DESINDUSTRIALIZAÇÃO PRECOCE: FUTURO OU PRESENTE DO BRASIL? Le Monde Diplomatique Brasil – Rumos do Desenvolvimento – 26/03/2014 A perda relativa de importância da indústria na economia brasileira é precoce ou acontece porque o país já completou esse ciclo de desenvolvimento? por embaixador Rubens Ricupero, ex secretário-geral da Unctad O que se entende por desindustrialização precoce? A desindustrialização precoce é a variante patológica da chamada “desindustrialização positiva”. Quando a industrialização completa com êxito o processo do desenvolvimento, elevando a renda per capita a um nível alto e autossustentável, o setor manufatureiro começa a declinar, em termos relativos, como proporção do produto e do emprego. Isso ocorre em um contexto de crescimento rápido e pleno emprego, no momento em que se atinge renda per capitaelevada. O fenômeno é patológico quando aparece em economias em que a renda permanece reduzida e em contextos de baixo crescimento. Nesse caso, o processo de industrialização abortou antes de dar nascimento a uma economia próspera de serviços, capaz de absorver a mão de obra desempregada pela indústria. É a “construção interrompida” do título do livro de Celso Furtado. Onde ocorre o fenômeno? Ele vem ocorrendo em diversas economias da África, América Latina e do Oriente Médio no curso dos últimos trinta anos, desde a crise da dívida externa dos anos 1980. Em 2003, a Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (Unctad) estudou o que vinha acontecendo no relatório Comércio e Desenvolvimento (Trade and Development Report) daquele ano, que pode ser encontrado e obtido no site da Unctad: . Qual foi o resultado do levantamento? A Unctad chegou à conclusão de que, em relação a esse problema, as economias em desenvolvimento poderiam ser divididas em cinco grandes categorias: 1. O grupo original e mais avançado dos Tigres Asiáticos (Coreia do Sul, Taiwan, Cingapura e Hong Kong), principalmente Coreia do Sul e Taiwan, que já atingiram um nível adiantado de maturidade industrial por meio de rápida acumulação de capital, crescimento do emprego em geral, da produtividade e do emprego industriais, assim como das exportações de manufaturas. Nessas economias, a porcentagem da produção industrial no PIB é bem superior à dos velhos paísesindustrializados, mas o ritmo da expansão da capacidade produtiva e da produção no setor industrial desacelerou-se muito em comparação ao que ocorria em décadas passadas. 2. O segundo grupo, também maciçamente asiático, inclui a Malásia e a Tailândia, bem como, em nível menos avançado, a China e, em grau menor, a Índia. São os países que há várias décadas vêm se industrializando de modo acelerado, aumentando a proporção de manufaturas no emprego, na produção e nas exportações, ao mesmo tempo que estão transformando sua estrutura, passando dos produtos intensivos em mão de obra e recursos naturais para os artigos de média e alta tecnologia. 3. O terceiro abrange os países que se integraram nas redes internacionais de produção mediante a concentração em operações intensivas em mão de obra destinadas à montagem de produtos cujos insumos são em grande parte importados. O México e as Filipinas, bem como, mais recentemente, países do Caribe e da América Central signatários de acordos de livre-comércio com os Estados Unidos destacam-se na categoria. Tais economias tiveram rápido aumento no emprego industrial. Outra característica do grupo é o veloz aumento de exportação de manufaturas. Não obstante, esses países vêm apresentando desempenho modesto em termos de investimento, de valor agregado em manufaturas, de crescimento da produtividade e de crescimento econômico de maneira geral. 4. A quarta classe é a dos países que alcançaram um nível razoável de industrialização, mas se revelaram incapazes de sustentar um processo dinâmico de aprofundamento industrial em contexto de crescimento rápido. É o caso da Argentina e, em nível muito menos grave, do Brasil. Nesses países, tem sido pobre o desempenho do investimento, a indústria vem perdendo importância relativa no emprego total e no valor adicionado, o crescimento da produtividade resultou mais da redução da mão de obra que da acumulação rápida e do progresso técnico, o upgrading industrial é ainda limitado e as exportações continuam dominadas por produtos primários e manufaturas de baixo valor agregado. Nessas economias, o avanço em certas indústrias, como a aeronáutica e de automóveis, não teve a profundidade e o vigor necessários para disseminar-se pelo restante do tecido industrial e para estabelecer um processo dinâmico e de alta tecnologia na indústria como um todo. 5. O quinto grupo é o de países