1 A NATUREZA DOS NOSSOS TRIBUTOS Foch Simão Júnior Auditor da Receita Federal Engenheiro Civil- Escola Politécnica da USP Mestre em Engenharia - Escola Politécnica da USP Mestre em Administração Pública e Governo- FGV Conta uma antiga lenda árabe que Lúcifer1, o anjo caído, foi banido ao Inferno não por ter se revoltado contra Deus, pois este como Pai amoroso é a eterna fonte de amor e perdão. Mas quis o sapientíssimo Pai dar-lhe uma lição. Enviou-o às trevas para que percebesse quão inútil seria a sua pretensão de tornar pior a essência humana. Tomado por este conceito, Hobbes (1587-1666) em sua obra, Leviatã, parte do princípio de que, no seu Estado Natural, os homens são insaciáveis e egoístas. Em virtude desta característica a essência humana é predisposta à competição pela segurança, riqueza e glória. Na formulação de Hobbes o espírito solitário, pobre, sujo e brutal, cônscio de sua efêmera duração, imbuí-se do desejo de disseminar a guerra de todos contra todos, na busca racional dos seus próprios interesses, inviabilizando qualquer iniciativa consensual que resulte na forma harmônica de instituir uma relação comercial, produtiva ou civilizada, sem que o resultado interesse a alguém. A proposição de um Contrato Social que assegure à humanidade um incremento no seu bem estar em troca da redução da sua sordidez, soe ser a solução que melhor se coaduna à Lúcifer, “filho da alva”, era o primeiro dos querubins cobridores, santo, incontaminado. Permanecia na presença do grande Criador, e os incessantes raios de glória que cercavam o eterno Deus, repousavam sobre ele. “Assim diz o Senhor Jeová: Tu és o aferidor da medida, cheio de sabedoria e perfeito em formosura. Estavas no Éden, jardim de Deus; toda a pedra preciosa era a tua cobertura… Tu eras querubim ungido para proteger, e te estabeleci; no monte santo de Deus estavas, no meio das pedras afogueadas andavas. Perfeito eras nos teus caminhos, desde o dia em que foste criado, até que se achou iniqüidade em ti.” (Ezequiel 28:12 a 15). 1 2 capacidade racional do homem. A razão impele-nos a este acordo global de paz, mas a natureza pérfida da humana alma não nos garante o seu cumprimento. Há que existir um arbítrio supremo que assegure o direito comum ao custo da autonomia individual. O ente que reúne as mais diversas vontades em uma comunhão de interesses, o qual, nas palavras de Tulcidedes, constitui-se no freio às ambições dos poderosos e no consolo ao desespero dos desvalidos é o soberano, materializado na forma de um governo. Nos termos do Contrato Social, a soberania é a expressão do poder consensual, com o seu metabolismo peculiar à cultura e ao meio do qual emana. Mas qualquer que seja a sua origem, o seu produto comum é o de aglutinar em uma única instância a submissão do livre arbítrio de cada súdito, contendo em suas entranhas o potencial suficiente para a manutenção da harmonia de todos, cobrando-lhes um alto preço pela sua violação. Este gigante metafísico, detentor supremo do poder do direito, sujeita a prerrogativa discricionária da força, concebendo pleno sentido às instituições sociais da justiça e da propriedade. Mesmo esta forma autoritária de intervenção governamental possui uma perspectiva limitada de legitimidade, pois há a exigência muito mais intensa de justificá-la, principalmente nos setores do desenvolvimento humano mais sensíveis a estas considerações, envolvendo o direito à liberdade ou à dignidade do indivíduo. O poder de império, atualmente, deve ser ponderado na sua relação com o cidadão, de maneira que abranja a sua vida interna, enquanto membro da sociedade ou externa, como parte de um mundo mais integrado politicamente, procurando não afetar, de forma contundente, os interesses de terceiros ou que só os afete em termos conceituais relativos à autodeterminação. A soberania manifesta em forma de governo tem sob sua responsabilidade os mais diversos encargos, espelhando os anseios e o caráter da sociedade dos seus súditos. O grau de comprometimento de uma sociedade com o Pacto Social firmado não é necessariamente aquele que designado pela Carta Magna propaga-se pelas cantilenas públicas, mas, sim aquele que extraído da experiência vivida por seus cidadãos revela a realidade da sua lida diária. Se a sociedade não se organiza para atribuir e controlar as funções a serem desempenhadas por um governo que a representa, não pode esperar que este exerça com 3 competência as suas funções básicas de alocar e distribuir recursos, e moderar as relações sociais. Enfim, as características de um Estado revelam o verdadeiro caráter dos seus cidadãos e o governo que estes elegem demonstra as suas mais evidentes intenções. Entre a intenção e a prática no desempenho das