relatório - Profª. Lorena Braga

Propaganda
RELATÓRIO
Este processo de número 562.937.805, aberto no dia 1º de Julho de 2008, na 21ª Vara
Penal do município de Teresina no estado do Piauí, pela família e parentes do senhor
Roger Whetmore, brasileiro, casado, minerólogo, RG 265.789.981 PI, CPF
021.389.864-59, em busca da acusação por homicídio contra os senhores: Ronald
Stuart, brasileiro, solteiro, geólogo, RG 534.856.985 PI, CPF 036.598.978-41; Bento
Saltornelli, brasileiro, casado, pesquisador, RG 681.415.320 PI, CPF 341.251.902-12;
Antonius Azevedo, brasileiro, casado, minerólogo, RG 816.431.907 PI, CPF
905.501.407-92; Plutarco Sampaio, brasileiro, casado, minerólogo, RG 273.967.184
PI,CPF 948.678.415-73.
Todos os supracitados, por volta do começo do mês de Maio desse ano, se encontravam
dentro de uma caverna de calcário, quando ocorreu um deslizamento de terra e bloqueou
a entrada com grandes e pesadas pedras. Os exploradores apresentavam o mínimo de
suprimentos e se concentraram na entrada da caverna, na espera de resgate. Vinte dias
após de ocorrido o deslizamento, Roger Whetmore, através de um rádio transistorizado,
toma parte no grupo e questiona ao médico do grupo de resgate se o tempo de
sobrevivência era compatível com o tempo do resgate. Depois de receber uma resposta
negativa, Whetmore, em nome do grupo, pergunta se num ato de canibalismo teria a
chance de sobrevivência e recebe uma tímida resposta positiva. Perguntando, depois, se
podia decidir tal fato nos dados que ocasionalmente levava e não obtendo nenhuma
resposta, sabe-se que Whetmore, que tinha tomado iniciativa da idéia e convencido os
colegas ao ato, antes deste tivera desistido, mas os outros o acusaram de violação do
acordo e procederam com os lançamentos dos dados, jogando-os por ele, sem nenhuma
objeção. Sendo o perdedor da partida, foi morto no vigésimo terceiro dia, pelos réus.





JULGAMENTO
Juiz: 


— Declaro em aberto o julgamento do caso dos exploradores de cavernas, no
qual os réus – Ronald Stuart, Bento Saltornelli, Antonius Azevedo e Plutarco Sampaio –
são acusados de homicídio pela família e parentes de Roger Whetmore. Concedo
primeiro a palavra para a acusação e logo após a defesa, mantendo-se sempre
alternados.

Acusação:

— Bom dia, caro senhores aqui presentes, senhor juiz, caro colega da defesa.
Primeiramente peço-lhes permissão para falar de um fato que chocou a sociedade, um
fato esse que deixou uma família sem pai, tal fato caracterizado por um crime brutal, um
homicídio contra o senhor Roger Whetmore, uma morte que fere primeiramente o
direito à vida, presente no art.5º da Constituição Federal de 1988, e como afirma Pedro
Lenza, “abrange o direito de não ser morto, privado da vida, portanto, o direito de
continuar vivo”([1]), mostrando que tal grave crime fere até a Constituição Federal.

Defesa:

— Bom dia, senhor juiz, platéia e caro colega da acusação. Bem como afirmava
a acusação, a morte do senhor Whetmore foi um triste fato que feriu o direito à vida,
previsto pelo art.5º da CF/88, mas, no entanto, esse infeliz fato ocorrido garantiu esse
direito a quatro pessoas, invés de só uma. Entendo que pareço negar o direito de um a
favor dos direitos dos outros, mas não desejo aqui ferir o princípio da igualdade de
todos perante a lei (art.5º, I, da CF/88), mas, sim, mostrar que os quatro acusados
também poderiam estar no lugar do senhor Roger Whetmore, morto, e este no lugar de
acusado.
“Devemos atentar que a culpa do fato ocorrido não deve ser posta sobre os meus
clientes, pois também são vítimas da verdadeira culpada que é a natureza. O que ocorreu
foi um fato natural, como explica Maria Helena Diniz: “advém de fenômeno natural,
sem intervenção da vontade humana, que produz efeito jurídico, consistindo no fato
jurídico stricto sensu”([2]). Para ser o mais claro possível, o fato ocorrido foi um subtipo
do stricto sensu, o fato jurídico extraordinário, ocorrido através da natureza, com o
deslizamento de terra e o acúmulo de pedras, tendo o caráter imprevisível e inevitável.”
Acusação:


