DELEUZE TIROU A POEIRA DAS IDÉIAS DE BERGSON PETER PÁL PELBART No início dos anos 70, em resposta a um amigo que o acusava de estar filosoficamente acuado, o pensador Gilles Deleuze escreveu: "Sou de uma geração, uma das últimas gerações que foram mais ou menos assassinadas com a história da filosofia. A história da filosofia exerce em filosofia uma função repressora evidente... Você não vai se atrever a falar em seu nome enquanto não tiver lido isto e aquilo, e aquilo sobre isto, e isto sobre aquilo. Na minha geração muitos não escaparam disso, outros sim, inventando seus próprios métodos e novas regras, um novo tom. Quanto a mim, "fiz" por muito tempo história da filosofia... Mas eu me compensava de várias maneiras. Primeiro, gostando dos autores que se opunham à tradição racionalista dessa história (e entre Lucrécio, Hume, Espinosa, Nietzsche, há para mim um vínculo secreto constituído pela crítica do negativo, pela cultura da alegria, o ódio à interioridade, a exterioridade das forças e das relações, a denúncia do poder... etc.). O que eu mais detestava era o hegelianismo e a dialética..." Em seguida, Deleuze explica como conseguiu safar-se desse impasse: a partir dos autores comentados, produzia leituras insólitas, filhos ligeiramente "monstruosos": "O autor precisava efetivamente ter dito tudo aquilo que eu lhe fazia dizer. Mas que o filho fosse monstruoso também representava uma necessidade, porque era preciso passar por toda espécie de descentramentos, deslizes, quebras, emissões secretas que me deram muito prazer. Meu livro sobre Bergson me parece exemplar nesse gênero." (`Carta a um crítico severo', em "Conversações"). O livro sobre Bergson a que o autor se refere em sua carta sai agora em português pela Editora 34 com o título de "Bergsonismo", na fina e esmerada tradução de Luiz Orlandi. Ao debruçar-se sobre um filósofo já "clássico" e hoje um pouco esquecido como Bergson, Deleuze faz neste livro de 1966 uma monografia aparentemente despretensiosa. Aborda os grandes temas de Bergson: a intuição, a memória, a duração, o impulso vital. Mas o leitor se dá conta, desde logo, que está diante de um bergsonismo pouco comum, em todo caso nada espiritualista. A duração (nome dado por Bergson ao tempo) deixa de ser apenas uma experiência psicológica, para tornar-se um caso da duração ontológica, essência variável das coisas, condição da experiência. A memória, por sua vez, não é pensada como sendo interior a nós, nós é que somos interiores a uma gigantesca Memória, imemorial e ontológica, virtual e inconsciente. O impulso vital passa a designar o movimento pelo qual o ser se atualiza, não a partir de um "possível" ideal que o presente viria desovar, mas a partir de uma virtualidade (real) a ser desdobrada, diferenciada. A vida mesma é concebida como uma tal produção de diferenças - a vida é invenção. Como se vê, esse conjunto ainda é Bergson, mas já tudo gira em torno de um eixo que nosso século não cansará de ecoar: a idéia de diferença. No artigo seminal de Deleuze publicado dez anos antes deste seu livro e com razão incluído no presente volume, intitulado A Concepção da Diferença em Bergson, este conceito conduz sistematicamente a leitura do filósofo. O método da intuição é definido como o "gozo da diferença", a duração ou a vida são concebidas como aquilo que difere de si mesmo, o próprio homem é aquele em quem a diferença eleva-se à consciência de si. Na contracorrente de um hegelianismo ainda dominante na época, para Deleuze é a diferença que importa, não o negativo. Ao lançar as bases de sua própria ontologia materialista, Deleuze insiste que em Bergson o movimento do ser se dá por diferenciação interna, criação positiva, e não por contradição, num jogo dialético da determinação negativa. O filósofo chega a afirmar que se a noção de diferença pode trazer uma certa luz ao bergsonismo, "o bergsonismo deve trazer a maior contribuição para uma filosofia da diferença". É o que se percebe neste livro ligeiramente "monstruoso": a fineza penetrante de Deleuze retoma com fidelidade o conjunto da filosofia bergsoniana, mas ao mesmo tempo nela produz tantas inflexões sutis (algumas nietzscheanas) que Bergson aparece como um precursor das filosofias da diferença, das quais o próprio Deleuze foi um dos expoentes. O belo livro de Bento Prado Jr. a ser lançado em Paris, intitulado Presença e Campo Transcendental, escrito mais ou menos na mesma época que o de Deleuze e com o qual ele tem inúmeras afinidades, ajuda a lançar luz sobre esta relação entre Bergson e sua posteridade. Lembremos da observação arguta de François Laruelle: nosso século vive sob o signo da Diferença assim como o 19 se constelou em torno da Dialética. Se antes a Diferença era apenas um procedimento periférico, uma escrava da Contradição, como na Dialética, e depois da Estrutura, como no estruturalismo e derivados, tornou-se a partir de um certo momento ela mesma uma problemática, um princípio real e mesmo uma emoção "a priori, uma verdadeira sensibilidade filosófica ou transcendental sem a qual a filosofia estaria morta de hegelianismo ou de estruturalismo: de tédio..." Talvez os textos de Deleuze sobre Bergson, nesta porosidade instigante entre filosofia e história da filosofia, sejam a marca inaugural desta reviravolta "atmosférica" na filosofia francesa. No entanto, este livro não interessa apenas aos filósofos, longe disso. Para quem hoje necessita aprofundar noções como a de virtual, ou fica intrigado com a reintrodução da seta do tempo nas ciências (por exemplo, nas pesquisas de Prigogine e Stengers), ou quer mergulhar nas aventuras da memória e seus paradoxos, o livro de Deleuze é um prato cheio. Escrito em linguagem clara e acessível, sem perder em nada a complexidade de seu objeto, vemos emergir um Bergson desempoeirado, com o frescor das filosofias feitas para pensar o presente. Peter Pal Pelbart é professor de filosofia na PUC-SP autor de "A Nau do Tempo-Rei" (Imago) e traduziu "Conversações", de Gilles Deleuze (34 Letras) Resenha do livro de Gilles Deleuze, Bergsonismo, Editora 34, 2000 publicado no Estado de S. Paulo — Domingo, 15 de outubro de 2000 QUAL É A MAIOR CONTRIBUIÇÃO DE DELEUZE AO PENSAMENTO? matéria publicada na Folha de S. Paulo em 2 de junho de 1996 Michael Hardt — Professor da Duke University (EUA) "A contribuição de Deleuze pode ser resumida como sendo a de uma filosofia da imanência. A imanência se opõe a formulações transcendentais, ambas no sentido de formulações religiosas e filosóficas que apresentam valores e ideais em um âmbito separado deste mundo, ou no sentido de uma ordem política que coloca sua força acima do plano interativo das forças sociais. Em uma bela passagem de um de seus livros de cinema, ele escreveu que o cinema tem o poder de nos fazer crer neste mundo (uma tarefa muito importante, ele declara). A filosofia de Deleuze certamente nos fornece maneiras de acreditar neste mundo e nos põe em condições de mudá-lo". David Lapoujade — Professor da Universidade de Paris X "Você sabe, creio que o pensamento de Deleuze não tem missão profética. Ele não está ligado a nenhum destino próprio à 'dobra do milênio'. Tem-se o costume de invocar a famosa frase de Foucault: 'Um dia, talvez, o século será deleuziano' e sublinhar seu aspecto profético, enigmático ou cômico. Mas justamente, quando Deleuze comenta esta fórmula é para dizer que não se sentia tocado pelas grandes questões relativas à superação da metafísica ou à morte da filosofia, por estas atividades milenares das quais nosso século deveria pensar o desaparecimento. Ao contrário, quando Deleuze afirma que ele pratica uma espécie de 'art brut' dos conceitos, ele libera a filosofia do trabalho interior do luto do qual ela se sobrecarrega. De um certo modo, uma de suas maiores contribuições é que ele permite praticar de novo a filosofia, sem que pese sobre ela o peso de sua própria história. Ainda que, para esta questão, eu creio que a frase importante de Foucault é muito mais esta: com Deleuze, de novo, o pensamento, a filosofia são possíveis. Isto significa que se trata de uma das filosofias mais liberadoras, tanto para a vida como para o pensamento". Frederic Jameson — Professor da Duke University (EUA) "Deleuze foi uma inteligência filosófica prodigiosa, que transformou profundamente os filósofos clássicos que leu: Hume, Nietzsche, Kant, Bergson, entre outros. Ao lado de muitos outros filósofos contemporâneos -poderosa e engenhosamente- o seu trabalho baseou-se em um ataque à diferenciação sujeito/objeto e tentou nos mostrar como a gama de nossas respostas 'subjetivas' era também sintoma e testemunho da objetividade". François Zourabichvili —autor de "Deleuze - Une Philosophie de l'Événement" "Não há pensamento universal ao qual cada filósofo contribuiria, na medida de seu talento. Não há nem mesmo mundo filosófico, tantas são hoje diversas ou estilhaçadas as correntes. Nietzsche e James mostraram a necessidade desta divergência: ela se deve à pluralidade dos estilos de vida (aquilo pelo que o pensamento permanece em relação com a verdade, ainda que a relação tenha mudado). As divergências não são forçosamente mais marcadas que em outros épocas, mas o século 20 se caracteriza pelo enrijecimento de certas orientações filosóficas num gesto de hegemonia e de exclusão: assim o marxismo, a fenomenologia, o heideggerianismo, a desconstrução, a filosofia analítica. Cada um invoca seu próprio corte para melhor estigmatizar a ingenuidade arcaica dos outros. É notável que o pensamento de Deleuze não tenha nunca adotado esta postura, e deixa por consequência muito mais livres os seus leitores". John Rajchman — Professor da Duke University (EUA) "O pensamento de Deleuze é múltiplo, leva a várias direções e é útil de muitas maneiras. Que ele seja assim, faz parte da 'imagem do pensamento' de Deleuze. Ele elaborou uma idéia do pensamento como uma construção incompleta, ligada a novas circunstâncias com um tipo peculiar de consistência, um "plano de imanência". Talvez esta mesma imagem seja o mais importante para nós na virada do século. Penso que estamos hoje em uma nova situação "geofilosófica", situação à qual a imagem de Deleuze da filosofia como viagem e geografia é particularmente aplicável. Uma exigência que ressurge para o tipo de viajante que adota o mote de Proust que Deleuze admirava: o verdadeiro sonhador é o que sai para verificar algo". Eric Alliez — Colégio Internacional de Estudos Filosóficos Transdiciplinares "A afirmação da possibilidade e da necessidade puras da filosofia enquanto tal. Deleuze firma com efeito este momento em que a filosofia tenta excluir de uma vez por todas todos os princípios transcendentes que ela pôde encontrar na sua história para se adaptar às Formas de Deus, do Mundo e do Eu (centro, esfera e círculo: 'tripla condição para não poder pensar o acontecimento', segundo as palavras de Foucault): quando a filosofia afirma a imanência como a única condição que lhe permite criar seus conceitos como 'as coisas mesmas, mas coisas em estado livre e selvagem', para além dos predicados antropológicos e das categorias clássicas da representação que durante muito tempo dominaram a idéia mesma de modernidade... Daí a radicalidade especulativa da ontologia deleuziana determina a possibilidade de um materialismo filosófico enfim revolucionário, em que o conceito não vale senão enquanto permite, que nos permite, liberar a imanência de todos os limites que o capital lhe impunha ainda (ou que ela se impunha a si mesma, sob a forma do capital aparecendo como algo de transcendente)... É portanto toda a filosofia de Deleuze que se inscreve sob esta rubrica 'Capitalismo e Esquizofrenia', pela qual passa a dobra do milênio. Mede-se assim até que ponto é lamentável que Deleuze não tenha podido escrever a obra que ele mesmo concebia como seu último livro e que ele queria intitular 'Grandeza de Marx'... Mas para nos consolarmos, não estamos impedidos de pensar que este Marx virtual, este Marx filosoficamente glabro ao qual Deleuze fazia alusão nas primeiras páginas de 'Diferença e Repetição', talvez investido à maneira de uma casa vazia que nos permita deslocar como um novo começo no corpus deleuziano...". EM QUE MANIFESTAÇÕES DE PODER SE PODE IDENTIFICAR TRAÇOS DO QUE DELEUZE CARACTERIZOU COMO SENDO A "SOCIEDADE DE CONTROLE"? matéria publicada na Folha de S. Paulo em 2 de junho de 1996 Michael Hardt "A sociedade de controle deveria ser identificada antes de mais nada com a atual crise das instituições sociais -a crise da família, a crise da fábrica, a crise da prisão etc. A partir do trabalho de Michel Foucalt, Deleuze delimitou os espaços em que as lógicas disciplinares de cada instituição se aplicavam: na prisão, em que nós estávamos sujeitos a uma lógica disciplinar -que também nos formou; na fábrica, outra lógica disciplinar; na família, outra; e assim por diante. A isto Foucault chamou de sociedade disciplinar. A crise contemporânea das instituições, entretanto, implica que os muros que previamente delimitavam o espaço social destas instituições estão se desintegrando. Neste processo, as lógicas disciplinares não desapareceram, em vez disso, elas se generalizaram por todo o campo social, não mais no espaço limitado das instituições. Por exemplo, a lógica capitalista do regime da fábrica é exercitada não apenas dentro dos muros da fábrica, mas por toda a sociedade (aumentando nas formas de trabalhos precários ou não-integrais). O mesmo processo de generalização tende a ser verdade para a lógica da prisão, a lógica familiar e outros regimes disciplinares. A sociedade de controle é, portanto, melhor entendida não em oposição à sociedade disciplinar, mas como uma disciplina elevada a um poder mais alto, aumentada exponencialmente por meio de novas formas mais móveis e fluidas." Frederic Jameson "A crescente estandardização no mundo dos objetos; mas eu também acho que nós precisamos aprender a usar os lados positivos e as forças do Estado." John Rajchman "A questão de 'formas de poder' apropriarem-se dos novos conflitos e das novas 'pessoas' nestas sociedade é, ao mesmo tempo, uma questão da própria natureza 'do político'. Foucault pensava que o padrão básico da moderna racionalidade política era aquele do 'warfareWelfare State'. Há agora, porém, uma crise, uma problematização deste Estado -de sua identidade 'nacional' e da ligação que ele implica entre governo e transformação. Acho que é isso que Deleuze tentava apreender em seu ensaio sobre as 'sociedades de controle'. A idéia de Deleuze era então que nós não podemos mais fazer um 'mapa disciplinar' nem, portanto, uma solução na linha do 'Welfare' para 'aqueles muito pobres para contrair dívidas, muito numerosos para serem assimilados', que são a marca vergonhosa daquilo em que nossas agradáveis sociedades de informação global estão se transformando. Nós não sabemos o que fazer com 'a nova pobreza', nem com os tipos de violência que ela provoca. A velha solução do 'Welfare State' vem em resposta para novos movimentos, novas batalhas. Talvez o que nós precisemos atualmente seja reinventar tal 'movimento' em formas apropriadas a uma era marcada pelas 'mesquinhas' info-sociedades globais, das quais Deleuze começou a analisar os tipos de controle. Eric Alliez "A análise que Deleuze propõe da passagem das 'sociedades disciplinares' para as 'sociedades de controle' visa trazer à luz as formas que adquirem a substituição acelerada de um capitalismo de circulação e de comunicação para o