ações públicas, o que se deve ter em conta é que toda função adicional atribuída a um governo pertencente a países em desenvolvimento se constitui em um aumento dos encargos assumidos por um organismo já sobrecarregado de obrigações, cuja estrutura administrativa ou não possuí as condições necessárias de suporte técnico e humano ou é objeto de uma interferência política predatória, de modo agravar o seu grau de eficiência. Entre as funções necessárias desenvolvidas por um governo existem aquelas que por sua natureza, nunca ou raramente foram objeto de polêmica, em decorrência da sua importância na interferência estrutural com as demais funções exercidas. A primeira delas é a que proporciona aos governos os meios necessários à sua atuação, condicionando a sua própria existência, ou seja, o sistema tributário. A alternativa ao sistema tributário eficiente seria o complemento do financiamento do Estado via contratação de empréstimos, fato no entanto temporal, que analisado do ponto de vista doméstico, termina por drenar parte do capital do país destinado à produção, cujo desvio de recursos representa, em ultima instância, a retirada em mesmo montante da renda da classe trabalhadora. A entrada do poder público em busca de empréstimos no mercado financeiro, concorrendo por capital, desloca a demanda pelo ativo pecuniário aumentando os juros pagos, o que desestimula o investimento produtivo, atrofiando a demanda pelos fatores de produção, dentre os quais encontra-se a mão de obra. Nas circunstâncias deste financiamento ser obtido com capital estrangeiro, o pagamento dos juros contratados representa uma transferência de capitais tomados à economia do país devedor, já que a fonte de pagamento dos juros será a dos recursos obtidos com as atividades próprias do governo, vendendo seus próprios ou repassando parte dos tributos. Uma vez que o Estado moderno procura o equilíbrio entre a capacidade de atender aos anseios dos seus cidadãos e a competência de buscar os recursos necessários, sem comprometer a sua soberania, a alternativa financeira ideal se constitui na tributação das possíveis matérias coletáveis. Modernamente, dentro deste conceito há diversos modelos paradigmas que são geralmente atrelados aos processos políticos eletivos, que pautam a 4 conduta fiscal dos governos como fruto do sufrágio de suas propostas. No entanto, aos países classificados como em desenvolvimento os desígnios da história reservaram uma única opção de conduta tributária, a que sublima o caráter político partidário dos governos, pairando acima das suas idéias e dos seus princípios. O crescimento das atividades capitalistas na última década impôs a criação de mercados razoavelmente definidos e satisfatoriamente estáveis, o que provocou uma interdependência entre as nações, o que relegando a um estágio secundário as fronteiras nacionais, confundindo nesta dinâmica econômica os assuntos domésticos e os internacionais. Tal qual o Pacto Social concebeu o Leviatã como figura sócio-política, esta eclosão do ego rentista do capitalismo produziu o Pacto Financeiro, gerador do Leviatã como pressuposto fiscal, mas, com um agravante de características pantagruélicas, o insaciável vício da Derrama2. O modelo alcunhado de Leviatã pressupõe que os governos, indiferentes às manifestações próprias ao processo eleitoral, visem de forma autônoma a maximização das receitas, cuja pretensão tem os seus limites calcados nas virtudes inerentes ao arcabouço legal da sociedade, que restringe por um lado o seu poder fiscal de tributar, questionando por outro lado o emprego desta receita para o bem estar dos cidadãos. Atavicamente o homem é predisposto ao acúmulo de riquezas fruto do da sua atividade produtiva, com dois objetivos básicos: satisfazer as suas necessidades ao longo do tempo, fato temporal, e prover o futuro da sua prole, fato intemporal. Este acúmulo de capital por 2 O século XVIII foi caracterizado pelo brutal aumento da exploração portuguesa sobre sua colônia na América quando a nação ibérica conheceu um período de maior decadência econômica, em virtude dos déficits crescentes resultantes das transações comerciais com a Inglaterra. Diante do grave problema fiscal instituiu-se uma política compensatória, o que para o Brasil representou na prática uma exploração mais intensa e racional das suas riquezas. O governo da Metrópole organizou para tanto companhias de comércio monopolistas, de forma a controlar a exploração de diamantes, ouro e demais recursos minerais, através da cobrança dos tributos instituídos pela Coroa, fixados em “Um Quinto” vinculado à produção. A intensa exploração das riquezas minerais levou em um curto período de tempo ao esgotamento dos garimpos, reduzindo o