1 O CAPIAU E SUAS HISTÓRIAS Raphael Reys Certa feito estando em uma mesa de boteco, próximo ao Clube Lagoinha, Zé da Lagoinha tomava uma salutar cachaça e jogava conversa fora. Relatava uma visita que fizera à cova em que estava enterrado um amigo, no Cemitério Santo Antônio. Contou que da primeira visita encontrou a cabeça do de cujus aflorada na tumba. Seis meses após, na segunda visita, já aparecia o umbigo do amigo que batera a caçoleta. Na terceira, feita um ano depois, o dito morto estava sentado na terra fofa. Quando ele, o mentiroso, veio a falecer, ao saber da notícia do passamento, disse a mãe do citado: Já vai tarde esse mentiroso. Miltinho, morador do Beco do Marimbondo, tomador de gim tônico, era amigo de Dim Lampião e funcionário da Oficina 212. Na época era gerenciada por Wanderley Leitão. Pintava a porta do caminhão G 700, quando foi açulado por alguém. Como a sua missa era de corpo presente, respondeu em cima da bucha provocativa: Eu não sou da lagoa e não perco para sapo - Além do mais, estou acordado para mais de seiscentas nações. Dia desses, conversava com um ilustre brejeiro, afamado fazedor de vida com as cartas no pano verde e da campista. Tecíamos reflexões filosóficas sobre o tempo e a eternidade. Como essas, são questões metafísicas, não muito apropriadas a quem vive do expediente da noite e suas artes, respondi com uma tirada do portenho Jorge Luiz Borges: A eternidade é um jogo, ou uma corrida de esperança. E para não sair da retórica de Borges, arrematei dizendo: O jogador de baralho é um ser isolado em sua abstraída concentração do alheio desenrolar da vida. O bem da verdade a nossa conversa era uma tremenda fidumaeguagem. Com o advento da repressão de 1964, vários conterrâneos, embora inocentes, foram denunciados por dedos duros locais. Uma parte se refugiou em locais distantes e não sabidos. Dentre eles, o notável comerciante Rui Pinto. Na toca da Quinta Coluna e saudoso do arroz com pequi, cachaça arrolhada no sabugo e dos amigos de copo e de cruz, deu um interurbano para o Bar do Zimbolão. - Alô! É o Zim Bolão? – Sim! – Quem fala aqui é o Rui Pinto - Fale baixo aí viu – Certo - Pensei que você tinha morrido caro amigo – 2 Não, tô vivo - Como vão todos por aí? - E a turma? - Tá tudo sem novidades - Mas, onde é que você está mesmo? Rui, desligando o telefone: – Sai fora! Filomeno Bida, saudoso corretor de imóveis; que havia viajado até em disco voador, passando pelo Quarteirão do Povo. Atende um telefone-orelhão que chama insistentemente. Era uma pessoa de São Paulo, que ligava aleatoriamente, buscando contatar o próprio Filomeno para negócios. - Alô! – Esse telefone é no centro de Montes Claros? – É! – Aqui é fulano de São Paulo - Estou precisando urgente entrar em contato com um corretor de imóveis conhecido como Filomeno Bida - O Senhor o conhece? – Está falando com o próprio! Certa noite dos anos 60 na Praça da Matriz, Dim Lampião, Zé Augusto, Valdemar Peça Fina, Ivan Chulé, Milton, João Isca e o Marcha Lenta, se lembraram da festa de casamento dos irmãos Lúcio e Luciano. Esses comemoravam as bodas com suas esposas, também irmãs. As festividades ocorreriam logo mais na Malhada Santos Reis. Lá, era uma comunidade conhecida pelos seus valentes e murrões da roça, onde pontificavam Negão da Titia e muitos outros integrantes da fauna local. Dim Lampião sugeriu, então, que todos fossem às festas. Vai aí o diálogo: - Peça Linda - Vamos logo para a Malhada que hoje tem a festa dos casamentos dos irmãos com as noivas irmãs. - Não dá não, Dim - Lá é lugar de gente valente e perigosa demais. Dim, chegando ao pé do ouvido do interlocutor, ponderou: - Mas você não está levando um revolver na cintura? - To, sim, moço! Mas é só um 38. Na Malhada de antanho, estranhos no ninho só eram respeitados se carregassem pra cima de uma Cintura Noventa e duas automáticas 45. Ribinha era gerente de uma pequena loja de armarinhos num povoado, município de Miralta no interior das Minas Gerais. Solteirão convicto era, entretanto, fiel devoto de São Jorge Guerreiro. Portava sempre na carteira ou no bolso do paletó, um santinho do seu protetor, na sua imagem lunar, entre crateras e a chuchar o feroz dragão com sua lança pontiaguda. Realizava as suas obrigações com o santo, acendendo as suas velas, e executando os rituais no seu sanctorum doméstico. Sarava! Meu santo Orixá. Como era afro descendente, desde a tenra infância estava ligado aos mandingueiros, terreiros, candomblés, amolôcôs, terecôs e Bocas de Cabaça que abundam neste Norte de Minas. Lá não se dava importância à decisão papal de se apagar o santo guerreiro da hierarquia celestial, atitude tomada em represália ao aumento de fé nas raízes afro, pelo Brasil de meu Deus! 3 Certa feita, juntamente com colegas de serviço e seus respectivos familiares, fretaram a baixo custo um velho caminhão Dodge usado para carregar toros de madeira para levá-los morro acima, numa festa de santo na roça. A dita elevação, só era vencida de Toyota com chassi modificado e caminhão modelo toco com correntes de aço nas rodas dianteiras, isso dado ao aclive e respectivo declive íngreme e constante que se fazia até o platô e vice-versa, além do solo arenoso e escorregadio. Era uma via dantesca. Às três da tarde terminada as festanças de roça, voltavam descendo morro abaixo quando o motorista sentindo o frio do óleo do burrinho mestre do freio no pé direito botou a cabeça para fora da boleia e gritou a pleno pulmão: Pula todo mundo que o caminhão está sem freio... Todos pularam menos o Ribinha que permaneceu com os braços apoiados no Santo Antônio da carroceria. Braços e pernas quebrados, pescoços torcidos, mortos e feridos, demais passageiros pelo chão. O caminhão tendo só o nosso herói como viajante se enganchou no primeiro barranco à direita do morro, levantando poeira. Nosso herói desceu da carroceria sem qualquer arranhão, e, ato seguinte, sacudiu o pó da roupa. Seguindo o dito de Shakespeare: Cada terceiro pensamento passa a ser sobre nossa sepultura. Um colega de viagem, irritado com o braço quebrado gritou para ele em represália: Você não pulou por que sua lesma? No que ele retrucou: Sou devoto de São Jorge Guerreiro. O outro rebateu: Que santo é esse que segura caminhão sem freio, ladeira abaixo? Tranquilamente tirou o santinho de papel do bolso do paletó mostrando-o ao interlocutor, identificando, assim, São Jorge Guerreiro, o protetor da sua devoção. Acontece que na gravura exibida estava só o pesado dragão soltando fogo pela boca. O cavalo e o popular São Jorge, já haviam caído no bengo desde o grito de alerta do motorista, por via de dúvidas... e nasce fêmea é só fêmea. Um curioso, indagou: E como é que você controla isso? Cassiano retorna: É fácil - Eu só tenho uma vaca no plantel. 4