capitalismo de produção centrada na exploração apenas do trabalho industrial assalariado (a fábrica era o paradigma dos meios de confinamento). As mutações tecnológicas da idade da informatização planetária são assim relacionadas a uma mutação do capitalismo (um hipercapitalismo de serviços) que não poderia se servir de outro discurso de legitimação senão daquele, puramente horizontal, do mercado (do neoliberalismo esclarecido ao anarco-capitalismo iluminado: o da Internet...), de outra prática de dominação senão aquela, puramente imanente, do controle social por um marketing universal em variação e modulação contínuas (com os 3 M comandando a suposta Nova Ordem Internacional: Monetária, Midiática e Militar). O que se coloca então em escala planetária é um regime de empresa do qual seríamos todos, a um título ou outro, gerentes em interação constante... Regime essencialmente precário, pois se concordará em pensar que o reino conjugado do cinismo e do infantilismo -estas duas características do discurso da pósmodernidade- não saberiam em caso algum esgotar o poder constituidor das novas formas de conexão entre saber e produção social." BENTO PRADO JR ANALISA DELEUZE Entrevista a Cássio S. Carlos, Folha de S. Paulo, 2 de junho de 1996 O filósofo Bento Prado Jr., professor da Universidade de São Carlos (SP), compartilha de longa data com Gilles Deleuze o interesse pela obra do francês Henri Bergson. Em sua tese de livre-docência na USP, defendida em 1964 e publicada em 1989 com o título "Presença e Campo Transcendental - Consciência e Negatividade na Filosofia de Bergson", Prado Jr. examinava a tentativa de superação, pela metafísica vitalista de Bergson, do dualismo entre sujeito e objeto. Dois anos depois, Deleuze publicaria sua análise da obra bergsoniana, em vários pontos coincidente com a tese de Prado Jr. Um novo encontro entre os dois pensadores acontecerá na palestra programada para os "Encontros Internacionais Gilles Deleuze". Prado Jr. examinará aspectos do autor de "Mil Platôs" na conferência intitulada "Deleuze: da História da Filosofia à Filosofia". Em entrevista por escrito à Folha, Prado Jr. analisa em detalhe o projeto filosófico de Deleuze e avalia os significados de sua obra. (Cássio Starling Carlos) Folha - Para Foucault, "um dia, talvez, o século será deleuziano". Que lugar Deleuze ocupa na filosofia do século 20 e que lugar ele deveria ocupar na filosofia futura? Bento Prado Jr. - É cedo ainda para decidir sobre o lugar de Deleuze na filosofia do século 20. Para assim situar um contemporâneo nosso, seria preciso que sobrevoássemos nosso tempo e a nós mesmos. "A fortiori" é rigorosamente impossível antecipar o balanço que o século 21 fará do nosso (Bergson, numa entrevista, recusou-se a responder a alguém que lhe perguntava quais seriam os traços essenciais do teatro do futuro -e acrescentou que se pudesse antecipá-los faria esse teatro, que se tornaria presente; do mesmo modo, se eu pudesse antecipar a perspectiva da filosofia do século 21, eu a escreveria, trazendo-a para o século 20). De qualquer modo, algo pode ser dito: a obra de Deleuze percorre a contracorrente o movimento dominante da filosofia na segunda metade de nosso século, que se caracteriza pela tecnificação crescente de seus "métodos" e pela correspondente evaporação de seu assunto real: como o Deus de Aristóteles, essa filosofia "non curat sublunaria". Toda sua obra, mesmo os livros consagrados de história da filosofia, visa, em última instância, a clarificação de nossa experiência do mundo contemporâneo -política, ciência, arte. Tudo isso guiado pela intenção de detectar a lógica que comanda -no limite, o capital- o que se dá, nessa experiência, como opacidade e mutilação. A célebre frase de Foucault -foi ele mesmo que o declarou- deve ser entendida "cum grano salis": mais do que uma "boutade", uma provocação contra os inimigos dessa concepção desmistificadora da filosofia que partilhava com seu amigo Deleuze. Folha - O sr. é autor de um trabalho sobre Bergson, "Presença e Campo Transcendental". Como avalia a apropriação que Deleuze faz da obra bergsoniana? Prado Jr. - Antes de apropriar-se da filosofia de Bergson, Deleuze escreveu alguns ensaios e um livro sobre Bergson como historiador da filosofia (embora seja preciso nuançar, como faremos logo adiante), que seguramente estão entre os mais notáveis (elite da elite) da enorme bibliografia consagrada ao autor de "Matéria e Memória". Devo dizer que meu próprio livro deve enormemente ao pequeno ensaio de Deleuze "La Conception de la Différence Chez Bergson", de 1956. E acrescento que, se Deleuze tivesse publicado seu "Le Bergsonisme" em 1964 e não em 1966, eu teria perdido o assunto de minha tese. Mas, o que importa é que, fornecendo uma interpretação inspirada e rigorosa da filosofia de Bergson, Deleuze a articula com outras filosofias (Nietzsche, William James, Whitehead, Hume...), montando um dispositivo de iluminação mútua e cruzada em rede, criando assim o campo de uma nova iniciativa de pensamento. História da filosofia e filosofia se entrecruzam, a ponto de se tornarem indiscerníveis. Respondendo literalmente a pergunta, essa apropriação é "legítima" não só porque enriquece aquele que se apropria, mas também porque libera a obra apropriada de leituras viesadas ou pobres, reabrindo os canais para sua compreensão imanente. Folha - O que significa a exigência deleuziana de pensar o mundo sob a lógica da mudança, do devir? Prado Jr. - Como Bergson (por exemplo, no último capítulo de "A Evolução Criadora"), Deleuze vê na história da filosofia o desenvolvimento de uma mesma idéia da filosofia, subordinada aos princípios da identidade ou da representação soberana, rompida apenas, segundo ele, em momentos excepcionais (materialismo antigo, estoicismo, Espinosa, Hume, Nietzsche...). O que há de comum a toda tradição da filosofia é a cegueira para a irredutibilidade do sensível ao lógico ou ao conceitual (que não pode reabsorvê-lo sem resto) para a singularidade do Acontecimento, que não pode ser antecipado, re-conhecido ou (p)re-representado, que constitui o Ser mesmo do Devir. Nessa idéia, convergem a idéia bergsoniana de heterogeneidade entre as duas multiplicidades (quantitativa e qualitativa) e a idéia humeana da imaginação como solo do espírito, caos que precede a normalização e a fixação dos princípios que o transformam em natureza humana. Essas duas formas radicais de empirismo (bergsoniana e humeana) levam Deleuze a uma remodelação da "Estética Transcendental" que libera o sensível da sua unificação conceitual ou intuitivo-formal, desligando-a da "Analítica Transcendental", para ligá-la diretamente à "Crítica da Faculdade de Julgar". O que se exibe assim é o sensível sem conceito, dispersão caótica ou Devir enlouquecido. O Devir não é antecipável, domesticável na recognição do conceito e passa a ser o verdadeiro signo do Ser. Só a idéia de Devir pode devolver, com sua rebeldia à representação, a espessura ou a dimensão do Ser -ou do Cosmos sobre fundo de Caos. Folha - Qual a importância da crítica deleuziana à subjetividade como fundamento? Prado Jr. - A crítica deleuziana à subjetividade como fundamento é menos uma originalidade de sua filosofia do que um ponto pacífico de toda reflexão contemporânea de vocação antifenomenológica, da filosofia analítica aos famosos "desconstrucionismos", passando por todos neo-pragmatismos (o naturalista, norte-americano, e o transcendental, alemão) e por todos os estruturalismos. O que a distingue, talvez, é ver no sujeito fundante (cartesiano, kantiano, husserliano e mesmo hegeliano -conforme Gérard Lebrun, em "O Avesso da Dialética", Companhia das Letras, págs. 254-257) um sujeito essencialmente representativo e submetido ao regime da identidade, "arquê" unificadora e síntese prévia da experiência, capaz de exorcizar toda forma de diferença rebelde. Trata-se de inverter a linha do pensamento, para levá-la para algo como um campo prévio, présubjetivo e pré-objetivo, donde constituir tanto sujeito como objeto. Contra a Filosofia do Sujeito, retomar o movimento da reflexão de Hume e de Bergson (a imaginação de Hume, entendida como coleção anônima -não sistema- de dados ou idéias, como conjunto sem estrutura ou centro, "coleção sem álbum, peça sem teatro, ou fluxo de percepções"- ou o campo das imagens do primeiro capítulo de "Matéria e Memória", de Bergson, neutro epistemologicamente, onde ainda não se separaram o para-si e o em-si), de Sartre (o Sartre de "La Transcendence de l'Ego", que projeta o ego para fora da consciência, definindo-o como tão transcendente quanto uma cadeira ou um pedregulho), de William James (o do "stream of thought" dos "Principles", que lamentava não poder dizer, como seria necessário, em inglês, "it thinks", como se diz "it rains", já que a gramática do enunciado "I think" cria a ilusão da substancialidade do cogito). Não era já Nietzsche que via na identidade do cogito ou do sujeito fundador um efeito, apenas, de uma ilusão gramatical? Folha - Que lugar esta crítica ocupa na formulação de uma ética e de uma política? Prado Jr. - No campo da ética e da política, criticar o sujeito auto-fundante (a autonomia moral, por exemplo, no sentido kantiano) significa denunciar a heteronomia por sob a aparência da autonomia. Mais uma vez é Nietzsche a chave (ou o principal instrumento) da operação deleuziana. No fundo, autonomia seria uma forma sublimada da heteronomia ou de interiorização de um poder (Lei ou Senhor) externo ou transcendente. Do ponto de vista político, significa, talvez, a mais perfeita expressão do esquerdismo na sua vertente anarquista. E poderia uma filosofia, cuja vocação essencial é a de instaurar uma metafísica "anarcôntica", exprimir-se politicamente de maneira diferente? As críticas endereçadas à política de Deleuze são muitas e diferentes. Alguns nela vêem, a despeito da alergia deleuziana pela dialética, o ressurgimento, à revelia do autor, da fraseologia dos jovens hegelianos de esquerda (Max Stirner, por exemplo). Outros, mais cruéis, nela vêem uma versão dramatizada e descabelada das posições radicais, mas muito bem comportadas (mais éticas que políticas), de um Alain: o indivíduo ou o cidadão contra os poderes. Crítico particularmente duro, Vincent Descombes aponta sobretudo para o que seria o pseudomarxismo de Deleuze (que, todavia, em "Conversações", reafirma seu "marxismo"), já que, depois de descrever os efeitos destrutivos do capitalismo "...ele envia polidamente a luta de classes para o museu" (em "Le Même et l'Autre", Ed. de Minuit, pág. 208). Não me cabe desempenhar o papel de juiz, entre os acusadores e os advogados de defesa. Mas posso lembrar, pelo menos, que o que há de mais vivo, hoje, no marxismo parece também ter remetido ao museu, pelo menos, a idéia da organização da luta de classes, com a reconhecida falência da idéia do proletariado como classe universal. E, se não estou completamente enganado, Deleuze não estaria assim, hoje, em tão má companhia. Folha - Quais as implicações da teoria das multiplicidades e do conceito de virtual para a reformulação dos conceitos de conhecimento e de verdade? Prado Jr. - Os conceitos das multiplicidades (sublinhemos o plural) e de virtualidade são essenciais para evitar dois escolhos em que o pensamento pode encalhar, segundo Deleuze. Ou duas concepções aparentemente rivais da filosofia, mas que partilham uma mesma epistemologia e uma mesma ontologia, já que fazem do conhecimento um ponto terminal em que o pensamento atinge seu repouso final, sem resto, na sua coincidência com um objeto fixo desde sempre, que sempre esperou, bem comportado e em silêncio, a luz que finalmente o revela tal qual é, idêntico a si mesmo. Fenomenologia e filosofia analítica, visão de essência ou circunscrição lógico-funcional de estados-de-coisas parecem partilhar essa espécie de otimismo epistemológico e ontológico, que identifica pensamento e conhecimento. A exposição mais clara das idéias de pensamento, conhecimento e verdade está presente em "O Que É a Filosofia" (Ed. 34), onde a filosofia é definida na tensão que a liga e a separa da ciência e da arte. Não se trata de privilegiar nenhum dos ângulos do triângulo assim definido, mas de mostrar a peculiaridade da relação que cada um deles estabelece com a verdade. O que o livro nos oferece é a compreensão do que há de vertiginoso na filosofia -mas também, e seguindo o mesmo movimento de pensamento, do que há de vertiginoso na ciência e na arte. Filosofia, ciência e arte são planos irredutíveis, mas podem ser explorados segundo uma mesma estratégia; às instâncias da instauração filosófica, corresponderão instâncias simétricas da instauração artística e científica; "plano de imanência da filosofia, plano de composição da arte, plano de referência ou de coordenação da ciência; forma do conceito, força da sensação e figuras estéticas, funções e observadores parciais" (op. cit., pág. 277). Mas é preciso sobretudo marcar o principal alvo polêmico do livro, que é a concepção da filosofia como análise lógica da linguagem. Ao que Deleuze responde com a afirmação do caráter nãoproposicional da língua da filosofia. Ao contrário da proposição ou da função proposicional, necessariamente remetida a um estado-de-coisas real ou possível, ou ainda a um referente externo, na linguagem da filosofia o conceito não se reporta a nada que lhe seja exterior, ele se põe a si mesmo e é, assim, auto-referente. O estilo da filosofia é mais da ordem da "poiesis" que da "aletheia". Mais uma vez, assim, distinguimos pensamento de conhecimento. E da verdade se poderá dizer que ela é refratada de modos diferentes nos planos diferentes da ciência, da arte e da filosofia. Folha - O que significa para a filosofia a proposta deleuziana de subversão do paradigma transcendente, dominante deste Platão? Qual a relação desta proposta com a chamada "morte da metafísica"? Em resumo, para Deleuze, o que significa pensar? Prado Jr. - É evidente que significa, antes de mais nada, retomar a iniciativa (e mesmo sua linguagem e seus "personagens conceituais"), mas sobretudo significa transformar Nietzsche em personagem conceitual de sua própria filosofia. Como se Nietzsche fosse também uma espécie de Zaratustra de Deleuze, mobilizado na guerra contra as formas contemporâneas da filosofia da identidade e da repetição. Nietzsche dizia que a morte de Deus não se consumaria enquanto mantivéssemos nossa crença na gramática. Deleuze diria, talvez, que a metafísica da identidade não terá morrido enquanto se acreditar que a análise lógica da linguagem é o método da filosofia. Folha - Deleuze teve em Foucault seu mais destacado interlocutor. Porém, após a morte de Foucault, ele propôs a superação de um dos momentos da analítica do poder formulado no conceito de "sociedade disciplinar". Em seu lugar, sugeriu o novo conceito de "sociedade de controle". Em relação a que formas de poder visíveis, hoje, é pertinente aplicar o conceito deleuziano? Prado Jr. - Esta questão é claramente respondida por Deleuze no "Post-Scriptum" de "Conversações". Não se trata, propriamente, para Deleuze de opor-se a, ou de criticar, o conceito de "sociedades disciplinares". Trata-se de apontar para uma transformação da sociedade contemporânea, apoiando-se justamente nas análises de Foucault e em continuidade com elas. Segundo Foucault o modelo do confinamento, que se esboça nos séculos 18 e 19, em substituição ao que chama de "sociedades de soberania", culmina no início do