quinhão monopolista. Para a Coroa, no entanto, a redução no pagamento de impostos era atribuída a fraude e ao contrabando, o que conduziu à mudança na política tributária: Em 1750, o quinto foi substituído por um sistema de cota fixa, definido em 100 arrobas por ano (1500 Kg). Como a produção do ouro continuou a diminuir, tornou-se comum o não pagamento completo do tributo, acumulando-se a cada ano o montante da dívida tributária. Em 1763, a Coroa resolveu instituir a Derrama, que em verdade não era um novo imposto, mas a cobrança da diferença em relação a aquilo que deveria ter sido pago. Essa cobrança executada de forma arbitrária e com extrema violência pelas autoridades portuguesas no Brasil, gerou não apenas um problema financeiro, mas também o aumento da revolta contra a situação de dominação, legandonos a seqüela de trauma tributário.(HOLANDA,1973, p. 395) 5 sua vez, serve de base potencial à incidência da tributação. Esta atividade publicana ao longo da história, modelou-se cientificamente com princípios e métodos que variam em conformidade com o processo econômico a que está atrelado, elegendo a base de incidência mais adequada às condições vigentes. Normalmente, a política fiscal se constitui em uma função da despesa pública, cuja definição tem um significativo componente político eleitoral. Neste contexto, a característica administrativa com relação ao binômio divida /política pública tem sua repercussão sobre os indivíduos, uma vez que estes reagem diferentemente aos efeitos das políticas públicas, de acordo com o seu grau de expectativa. Em uma visão intemporal da administração pública, é de se presumir que os governos modelem a sua identidade e natureza visando satisfaze-la ou justificar a sua frustração. A questão da manutenção de uma relação harmoniosa entre a dívida pública e o seu financiamento envolve variáveis exógenas, juros, superávits primários etc, como parâmetro não discricionário da equação financeira constitutiva do orçamento nacional. Conforme a conveniência político-econômica, grau de desespero, a política fiscal pode eleger como campo de incidência preferencial a renda, o consumo, o capital ou todas as opções concomitantemente. O fato inevitável é que qualquer que seja o tipo de incidência de um imposto este indefectivelmente ocasiona distorções econômicas. Para que se tenha uma elementar noção dos efeitos tributário sobre a decisão econômica das pessoas, tomemos um modelo composto por dois períodos da vida de um indivíduo, (BRENNAN & BUCHANAN: 1980). O primeiro período o indivíduo gera renda a partir da sua atividade produtiva a qual pode ser poupada gerando mais renda ou é gasta no consumo. No segundo período o indivíduo não tem mais atividade produtiva e consome apenas o fruto da sua poupança e ou a renda por ela gerada. Na figura 1, o segmento AO representa o consumo da renda no primeiro período, tendo o seu máximo em A, representando o total emprego da renda em consumo. Na abscissa o segmento OF representa ao montante da poupança efetivada pelo individuo no primeiro período e disposta para consumo no segundo período. O ponto de máximo F indica que toda a renda foi poupada para o segundo período, sendo que OF>OA, em função dos rendimentos inerentes à poupança . 6 Figura 1 Modelo de dois períodos de Brennan e Buchanann Atendendo ao princípio de que o consumidor maximiza a sua utilidade, a curva de indiferença de um indivíduo qualquer na ausência de tributos se equilibra para o ponto M. Nesta escolha intemporal o indivíduo irá despender com consumo OH e por conseqüência poupar HA, que no segundo período vai lhe proporcionar o montante para consumo OK>HA. Ao se introduzir um imposto sobre a renda haverá um deslocamento da curva de restrição orçamentária para o segmento DC, alterando tanto a estrutura de consumo como a de poupança, reduzindo os gastos presentes e futuros. Se o imposto incidir sobre o.capital, os efeitos dependem claramente da noção que o contribuinte possui de antecipar tal imposto, na ocasião da sua decisão entre consumo e poupança. Considere inicialmente o exemplo da total ausência de conhecimento e suponha que o contribuinte faça a sua decisão de poupar sem realizar exame sobre a provável incidência do imposto. Comportar-se-á então como na ausência completa do imposto. Isto é, conservará HA no período 1 para um consumo previsto de 0K no período 2. Neste ponto, HA representaria seu estoque de capital no fim do período 1. No presente caso, considerando a hipótese dentro dos limites do ajuste dos dois períodos de vida do contribuinte, o governo maximiza a sua receita 7 apropriando-se deste capital poupado. Na ausência de limitações legais explícitas esta apropriação será confiscatória. Em um