O ENSINO CRÍTICO DA FILOSOFIA Anderson de Araújo1 Noeli Dutra Rossatto2 Este trabalho tem como objetivo apresentar elementos teóricos para desenvolver a criticidade nas aulas de filosofia, a partir de uma perspectiva sartriana. Em especial, objetiva demonstrar a relevância da superação do solipsismo, tentativa que Sartre inicia em A Transcendência do Ego e conclui em O Ser e o Nada, para o incentivo ao engajamento social. O estudo baseou-se, metodologicamente, na análise crítica das principais obras da primeira fase do pensamento de Sartre, em que se encontram fortes referências ao problema em questão. Conquanto Sartre não tenha dedicado sua atenção para a Educação, observa-se que a superação do solipsismo é central para a fundamentação da crítica social, e que a proposta sartriana de transladar o Ego para a ação, se analisada de forma acurada, pode contribuir para o florescimento de novas estratégias pedagógicas para o ensino crítico da filosofia. Palavras-chave: ensino de filosofia, solipsismo, Sartre. Introdução Atualmente, é comum enfatizar que o ensino de filosofia, sobretudo nas escolas, deve desenvolver a criticidade dos educandos. Mais do que isso, que a aula de filosofia deve instigar, e mesmo habilitar o educando a ser “crítico das ideologias”. O educando, com o estudo da filosofia, deveria ser capaz de verificar quais são os elementos ideológicos que estão presentes em seu meio social, a fim de bani-los em prol de uma sociedade mais equânime. Sabe-se que as bases desse tipo de pensamento encontram-se no materialismo histórico de Marx. Sartre é reconhecido por ter desenvolvido teorias que frisam a liberdade e a responsabilidade inerente à condição humana, e pelo conseqüente incentivo ao engajamento social. Embora ele não tenha dedicado sua atenção para a Educação, acreditamos que, assim como o materialismo histórico contribuiu para o surgimento de vários debates pedagógicos, alguns aspectos do pensamento sartriano também podem contribuir para o problema da criticidade nas aulas de filosofia. 1 2 Graduando do curso de Filosofia da UFSM, fonte mantenedora CNPq, e-mail: [email protected] Orientador: Prof° Dr° do Depto e Mestrado em Filosofia da UFSM, e-mail: [email protected] 1 Formula-se, então, uma primeira questão: que princípios filosóficos devem nortear a ação pedagógica do ensino de filosofia para que ele consiga desenvolver a criticidade social dos educandos? Ninguém discordará que para uma pessoa efetuar uma ação de ordem social - a crítica certamente envolve uma sociabilidade -, ela tem que de alguma forma sentir-se em condições de relacionar-se com as outras pessoas. A relação entre o Eu e o Outro deve ser possível. Mas este é justamente o problema do solipsismo! Não o solipsismo exagerado, aquele da “solidão ontológica” (Sartre, 1943, p. 298), que consiste em pensar que só existe o sujeito pensante; mas um solipsismo, mais ou menos no sentido em que Sartre formulou em O Ser e o Nada, no qual tudo se reduz ao conjunto de minhas vivências, e no máximo o Eu pode constituir o Outro, mas nunca encontra-lo. Ora, o solipsismo, nesse último sentido, é um obstáculo ao engajamento social, pois se o sujeito não consegue entrar em “comunhão” com o Outro, a crítica social é vã. Deste modo, podemos dizer que, por princípio, o educando, para chegar a desenvolver uma atitude crítica perante a sociedade, deve ser capaz de relacionar-se com os outros que compõem a coletividade. Portanto é necessário, ainda que não seja suficiente, que o solipsismo seja superado. Os estudos da primeira fase de Sartre dão uma boa base para isso, principalmente A Transcendência do Ego, A Náusea, O Ser e o Nada e a conferência Consciência de si e Conhecimento de si. O Eu transladado para a ação O problema do solipsismo em Sartre remonta a sua obra publicada em 1937: A Transcendência do Ego. Nela Sartre aborda o problema da relação do Ego e da Consciência; temática muito discutida pelos seus predecessores teóricos, principalmente por Descartes, Kant e Husserl. Segundo Sartre, em relação ao problema da transcendência do Ego, a tese predominante é a de que o Eu (Ego) “habita” a consciência. Para uns, o Ego têm uma presença formal na consciência, tal como “um princípio de unificação”; para outros, sua presença é material, constitui os momentos da vida psíquica. Sartre, por sua vez, defende a tese de que o Ego, seja ele entendido formal ou materialmente, não está na consciência, mas fora dela. Está no mundo. Habita o mundo como o Ego de uma outra pessoa qualquer. Por