século 20. A sugestão de Deleuze é de que esse modelo começa a sofrer transformações depois da Segunda Guerra Mundial, quando o confinamento é substituído pelo esquema do controle. Eu cito: "A família é um 'interior' em crise como qualquer outro interior, escolar, profissional etc. Os ministros competentes não cessam de anunciar reformas supostamente necessárias. Reformar a escola, reformar a indústria, o hospital, o Exército, a prisão; mas todos sabem que essas instituições estão condenadas, num prazo mais ou menos longo. Trata-se apenas de gerir sua agonia e ocupar as pessoas, até a instalação das novas forças que se anunciam" (op. cit., pág. 220). Essa idéia de uma sociedade de controle -mas agora sou eu quem pergunta- não seria ela parecida com a idéia frankfurtiana da sociedade administrada? Folha - O pensamento de Deleuze é frequentemente criticado por seus opositores como irracionalista e, às vezes, rotulado de pós-modernista. É preciso defender Deleuze destas acusações? Prado Jr. - Irracionalismo é um pseudo-conceito. Pertence mais à linguagem da injúria do que da análise. Que conteúdo poderia ter sem uma prévia definição de Razão? Como há tantos conceitos de Razão quantas filosofias há, dir-se-ia que irracionalismo é a filosofia do outro. Ou, pastichando uma frase de Émile Bréhier, que na ocasião ponderava as acusações de "libertinagem", poderíamos dizer: "On est toujours l'irrationaliste de quelq'un" (Sempre se é o irracionalista de alguém). Não, não é necessário defender Deleuze dessa acusação, à qual certamente não lhe ocorreria dar resposta. Basta sorrir. Quanto à questão do "pós-modernismo", a atribuição -até onde posso perceber- cabe mais a Lyotard (que a transformou em cavalo de batalha em sua polêmica com os alemães) do que a Deleuze. UM MUNDO NO QUAL ACREDITAR PETER PÁL PELBART Ao criticar os rumos da filosofia contemporânea, em especial um certo cogito da comunicação, Gilles Deleuze escreve, em conjunto com Félix Guattari: "Não nos falta comunicação, ao contrário, temos comunicação demais, falta-nos criação. Falta-nos resistência ao presente". A vida filosófica de Deleuze pode ser colocada inteiramente sob o signo deste princípio: a única resistência digna ao presente é a criação. Foi o que sempre fez, com seu estilo cortante, feito de rajadas secas, análises finas ou conceitos extravagantes. Mas afinal, o que criou Deleuze? Alguns pretenderam reduzir o sentido de sua existência, de sua obra ou de sua geração ao gesto extremo para o qual a doença o impeliu. Mas o vitalismo de Deleuze passa ao largo dessas interpretações tristes. Para o filósofo a vida sempre foi concebida como uma potência nãoorgânica, força impessoal, que extrapola os limites da existência individual, das formas concretas e visíveis que a encarnam, da finitude que lhes é própria. No último texto publicado antes de seu suicídio, Deleuze escrevia: "Não se deveria conter uma vida no simples momento em que a vida individual afronta a universal morte". No entanto, como sempre em Deleuze, os termos ganham um sentido inusitado e, quando menos se espera, os vemos revirados do avesso. Pois mesmo esse "vitalismo", tantas vezes assumido por ele, não se refere a um domínio da natureza, nem evoca qualquer princípio animista ou espontaneísta. Todo o contrário: vida (ou desejo) como puro artifício, ser como produção, agenciamento, maquinação. Um comentador observou que essa ontologia é tão nova quanto o universo infinitamente plástico dos cyborgs e tão antiga quanto a tradição materialista em filosofia. O pensamento de Deleuze é pluralista: desliza sempre numa multiplicidade substantiva e nos processos que nela operam. Só há processos e multiplicidade, insiste ele, de modo que a Razão, o Sujeito (ou o Objeto), o Uno, o Universal não passariam de abstrações, por mais que se tente ressuscitá-las para contrapor-se à única coisa que no capitalismo é de fato universal: o capital. É toda uma geografia mental que se vê aí questionada, e que Deleuze ajudou a subverter com sua filosofia da diferença. Contra o tabuleiro da Representação que tem orientado o pensamento (com as figuras da Identidade e suas sombras, do Negativo e seus falsos movimentos) Deleuze propõe o jogo da Diferença. Ele fez da Diferença um conceito eminente e o elevou a uma suficiência sem precedentes. Por meio dele releu Bergson, Nietzsche e muitos outros, abrindo o caminho para a elaboração de uma ética da singularidade: não apenas colher as diferenças constituídas, sejam elas individuais ou coletivas, mas produzir novas diferenciações, fazer do homem um grande experimentador, um afirmador de modos de existência singulares. É, como disse Foucault, a "introdução a uma vida não-fascista". Deleuze pode então distinguir os que pensam à imagem do aparelho de Estado, de suas estrias e direções, impostas pela homogeneização capitalística e seus valores conformistas, e os que pensam segundo a potência nômade, num espaço aberto, multivetorial, como nas estepes de um Oriente. Em vez do xadrez (jogo imperial), o "go" chinês. A admiração de Deleuze pelos nômades, sua relação com o deserto, o privilégio da exterioridade, da intensidade ("não se mexer demais para não espantar os devires"), a forma como passam ao largo da História parece dar razão ao tradutor japonês de "Mil Platôs": "Eis um grande livro sobre a Ásia...". Deleuze, o mais oriental dos pensadores. Já não era esta a recriminação feita a Espinosa? Tudo isto, porém, não é uma cavalgada bárbara vinda do Oriente; as peças fazem parte da tradição do pensamento ocidental, embora submetidas a atrações e acoplamentos que já fizeram mais de um filósofo revirar-se em sua tumba. Veja-se o conceito impossível de empirismo transcendental, tão importante no sistema deleuziano, misto de Hume e Kant. O método transcendental kantiano (fiquemos no mais simples: remontar de um fato dado às condições que o tornam possível) não só é valorizado, mas também radicalizado. O projeto declarado de Deleuze consiste em "purgar o campo transcendental de toda semelhança" com o mundo do senso comum, não deixá-lo, contrariamente ao que teria feito Kant, decalcar-se sobre o empírico (por exemplo, rebater-se sobre a unidade e identidade pessoal do Eu), nem depender de princípios ainda relativamente transcendentes, porque mais amplos do que aquilo que eles realmente condicionam. Buscar a condição da experimentação real, e não da experiência possível em geral. Ora, isto significa que a condição seja dada, constatada, ao mesmo tempo pura e vivida, construída e experimentada... A intensidade é este princípio transcendental e genético, ser do sensível, objeto da sensibilidade, que a força a ir a seu limite, transmitindo sua violência às demais faculdades (a memória, o pensamento), num "acordo discordante" no seio de um sujeito explodido. Não há como entrar em detalhes sobre essa construção complexa. Basta ressaltar que o desafio consiste em devolver o pensamento à multiplicidade virtual que lhe dá origem: superfície imanente, intensiva, povoada de singularidades não-ligadas, que Deleuze também chamou de Inconsciente. Nesse sentido, não deve surpreender o privilégio atribuído pelo filósofo à intensidade em detrimento das representações. Reencontramos Nietzsche na vizinhança de Klossowski ou Lyotard, revirando Freud do avesso. Disto decorre uma das teses polêmicas de "O Anti-Édipo": o desejo como maquinação de fluxos e não como um teatro de representações. Desse ponto de vista, é indiferente que se esteja no reino do papai-mamãe ou no império do significante. Mais do que o encadeamento ou a estrutura, importa o acontecimento, um dos conceitos prediletos do autor. A teoria do Acontecimento elaborado por Deleuze responde a uma exigência que ele formulou do seguinte modo: cabe à filosofia moderna sobrepujar a alternativa temporal-intemporal, ou histórico-eterno, em favor de um tempo mais profundo (ou superficial): o intempestivo. Talvez cheguemos assim, indiretamente, a uma das coordenadas mais perturbadoras do pensamento de Deleuze, embora das mais inaparentes: a concepção insólita de tempo aí pressuposta, coextensiva a seu conceito de diferença, e que em parte explica suas recusas (para dizê-lo de modo rápido e grosseiro: hegenialismos, heideggerianismos, estruturalismos ortodoxos...) Em vez de um tempo homogêneo, linear, cumulativo ou circular, emerge uma arquitetura temporal turbulenta, plissada, labiríntica, heterogênea. O Acontecimento não está enganchado na cadeia contínua dos presentes, com sua direção única (a boa direção, o bom senso, a flecha do tempo), e sugere uma temporalidade paradoxal, atópica, incorporal, sempre passada e sempre por vir, em que a tripartição diacrônica se vê subvertida. A própria filosofia como Acontecimento: "O tempo filosófico é assim um grandioso tempo de coexistência, que não exclui o antes e o depois, mas os superpõe numa ordem estratigráfica". É a assunção ativa de uma tal "ordem" que causa estranheza não só entre os historiadores da filosofia, de quem, aliás, Deleuze nutriu-se em abundância, mas também entre os cinéfilos que continuam intrigados com seus dois livros sobre cinema (afinal, o que é uma "imagem-tempo", um "lençol de passado", um tempo liberado do movimento, um "cristal do tempo?"). Para não falar nos psicanalistas, a quem a idéia de um inconsciente construtivista e a priorização dos devires em relação à história poderia soar extravagante, mas nem por isso menos sedutora ou operativa, sobretudo numa clínica das psicoses. O mesmo vale no campo político. Ao ignorar os discursos pomposos ou lamurientos sobre o futuro da revolução na história e priorizar o devir revolucionário (único capaz de "conjugar a vergonha ou responder ao intolerável"), reabre-se uma linhagem intempestiva, uma lógica não dialética do devir, em que se talham constantemente múltiplos blocos de espaço-tempo, novas subjetividades. É o que explica por que Deleuze, ao contrário de muitos de sua geração, jamais renegou Maio de 68, nunca se interessou pelo tema de um fim da História (nem, de resto, por uma filosofia da história). Quando perguntado pelo militante italiano Toni Negri: "Qual política pode prolongar na história o esplendor do acontecimento e da subjetividade?", Deleuze respondeu com a mais heraclitiana e nietzschiana das inspirações: "Acreditar no mundo é o que mais nos falta, nós perdemos completamente o mundo, nos desapossaram dele". E acrescenta, como um duende: "Acreditar no mundo significa principalmente suscitar acontecimentos, mesmo pequenos, que escapem ao controle, ou engendrar novos espaços-tempo, mesmo de superfície ou volume reduzidos". O que terá sido o acontecimento-Deleuze? Gilles Deleuze: Platão, os gregos * O platonismo aparece como doutrina seletiva, seleção dos pretendentes, dos rivais. Toda coisa ou todo ser pretendem a certas qualidades. Trata-se de julgar sobre o bem-fundado ou sobre a legitimidade das pretensões. A Idéia é posta por Platão como o que possui uma qualidade primeiro (necessária e universalmente); ela deverá permitir, graça à provas, a determinar o que possui uma qualidade em segundo, terceiro, segundo a natureza da participação. Tal é a doutrina do julgamento. O pretendente legítimo, é o participante, aquele que possui em segundo, aquele cuja pretensão é validada pela Idéia. O platonismo é a Odisséia filosófica que continua no neoplatonismo. Ora ele afronta a sofística como seu inimigo, mas também como seu limite e seu duplo: porque ele pretende a tudo ou a não importa o que, o sofista arrisca fortemente a embaralhar a seleção, a perverter o julgamento. Esse problema tem sua fonte na cidade. Porque elas recusam toda transcendência imperial bárbara, as sociedades gregas, as cidades (mesmo no caso das tiranias) formam campos de imanência. Estes são preenchidos, povoados por sociedades de amigos, isto é, de livres rivais, cujas pretensões entram cada vez mais em um agôn emulante e se exercem nos domínios mais diversos: amor, atletismo, política, magistraturas. Um tal regime acarreta evidentemente uma importância determinante da opinião. Vemos isso particularmente no caso de Atenas e de sua democracia: autoctonia, philia, doxa são os três traços fundamentais, e as condições sob as quais nasce e se desenvolver a filosofia. A filosofia pode em espírito criticar esses traços, ultrapassa-los, corrigi-los, ela permanece indexada sobre eles. O filósofo grego se reclama de uma ordem imanente ao cosmos, como o mostrou Vernant. Ele se apresenta como o amigo da sabedoria (e não como um sábio à maneira oriental). Ele se propõe a «retificar», a assegurar as opiniões dos homens. São essas características que sobrevivem nas sociedades ocidentais, mesmo se elas aí recebem um novo sentido, e que explicam a permanência da filosofia na economia do nosso mundo democrático: campo de imanência do «capital», sociedade dos irmãos ou dos camaradas da qual cada revolução se reclama (e livre concorrência dos irmãos), reino da opinião. Mas o que Platão reprova à democracia ateniense, é que nela todo mundo pretende a não importa o que. Daí sua empresa de restaurar os critérios de seleção entre rivais. Será preciso erigir um novo tipo de transcendência, diferente da transcendência imperial ou mítica (ainda que Platão se sirva do mito dando a ele uma função especial). Será preciso inventar uma transcendência que se exerce e se encontra no próprio campo de imanência: tal é o sentido da teoria das Idéias. E a filosofia moderna não cessará de seguir Platão a esse respeito: reencontrar uma transcendência no seio do imanente como tal. O presente envenenado do platonismo é ter introduzido a transcendência na filosofia., ter dado à transcendência um sentido filosófico plausível (triunfo do julgamento de Deus). Esta empresa se choca com muitos paradoxos e aporias, que concernem precisamente ao estatuto da doxa (Teeteto), à natureza da amizade e do amor (Banquete), à irredutibilidade de uma imanência da Terra (Timeu). Toda reação contra o platonismo é um restabelecimento da imanência na sua extensão, e na sua pureza que interdita o retorno de um transcendente. A questão é de saber se uma tal reação abandona o projeto de seleção dos rivais, ou estabelece, ao contrário, como acreditavam Spinoza e Nietzsche, métodos de seleção completamente diferentes: estes não tratam sobre as pretensões como atos de transcendência, mas sobre a maneira pela qual o existente se preenche de imanência (o Eterno retorno como, como capacidade de alguma coisa ou qualquer um de retornar eternamente). A seleção não incide mais sobre a pretensão. Na verdade, só escapam ao platonismo as filosofias da pura imanência: dos Estóicos a Spinoza ou Nietzsche. [*] Crítica e Clínica. Tradução de Peter P. Pelbart S. Paulo: Editora 34, 1997. Originalmente publicado em Nos Grecs et leurs modernes — les stratégies contemporaines de appropriation de l’antiquité. Textes réunis par Bárbara Cassin, Ed. du Seuil, 1992. Republicado em Critique et clinique. Paris: Minuit, 1993. Gilles Deleuze : Idéia e Afeto em Spinoza CURSOS EM VINCENNES : AULA DE 24 DE JANEIRO DE 1978 TRADUÇÃO DE FRANCISCO TRAVERSO FUCHS | disponível em Deleuze Web Hoje estamos fazendo uma pausa no nosso trabalho sobre a variação contínua, fazendo um retorno provisório para uma sessão de história da filosofia, sobre um ponto muito preciso. É como um corte, a pedido de alguns de vocês. Esse ponto muito preciso diz respeito ao seguinte: o que é uma idéia e o que é um afeto em Spinoza? Idéia e afeto em Spinoza. No decorrer