— Sinto em descordar do meu colega, pois mesmo tendo ocorrido tal fato natural, não
justifica ter ocorrido o fato humano involuntário, caracterizado como:
Acontecimento que depende da vontade humana, acarretando conseqüências
jurídicas alheias à vontade do agente, hipótese em que configura o ato ilícito,
que produz efeitos previstos em norma jurídica, como sanção, por que viola
mandamento normativo. (DINIZ, 2008, P.373)

Defesa:

— Pois bem, mas o agente neste seu caso seria o senhor Whetmore, já que foi
ele quem deu cabeça ao fato, desde o começo até a hora da sorte, na qual desistiu.

Acusação:

— Justamente, no momento em que desistiu e os réus não respeitaram sua
vontade, o senhor Whetmore sofreu violação dos seus direitos, principalmente do
princípio da legalidade (art.5º, II, da CF/88), pois não estava obrigado a aceitar o jogo.

Defesa:

— O jogo que mesmo propôs e convenceu meus clientes a praticar, mas na
ocasião dos fatos, a situação de desistência era impossível, já que convencera todos que
tal ato era a única salvação, tanto que não fez nenhuma objeção ao lançamento de
dados, para nenhum dos meus clientes, na sua vez e que por mais delicada fosse a
situação, ele não tinha condições psicológicas e/ou materiais para requerer uma ação
judicial([3]).

Acusação:

— Tendo ocorrido tão grande infortúnio e resultando na morte do senhor
Whetmore, posso presumir, já que vossos clientes não abordam sobre o assunto, que
meu cliente sofreu algum tipo de tortura à medida que tentava salvar a sua vida, após
tão grande infortúnio nos dados?
Defesa:

— Senhor juiz e todos aqui presentes, peço-lhes que entendam a situação dos
meus clientes, que recentemente passaram por um tratamento para choque emocional
ocasionado pela pressão da sobrevivência e a tristeza de uma conseqüência horrível, ter
que comer a carne do próprio amigo e beber seu sangue. Apelando por suas defesas e
baseado na relação de amizade e companheirismo sólido existente entre eles, presumo e
afirmo que não feriram a proibição da tortura prevista no art.5º, III, da CF/88, e que para
praticar esse ato de sobrevivência, a fizeram da forma mais rápida e indolor possível.

(Murmúrios da platéia)

Juiz:

— Silêncio! Silêncio neste tribunal. A acusação vai se pronunciar.

Acusação:

— A defesa afirma que mataram o senhor Whetmore de forma rápida e indolor.
Sendo assim, negas o princípio da não culpabilidade presente no art.5º, LVII, da CF/88,
perante seus clientes?

Defesa:

— Presumo que se exaltaste caro colega de profissão. Primeiro porque a morte
do vosso cliente é fato comprovado e não negado pelos meus clientes. Segundo porque
não nego princípio algum, a ninguém, como desejas desde o início do julgamento. Neste
caso específico que citas, “a Constituição Federal não presume a inocência, mas declara
que ninguém será considerado culpado antes de sentença condenatória transitada em
julgado” ([4]). O que realmente viso é que, perante tal situação, o resultado desse
julgamento declare que meus clientes sejam inocentes.

Acusação:

— Senhor juiz, vejo que diante da defesa aqui exposta, a mesma deseja fazer uma
mutação constitucional ([5]) para tais normas principiológicas.


Defesa:

— Se enganas novamente. O que desejo é que se vejam tais normas se
colocando na visão dos meus clientes, os sentidos e os significados perante a “situação”
em que lhe foram impostas pela natureza e não perante só tal e qual norma
constitucional.([6])

Acusação:

— Perante tão pertinaz defesa, senhor juiz e pessoas aqui presentes, desejo
mostrar-lhes que o senhor Whetmore teve seu direito da personalidade contrariado pelos
réus, infringindo o caput do art.13 do Código Civil ([7]), pois segundo Maria Helena
Diniz, “razoável é tal disposição legal, pois não se pode exigir que alguém se sacrifique
em benefício de terceiro” ([8]). Sendo assim, meu cliente fora inegavelmente exigido
pelos réus que se sacrificasse para seus benefícios.

Defesa:

— Protesto, meritíssimo! Se tal fato ocorreu, o primeiro a fazê-lo foi o senhor
Whetmore, e não os meus clientes.

Acusação:

— Protesto! A defesa deseja inverter a prova contra a acusação!