isso, primeiramente, Sartre examina a teoria da presença formal do Eu. Aqui entra em pauta a tese de Kant, de que por uma questão de direito, isto é, para que a experiência fosse possível, deveria haver um Eu transcendental que conferisse unidade às diversas consciências 2 empíricas; neste tópico também é avaliada a tese de Husserl, de que haveria um Eu transcendental de fato junto à consciência, acessível por meio da intuição. Sartre confere plausibilidade à tese de Kant, visto que o Eu transcendental kantiano é, na verdade, um conjunto de regras que dá unidade à experiência; trata-se, conclui Sartre, de uma consciência transcendental. Contudo, no que respeita a questão de fato nada fica decidido. Sartre argumenta que a existência de um Eu por trás da consciência, como pensava Husserl, anularia o próprio projeto husserliano, por que se houvesse um Eu regulando a consciência, ela já não seria completamente intencional, pura, transparente, e assim não poderia haver uma fenomenologia da consciência. Na realidade, a unidade das consciências refletidas deve-se ao próprio fluxo da consciência, não sendo necessário um pólo para unifica-las. Num segundo momento, é avaliada a tese da presença material do Eu na consciência; tese muito comum entre os psicólogos, mas fruto de um erro, diz Sartre. O erro deve-se à confusão entre os atos reflexivos e irreflexivos. Segundo Sartre, existem duas formas possíveis de existência da consciência: irrefletida e reflexiva. A consciência irrefletida é a consciência do objeto, que por natureza lhe é transcendente, sem a presença de um Eu; a consciência refletida é a consciência de si mesma, que põe o Eu como objeto intencionado. O erro das teorias da presença material do Eu é colocar uma estrutura reflexiva (o Eu) por detrás das consciências irrefletidas dos objetos. A proposta que Sartre apresenta é a de que o Eu somente aparece com o ato reflexivo: a consciência irreflexiva intenciona a consciência refletida, que por sua vez torna-se objeto da consciência refletinte e, assim, ao mesmo tempo, surge um objeto novo que não está ao nível da consciência irrefletida e nem no plano do objeto da consciência irreflexiva. O Eu seria então este objeto transcendente ao ato reflexivo, pólo unificador dos estados e das ações psíquicas. Desta forma, Sartre acredita que não é necessário recorrer ao materialismo histórico para superar o solipsismo, “basta que o Eu (Moi) seja contemporâneo do mundo” (Sartre, 1937, p. 83). Com isto, pretende demonstrar que a superação do solipsismo não se dá ao nível do conhecimento, mas sim, em um nível pré-reflexivo, ou seja, em um nível ontológico. E mais: que não pode haver um “Eu transcendental” que fique atrás da consciência, porque isso corromperia a intencionalidade da consciência e faria com que o “Eu” do sujeito fosse algo totalmente inacessível. Com o Eu fora da consciência, transladado para a ação mundana, surge a possibilidade de uma interação social, uma vez que o meu Eu e o Eu do outro coabitam, igualmente, o mundo. 3 A descrição das estruturas do outro Assim como na vida, em filosofia, a mudança é muito comum. E quanto a isso, Sartre não é exceção. Em O Ser e o Nada ele aprofunda a problemática do Ego, e muda de posicionamento com respeito a sua obra anterior, À transcendência do Ego. Nesse sentido, ela afirma: Anteriormente, supus poder escapar ao solipsismo recusando o conceito de Husserl sobre a existência de um ‘Ego transcendental’. Parecia-me, então, que nada mais restava na minha consciência que fosse privilegiado com relação ao outro, já que a tinha esvaziado de seu sujeito. Mas, na verdade, embora continue convicto de que a hipótese de um sujeito transcendental é inútil e prejudicial, o fato de abandonarmos tal hipótese não faz avançar um só passo à questão da existência do outro” (Sartre, 1943, p. 305). Não obstante a observação de Sartre, parece que ele diz isso para reiterar que a superação do solipsismo não se dá pela via do conhecimento. Destarte, Sartre propõe um diálogo com Hegel, por acreditar que, embora este seja cronologicamente anterior a Husserl, ele já teria tratado de forma mais acurada o problema do outro. Hegel consegue a superação do distanciamento entre o Eu e o Outro, afirmando que o Eu deve “passar” pelo Outro para poder constituir-se enquanto ser, ou melhor, o Eu depende do Outro em seu ser. Contudo, segundo Sartre, Hegel ao unificar Ser e Conhecer, não conseguiu dar uma resposta para além dos ditames epistemológicos. Hegel voou muito alto! Deu uma resposta