de março, a pedido de alguns de vocês, também faremos um corte sobre o problema da síntese e o problema do tempo em Kant. Voltar à história produz em mim um efeito curioso. Eu quase gostaria que vocês tomassem esse pedaço de história da filosofia como não mais do que uma história. Afinal, um filósofo não é somente alguém que inventa noções, ele também inventa, talvez, maneiras de perceber. Vou proceder quase que por enumeração. Antes de mais nada farei algumas observações terminológicas. Suponho que a sala está relativamente misturada. Creio que, entre todos os filósofos dos quais a história da filosofia nos fala, Spinoza está numa situação muito excepcional: a maneira pela qual ele toca aqueles que entram em seus livros não tem equivalente. Eu conto uma história, pouco importa que vocês o tenham lido ou não. Começo com advertências terminológicas. No livro principal de Spinoza, que se chama “Ética” e está escrito em latim, encontramos duas palavras: “affectio” e “affectus”. Alguns tradutores, muito estranhamente, traduzem-nas da mesma maneira. É uma catástrofe. Eles traduzem os dois termos, affectio e affectus, por "afecção". Eu digo que é uma catástrofe porque, quando um filósofo emprega duas palavras é que, por princípio, ele tem uma razão, e além disso o francês fornece-nos facilmente as duas palavras que correspondem rigorosamente a affectio e a affectus, que são "affection" [afecção] para affectio e "affect" [afeto] para affectus. Alguns tradutores traduzem affectio por afecção e affectus por sentimento, é melhor do que traduzi-los pela mesma palavra, mas eu não vejo necessidade de recorrer à palavra "sentimento" já que o francês dispõe da palavra "affect" [afeto]. Assim, quando eu emprego a palavra "afeto" ela remete ao affectus de Spinoza, e quando eu disser a palavra "afecção", ela remete a affectio. Primeiro ponto: o que é uma idéia? O que é uma idéia, para que possamos compreender mesmo as mais simples proposições de Spinoza. Sobre esse ponto Spinoza não é original, ele irá tomar a palavra idéia no sentido em que todo o mundo sempre a tomou. O que se chama idéia, no sentido em que todo o mundo sempre a tomou na história da filosofia, é um modo de pensamento que representa alguma coisa. Um modo de pensamento representativo. Por exemplo, a idéia de triângulo é o modo de pensamento que representa o triângulo. Sempre do ponto de vista da terminologia, é muito útil saber que desde a Idade Média esse aspecto da idéia é chamado "realidade objetiva". Em um texto do século XVII ou anterior, quando se encontra a realidade objetiva da idéia, isso sempre quer dizer: a idéia encarada como representação de alguma coisa. Diz-se da idéia, na medida em que ela representa alguma coisa, que ela possui uma realidade objetiva. É a relação entre a idéia e o objeto que ela representa. Assim, parte-se de algo muito simples: a idéia é um modo de pensamento definido pelo seu caráter representativo. Isso já nos dá um primeiro ponto de partida para distinguir idéia e afeto (affectus), porque se chamará de afeto todo modo de pensamento que não representa nada. O que isso quer dizer? Tomem ao acaso o que qualquer um chama de afeto ou sentimento, uma esperança por exemplo, uma angústia, um amor, isto não é representativo. Certamente há uma idéia da coisa amada, há uma idéia de algo que é esperado, mas a esperança enquanto tal ou o amor enquanto tal não representam nada, estritamente nada. Todo modo de pensamento enquanto não representativo será chamado de afeto. Uma volição, uma vontade, implica, a rigor, que eu queira alguma coisa; o que eu quero, isto é objeto de representação, o que eu quero é dado numa idéia, mas o fato de querer não é uma idéia, é um afeto, porque é um modo de pensamento não representativo. Isso funciona? Não é complicado. Disso ele conclui imediatamente um primado da idéia sobre o afeto, e isso é comum a todo o século XVII; nem mesmo entrou-se ainda naquilo que é próprio a Spinoza. Há um primado da idéia sobre o afeto por uma razão muito simples: para amar é preciso ter uma idéia, por mais confusa que seja, por mais indeterminada que seja, daquilo que se ama. Para querer é preciso ter uma idéia, por mais confusa e indeterminada que seja, daquilo que se quer. Mesmo quando se diz "eu não sei o que eu sinto", há uma representação, por mais confusa que seja, do objeto. Há uma idéia extremamente confusa. Existe um primado ao mesmo tempo cronológico e lógico da idéia sobre o afeto, ou seja, dos modos representativos do pensamento sobre os modos não representativos. Haveria um contra-senso realmente desastroso se o leitor transformasse esse primado lógico numa redução. Que o afeto pressuponha a idéia, isso acima de tudo não quer dizer que ele se reduza à idéia ou a uma combinação de idéias. Nós devemos partir disto, que idéia e afeto são duas espécies de modos de pensamento que diferem em natureza, irredutíveis um ao outro, porém simplesmente tomados numa tal relação que o afeto pressupõe uma idéia, por mais confusa que seja. Esse é o primeiro ponto. Segunda maneira menos superficial de apresentar a relação idéia-afeto. Vocês se lembram que partimos de uma característica muito simples da idéia. A idéia é um pensamento considerado como representativo, é um modo de pensamento enquanto representativo, e nesse sentido se falará da realidade objetiva de uma idéia. Só que uma idéia não tem somente uma realidade objetiva, e igualmente de acordo com a terminologia consagrada, ela também tem uma realidade formal. O que é a realidade formal da idéia, uma vez que se disse que a realidade objetiva é a realidade da idéia considerada como representando alguma coisa? Dir-se-á que a realidade formal da idéia - e então isto se torna muito mais complicado e ao mesmo tempo mais interessante - é a realidade da idéia considerada como sendo, ela mesma, alguma coisa. A realidade objetiva da idéia de triângulo é a idéia de triângulo considerada como representando a coisa triângulo, mas a idéia de triângulo é nela mesma alguma coisa; aliás, na medida em que ela é alguma coisa, eu posso formar uma idéia dessa coisa, eu posso sempre formar uma idéia da idéia. Eu direi portanto que não apenas toda idéia é idéia de alguma coisa - dizer que toda idéia é idéia de alguma coisa é dizer que toda idéia possui uma realidade objetiva, que ela representa alguma coisa - mas eu direi também que a idéia possui uma realidade formal, uma vez que ela é nela mesma alguma coisa enquanto idéia. O que isso quer dizer, a realidade formal da idéia? Não poderemos continuar indo muito mais longe nesse nível, será preciso deixar isso de lado. É preciso acrescentar apenas que essa realidade formal da idéia é o que Spinoza muito freqüentemente chama de um certo grau de realidade ou de perfeição que a idéia enquanto tal possui. Cada idéia possui, enquanto tal, um certo grau de realidade ou de perfeição. Sem dúvida esse grau de realidade ou perfeição está ligado ao objeto que ela representa, mas não se confunde com ele: a realidade formal da idéia, a saber, a coisa que a idéia é ou o grau de realidade ou de perfeição que ela possui em si, é seu caráter intrínseco. A realidade objetiva da idéia, a saber, a relação da idéia com o objeto que ela representa, é seu caráter extrínseco; pode ser que o caráter extrínseco e o caráter intrínseco da idéia estejam fundamentalmente ligados, mas não é a mesma coisa. A idéia de Deus e a idéia de rã possuem uma realidade objetiva diferente, a saber: elas não representam a mesma coisa, mas ao mesmo tempo elas não têm a mesma realidade intrínseca, elas não possuem a mesma realidade formal, a saber, que uma - vocês sentem-no muito bem - possui um grau de realidade infinitamente maior do que a outra. A idéia de Deus possui uma realidade formal, um grau de realidade ou de perfeição intrínseca infinitamente maior do que a idéia de rã, que é a idéia de uma coisa finita. Se vocês compreenderam isso, vocês compreenderam quase tudo. Existe então uma realidade formal da idéia, isto é, a idéia é alguma coisa nela mesma, essa realidade formal é seu caráter intrínseco e é o grau de realidade ou de perfeição que ela envolve nela mesma. Há pouco, quando definia a idéia por sua realidade objetiva ou por seu caráter representativo, eu opunha imediatamente a idéia ao afeto dizendo que o afeto é precisamente um modo de pensamento que não possui caráter representativo. Agora eu acabo de definir a idéia assim: toda idéia é alguma coisa, não somente é idéia de alguma coisa mas é alguma coisa, ou seja, possui um grau de realidade ou de perfeição que lhe é próprio. Portanto, é preciso que, nesse segundo nível, eu descubra uma diferença fundamental entre idéia e afeto. O que é que se passa concretamente na vida? Acontecem duas coisas... E é curioso, aí, como Spinoza emprega um método geométrico, vocês sabem que a Ética apresenta-se sob a forma de proposições, demonstrações, etc., e ao mesmo tempo, quanto mais é matemático, mais é extraordinariamente concreto. Tudo o que eu digo e todos estes comentários sobre idéia e afeto remetem aos livros II e III da Ética. Nos livros dois e três, ele nos faz uma espécie de retrato geométrico de nossa vida que, ao que me parece, é muito, muito convincente. Esse retrato geométrico consiste em dizer-nos, grosso modo, que nossas idéias se sucedem constantemente: uma idéia caça a outra, uma idéia substitui outra idéia, por exemplo instantaneamente. Uma percepção é um certo tipo de idéia, e logo veremos o porquê. Há pouco minha cabeça estava voltada para aí, eu via tal canto da sala, eu me viro, é uma outra idéia; eu passeio numa rua onde há pessoas conhecidas, eu digo "Bom-dia, Pedro", depois me viro e então digo "Bom-dia, Paulo". Ou então são as coisas que mudam: eu olho o sol, e o sol pouco a pouco desaparece e eu me encontro em plena noite; trata-se pois de uma série de sucessões, de coexistências de idéias, sucessões de idéias. Mas o que acontece além disso? Nossa vida cotidiana não é feita apenas de idéias que se sucedem. Spinoza emprega o termo "automaton"; nós somos, diz ele, autômatos espirituais, ou seja, é preferível dizer que são as idéias que se afirmam em nós do que dizer que somos nós que temos idéias. Mas o que acontece além dessa sucessão de idéias? Existe outra coisa, a saber: alguma coisa em mim não cessa de variar. Existe um regime de variação que não se confunde com a sucessão das próprias idéias. "Variações", isso deve servir-nos para o que queremos fazer, é uma lástima que ele não empregue essa palavra... O que é essa variação? Eu retomo o meu exemplo: eu cruzo na rua com Pedro, com quem antipatizo, e depois passo por ele, e digo "Bom-dia, Pedro", ou então sinto medo e depois, subitamente, vejo Paulo, que é tremendamente encantador, e eu digo "Bom-dia, Paulo", tranqüilizado e contente. Bem. O que acontece? Por um lado, sucessão de duas idéias, idéia de Pedro e idéia de Paulo; mas há outra coisa: também operou-se em mim uma variação - e aqui as palavras de Spinoza são muito precisas, vou citá-las: "(variação) de minha força de existir", ou outra palavra que ele emprega como sinônimo, "vis existendi", a força de existir, ou "potentia agendi", a potência de agir - e essas variações são perpétuas. Eu diria que para Spinoza há uma variação contínua - e é isso que “existir” quer dizer - da força de existir ou da potência de agir. Como isso se conecta ao meu exemplo estúpido, mas que é de Spinoza, "Bom-dia, Pedro", "Bom-dia, Paulo"? Quando eu vejo Pedro, que me desagrada, uma idéia, a idéia de Pedro, se dá em mim; quando eu vejo Paulo, que me agrada, a idéia de Paulo se dá em mim. Cada uma dessas idéias possui, em relação a mim, um certo grau de realidade ou de perfeição. Eu diria que a idéia de Paulo possui, em relação a mim, mais perfeição intrínseca do que a idéia de Pedro, uma vez que a idéia de Paulo me contenta e a idéia de Pedro me desagrada. Quando a idéia de Paulo se sucede à idéia de Pedro, convém dizer que minha força de existir ou que minha potência de agir é aumentada ou favorecida; quando, ao contrário, se dá o inverso, quando após ter visto alguém que me deixava alegre eu vejo alguém que me deixa triste, eu digo que minha potência de agir é inibida ou impedida. Nesse nível, já não sabemos mais se ainda estamos lidando com convenções terminológicas ou se já estamos lidando com algo muito mais concreto. Eu diria portanto que à medida que as idéias se sucedem em nós, cada qual tendo seu grau de perfeição, seu grau de realidade ou de perfeição intrínseca, aquele que tem essas idéias não pára de passar de um grau de perfeição a outro; em outras palavras, há uma variação contínua, sob a forma de aumento-diminuição-aumentodiminuição, da potência de agir ou da força de existir de alguém de acordo com as idéias que ele tem. Sintam como, através desse exercício penoso, aflora a beleza. Já não é nada má essa representação da existência, é verdadeiramente a existência nas ruas, é preciso imaginar Spinoza passeando, e ele vive verdadeiramente a existência como essa espécie de variação contínua: à medida que uma idéia substitui outra, eu não cesso de passar de um grau de perfeição a outro, mesmo que [a diferença] seja minúscula, e é essa espécie de linha melódica da variação contínua que irá definir o afeto [affectus] ao mesmo tempo na sua correlação com as idéias e em sua diferença de natureza com as idéias. Compreender essa diferença de natureza e essa correlação. Cabe a vocês dizer se isso convém a vocês ou não. Todos nós temos [agora] uma definição mais sólida do affectus; o affectus em Spinoza é a variação (é ele quem fala pela minha boca; ele não chegou a dizê-lo porque morreu jovem demais...), é a variação contínua da força de existir na medida em que essa variação é determinada pelas idéias que se tem. Assim, num texto muito importante do fim do livro III, cujo título é "Definição geral dos afetos", Spinoza nos diz: sobretudo não creiam que o affectus, tal como eu o concebo, depende de uma comparação entre as idéias. Ele quer dizer que a idéia pode muito bem ser primeira em relação ao afeto, mas idéia e afeto são duas coisas de natureza diferente; o afeto não se reduz a uma comparação intelectual das idéias, o afeto é constituído pela transição vivida ou pela passagem vivida de um grau de perfeição a outro, na medida em que essa passagem é determinada pelas idéias; porém em si mesmo ele não consiste em uma idéia, ele constitui o afeto. Quando eu passo da idéia de Pedro à idéia de Paulo, eu digo que minha potência de agir é aumentada; quando eu passo da idéia de Paulo à idéia de Pedro, eu digo que minha potência de agir é diminuída. Isso equivale a dizer que quando eu vejo Pedro, sou afetado de tristeza; quando eu vejo Paulo, sou afetado de alegria. E sobre essa linha melódica de variação contínua constituída pelo afeto, Spinoza irá determinar dois pólos, alegriatristeza, que serão para ele as paixões fundamentais: a tristeza será toda paixão, não importa qual, que envolva uma diminuição de minha potência de agir, e a alegria será toda paixão envolvendo um aumento de minha potência de agir. Isso permitirá que Spinoza, por exemplo, realize uma abertura em direção a um problema moral e político muito fundamental, que será sua própria maneira de estabelecer o problema político: como acontece que as pessoas que têm o poder, não importa em que domínio, tenham necessidade de afetar-nos de uma maneira triste? As paixões tristes como necessárias: inspirar paixões tristes é necessário ao exercício