gramática do apagão - o uso raríssimo Vicente Martins Professor do Centro de Letras e Artes da UVA [22 Setembro 20h00min] O cotidiano, os receios e as inquietações do homem devem estar presentes nas experiências educativas. Um risco de apagão, racionamento, crise de energia, enfim, podem ser temas inspirativos para exposições e debates nas aulas de geografia, língua portuguesa e história. Por que não aprendemos gramáticas da língua portuguesa a partir desta assustadora e temida palavra apagão? Comecemos por algumas coisas curiosas sobre a palavra apagão. À luz da filologia, que estuda a língua em toda a sua plenitude, a palavra apagão, ao que tudo indica, não veio ao mundo gramatical na sua forma tão fanhosinha como se manifesta na mídia, nos palanques políticos e nos lares. Cremos que a palavra apagão no começo era apenas forma apago, sem sufixo aumentativo. Estranhamos um pouco a forma apago porque, no Brasil, esse substantivo é de uso raríssimo, mas muito comum no dia-a-dia dos europeus. As crianças e adolescentes, na educação básica, poderão aprender muito bem morfologia do português com a palavra apagão. Basta-nos-á lembrar que a forma apagão possui, do ponto de vista gramatical, elementos mórficos diversos como a-pag-ão, prefixo, raiz e sufixo, respectivamente. Observemos que o verbo apagar, por derivação regressiva, produziu, inicialmente, a forma apago. Posteriormente, por derivação sufixal, apago gerou a palavra apagão. Explico melhor: apagão veio de apago, que veio de apagar, que veio de ''ad pacare''. Enquanto em apago, temos ação de cessar a luz, a palavra apagão traz um sentido mais forte e abrangente, lembra o desligamento programado e generalizado, em que todos da comunidade são envolvidos. A palavra apagão nos leva a compreender também que, no processo de estruturação de novas palavras ou neologismos, quando ocorre um caso do verbo, como apagar, produzir, imediatamente, a palavra apago ou a partir dessa nova forma cria-se a palavra apagão, dizemos que a nova palavra é deverbal, isto é, a palavra nasceu do recuo ou perdas de elementos mórficos presentes na forma do verbo. A palavra apagão, pois, derivou, regressivamente, do verbo apagar. Tudo isso nos levar a crer que a palavra apagão não saiu do nada. Criou-se a partir da redução da palavra apagar, que perdeu a vogal temática - a (indicadora da conjugação) e a desinência verbal - r (indicadora do modo). A palavra apagão, portanto, não é tão original como nos parece à primeira vista. Todavia, entender bem a estrutura da palavra apagão parece exigir de todos nós mais abstraísmo lingüístico. A começar pelo sufixo - ão, presente na estrutura da palavra, certamente, um dos mais expressivos morfemas da língua portuguesa. À luz da Formação de Palavras (vocês já reparam que é a terceira vez que uso a expressão ''à luz'', quebrando a política da racionamento lingüístico), os sufixos são elementos que ao serem acrescentados a um radical, verbal ou nominal, formam uma palavra. Por isso, a maioria dos neologismos resultam da derivação sufixal. São os sufixos as porções mais energéticas na estrutura das palavras, posto que têm a força de alterar a significação do vocabulário originário. No caso de apagão é o sufixo que dá intensidade ao efeito de apagar, não traduzido na palavra apago. Apagão nos traduz, portanto, um apago intenso, de natureza econômica, política, moral e ética frente a uma política de descaso e iniqüidade do governo central. Aprender com apagão é compreender o processo de formação das palavras, na língua portuguesa, a significativa energia advinda do valor expressivo dos sufixos. No caso de apagão, o sufixo - ão, por excelência, é o formador dos aumentativos em português. Pode juntar-se o sufixo - ão diretamente a radicais de substantivos, como no caso da palavra paredão, de adjetivos, como em valentão e de verbos, como no caso de apagão. Finalmente, o que nos chama a atenção do - ão do apagão, do ponto lingüístico, é que este sufixo caracteriza-se por ser formador de palavras altamente negativas para os falantes brasileiros. O sufixo - ão está presente em palavras que exprimem negação, rejeição recusa percebidas, social e políticamente, em vocábulos como paredão, brigão, beberrão. Assim como apagão, boa parte das palavras terminadas em - ão evidenciam desolação, desilusão, devastação, destruição, solidão e o atual sentimento de consternação social do povo brasileiro. Fonte: http://www.noolhar.com/opovo/jornaldoleitor/49219.html. Capturado em 24 de novembro de 2001.