que obtiveram crescimento forte e sustentado mediante a intensificação da exploração de seus recursos naturais abundantes por meio de um ritmo acelerado de acumulação de capital. O exemplo mais notável é o do Chile. No entanto, essas economias têm demonstrado desempenho fraco em termos de valor agregado em manufaturas e de exportações industriais, persistindo nelas elevado desemprego. Parecem limitadas as perspectivas de mudança estrutural adicional e de futuro crescimento de produtividade na base exclusiva de estratégia fundamentada nos recursos naturais. O que emerge dessa análise comparativa? O contraste entre o Leste Asiático e a América Latina é marcante. Os maiores países da América Latina (Argentina, Brasil, México) situam-se em grupos sem dinamismo em industrialização, mudança estrutural e aumento da produtividade, ao passo que a maioria das economias do Leste Asiático se encontra em vários estágios de industrialização de êxito. Persistem, portanto, as fraquezas estruturais que, a partir dos anos 1980, deram impulso a radicais mudanças de política na América Latina. Apesar dos avanços indiscutíveis, não há como negar que as reformas de políticas não conseguiram criar as condições necessárias para iniciar um rápido processo de acumulação de capital e de transformação tecnológica capaz de reestruturar as economias latino-americanas com vistas a enfrentar os desafios de integração no sistema globalizado de comércio. Tudo indica que existe uma relação nítida entre o prosseguimento e o adensamento da industrialização e a criação dessas condições. Não se poderia afirmar, ao contrário, que a desindustrialização é a consequênciapositiva do abandono da política de substituição de importações e da adoção de uma estratégia voltada para as exportações, permitindo a melhor alocação de recursos a setores nos quais essas economias são mais competitivas, como no de recursos naturais em agricultura e mineração? Essa afirmação seria verdadeira se o declínio relativo da indústria tivesse coincidido com a aceleração significativa do crescimento, o que de fato ocorreu no Chile, mas não na Argentina, no Brasil e no México. Além disso, a comparação com economias europeias ricas em recursos naturais como algumas da Escandinávia indica que, até mesmo no Chile, a porcentagem do emprego industrial no final dos anos 1990 se situava apenas entre a metade e um terço do nível atingido pelos escandinavos, quando estes se encontravam em patamares de renda comparáveis. Nessas economias escandinavas ricas em recursos naturais, essa porcentagem só começou a cair a partir de um nível de renda muito superior ao que sucedeu na América Latina. Isso significa que não existiriam exemplos de países que alcançaram o desenvolvimento pleno sem industrialização, exclusivamente na base da exploração eficiente de recursos naturais? Na verdade, a experiência histórica confirma que as economias de países como a Austrália, o Canadá e alguns dos escandinavos, que utilizaram mais amplamente as exportações de produtos primários para atingir altos níveis de renda, passaram todas por períodos de forte desenvolvimento e diversificação da indústria como componentes essenciais de sua estratégia de crescimento. Mesmo as cidades-Estados do nosso tempo – Hong Kong e Cingapura –, hoje predominantemente economias de serviços, recorreram no início e por longo tempo à industrialização a fim de superar a estreiteza do mercado nacional e deslanchar o processo de desenvolvimento. De que maneira opera a industrializaçãonesse processo? A longo prazo, são as conquistas de produtividade que asseguram o êxito econômico, e não apenas a acumulação de capital por si mesma. Um processo virtuoso de acumulação e crescimento sustentado está sempre associado a mudanças estruturais na produção e no emprego como resultado tanto da expansão e diversificação das atividades econômicas, passando da agricultura à indústria e desta aos serviços, quanto da evolução para atividades de maior valor adicionado dentro de cada setor, mediante a introdução de novos produtos e processos. Há diferenças sensíveis entre os vários setores em termos dos respectivos potenciais para o progresso técnico e para o crescimento da produtividade. A importância de estabelecer uma ampla base industrial deriva justamente do grande potencial da indústria para um forte crescimento da produtividade e da renda. Esse potencial provém, do lado da oferta, da predisposição da indústria para desenvolver economias de escala, para a especialização e o aprendizado e, do lado da demanda, de condições globais de mercado e de preços habitualmente mais estáveis e favoráveis do que para os produtos primários, sujeitos