência reside ao nível do tálamo e a sua relação com o córtex. Sabemos que assim é porque ao nível do núcleo centromediano (que é uma parte do tálamo), quando este é lesionado, uma pessoa perde a consciência. A consciência é, portanto, uma propriedade que decorre de uma visão unificada do funcionamento global do cérebro. Se é dentro deste paradigma científico que a questão da consciência se poderá resolver, a questão que se coloca é esta: como explicar a relação da consciência com os fenómenos mentais e o cérebro? Como se transforma a passagem do estímulo, na comunicação intersináptica, para um fenómeno consciente? Como é que o físico dá origem, ou está na base, dos processos mentais, entre os quais se encontra a consciência? Consideremos então estes dados: os processos físicos e químicos da comunicação cerebral podem ser investigados objectivamente. Mas, há um limite para esta investigação: o significado individual, a intencionalidade, que cada sujeito atribui à consciência dos processos mentais. Como conciliar aquilo que é universal no mundo físico com aquilo que é individual em cada pessoa consciente? Será possível adequar um modelo físico e matemático que descreva as leis gerais da consciência? E o factor da intencionalidade, da subjectividade individual que cada pessoa confere aos seus estados mentais? Como se pode quantificar o factor idiossincrático inerente à consciência de cada pessoa? Em última instância, será a consciência um fenómeno inacessível no mundo físico? Os cientistas não podem abandonar o postulado de que o universo físico e os fenómenos naturais só podem ser fisicamente explicados e isto aplica-se à própria extensão da consciência. Actualmente, existem diversos modelos teóricos para a consciência. Um deles coloca a ênfase na investigação das emoções e do sistema límbico como factores influentes na actividade consciente. Todavia, em função da própria complexidade do funcionamento cerebral, a consciência ainda permanece um dos maiores mistérios da humanidade e é talvez o maior desafio para a neurociência actual. Há cinco critérios gerais para qualificar a consciência: (1)– Auto-conhecimento, quer dizer, a capacidade de uma pessoa perceber a sua própria existência; (2)– A capacidade de perceber a relação da própria pessoa com o seu ambiente, isto é, a relação dinâmica entre os sentidos corporais e a percepção cerebral do mundo externo; (3)– A subjectividade, a existência de um ponto de vista estritamente pessoal, a capacidade de formular uma opinião pessoal e de agir como um observador e narrador dos objectos envolventes, experiências e impressões. (4)– Sensiência, isto é, a capacidade de sentir ou perceber o meio ambiente, sentindo coisas como a temperatura, as cores e os cheiros, bem como as sensações de dor e de prazer. (5)– Sapiência, a capacidade de pensar sobre os sentimentos ou ideias e de agir em conformidade com as conclusões alcançadas de modo inteligente, com conhecimento. Por último, há que atender a um facto interessante em torno da explicação da consciência: existem níveis diferenciados da experiência consciente. António Damásio chamou a atenção para os processos inerentes à formação da consciência. O esquema retirado da sua obra O Sentimento de Si revela diferentes níveis de organização, página 352.