do poder. E Spinoza diz, no “Tratado teológico-político”, que esse é o laço profundo entre o déspota e o sacerdote: eles têm necessidade da tristeza de seus súditos. Aqui, vocês compreenderão com facilidade que ele não toma "tristeza" num sentido vago, ele toma "tristeza" no sentido rigoroso que ele soube lhe dar: a tristeza é o afeto considerado como envolvendo a diminuição da potência de agir. Quando eu dizia, na minha primeira distinção idéia-afeto, que o afeto é o modo de pensamento que não representa nada, eu diria em termos técnicos que se tratava de uma simples definição nominal, ou, se preferirem, exterior, extrínseca. Na segunda distinção, quando eu digo que a idéia é aquilo que possui em si uma realidade intrínseca, e que o afeto é a variação contínua ou a passagem de um grau de realidade a outro, ou de um grau de perfeição a outro, nós já não estamos no terreno das definições ditas nominais, nós já temos aí uma definição real, chamando de definição real a definição que, ao mesmo tempo em que define a coisa, mostra a possibilidade dessa coisa. O que é importante é que vocês percebam como, segundo Spinoza, nós somos fabricados como autômatos espirituais. Enquanto autômatos espirituais, há o tempo todo idéias que se sucedem em nós, e de acordo com essa sucessão de idéias, nossa potência de agir ou nossa força de existir é aumentada ou é diminuída de uma maneira contínua, sobre uma linha contínua, e é isso que nós chamamos afeto [affectus], é isso que nós chamamos existir. O affectus é portanto a variação contínua da força de existir de alguém, na medida em que essa variação é determinada pelas idéias que ele tem. Porém, ainda uma vez, "determinada" não quer dizer que a variação se reduza às idéias que ele tem, uma vez que a idéia que eu tenho só dá conta de sua conseqüência, a saber, que ela aumente minha potência de agir ou ao contrário a diminua em relação à idéia que eu tinha imediatamente antes, e não se trata de uma comparação, trata-se de uma espécie de deslizamento, de queda ou de elevação da potência de agir. Nenhum problema? Nenhuma questão? Para Spinoza existem três tipos de idéias. Por enquanto, não falaremos mais do affectus, do afeto, pois com efeito o afeto é determinado pelas idéias que temos, ele não se reduz às idéias que temos, mas é determinado pelas idéias que temos; portanto, o que é essencial é ver quais são essas idéias que determinam os afetos, embora mantendo presente em nosso espírito que o afeto não se reduz às idéias que se tem, e é absolutamente irredutível a elas. Ele é de outra ordem. Entre as três espécies de idéias que Spinoza distingue estão as idéias-afecções, affectio; veremos que o affectio, contrariamente ao affectus, é um certo tipo de idéias. Em primeiro lugar, portanto, haveria as idéias-afecctio, em segundo lugar nós chegamos a formar também idéias que Spinoza chama de noções, e em terceiro lugar, para muito poucos entre nós, pois é extremamente difícil, chegamos a formar idéias de essências. Antes de mais nada, pois, são três tipos de idéias. O que é uma afecção (affectio)? Eu vejo vocês literalmente abaixando os olhos... E no entanto tudo isto é, ao contrário, divertido. À primeira vista, se nos atemos ao texto de Spinoza, ela não tem nada a ver com uma idéia, mas tampouco tem a ver com um afeto. Tínhamos determinado o afeto [affectus] como a variação da potência de agir. E uma afecção, o que é? Numa primeira determinação, a afecção é isto: é o estado de um corpo considerado como sofrendo a ação de um outro corpo. O que isso quer dizer? "Eu sinto o sol sobre mim", ou então, "um raio de sol pousa sobre você": é uma afecção do seu corpo. O que é uma afecção do seu corpo? Não o sol, mas a ação do sol ou o efeito do sol sobre você. Em outros termos, um efeito, ou a ação que um corpo produz sobre outro - note-se que Spinoza, por razões decorrentes de sua física, não acredita em uma ação à distância: a ação implica sempre um contato - é uma mistura de corpos. A afecção [affectio] é uma mistura de dois corpos, um corpo que se diz agir sobre outro, e um corpo que recolhe o traço do primeiro. Toda mistura de corpos será chamada de afecção. Spinoza conclui a partir disso que a afecção [affectio], sendo definida como uma mistura de corpos, indica a natureza do corpo modificado, a natureza do corpo afeccionado [affectionné] ou afetado [affecté]; a afecção indica muito mais a natureza do corpo afetado do que a natureza do corpo afetante. Ele analisa seu exemplo célebre, "quando nós olhamos o sol, nós imaginamos que sua distância em relação a nós é de cerca de duzentos pés". [Livro II, Proposição 35, Escólio]. Isso é uma affectio ou, ao menos, é a percepção de uma affectio. Está claro que minha percepção do sol indica muito mais a constituição de meu corpo, a maneira pela qual meu corpo está constituído, do que a maneira pela qual o sol está constituído. Assim, eu percebo o sol em virtude do estado de minhas percepções visuais. Uma mosca perceberá o sol de maneira diferente. Para preservar o rigor de sua terminologia, Spinoza dirá que uma affectio indica mais a natureza do corpo modificado do que a natureza do corpo modificante, e que ela envolve a natureza do corpo modificante. Eu diria que para Spinoza o primeiro tipo de idéia é todo modo de pensamento que representa uma afecção do corpo; ou seja, a mistura de um corpo com outro, ou então o traço de um outro corpo sobre meu corpo será chamado idéia de afecção. É nesse sentido que se poderá dizer que o primeiro tipo de idéias é a idéia-afecção. E esse primeiro tipo de idéias corresponde ao que Spinoza chama de primeiro gênero de conhecimento. É o mais baixo. Porque é o mais baixo? É óbvio que é o mais baixo porque essas idéias de afecção só conhecem a coisa pelos seus efeitos: eu sinto a afecção do sol sobre mim, o traço do sol sobre mim. É o efeito do sol sobre meu corpo. Porém as causas, a saber, o que é meu corpo, o que é o corpo do sol, e a relação entre esses dois corpos de tal maneira que um produza sobre o outro um determinado efeito ao invés de produzir outra coisa, sobre isso eu não sei absolutamente nada. Tomemos um outro exemplo: "o sol faz a cera fundir-se e faz a argila endurecer." Isso não é nada. São idéias de affectio. Eu vejo a cera que escorre, e bem ao seu lado vejo a argila que endurece; é uma afecção da cera e uma afecção da argila, e eu tenho uma idéia dessas afecções, eu percebo efeitos. Em virtude de que constituição corporal a argila endurece sob a ação do sol? Enquanto eu permanecer na percepção da afecção, nada saberei a seu respeito. Dir-se-á que as idéias-afecções são representações de efeitos sem suas causas, e é precisamente isso que Spinoza chama de idéias inadequadas. São idéias de mistura separadas das causas da mistura. Assim, que nós só tenhamos, no nível das idéias-afecções, idéias inadequadas e confusas, isso é perfeitamente compreensível, pois afinal o que são as idéias-afecções na ordem da vida? E sem dúvida, muitos entre nós, que não se dedicam o bastante à filosofia, infelizmente vivem assim. Uma vez, uma única vez, Spinoza utiliza uma palavra latina muito estranha porém muito importante, que é "occursus". Literalmente, é o "encontro". Na medida em que tenho idéias-afecções, eu vivo ao acaso dos encontros: eu passeio na rua, vejo Pedro que não me agrada, e isso em função da constituição do seu corpo e da sua alma e da constituição do meu corpo e da minha alma. Alguém que me desagrada, corpo e alma, o que isso quer dizer? Eu gostaria de fazê-los compreender porque Spinoza teve, notadamente, uma reputação muito forte de materialista apesar de falar o tempo todo do espírito e da alma, e uma reputação de ateu apesar de falar o tempo todo de Deus: é bastante curioso. Percebe-se com facilidade porque as pessoas diziam que é puro materialismo. Quando eu digo: aquele tipo não me agrada, isso quer dizer literalmente que o efeito do seu corpo sobre o meu, que o efeito de sua alma sobre a minha, me afeta de maneira desagradável, são misturas de corpos ou misturas de almas. Há uma mistura nociva ou uma boa mistura, tanto no nível do corpo quanto no da alma. É exatamente como: "Eu não gosto de queijo." O que isso quer dizer? "Eu não gosto de queijo": isso quer dizer que o queijo se mistura com o meu corpo de tal modo que eu sou modificado de maneira desagradável, não quer dizer nada além disso. Portanto não há nenhuma razão para estabelecer diferenças entre simpatias espirituais e relações corporais. "Eu não gosto de queijo" também diz respeito à alma, e "Pedro (ou Paulo) não me agrada" também diz respeito ao corpo, é tudo a mesma coisa. Simplesmente, por que essa idéia-afecção, essa mistura, é uma idéia confusa? Ela é forçosamente confusa e inadequada porque eu absolutamente não sei, nesse nível, em virtude de que e como o corpo ou a alma de Pedro são constituídos, de tal maneira que sua alma não convém à minha, ou de tal maneira que seu corpo não convém ao meu. Eu posso apenas dizer que isso não convém, mas em virtude de que constituição dos dois corpos, do corpo que afeta e do corpo que é afetado, do corpo que age e do corpo que padece, nesse nível eu não sei rigorosamente nada. Como diz Spinoza, são conseqüências separadas de suas premissas, ou, se preferirem, é um conhecimento dos efeitos independente do conhecimento das causas. É portanto ao acaso dos encontros. O que é que pode acontecer ao acaso dos encontros? Mas o que é um corpo? Esse seria o objeto de um curso específico, e eu não vou desenvolvê-lo. A teoria sobre o que é um corpo, ou então uma alma, dá no mesmo, encontra-se no livro II da Ética. Para Spinoza, a individualidade de um corpo se define assim: é quando uma relação composta ou complexa (eu insisto nisso, muito composta, muito complexa) de movimento e de repouso se mantém através de todas as mudanças que afetam as partes desse corpo. É a permanência de uma relação de movimento e de repouso através de todas as mudanças que afetam todas as partes, ao infinito, do corpo considerado. Vocês compreendem que um corpo é necessariamente composto ao infinito. Meu olho, por exemplo, meu olho e a relativa constância de meu olho, se define por uma certa relação de movimento e de repouso através de todas as modificações das diversas partes do meu olho; mas meu próprio olho, que já tem uma infinidade de partes, é uma parte entre as partes do meu corpo, ele é uma parte do rosto, e o rosto, por sua vez, é uma parte do meu corpo, etc. Portanto vocês têm todos os tipos de relações que irão se compor umas com as outras para formar uma individualidade deste ou daquele grau. Mas em cada um desses níveis ou graus, a individualidade será definida por uma certa relação composta de movimento e de repouso. O que pode acontecer se meu corpo é feito desse modo, uma certa relação de movimento e de repouso que subsume uma infinidade de partes? Podem acontecer duas coisas: eu como alguma coisa que eu adoro, ou então, outro exemplo, eu como alguma coisa e caio envenenado. Literalmente, em um caso eu fiz um bom encontro, e no outro, fiz um mau encontro. Tudo isso refere-se à categoria do "occursus". Quando eu faço uma mau encontro, isso quer dizer que o corpo que se mistura com o meu destrói minha relação constitutiva, ou tende a destruir uma de minhas relações subordinadas. Por exemplo, eu como alguma coisa e tenho dor de barriga, e isso não me mata; mas isso destruiu ou inibiu, comprometeu uma das minhas sub-relações, uma das relações que me compõe. Depois eu como alguma coisa e morro: nesse caso, isso decompôs minha relação composta, decompôs a relação complexa que definia minha individualidade. Isso não destruiu simplesmente uma das minhas relações subordinadas que compunha uma de minhas sub-individualidades, isso destruiu a relação característica do meu corpo. Quando eu como alguma coisa que me convém, se dá o inverso. "O que é o mal?", pergunta Spinoza. Encontra-se esse tema na correspondência; são cartas que ele envia a um jovem holandês extremamente maldoso. Esse holandês não gostava de Spinoza e o atacava constantemente, perguntando-lhe: "Diga-me o que é, para você, o mal." Vocês sabem que, naquela época, as cartas eram algo muito importante, e os filósofos enviavam muitas cartas. Spinoza, que era muito gentil, acreditava inicialmente que se tratava de um jovem que queria instruir-se, e pouco a pouco compreendeu que não era nada disso, que o holandês queria sua pele. A cólera de Blyenbergh, que era um bom cristão, vai inchando de carta em carta, e ele termina por dizer-lhe: "Mas você é o diabo!" Spinoza diz que o mal, isso não é difícil, o mal é um mau encontro. Encontrar um corpo que se mistura mal com o seu. Misturar-se mal quer dizer misturar-se em condições tais que uma das suas relações subordinadas ou sua relação constituinte é ameaçada, comprometida ou mesmo destruída. Cada vez mais alegre, querendo mostrar que tem razão, Spinoza analisa à sua maneira o exemplo de Adão. Nas condições em que vivemos, nós parecemos condenados a ter um único tipo de idéias, as idéias-afecções. Por meio de que milagre seria possível escapar dessas ações de corpos que não aguardaram por nós para existir, como poderíamos nos elevar a um conhecimento das causas? Por enquanto, o que vemos é que estamos condenados ao acaso dos encontros desde que nascemos, e isso não nos leva muito longe. O que isso implica? Implica uma reação furiosa contra Descartes, pois Spinoza afirmará com muita força, no livro II, que nós não podemos conhecer a nós mesmos e aos corpos exteriores senão pelas afecções que os corpos exteriores produzem sobre o nosso. Para aqueles que se lembram um pouco de Descartes, trata-se da proposição anticartesiana de base, uma vez que exclui completamente a apreensão da coisa pensante por si mesma, ou seja, exclui completamente a possibilidade do cogito. Eu só conheço as misturas de corpos, e só conheço a mim mesmo pela ação dos outros corpos sobre mim, pelas misturas. Isso é não somente anticartesianismo, mas também anticristianismo. Por quê? Porque um dos pontos fundamentais da teologia é a perfeição imediata do primeiro homem criado, o que recebe o nome, em teologia, de teoria da perfeição adâmica. Adão, antes de pecar, é criado tão perfeito quanto possível, e depois há a história do pecado que é precisamente a história da queda, mas a queda pressupõe um Adão perfeito enquanto criatura. Essa idéia parece, para Spinoza, muito engraçada; para ele, isso não é possível. Supondo-se dada a idéia de um primeiro homem, ela só pode ser dada como idéia do ser mais impotente, do ser mais imperfeito possível, já que o primeiro homem só pode existir ao acaso dos encontros e das ações dos outros corpos sobre si mesmo. Portanto, supondo-se que Adão exista, ele existe num modo de absoluta imperfeição e inadequação, ele existe à maneira de um pequeno bebê que está entregue ao acaso dos encontros, a menos que esteja num ambiente protegido, porém aqui eu falei demais... O que seria um ambiente protegido? O mal é um mau encontro. O que isso quer dizer? Spinoza, na sua correspondência com o holandês, lhe diz: "Você se refere o tempo todo ao exemplo de Deus que proibiu Adão de comer a maçã, e cita isso como exemplo de uma lei moral: a primeira interdição." "Mas isso não é de modo algum o que acontece", diz Spinoza, retomando toda a história de Adão sob a forma de um envenenamento e de uma intoxicação. O que acontece na realidade? Deus jamais proibiu nada a Adão, ele lhe concedeu uma revelação. Ele o preveniu