(Murmúrios da platéia)

Juiz:

— Protesto da acusação negado! E peço aos aqui presentes que se comportem de
forma silenciosa durante o julgamento, para que seja mantida a ordem.

Acusação:

— Tendo em vista tal injustiça perante vossos olhos, considero incontestável que
os réus, diante de um crime tão sólido e brutal, sejam condenados a pena máxima de
vinte anos prevista pelo artigo 121, caput, do Código Penal, no qual proíbe que se mate
alguém, somada com a pena máxima de doze anos prevista pelo art.129, §3º, do Código
Penal, no qual pune lesões corporais seguida de morte. Sendo assim, seria o mínimo
penal a ser imposto para quem deixou uma família desestruturada, sem pai, ao relento
da tristeza de ter seu amado ente morto em prática de canibalismo.

Defesa:

— Senhor juiz e platéia, como defesa só me resta rebater o pedido da acusação e
afirmar que é contestável, sim, a falsa sentença por ele proferida. Peço-lhes que
imaginem a situação em que meus clientes estavam submetidos – com frio, com fome,
com sede, sem esperança de rever suas famílias, sem expectativa de resgate – que para
se salvarem do perigo da morte, causado por fato natural, tiveram que disputar suas
vidas e sacrificar uma em favor das outras. Baseado nessa terrível situação, afirmo que
os meus clientes se encontravam em estado de necessidade, e seguindo o Código Penal
brasileiro, temos no art.23, I, que não há crime quando o agente pratica o fato em estado
de necessidade, e no art.24, caput ([9]), que regula a noção de estado de necessidade, no
qual estão perfeitamente inseridos os meus clientes.

Juiz:

— Dentro dos poderes a mim dirigidos, peço às partes que façam uma sucinta
consideração final. Logo após haverá o recesso de duas horas, para que eu possa rever o
caso diante do que foi exposto e declarar meu veredicto.

Acusação:

— Caro juiz, caro colega da defesa e pessoas aqui presentes, peço que vossas
atenções visem os direitos aqui expostos e que foram retirados do senhor Whetmore.
Atentem-se para o caso no qual fora tirada a vida de um cidadão, chefe de uma família,
na qual poderiam crescer e se multiplicarem juntos, enfrentando as dificuldades, com
amor e carinho, se não fosse por tão brutal homicídio causado pelos réus. E por último,
apelo ao senhor juiz, como dizia no antigo Código de Hamurabi, que seja feita a justiça
“olho por olho, dente por dente”, dentro dos limites do direito.


Defesa:

— Senhor juiz e platéia, peço que atentem para esses quatro inocentes seres
humanos que aqui estão presentes, que por deleito do destino cruel e por culpa da
natureza, foram trancafiados dentro de uma caverna, com o mínimo de suprimentos
possíveis, só na esperança do resgate chegar primeiro que a morte. E sendo a morte o
único caminho para a sobrevivência, tiveram a difícil decisão de abdicar uma vida em
favor de outras quatro, situação esta posta diante vossos olhos pelo senhor Whetmore.
Com todo o horror, repugnância, tristeza, dor, fome, frio e sede, tiveram que se
alimentar para sobreviver. E concluo apelando para que esta morte não seja vista como
o fim de uma vida, mas a continuação de outras quatro.

Juiz:

— Com as considerações finais das partes, declaro abeto o recesso de duas
horas.
.:.


