Capítulo II PREEMINÊNCIA DA MORAL SOBRE O DIREITO A preeminência da ordem normativa da moral sobre a ordem normativa do Direito resulta da circunstância de que a moral reside no interior do homem e é ali, no santuário da sua consciência, onde se decide o destino da norma jurídica. A toda evidência, somente quando o destinatário da norma jurídica tem a virtude moral da justiça, somente quando alguém assimilou o hábito da obediência à lei e cultiva o respeito pela própria profissão, somente quando, levado por essas disposições morais, se decide a pôr em prática a norma jurídica, é somente então que o Direito funciona. A angústia mais torturante da sociedade contemporânea, em nosso país, motivada pela permanente ameaça da paz, assumindo já a intensidade de um clamor geral, origina-se de se ver que muitas normas jurídicas deixam de ser cumpridas. O espetáculo da impunidade que permite andem soltos, passeando tranqüilamente pelas ruas, conhecidos delinqüentes, homicidas e assaltantes cruéis, reincidentes sonegadores de impostos, zombando dos que se sacrificam para cumprir as leis, esse espetáculo tem como causa precípua o haverem faltado virtudes morais naqueles que têm o dever jurídico de punir os delinqüentes, de promover a repressão aos ilícitos e que, não obstante, fogem a esse dever jurídico-profissional. A norma jurídica existe e está vigente aí; todavia, com uma freqüência escandalosa, deixa de produzir os efeitos a que se destina. A razão dessa ineficácia reside unicamente em que aos destinatários da norma, que são responsáveis pela repressão e pela punição dos ilícitos, faltou o principal: não o conhecimento ou o domínio da lei, não as competências, não os instrumentos administrativos ou processuais. O que tem faltado, não raro, aos responsáveis pela aplicação das normas jurídicas é, nada mais, nada menos do que a virtude moral para dar cumprimento ao preceito jurídico. Isso deixa patente que a norma jurídica não anda; que as mais belas, as mais perfeitamente elaboradas leis não possuem pernas para andar; e que, quando acontece de alguma norma produzir efeito, é exatamente porque a conduta moral do destinatário deu à norma com o que andar, com o que sair do dever-sercumprida para o ser-efetivamente-cumprida. O advogado que se mancomuna com a parte adversa, traindo a confiança do cliente; o juiz que prevarica, prol atando sentença injusta e, às vezes, vendendo sentenças depois de ter vendido e revendido a consciência; o promotor ou o procurador que, em troca de propina, deixa correr, à revelia, as ações pecuniárias movidas contra o Estado ou contra o interesse público, ou que se omite a promover as ações públicas; os delegados que, a troco de suborno de natureza econômica ou mesmo político-administrativa, propositadamente, viciam peças de inquéritos ou se omitem em remetê-las ao Ministério Público; os serventuários que, conscientemente, viciam os atos judiciais em troca de favores das partes - todos esses protagonistas, bem-sucedidos economicamente, conhecem suficientemente a norma jurídica que lhes preceitua conduta diversa; todavia, porque lhes falta virtude moral, tudo se passa como se o Direito não existisse. É possível que aos olhos da sociedade posem como cidadãos probos e honestos, porque ardilosamente, inteligentemente, sagazmente sabem como praticar tais injuridicidades sem deixar vestígios. Por outro lado, não se pode esquecer - como já advertira L. Cabral de Moncada que é antes de tudo a Moral que nos diz que devemos acatar o Direito, por ser ele o Direito, independentemente do quanto de verdade se possa conter na moeda de ouro ou de prata dos seus valores. 1 Conseqüentemente, o Direito tem como pressuposto e condicionante de sua eficácia simplesmente a consciência moral. Radbruch frisou muito bem que, dos preceitos jurídicos, pode talvez fazer-se derivar, quando muito um ter-de-ser, isto é, um müssen; nunca, porém, um sollen. Só pode rigorosamente falar-se dum dever-ser jurídico, duma validade jurídica, - dizia ele - quando o imperativo jurídico for dotado pela própria consciência dos indivíduos com a força obrigatória ou vinculante do dever moral. 2 Não basta, pois, que se estimule o estudante universitário - candidato a profissões jurídicas ou a cargos políticos - para ser um astuto e ladino técnico da prática forense ou, mesmo, para que domine o universo do conhecimento jurídico. Quando a um profissional lhe falta a crença nos valores morais, quanto mais conhecedor das leis e perito na arte forense, tanto mais perigoso e pernicioso para a sociedade, na medida em que domina todos os mecanismos procedimentais apropriados para frustrar a aplicação da lei, para impedir a defesa da ordem social, para descurar a repressão ao crime e para assegurar a impunibilidade dos comprovadamente delinqüentes. O chamado "império da lei" jamais passou de uma ilusória superstição positivista. Texto extraído de: COSTA, Elcias Ferreira da. Deontologia Jurídica – ética das profissões jurídicas. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p.7-9. 1 Luis Cabra1 de Moncada, Filosofia do Direito e do Estado, voI. 2, Doutrina e Crítica, Coimbra Ed., p. 163 Gustav Radbruch, Filosofia do Direito, trad. do Prof. L. Cabra1 de Moncada, Coimbra, Armênio Amado Editor, Sucessor, 1961, voI. I, p. 128. 2