que prescinde a singularidade do homem e falou segundo uma visão da totalidade. Mas, para Sartre, o problema do Outro deve ser posto a partir do próprio sujeito (Sartre, 1943, p. 316). Neste momento, Sartre começa a expor a posição de Heidegger sobre o assunto. Ele teria, segundo Sartre, tocado o problema da forma adequada, uma vez que situa a solução do solipsismo no nível ontológico, ou seja, em um plano anterior ao conhecimento. Isso significa dizer que, antes mesmo de nós conhecermos o Outro, já estamos em comunhão com ele: estamos aí, jogados no mundo. Habitamos o mundo e temos relações de solidariedade uns para com os outros, tendo em vista a realização de nossos fins. Mesmo a resposta de Heidegger, segundo Sartre, não esgota o problema, pois ainda é uma resposta abstrata. O Eu estaria a priori em relação com o Outro, o ser-com-o-outro (ser do sujeito) quando em contato com o Outro o constitui, não o encontra. Sartre diz que Heidegger, neste ponto, não supera o idealismo (Sartre, 1943, p. 317-323). Não nos deteremos nos detalhes da exposição sartriana. O importante para o presente trabalho é perceber que, embora Sartre tenha direcionado a sua atenção para o problema do 4 Outro, e que isto tenha trazido novas formulações a respeito da estrutura do Eu, o que fora dito sobre o Ego em A Transcendência do Ego persiste. Isto por que, Sartre não abre mão da transparência da consciência e, além disso, requer que não haja um Eu por detrás dela. E é por isso que ele afirma: não é necessário dar uma prova para a existência do outro, posto que nós afirmamos a existência do Outro. O que se deve fazer é explicitar a estrutura do cogito que afirma o Outro enquanto aquele que não é o Eu. Conclusão Mas, afinal, após este exame da teoria sartriana, que podemos dizer sobre o ensino de filosofia? Tentou-se demonstrar que para o desenvolvimento da criticidade dos educandos, deve-se ter em vista que o solipsismo é um problema fundamental nas reflexões sociais, e não se deve prescindir a sua abordagem. Antes disso, deve-se enfatizar que a sua superação é pressuposta em qualquer pensamento critico sobre a sociedade. Deu-se maior atenção a tese de Sartre para superar o solipsismo, por que é ela que lhe permite enfatizar que o seu humano é livre e responsável por suas ações, algo que é totalmente condizente com as atuais perspectivas do ensino de filosofia. E isso é tudo? Espera-se que não. Espera-se maiormente que o interlocutor chegue às mesmas conclusões que o atormentado personagem do romance A Náusea, Antoine Roquentin, sem precisar passar pelas experiências traumáticas que ele passou. Roquentin sofre de fortes vertigens até perceber que não existe um Eu na consciência, que o sentido de sua vida é ele mesmo quem dá, que a náusea é ele mesmo, que o absoluto é ele próprio: sem sentido, sem fundamento, totalmente livre e, portanto, responsável por suas ações. Diz Roquentin: E, de repente o Eu esmaece, esmaece e, pronto, se apaga.” (...) “Lúcida, imóvel, deserta, a consciência se encontra às paredes; perpetua-se. Já ninguém a habita.” (...) “O Eu brota na consciência, sou Eu, Antoine Roquentin, que parto para Paris (Sartre, 1938, p. 247 249). Espera-se enfim, que o educador, assim como Roquentin, decida-se por agir, pois, afinal, estamos todos aí, e é preciso gerar novas estratégias de ensino que despertem o interesse dos alunos pelo pensamento crítico: cabe a nós desenvolve-las. 5 Bibliografia SARTRE, Jean Paul, 1943. L`être et le néant. Essai d`ontologia phénoménologique. Paris: Gallimard. (O ser e o nada. Ensaio de ontologia fenomenológica. Tradução de Paulo Perdigão, Petrópolis: Vozes, 1997) ____ 1937. La Transcendance de l’Ego: esquisse d’une description phénoménologique. Paris: Recherches Philosophiques. (A transcendência do ego. Seguido de Consciência de si e Conhecimento de si. Tradução de Pedro M. S. Alves, Lisboa: Edições Colibri, 1994.) ____ 1938. La nausée. Paris: Gallimard. (A Náusea.Tradução de Rita Braga. Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 1996.) ____ 1946. L’Éxistentialime est um Humanisme. Paris: Éditions Nagel. (O existencialismo é um humanismo. São Paulo: Nova Cultura, Coleção ‘Os Pensadores’, 1987.) ____ 1967. Question de Méthode. Paris: Gallimard. (Questão de método. São Paulo: Nova Cultura, Coleção ‘Os Pensadores’, 1987.) BORNHEM, Gerd Antonio. Sartre. Metafísica e existencialismo. 2ª ed., São Paulo: Perspectiva, 1984. PERDIGÃO, Paulo. Existência e liberdade. Uma introdução à filosofia de Sartre. Porto Alegre: L&PM, 1995. 6