VEREDICTO
Diante a minha primeira leitura do caso, confesso de antemão que estava decidido a usar
o art.121 do Código Penal, declarando reclusão de vinte anos para os réus. No entanto,
observando que essa norma é do tipo “menos que perfeita” (minus quam perfectae), ou
seja, o fato de que Roger Whetmore está comprovadamente morto e como não pode
ocorrer nulidade do fato, pois não pode regressar dos mortos, só caberia a mim a
aplicação da pena.
O fato é que me questiono: a jurisdição pode inovar no mundo jurídico, principalmente
em caso tal peculiar? No meu ponto de vista, “cada caso é um caso”, não existe norma
de conduta tipificada para tão aberrante situação. Dentro de um ambiente fechado,
causado por fato natural (desmoronamento de grandes e pesadas pedras), onde o ar fica
rarefeito, os suprimentos vão se extinguindo e a esperança de resgate reduzindo, é um
caso de jurisprudência reduzida, mas o fato de necessitarem eliminar uma vida em favor
das outras é sem completa jurisprudência,sendo assim, cabe a mim fazer uma norma
concreta que regulará tal singular situação, ou com afirma Antonio Bento Betioli, cabe a
mim fazer uma norma individualizada que tipificará a conduta dos réus aqui presentes
inseridos nessa calamitosa situação, sendo válida e aplicada só nesse caso
específico.([10])
Baseado nos fatos apresentados e no poder a mim dirigido, decido em fazer uma norma
jurisprudencial contra legem, ou seja, devido o fato ser atípico, considero injusto, sobre
as situações explicitadas, que os réus sofram outra pena, além daquela que lhe foram
dadas pela natureza. Prezo que os princípios aqui, a mim, expostos, só posso ponderálos pelos seus pesos e importâncias no caso específico, sendo assim, prepondero o
direito à vida, no entanto, as partes se mostraram em um conflito quantitativo (uma ou
quatro vidas) dentro desse próprio princípio.
Por tal motivo, me refugio perante as regras, no qual estas, segundo Ronald
Dworkin, “ou tudo ou nada”, ou seja, terei que invalidar uma regra e validar a outra.
Portanto, declaro os réus inocentes, por devido o caso específico, invalido o art.121 do
CP perante os artigos 23, I e 24, caput, do CP, adotando a teoria usada no ordenamento
jurídico brasileiro, a teoria unitária, na qual o estado de necessidade é sempre causa de
exclusão de ilicitude.

BIBLIOGRAFIA
BECHARA, Fábio Ramazzini; CAMPOS, Pedro Franco de. Princípios Constitucionais do Processo
Penal: questões polêmicas. São Paulo: Complexo Jurídico Damásio de Jesus, 2005.
BETIOLI,
Antonio
Bento. Introdução
ao
Direito:
lições
de
propedêutica
jurídica
tridimensional.10ªed. São Paulo: Saraiva, 2008.
Código Civil – Lei nº 10406, de 10 de janeiro de 2002.
Código Penal – Decreto-lei nº 2848, de 7 de Dezembro de 1940.
Constituição da República Federativa do Brasil de 5 de Outubro de 1988.
DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. V.1. 25ªed. São Paulo: Saraiva, 2008.
FULLER, Lon L. O Caso dos Exploradores de Caverna. Porto Alegre: Fabris,1976.
LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 12ªed. São Paulo: Saraiva, 2008.
LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 12ªed. São Paulo: Saraiva, 2008. p.595
DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. V.1. 25ªed. São Paulo: Saraiva, 2008. p.
372



”A ação judicial é um direito que todos tem de movimentar a máquina judiciária para pedir proteção”
(Diniz, Maria Helena. Ibidem. p.379)

BECHARA, Fábio Ramazzini; CAMPOS, Pedro Franco de. Princípios Constitucionais do Processo
Penal: questões polêmicas. São Paulo: Complexo Jurídico Damásio de Jesus, 2005.

Uadi Lammêgo Bulos denomina mutação constitucional “... o processo informal de mudança da
constituição, por meio do qual são atribuídos novos sentidos, conteúdos até então não ressaltados à letra
da constituição, quer através da interpretação, em suas diversas modalidades e métodos, quer por
intermédio da construção, bem como dos usos e dos costumes constitucionais”. (LENZA, Pedro. Direito
Constitucional Esquematizado. 12ªed. São Paulo: Saraiva, 2008. p.68)

Aqui se cabe uma explicação, principalmente para iniciantes do estudo de direito constitucional. A
mutação constitucional é um processo que se dá uma nova significação, um novo entendimento, a uma
norma constitucional. O que afirma a defesa do caso, é que não se deseja que cada norma que foi citada
tenha seu sentido interpretativo alterado, mas que em sua interpretação seja levada em consideração a
situação grotesca em que os seus clientes estavam inseridos.

”Salvo por exigência médica, é defeso o ato de disposição do próprio corpo, quando importar
diminuição permanente da integridade física, ou contrariar os bons costumes”. Contudo, podemos aqui
fazer uma ressalva no sentido de que essa norma é mais usada em casos de transplantes.


DINIZ, Maria Helena. Ibidem. p.124
”Considera-se em estado de necessidade quem pratica o fato para salvar de perigo atual, que não
provocou por sua vontade, nem podia de outro modo evitar, direito próprio ou alheio, cujo sacrifício, nas
circunstâncias, não era razoável exigir-se”.
BETIOLI,

Antonio
Bento. Introdução
ao
Direito:
tridimensional.10ªed. São Paulo: Saraiva, 2008. p.135.
lições
de
propedêutica
jurídica
Download