sobre o efeito nocivo que o corpo da maçã teria sobre a constituição do corpo de Adão. Em outras palavras, a maçã é um veneno para Adão. O corpo da maçã existe sob uma tal relação característica que ela só pode agir sobre o corpo de Adão, tal e qual ele é constituído, decompondo a relação característica do corpo de Adão. E se ele errou ao não escutar Deus, não é no sentido de que ele o teria desobedecido, é porque ele nada compreendeu. Isso também existe entre os animais, alguns possuem um instinto que os desvia do que é veneno para eles, e existem outros que, quanto a isso, não possuem esse instinto. Quando eu faço um encontro de modo que a relação do corpo que me modifica, que age sobre mim, combina-se com minha própria relação, com a relação característica do meu próprio corpo, o que é que acontece? Eu diria que minha potência de agir é aumentada; ela é aumentada ao menos sob aquela relação. Quando, ao contrário, eu faço um encontro de modo que a relação característica do corpo que me modifica compromete ou destrói uma de minhas relações, ou minha relação característica, eu diria que minha potência de agir é diminuída, ou mesmo destruída. Nós voltamos a encontrar aqui nossos dois afetos - affectus - fundamentais: a tristeza e a alegria. Para reagrupar tudo nesse nível, em função das idéias de afecção que eu tenho, há dois tipos de idéias de afecção: a idéia de um efeito que se concilia ou favorece minha própria relação característica, e a idéia de um efeito que compromete ou destrói minha própria relação característica. A esses dois tipos de idéias de afecção irão corresponder os dois movimentos de variação do affectus, os dois pólos da variação: em um caso minha potência de agir é aumentada e eu experimento um affectus de alegria, no outro caso minha potência de agir é diminuída e eu experimento um affectus de tristeza. E todas as paixões, em seus detalhes, Spinoza irá engendrálas a partir desses dois afetos fundamentais: a alegria como aumento da potência de agir, a tristeza como diminuição ou destruição da potência de agir. Isso equivale a dizer que cada coisa, corpo ou alma, se define por uma certa relação característica, complexa, mas eu também poderia dizer que cada coisa, corpo ou alma, se define por um certo poder de ser afetado. Se vocês considerarem os animais, Spinoza nos dirá com muita força que aquilo que importa nos animais não são os gêneros e as espécies; os gêneros e as espécies são noções absolutamente confusas, são idéias abstratas. O que importa é: de que um corpo é capaz? E aqui ele lança uma das questões mais fundamentais de toda a sua filosofia (antes dele houve Hobbes e outros) dizendo que a única questão está em não sabermos sequer de que um corpo é capaz, nós tagarelamos sobre a alma e sobre o espírito e não sabemos o que pode um corpo. Ora, um corpo deve ser definido pelo conjunto das relações que o compõe, ou, o que dá exatamente no mesmo, pelo seu poder de ser afetado. E enquanto vocês não souberem qual é o poder de ser afetado de um corpo, enquanto vocês o aprenderem assim, ao acaso dos encontros, vocês não estarão de posse da vida sábia, não estarão de posse da sabedoria. Saber de que vocês são capazes. Não como questão moral, mas antes de mais nada como questão física, como questão dirigida ao corpo e à alma. Um corpo possui algo fundamentalmente oculto: pode-se falar da espécie humana, do gênero humano, mas isso não nos dirá o que é capaz de afetar nosso corpo, o que é capaz de destruí-lo. Esse poder de ser afetado é a única questão. O que distingue uma rã de um macaco? Não são caracteres específicos ou genéricos, diz Spinoza, mas o fato de que eles não são capazes das mesmas afecções. Assim, seria preciso fazer, para cada animal, verdadeiros mapas de afetos, os afetos dos quais um bicho é capaz. Para os homens é a mesma coisa: os afetos dos quais determinado homem é capaz. Nesse momento percebe-se que, segundo as culturas, segundo as sociedades, os homens não são capazes dos mesmos afetos. É bem conhecido o método pelo qual certos governos liquidaram os índios da América do Sul, que foi deixar nos caminhos usados pelos índios roupas de pessoas gripadas, roupas tomadas nos dispensários, porque os índios não suportam o afeto gripe. Nem era necessário usar uma metralhadora, eles caíam como moscas. E é óbvio que nós, nas condições de vida da floresta, nos arriscamos a não viver muito tempo. Portanto, gênero humano, espécie humana ou mesmo raça, Spinoza dirá que isso não tem nenhuma importância enquanto não se fizer a lista dos afetos dos quais alguém é capaz, no sentido mais forte da palavra capaz, compreendidas aí as doenças das quais ele é capaz. É evidente que o cavalo de corrida e o cavalo de carga são da mesma espécie, são duas variedades da mesma espécie, e no entanto os afetos são muito diferentes, as doenças são absolutamente diferentes, a capacidade de ser afetado é completamente diferente e, desse ponto de vista, é preciso dizer que um cavalo de carga está muito mais próximo de um boi do que de um cavalo de corrida. Assim, um mapa etológico dos afetos é muito diferente de uma determinação genérica e específica dos animais. Vocês vêem que o poder de ser afetado pode ser preenchido de duas maneiras: quando eu sou envenenado, meu poder de ser afetado é absolutamente preenchido, mas ele é preenchido de tal maneira que minha potência de agir tende para zero, ou seja, é inibida. Inversamente, quando eu experimento alegria, ou seja, quando eu encontro um corpo que compõe sua relação com a minha, meu poder de ser afetado é igualmente preenchido e minha potência de agir aumenta, e tende para... quê? No caso de um mau encontro, toda a minha força de existir (vis existendi) é concentrada, tendendo para o seguinte alvo: investir o traço do corpo que me afeta para repelir o efeito desse corpo, de modo que minha potência de agir foi diminuída na mesma proporção. Essas coisas são muito concretas. Sua cabeça dói e você diz: "Eu já não posso nem mesmo ler." Isso quer dizer que sua força de existir investiu a tal ponto o traço de sua dor de cabeça que sua potência de agir foi diminuída na mesma proporção. Ao contrário, quando você está contente e diz: "Ah, como eu me sinto bem", você também está contente porque corpos se misturaram ao seu em proporções e condições que são favoráveis à sua relação; nesse momento, a potência do corpo que o afeta combina-se com a sua de tal modo que sua potência de agir é aumentada. Nos dois casos o seu poder de ser afetado será completamente efetuado, mas ele pode ser efetuado de tal modo que sua potência de agir diminua ao infinito ou que a potência de agir aumente ao infinito. Ao infinito? Será que isso é verdade? Evidentemente não, porque no nosso nível as forças de existir, os poderes de ser afetado e as potências de agir são forçosamente finitos. Apenas Deus tem uma potência absolutamente infinita. Bom, mas dentro de certos limites, eu não deixarei de passar por essas variações da potência de agir em função das idéias de afecção que eu tenho, não deixarei de seguir a linha de variação contínua do affectus em função das idéias-afecção que eu tenho e dos encontros que eu faço, de tal modo que, a cada instante, meu poder de ser afetado é completamente efetuado, completamente preenchido. Preenchido, simplesmente, sob o modo da tristeza ou sob o modo da alegria. Os dois ao mesmo tempo, bem entendido, pois sabemos que, nas sub-relações que nos compõe, uma parte de nós mesmos pode estar composta de tristeza e uma outra parte de nós mesmos estar composta de alegria. Existem tristezas locais e alegrias locais. Por exemplo, Spinoza define a cócega como uma alegria local, mas isso não quer dizer que tudo seja alegria na cócega; ela pode ser uma alegria de tal natureza que implique uma irritação coexistente de uma outra natureza, irritação que é tristeza: meu poder de ser afetado tende a ser excedido. Nada é bom para alguém que excede seu poder de ser afetado. Um poder de ser afetado é realmente uma intensidade ou um limiar de intensidade. O que Spinoza realmente quer é definir a essência de alguém de maneira intensiva, como uma quantidade intensiva. Enquanto vocês não conhecem suas intensidades, vocês se arriscam a ter um mau encontro, e poderão muito bem dizer que é belo o excesso, a desmedida... porém não há desmedida, não há senão fracasso, nada além do fracasso. Advertência quanto às superdoses [overdoses]. É precisamente o fenômeno do poder de ser afetado que é excedido com uma destruição total. Quando se tratava de fazer filosofia, certamente a minha geração era na média muito mais cultivada ou conhecedora, mas em compensação havia uma espécie de incultura muito surpreendente em outros domínios, em música, em pintura, em cinema. Eu tenho a impressão de que para muitos de vocês a relação mudou, ou seja, que vocês não sabem nada, absolutamente nada de filosofia mas sabem, ou melhor, vocês têm um domínio concreto de coisas como cor, vocês sabem o que é um som ou uma imagem. Uma filosofia é uma espécie de sintetizador de conceitos, criar um conceito não é uma questão de ideologia. Um conceito é um bicho. Até agora eu defini unicamente o aumento e a diminuição da potência de agir, ou que a potência de agir aumenta ou diminui, sendo o afeto (affectus) correspondente sempre uma paixão. Seja ele uma alegria que aumenta minha potência de agir ou uma tristeza que diminui minha potência de agir, nos dois casos trata-se de paixões: paixões alegres ou paixões tristes. Ainda uma vez Spinoza denuncia um complô no universo daqueles que têm interesse em nos afetar de paixões tristes. O sacerdote precisa da tristeza de seus súditos, ele precisa que seus súditos se sintam culpados. Mas eu ainda não defini o que é a potência de agir. As auto-afecções ou afetos ativos supõe que nós estejamos de posse de nossa potência de agir e que, neste ou naquele ponto, tenhamos saído do domínio das paixões para entrar no domínio das ações. É o que nos resta ainda para ver. Como poderíamos escapar das idéias-afecção, como poderíamos escapar dos afetos passivos que consistem no aumento ou diminuição de nossa potência de agir, como poderíamos escapar do mundo das idéias inadequadas, já que dissemos que nossa condição parece condenar-nos estritamente a esse mundo? É por isso que é preciso ler a Ética como preparando uma espécie de giro dramático [coup de théâtre]. Ele irá nos falar de afetos ativos onde não existem mais paixões, onde a potência de agir é conquistada ao invés de passar por todas essas variações contínuas. Existe aqui um ponto muito preciso: há uma diferença fundamental entre ética e moral. Spinoza não produz uma moral, e por uma razão muito simples: ele jamais se pergunta o que devemos fazer, ele pergunta-se o tempo todo de que nós somos capazes, o que está em nossa potência; a ética é um problema de potência, não é jamais um problema de dever. Nesse sentido, Spinoza é profundamente imoral. Ele possui uma natureza afortunada, pois o problema moral, o bem e o mal, ele nem mesmo compreende o que isso quer dizer. O que ele compreende, são os bons encontros, os maus encontros, os aumentos e diminuições de potência. Assim, ele produz uma ética e de modo algum uma moral. É por isso que ele marcou Nietzsche com tanta força. Nós estamos completamente encerrados neste mundo das idéias-afecção e dessas contínuas variações afetivas de alegria e de tristeza, então ora minha potência de agir aumenta, que bom, ora ela diminui; mas quer ela aumente, quer ela diminua, eu permaneço na paixão porque, nos dois casos, eu ainda estou separado de minha potência de agir, eu não estou de posse dela. Portanto, quando minha potência de agir aumenta, isso quer dizer que eu estou relativamente menos separado dela, e vice-versa, porém eu estou formalmente separado de minha potência de agir, eu não estou de posse dela. Em outros termos, eu não sou causa de meus próprios afetos, e uma vez que eu não sou causa de meus próprios afetos, eles são produzidos em mim por outra coisa: eu sou portanto passivo, eu estou no mundo da paixão. Mas existem as idéias-noção e as idéias-essência. E já no nível das idéias-noção irá surgir neste mundo uma espécie de saída. Estamos completamente sufocados, estamos encerrados num mundo de impotência absoluta; mesmo quando minha potência de agir aumenta, é num segmento de variação, e nada me garante que na próxima esquina eu não receberei uma enorme paulada na cabeça, fazendo cair novamente minha potência de agir. Vocês estão lembrados de que uma idéia-afecção é a idéia de uma mistura, isto é, a idéia de um efeito de um corpo sobre o meu. Uma idéia-noção já não diz respeito ao efeito de um outro corpo sobre o meu, é uma idéia que concerne e que tem por objeto a conveniência ou a inconveniência das relações características entre os dois corpos. Existe esse tipo de idéia? Não sabemos ainda se existe, mas sempre é possível definir alguma coisa, mesmo que seja para concluir em seguida que ela não pode existir: é o que se chama de definição nominal. Eu diria que a definição nominal de noção é: uma idéia que, ao invés de representar o efeito de um corpo sobre outro, ou seja, a mistura de dois corpos, representa a conveniência ou a inconveniência interna das relações características de dois corpos. Exemplo: se eu soubesse o bastante sobre a relação característica do corpo chamado arsênico e sobre a relação característica do corpo humano, eu poderia formar uma noção a respeito do que faz com que essas duas relações não convenham entre si, chegando o arsênico, sob sua relação característica, a destruir a relação característica do meu corpo: eu sou envenenado, eu morro. Vocês vêem que, à diferença da idéia de afecção, ao invés de ser a apreensão da mistura extrínseca de um corpo com outro, ou do efeito de um corpo sobre outro, a noção elevou-se à compreensão da causa, a saber: se a mistura produz este ou aquele efeito, é em virtude da natureza da relação entre os corpos considerados e da maneira pela qual a relação de um corpo se compõe com a relação do outro corpo. Sempre existe composição de relações. Quando eu sou envenenado, é porque o corpo arsênico induziu as partes de meu corpo a entrar sob uma relação diferente da relação que me caracteriza. Nesse momento, as partes do meu corpo entram sob uma nova relação (induzida pelo arsênico) que se compõe perfeitamente com o arsênico; o arsênico está feliz porque ele se nutre de mim. O arsênico experimenta uma paixão alegre pois, como bem disse Spinoza, todo corpo possui uma alma. Portanto o arsênico está alegre, mas eu, evidentemente, não estou. Ele induziu partes de meu corpo a entrar sob uma relação que se compõe com ele, arsênico. Quanto a mim, eu estou triste, eu vou morrer. Vocês vêem que a noção, se pudermos chegar a ela, é um truque formidável. Não estamos longe de uma geometria analítica. Uma noção não é de modo algum abstrata, ela é muito concreta: este corpo, aquele corpo. Se eu estivesse de posse da relação característica da alma e do corpo daquele de quem digo que não me agrada, em relação à minha própria relação característica, eu compreenderia tudo, eu conheceria pelas causas ao invés de conhecer apenas efeitos separados de suas causas. Nesse momento, eu teria uma idéia adequada. O mesmo aconteceria se eu compreendesse porque alguém me agrada. Eu tomei como exemplo as relações alimentares, mas não é preciso mudar uma linha para dar conta das relações amorosas. Não é que Spinoza conceba o amor como alimentação, pois