sistema normal, sob as circunstâncias do império da Lei, o Estado Leviatã e o contribuinte deparam-se com um dilema, escolher um ponto onde ambos poderiam ter um ponto de equilíbrio supostamente paretiano ou permanecerem duelando em torno do ponto de fuga estabelecido em A. As condições do equilíbrio paretiano são as que definem o moderno Estado fiscal pressupondo, portanto, a existência de uma prerrogativa de cidadania por parte dos destinatários deste poder império, envolvendo os direitos inerentes ao princípio da reprodutividade e os deveres de arcarem com os custos dos impostos, na medida da respectiva capacidade contributiva de cada cidadão. Este binômio fiscal impõe que tenhamos um Estado assentado em uma estrutura impositiva suportável, balizado por estritos limites jurídico-constitucionais que integram a chamada constitucionalidade tributária, com suporte nos princípios da legalidade, equidade, irretroatividade e proporcionalidade (capacidade contributiva), até este momento, promovidos pela Constituição Federal, (CF, art. 150). A alternativa deste equilíbrio somente é possível se houver condições de se estabelecer de forma intemporal um acordo obrigatoriamente relevante, incorporado-o ao sistema político e tributário como clausula pétrea que impeça qualquer tentativa de estelionato eleitoral, conquistando institucionalmente a confiança do cidadão. Por esta razão é que até hoje não se vislumbra alguma alteração significativa no estatus quo vigente, criando o meio de cultura para que Leviatã tenha a menor limitação constitucional possível que sirva de apoio à eventual ação defensiva da cidadania. Ao escolher entre todas as regras disponíveis, Leviatã selecionará sempre a regra de maximização de receitas, o que induz o contribuinte a tentar minimizar os riscos ao seu capital. Nesta disputa entre o Estado como entidade política restrita por um sistema econômico global e os seus semicidadãos como unidades relativas de consumo e fontes tributárias potenciais, Leviatã vê-se compelido a aplicar várias estratégias impositivas selecionando um arcabouço tributário que lhe proporcionar a maximização de receitas, restando ao contribuinte alocar a sua curva de indiferença preço consumo da melhor forma possível, tentando otimizar a sua utilidade em função da matéria coletável, segundo W, W’,W”. No caso de imposto sobre a renda irá alocar W” gerando o 8 equilíbrio do contribuinte em N na figura 1, onde a linha paralela ao segmento AF é tangente à curva de preço-consumo. Há também a viabilidade de se tributar o consumo, segmento DF, gerando dois efeitos diversos. O primeiro reduzindo o consumo em face da redução da renda ponto N. O segundo trocando o consumo presente pelo consumo futuro, ponto P. Uma terceira opção é a tributação do capital gerando um ponto de equilíbrio em U, Evoução do PIB em dólares no Plano Real 900 774,8 807,2 800 787,0 704,1 US$ bilhões 700 595,4 600 543,1 529,2 519,1 500 400 300 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 Fonte de dados primários: Boletim do Banco Central. 2001 projeção. com um efeito negativo sobre a poupança. Figura 2. Evolução do Produto Interno Bruto em US$ Entretanto, este mecanismo tributário só será bem sucedido se houver por parte do cidadão uma certa confiança no sistema, não só garantindo o justo emprego das receitas públicas, como asseverando a equidade de critérios e a manutenção das regras tributárias, evitando expedientes de ocasião como REFIS, isenções, atos declaratórios discricionários etc., que redimem os sonegadores, punindo financeiramente os adimplentes cidadãos, seja tributando escorchatemente a mesma base tributária ou seja ampliando-a com artifícios normativos. 9 Esta Derrama é de forma pueril constantemente anunciada pelos arautos dos governos que vêm nos sucessivos recordes de receita uma conquista institucional, mas, cegos ignoram a estagnação do desenvolvimento produtivo e social do país, como bem demonstra a figura 2. Bibliografia. BRENNAN, Geoffrey & BUCHANAN James M. The Power to Tax: Analitical Foundation of a Fiscal Constituition. Cambridge: Cambridge University Press, 1980 HETTICH, Walter & WINER, Stanley L. Democratic Choice and Taxation. Cambridge: Cambridge University Press, 1999. HOBBES, Thomas. Leviatã. 1º ed. São Paulo: Ícone, 2000. HOLANDA, Sérgio Buarque de. História Geral da Civilização Brasileira. A Época Colonial. 3. ed. Tomo I, 2.v. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1973. MARTIN, Hans Peter & SCHUMANN Harald. A Armadilha da Globalização. O Assalto à Democracia e ao Bem-Estar Social. 4. ed, São Paulo: Globo, 1998. NABAIS, José Casalta. O Dever Fundamental de Pagar Impostos. Coimbra: Almedina, 1998. (Volta à 1.ª página da edição atual)