ele também concebe a alimentação como amor. Tomemos um casamento à Strindberg, essa espécie de decomposição de relações que depois se recompõe para recomeçar. O que é essa variação contínua do affectus, e como é possível que certa inconveniência convenha a alguns? Por que alguns só podem viver sob a forma de uma cena conjugal indefinidamente repetida? Eles saem dela como se fosse para eles um banho de água fresca. Vocês compreendem a diferença entre uma idéia-noção e uma idéia-afecção. Uma idéia-noção é forçosamente adequada porque é um conhecimento pelas causas. Spinoza não emprega somente o termo noção para qualificar esse segundo tipo de idéia, mas emprega o termo noção comum. A palavra é bastante ambígua: Será que ela quer dizer "comum a todos os espíritos"? Sim e não; Spinoza é muito minucioso a esse respeito. Em todo caso, jamais confundam uma noção comum com uma abstração. Ele define a noção comum sempre assim: é a idéia de alguma coisa que é comum a todos os corpos ou a muitos corpos - no mínimo dois - e que é comum ao todo e à parte. Portanto, certamente existem noções comuns que são comuns a todos os espíritos, mas elas só são comuns a todos os espíritos na medida em que elas são, em primeiro lugar, a idéia de alguma coisa que é comum a todos os corpos. Assim, elas não são de modo algum noções abstratas. O que é comum a todos os corpos? Por exemplo, estar em movimento ou em repouso. O movimento e o repouso serão objetos de noções ditas comuns a todos os corpos. Existem noções comuns que designam algo de comum a dois corpos ou a duas almas; por exemplo, alguém que eu amo. Ainda uma vez: as noções comuns não são algo de abstrato, não têm nada a ver com espécies e gêneros, elas são na verdade o enunciado daquilo que é comum a muitos corpos ou a todos os corpos; ora, como não existe um único corpo que não seja, ele mesmo, muitos, pode-se dizer que há coisas comuns ou noções comuns em cada corpo. Donde volta-se à questão: como se pode escapar dessa situação que nos condenava às misturas? Aqui os textos de Spinoza são muito complicados. Não se pode conceber essa saída senão da seguinte maneira: grosso modo, quando eu sou afetado ao acaso dos encontros, ou sou afetado de tristeza, ou de alegria. Quando sou afetado de tristeza, minha potência de agir diminui, ou seja, eu estou ainda mais separado dessa potência. Quando sou afetado de alegria, ela aumenta, ou seja, eu estou menos separado dessa potência. Bem. Se vocês consideram-se afetados de tristeza, creio que tudo está arruinado, não há mais saída, por uma razão muito simples: nada na tristeza, que diminui sua potência de agir, nada na tristeza pode induzi-los a formar a noção comum de algo que seria comum ao seu corpo e aos corpos que os afetam de tristeza. Por uma razão muito simples: é que o corpo que os afeta de tristeza só os afeta de tristeza na medida em que ele os afeta sob uma relação que não convém com a sua. Spinoza quer dizer algo muito simples, que a tristeza não torna ninguém inteligente. Na tristeza estamos arruinados. É por isso que os poderes têm necessidade de que os súditos sejam tristes. A angústia jamais foi um jogo de cultura da inteligência ou da vivacidade. Quando vocês têm um afeto triste, é porque um corpo age sobre o seu, uma alma age sobre a sua em condições tais e sob uma relação que não convém com a sua. Por conseguinte, nada na tristeza pode induzi-los a formar a noção comum, isto é, a idéia de algo em comum entre os dois corpos e as duas almas. O que ele está prestes a dizer está cheio de sabedoria: é por isso que pensar na morte é a coisa mais imunda. Ele se opõe a toda tradição filosófica que é uma meditação sobre a morte. Sua fórmula diz que a filosofia é uma meditação da vida e não da morte; obviamente, porque a morte é sempre um mau encontro. Outro caso. Você é afetado de alegria. Sua potência de agir é aumentada, isso não quer dizer que você esteja de posse dela, mas o fato de que você esteja sendo afetado de alegria significa e indica que o corpo ou a alma que o afeta desse modo afeta você sob uma relação que se combina com a sua, e isso abrange desde a fórmula do amor até a fórmula alimentar. Num afeto de alegria, portanto, o corpo que o afeta é indicado como compondo a relação dele com a sua, ao invés da relação dele decompor a sua. Desde então, alguma coisa irá induzi-lo a formar a noção do que é comum ao corpo que o afeta e ao seu, à alma que o afeta e à sua. Nesse sentido, a alegria torna inteligente. Sentimos que aqui há um truque interessante porque, método geométrico ou não, estaremos plenamente de acordo, ele pode demonstrá-lo. Mas existe um apelo evidente a uma espécie de experiência vivida. Há um apelo evidente a uma maneira de perceber, e bem mais, a uma maneira de viver. É preciso ter desde já um tal ódio às paixões tristes, a lista das paixões tristes em Spinoza é infinita, ele chegará a dizer que toda idéia de recompensa envolve uma paixão triste, toda idéia de orgulho, a culpabilidade. É um dos momentos mais maravilhosos da Ética. É como se os afetos de alegria fossem um trampolim, eles fazem vocês passarem através de alguma coisa pela qual jamais poderiam passar se só existissem tristezas. Eles nos solicitam a formar a idéia do que é comum ao corpo que afeta e ao corpo que é afetado. Isso pode fracassar, mas pode ter sucesso e tornar-me inteligente. Alguém que se torna bom em latim quando se apaixona... já se viu isso nos seminários. A que isso está ligado? Como alguém faz progressos? Jamais fazemos progressos sobre uma linha homogênea, é um truque aqui que nos faz progredir lá, como se uma pequena alegria tivesse disparado um gatilho. Novamente a necessidade de um mapa: o que aconteceu lá para que algo se desbloqueie aqui? Uma pequena alegria nos precipita num mundo de idéias concretas que varreu os afetos tristes ou está prestes a combatê-los, tudo isso faz parte da variação contínua. Mas ao mesmo tempo essa alegria nos propulsiona de alguma forma para fora da variação contínua, ela nos faz adquirir ao menos a potencialidade de uma noção comum. É preciso conceber isso muito concretamente, são truques muito localizados. Se você chegar a formar uma noção comum sobre em que ponto sua relação compõe com tal pessoa ou tal animal, você diz: enfim eu compreendi alguma coisa, sou menos estúpido do que ontem. O "eu entendi" que se diz é, por vezes, o momento em que você formou uma noção comum. Você a formou muito localmente, isso não deu a você todas as noções comuns. Spinoza não pensa de modo algum como um racionalista; para os racionalistas, existe o mundo da razão e existem as idéias; se você tem uma, evidentemente você tem todas: você é racional. Spinoza pensa que ser racional, ou ser sábio, é uma questão de devir, o que muda singularmente o conteúdo do conceito de razão. É preciso saber fazer os encontros que convém a vocês. Ninguém jamais poderá dizer que é bom para si algo que ultrapassa seu poder de ser afetado. O mais belo é viver nas bordas, no limite do seu próprio poder de ser afetado, à condição de que seja o limite alegre, pois há o limite de alegria e o limite de tristeza; mas tudo o que excede o seu poder de ser afetado é feio. Relativamente feio: o que é bom para as moscas não é forçosamente bom para você... Não há mais noção abstrata, não há nenhuma fórmula que seja boa para o homem em geral. O que conta é qual é o seu próprio poder. Lawrence dizia (nos escritos póstumos) uma coisa diretamente spinozista: uma intensidade que ultrapassa o seu poder de ser afetado é má. É inevitável: ninguém me fará dizer que um azul intenso demais para os meus olhos é belo, talvez seja belo para outra pessoa. Mas existe o bom para todos, vocês me dirão... Sim, porque os poderes de ser afetado se compõe. Supondo-se que existisse um poder de ser afetado que definisse o poder de ser afetado do universo inteiro, é bem possível, já que todas as relações se compõe ao infinito: porém não em uma ordem qualquer. Minha relação não se compõe com a do arsênico, mas o que isso pode fazer? Para mim, evidentemente, faz muito, só que nesse momento as partes do meu corpo entram sob uma nova relação que se compõe com a do arsênico. É preciso saber em que ordem as relações se compõe. Ora, se soubéssemos em que ordem as relações de todo o universo se compõe, poderíamos definir um poder de ser afetado do universo inteiro, seria o cosmos, o mundo como corpo ou como alma. Nesse momento, você conheceria propriamente falando um poder de ser afetado universal: Deus, que é o universo inteiro enquanto causa, possui por natureza um poder de ser afetado universal. Inútil dizer que estamos prestes a fazer um uso original da idéia de Deus. Você experimenta uma alegria, você sente que essa alegria concerne a você, que ela concerne a algo de importante quanto às suas relações principais, suas relações características. Então é preciso que você se sirva dela como um trampolim, que você forme a idéia-noção: em que o corpo que me afeta e o meu convém entre si? Em que a alma que me afeta e a minha convém entre si, do ponto de vista da composição de suas relações, e não mais do ponto de vista do acaso de seus encontros? Vocês fazem a operação inversa daquela que geralmente se faz. Geralmente as pessoas fazem o somatório de suas infelicidades, é de fato aí que a neurose começa, ou a depressão, quando alguém se mete a contabilizar: "Ah, merda, há isso, e aquilo..." Spinoza propõe o inverso: ao invés de fazer o somatório de nossas tristezas, tomar uma alegria como um ponto de partida local, à condição que sintamos que ela nos concerne verdadeiramente. Em cima disso forma-se a noção comum, em cima disso tenta-se ganhar localmente, estender essa alegria. É um trabalho para toda a vida. Tenta-se diminuir a porção respectiva de tristezas face à porção respectiva de uma alegria, e tenta-se o seguinte golpe formidável: estamos suficientemente assegurados quanto às noções comuns que remetem a relações de conveniência entre determinado corpo e o meu, e tentaremos então aplicar o mesmo método à tristeza, porém não se poderia fazêlo a partir da tristeza, ou seja, tentaremos formar noções comuns pelas quais chegaremos a compreender de maneira vital em que determinado corpo e outro não convém entre si ao invés de convirem. Isso se torna não mais uma variação contínua, mas uma curva ascendente [courbe en cloche]. Vocês partem de paixões alegres, aumento da potência de agir, vocês se servem delas para formar noções comuns viventes, e vocês voltam a descer em direção à tristeza, desta vez com noções comuns que vocês formam para compreender em que determinado corpo não convém com o seu, em que determinada alma não convém com a sua. Nesse momento, vocês já podem dizer que estão na idéia adequada porque, com efeito, vocês entraram no conhecimento das causas. Vocês já podem dizer que estão na filosofia. A única coisa que conta são as maneiras de viver. A única coisa que conta é a meditação da vida, e a filosofia só pode ser uma meditação da vida; longe de ser uma meditação da morte, é a operação que consiste em fazer com que a morte só afete enfim a proporção relativamente menor de mim, a saber: vivê-la como um mau encontro. Simplesmente sabe-se muito bem que, à medida que um corpo se fatiga, as probabilidades de maus encontros aumentam. É uma noção comum, uma noção comum de inconveniência. Enquanto eu sou jovem, a morte é verdadeiramente alguma coisa que vem de fora, é verdadeiramente um acidente extrínseco, salvo em caso de doença interna. Não há noção comum, mas em troca é verdade que quando um corpo envelhece, sua potência de agir diminui: eu não posso mais fazer o que ontem eu ainda podia fazer; isso me fascina no envelhecimento, essa espécie de diminuição da potência de agir. O que é, vitalmente, um palhaço? É o tipo que, precisamente, não aceita o envelhecimento, não sabe envelhecer suficientemente rápido. Não que seja preciso envelhecer demasiadamente rápido, porque essa é também uma outra maneira de ser palhaço: fazer-se de velho. Quanto mais envelhecemos, menos temos vontade de fazer maus encontros, mas quando somos jovens lançamo-nos no risco do mau encontro. É fascinante o tipo que, à medida que sua potência de agir diminui em função do envelhecimento, seu poder de ser afetado se modifica, mas não ele, que continua querendo fazer-se de jovem. É muito triste. Há uma passagem fascinante num romance de Fitzgerald (o número do esqui aquático), dez páginas de imensa beleza sobre não saber envelhecer... Vocês sabem, os espetáculos que são constrangedores para os próprios espectadores. Saber envelhecer é chegar ao momento em que as noções comuns devem fazê-los compreender em que as coisas e os outros corpos não convém com o seu. Então, inevitavelmente, será preciso encontrar uma nova graça que será a de sua idade, e sobretudo não apegar-se. É uma sabedoria. Não é a boa saúde que faz dizer “viva a vida!”, não é tampouco a vontade de apegar-se à vida. Spinoza soube morrer admiravelmente, mas ele sabia muito bem do que era capaz, ele sabia mandar à merda os outros filósofos. Leibniz pegava pedaços de seus manuscritos para depois dizer que eram dele. Existem histórias muito curiosas - Leibniz era um homem perigoso. Eu vou terminar dizendo que nesse segundo nível se atinge a idéia-noção onde as relações se compõe, e mais uma vez, isso não é abstrato, pois eu tentei mostrar que era uma empresa extraordinariamente viva. Saímos das paixões. Conquistamos a posse formal da potência de agir. A formação das noções, que não são idéias abstratas, que são literalmente regras de vida, me dá a posse da potência de agir. As noções comuns são o segundo gênero de conhecimento. Para compreender o terceiro, é preciso já estar no segundo. No terceiro gênero, apenas Spinoza entrou. Acima das noções comuns... vocês notaram que se as noções comuns não são abstratas, elas são coletivas, elas remetem sempre a uma multiplicidade, mas elas não são menos individuais. Trata-se daquilo em que este e aquele corpo convém, no limite aquilo em que todos os corpos convém, porém nesse momento é o mundo inteiro que é uma individualidade. Portanto as noções comuns são sempre individuais. Para além das composições de relações, das conveniências interiores que definem as noções comuns, existem as essências singulares. Quais são as diferenças? Seria preciso dizer, no limite, que a relação e as relações que me caracterizam exprimem minha essência singular, mas no entanto não se trata da mesma coisa. Por quê? Porque a relação que me caracteriza - o que eu digo aqui não está em absoluto no texto, mas pode-se dizer que está porque as noções comuns ou a relação que me caracteriza concerne ainda as partes extensivas do meu corpo. Meu corpo é composto, ao infinito, de uma infinidade de partes extensas, e essas partes entram sob determinadas relações que correspondem à minha essência. As relações que me caracterizam correspondem à minha essência mas não se confundem com minha essência, pois as relações que me caracterizam são ainda regras sob as quais se associam, em movimento e em repouso, as partes extensas de meu corpo; ao passo que a essência singular é um grau de potência, ou seja, são meus limiares de intensidade. Entre o mais baixo e o mais alto, entre meu nascimento e minha morte, são meus limiares intensivos. O que Spinoza chama de essência singular, parece-me que é uma quantidade intensiva, como se cada um de nós fosse definido por uma espécie de complexo de intensidades que remetem à essência, e também por relações que regram as partes extensas, as partes extensivas. Desse modo, quando tenho o conhecimento das noções, ou seja, o conhecimento das relações de movimento e de repouso que regram a conveniência ou a inconveniência dos corpos do ponto de vista de suas partes extensas, do ponto de vista de sua extensão, eu ainda não estou plenamente de posse de minha essência enquanto intensidade. E Deus, o que é? Quando Spinoza define Deus pela potência absolutamente infinita, ele se exprime bem. Todos os termos que ele emprega explicitamente: grau, grau em latim é “gradus”, e gradus remete a uma longa tradição na filosofia medieval. O gradus é a quantidade intensiva, em oposição ou à diferença das partes extensivas. Portanto seria preciso conceber que a essência singular de cada um seja essa espécie de intensidade, ou de limite de intensidade. Ela é singular porque, qualquer que seja nossa comunidade de gênero ou de espécie - por exemplo, todos nós somos homens - nenhum de nós tem limiares de intensidade iguais aos de outro. O terceiro gênero de conhecimento, ou a descoberta da idéia de essência, se dá quando, a partir de noções comuns, por meio de um novo giro dramático [coup de théâtre], chega-se a entrar nessa terceira esfera do mundo: o mundo das essências. Aqui se conhece em sua correlação - de todo modo não se pode conhecer um sem o outro - o que Spinoza denomina como a essência singular que é a minha, a essência singular que é a de Deus e a essência singular das coisas exteriores. Que esse terceiro gênero de conhecimento recorra, por um lado, a toda uma tradição da mística judaica, e por outro, implique uma espécie de experiência mística atéia, própria a Spinoza, creio que a única maneira de compreender esse terceiro gênero é compreender que, para além da ordem dos encontros e das misturas, existe esse outro estágio das noções que remete às relações características. Mas para além das relações características existe ainda o mundo das essências singulares. Então, quando formamos aqui idéias que são como puras intensidades, onde minha própria intensidade irá convir com a intensidade das coisas exteriores, nesse momento se dá o terceiro gênero porque, se é verdade que nem todos os corpos convém uns aos outros, se é verdade que, do ponto de vista das relações que regem as partes extensas de um corpo ou de uma alma, as partes extensivas, nem todos os corpos convém uns aos outros, todos eles serão concebidos como convenientes uns aos outros se vocês chegarem a um mundo de puras intensidades. Nesse momento, o amor que vocês têm por si mesmos é ao mesmo tempo, como diz Spinoza, o amor às outras coisas, é ao mesmo tempo o amor de Deus, é o amor que Deus tem por si mesmo, etc. O que me interessa nesse limiar místico é esse mundo das intensidades. Aqui, vocês estão de posse dele, não somente formal, mas consumada. Já não é nem mesmo a alegria. Spinoza descobre a palavra mística "beatitude", ou afeto ativo, isto é, o auto-afeto. Mas isso continua sendo algo muito concreto. O terceiro gênero é um mundo de intensidades puras. TRANSCRIÇÕES DOS SEMINÁRIOS SOBRE O ANTI-ÉDIPO : VINCENNES, 16 DE NOVEMBRO DE 1971 Tradução do excerto por Mauricio Rocha [...] O que se passa sobre o corpo de uma sociedade? São sempre fluxos, e uma pessoa é sempre um corte do fluxo. Uma pessoa é um ponto de partida para uma produção de fluxos, um ponto de chegada para uma recepção, de não importa qual tipo, ou uma interseção de vários fluxos. Os cabelos de alguém podem atravessar várias etapas: o penteado da garota não é o mesmo da mulher casada, ou da viúva: há todo um código do penteado. A pessoa, enquanto tem cabelo, se apresenta tipicamente como intercessora em relação aos fluxos de cabelos que a ultrapassam e esses fluxos de cabelos são eles próprios codificados segundo códigos muito diferentes: código da viúva, da garota, da mulher casada etc. É esse o problema essencial da codificação e da territorialização: sempre codificar os fluxos, com um meio fundamental que é marcar as pessoas (por que as pessoas estão na interseção e no corte dos fluxos, elas existem nos pontos de corte dos fluxos). Mas, mais que marcar as pessoas (pois esse é o meio aparente), para a função mais profunda, que é: uma sociedade só teme uma coisa, o dilúvio. Ela não teme o vazio, nem a penúria, nem a escassez. Sobre ela, sobre seu corpo social, alguma coisa flui e não se sabe o que é, alguma coisa que não é codificada, e que, em relação à sociedade, aparece como não codificável. Alguma coisa que fluiria e que arrastaria esta sociedade a uma espécie de desterritorializacão, que faria fundir a terra sobre a qual ela se instala: então é um drama... Encontra-se qualquer coisa que não se sabe o que é, que não responde a nenhum código, e isso é verdadeiro para o capitalismo que desde muito tempo acredita ter sempre assegurado os simili-códigos. É a famosa potência de recuperação no capitalismo: cada vez que alguma coisa parece lhe escapar, parece passar sobre esses similicódigos, ele preenche novamente tudo isso, ele acrescenta um axioma a mais e a máquina recomeça. No séc. XIX, o capitalismo vê fluir um pólo do fluxo que é o dos trabalhadores, o fluxo proletariado, então os pensadores da época reagem bizarramente, como a escola francesa de história, que pensa em termo de classes, inventam a noção teórica de classes como peça essencial do código capitalista. A legitimidade do capitalismo viria daí, da vitória da burguesia como classe contra a aristocracia. O sistema que aparece com S. Simon, Thierry, Quinet etc. é a tomada de consciência radical da burguesia como classe e toda história será interpretada como luta de classes. Não é Marx que inventa a compreensão da história como luta de classes, mas a escola histórica burguesa do séc. XIX: 1789 é a luta de classes, eles se encontram afetados de cegueira quando eles vêem fluir na superfície atual do corpo social esse fluxo estranho que eles não conhecem, o fluxo proletariado. A idéia de que isso seja uma classe não é possível: o dia em que o capitalismo não puder mais negar que o proletariado seja uma classe coincide com o momento em que ele recodifica tudo isso. Mas o que é essa potência de recuperação do capitalismo? É que ele dispõe de uma espécie de axiomática, e quando ele dispõe de alguma coisa de novo, que ele não conhece, é como para toda axiomática, no limite não saturável: ele está sempre pronto a acrescentar um axioma a mais para fazer com que as coisas funcionem. Quando o capitalismo não puder mais negar que o proletariado seja uma classe, reconhecendo uma espécie de bipolaridade de classe sob a influência das lutas operárias do séc. XIX, sob a influência da revolução, esse momento é extraordinariamente ambíguo, é um momento importante na luta revolucionária, mas é também um momento essencial na recuperação capitalista: axiomas para a classe operária e para a potência sindical que a representa e a máquina capitalista recomeça rangendo, pois ela preencheu a brecha.[...] A falta, a penúria, a fome, uma sociedade pode codificar. O que ela não pode codificar é quando essa coisa estranha aparece. Então, num primeiro tempo, o aparelho repressivo se abala, depois, experimenta encontrar novos axiomas que permitiriam recodificar. Um corpo social se define perpetuamente pelos fluxos que correm sobre ele, de um pólo a outro, e é perpetuamente codificado, e há fluxos que escapam aos códigos, e depois há o esforço social para recuperar tudo isso, para axiomatizar tudo, para remanejar um pouco o código, para dar lugar aos fluxos perigosos: pois há jovens que não respondem ao código, usam um corte de cabelo imprevisto, o que se vai fazer? [...] É o ato fundamental da sociedade: codificar os fluxos e tratar como inimigo o que, em relação a ela, se apresenta como um fluxo não codificável, por que, ainda uma vez, isso põe em questão toda a terra, todo o corpo da sociedade. Diríamos isso de toda sociedade, salvo da nossa, a capitalista, ainda que se tenha falado do capitalismo como se, ao modo das outras sociedades, ele codificasse os fluxos e não tivesse outros problemas, mas talvez tenhamos ido muito rápido. Há um paradoxo fundamental do capitalismo como formação social, pois se é verdadeiro que o terror de todas as outras formações sociais foram os fluxos decodificados, o capitalismo, por sua vez, se constituiu historicamente sobre uma coisa inacreditável, sobre o que fazia todo o terror das outras sociedades: a existência e a realidade de fluxos decodificados dos quais ele fez seu negócio. Se for verdadeiro, isso explicaria como o capitalismo é o universal de toda a sociedade em um sentido muito preciso: em um sentido negativo, ele seria o que todas as sociedades temeram acima de tudo, e temos a impressão que, historicamente, o capitalismo, de um certo modo é o que toda formação social não cessou de tentar conjurar, de tentar evitar, por que? Porque era a ruína de todas as outras formações sociais. E o paradoxo do capitalismo é que uma formação social se constituiu sobre a base do que era o negativo de todas as outras. Isso quer dizer que o capitalismo só pode se constituir por uma conjunção, um encontro entre fluxos decodificados de todas as naturezas. O que era a coisa mais temida de todas as formações sociais, era a base de uma formação social que devia submergir todas as outras: o que era o negativo de todas as formações ter se tornado a própria positividade da nossa formação... Em qual sentido o capitalismo se constituiu sobre a conjunção dos fluxos decodificados: foram necessários extraordinários encontros na saída de processos de decodificação de todo tipo, que se formaram no declínio do feudalismo. Decodificação de fluxos financeiros, sob a forma da constituição de grandes propriedades privadas; de fluxos monetários, sob a forma do desenvolvimento da fortuna mercantil; de fluxos de trabalhadores sob a forma de expropriação, da desterritorialização dos servos e pequenos camponeses. E isso não basta, pois se tomamos o exemplo da decodificação na Roma decadente, aparece a decodificação dos fluxos de propriedades sob a forma de grandes propriedades privadas; decodificação dos fluxos monetários sob a forma de grande fortunas privadas; decodificação dos trabalhadores com a formação de um sub-proletariado urbano: tudo aí se encontra, quase tudo. Os elementos do capitalismo aí se encontram reunidos, somente não há o encontro deles. O que foi necessário para esse encontro entre os fluxos descodificados do capital ou do dinheiro e os fluxos decodificados dos trabalhadores, para que se faça o encontro entre o fluxo de capital nascente e o fluxo de mão-de-obra desterritorializada, o fluxo de dinheiro descodificado e dos trabalhadores etc. Com efeito, o modo como o dinheiro se descodifica para se tornar capital dinheiro e o modo como o trabalhador é arrancado da terra para tornar-se proprietário apenas de sua força de trabalho, são dois processos totalmente independentes um do outro, e é preciso que haja um encontro entre os dois. [...] Uma conjunção de fluxos descodificados e desterritorializados, é isso que está na base do capitalismo. O capitalismo se constitui sobre a falência de todos os códigos e territorialidades sociais preexistentes. Se admitimos isso, o que isso representa: a máquina capitalista é propriamente demente. Uma máquina social que funciona com fluxos descodificados, desterritorializados, não é que as sociedades não tenham tido a idéia disso; elas a tiveram sob a forma do pânico, tratava-se de impedir isso, pois era a reversão de todos os códigos sociais conhecidos até então. Então uma sociedade que se constitui sobre o negativo de todas as sociedades preexistentes, como é que isso pode funcionar? Uma sociedade cuja propriedade é decodificar e desterritorializar todos fluxos: fluxos de produção, de consumo, como isso pode funcionar, sob qual forma: talvez o capitalismo tenha outros procedimentos além da codificação... talvez seja completamente diferente. O que procuro até agora é refundar, num certo nível, o problema da relação entre Capitalismo-Esquizofrenia, e o fundamento de uma relação se encontra em alguma coisa em comum entre o capitalismo e a esquizofrenia: o que eles têm completamente em comum, e é talvez uma comunidade que nunca se realiza, que não toma uma figura concreta, é a comunidade de um princípio ainda abstrato, a saber: um como o outro não cessam de fazer passar, de emitir, de interceptar, de concentrar fluxos descodificados e desterritorializados. É essa sua identidade profunda e não é no nível do modo de vida que o capitalismo nos torna esquizo, mas no nível do processo econômico: tudo funciona por um sistema de conjunção, com a condição de aceitar que essa palavra implique uma verdadeira diferença de natureza com os códigos. É o capitalismo que funciona como uma axiomática, uma axiomática de fluxos descodificados. Todas as outras formações sociais funcionaram sobre a base de uma codificação e de uma territorialização dos fluxos. E entre a máquina capitalista que faz uma axiomática de fluxos decodificados, enquanto tais ou desterritorializados, enquanto tais, e as outras formações sociais, há verdadeiramente uma diferença de natureza que faz com que o capitalismo seja o negativo das outras sociedades. O esquizo, em certo sentido, decodifica, desterritorializa os fluxos, atando uma espécie de identidade de natureza entre capitalismo e esquizofrenia.[...] Qual a relação entre eles? Podemos definir o capitalismo como uma máquina que funciona a partir de fluxos descodificados, à base de fluxos desterritorializados? Em qual sentido ele é o negativo de todas as formações sociais? E em qual sentido a esquizofrenia é o negativo do capitalismo, indo ainda mais longe na descodificação e desterritorialização, e até onde vai tudo isso? Para uma nova terra, para o fim dela, para o dilúvio? [...] suponho que há alguma coisa em comum entre o capitalismo, como estrutura social, e a esquizofrenia como processo. [...] é preciso ler três textos de Marx: a produção da mais-valia (Capital, I); o capítulo sobre a baixa tendencial (Capital, III); o capítulo sobre a automação (dos Gründrisse). [...] quero dizer que existe uma ameaça interna em toda sociedade, esta ameaça sendo representada pelo perigo dos fluxos que se descodificam [...] Nunca há um fluxo de início e depois um código que se agrega a ele. Os dois são coexistentes. [...] A originalidade do capitalismo é que ele não conta com mais nenhum código, há os resíduos de código, mas ninguém crê neles: nós não acreditamos em mais nada e o último código que o capitalismo soube produzir foi o fascismo, como esforço para recodificar e reterritorializar, mesmo no nível econômico, no nível do funcionamento do mercado na economia fascista, vemos um esforço extremo para ressuscitar uma espécie de código que teria funcionado como código do capitalismo, ao pé da letra... quanto ao capitalismo, ele é incapaz de fornecer um código que quadrilhe o conjunto do campo social, por que seus problemas não se colocam mais em termos de código, mas em fazer uma mecânica de fluxos descodificados como tais, então é unicamente nesse sentido que opomos o capitalismo como formação social a todas as outras formações sociais conhecidas. Podemos dizer que entre uma codificação dos fluxos correspondente às formações pré-capitalistas e uma axiomática descodificada, há uma diferença de natureza radical, pois o capitalismo não pode fornecer nenhum código. [...]