a frequentes oscilações e com certa tendência a um declínio secular. Trabalhos de Nicholas Kaldor e Simon Kuznets demonstraram a existência de estreita correlação entre as taxas de crescimento da industrialização e da produtividade, assim como entre a aceleração do crescimento e o deslocamento do fator trabalho, do setor primário, de baixa produtividade, para o industrial, de produtividade mais elevada. Não se deve esquecer, aliás, que a agregação de valor a produtos primários da agropecuária e da mineração se faz geralmente mediante processos industriais, daí se originando denominações como agroindústria, indústria agroalimentar etc. Mas se as vantagens de manter uma forte base industrial são tão evidentes, como se explica que os países latino-americanos tenham se resignado a sacrificá-la em muitos casos? A explicação reside, em última análise, no impacto da crise da dívida dos anos 1980, verdadeiro divisor de águas que desviou, de maneira duradoura, muitos países da trajetória de desenvolvimento que até então vinham seguindo. Os latino-americanos tiveram de adotar drásticas mudanças de política econômica, no esforço para reduzir os níveis de endividamento e controlar inflações que ameaçavam deteriorar em hiperinflações. Embora tenha sido inegável o êxito em atingir alguns desses objetivos, as reformas nunca foram capazes de fazer o nível de investimento retornar à fase pré-crise. De modo geral, a América Latina parece ter estabilizado seu nível de formação de capital em torno do investimento por ano de apenas 20% ou menos do PIB, significativamente inferior aos 25% considerados como o ideal para economias em estágio intermediário de desenvolvimento e igualmente muito abaixo da média do investimento prevalecente na fase pré-crise. Tal situação de debilidade macroeconômica, de investimento insuficiente e de instabilidade permanente de taxas de juros e de câmbio preparou mal as economias latino-americanas para o “choque de competição” decorrente da liberalização comercial e financeira simultânea ao processo de ajuste. Inúmeros setores, especialmente na indústria manufatureira, não foram capazes, por causa do estado crítico em que se encontravam, de reagir à concorrência de produtos importados no momento em que perderam a proteção. O processo latino-americano de abertura de choque, conduzido em fase de crítica precariedade da situação macroeconômica, contrasta com o das economias asiáticas, muito mais gradual, progressivo, seguro e realizado a partir de posição de força, por economias capazes de investir 30% ou mais do PIB anualmente e bafejadas por juros extremamente baixos, frequentemente subsidiados, por taxa de câmbio desvalorizada, carga tributária pequena e mínimos encargos trabalhistas e previdenciários. Não é verdade, então, que a situação macroeconômica da região melhorou? Não até o ponto desejável. De fato, uma saudável macroeconomia exige não apenas estabilidade de preços, mas outras condições indispensáveis para propiciar níveis elevados de investimento. Muitas das condições que exercem forte influência nas decisões de investimento e de alocação de recursos, incluindo preços-chaves, tais como a taxa de câmbio, a taxa de juros e os salários reais, de grande impacto na demanda agregada, têm sido extremamente instáveis no continente. Isso se deve, em parte, ao aumento da instabilidade do sistema internacional de pagamentos e à volatilidade externa associados com choques financeiros e comerciais. Por outro lado, alguma responsabilidade cabe igualmente à perda de autonomia em matéria de política macroeconômica resultante da rápida liberalização e da estreita integração nos mercados financeiros globais. Além disso, em lugar de get the prices right, as forças de mercado tenderam a manter as taxas de juros e de câmbio em níveis que impediram a rápida acumulação de capital e a mudança tecnológica. Em outras palavras, a nova estratégia econômica fracassou em produzir um meio ambiente macroeconômico apropriado para encorajar investidores e empresas, apoiando-os na criação e expansão da capacidade produtiva e no aprimoramento da produtividade e da competitividade internacional. Não se poderia descrever o que aconteceu na América Latina como mais uma manifestação do processo de “destruição criativa” de Schumpeter? Seria difícil argumentar nesse sentido. Durante a fase de ajustamento pós-crise da dívida, estima-se que cerca de 7 mil firmas chilenas tenham desaparecido, a maioria de porte médio. Na Argentina, esse número foi de l5 mil. Muitas foram substituídas por grandes empresas estrangeiras cujos setores de engenharia e de pesquisa e desenvolvimento se encontravam no país de origem. Algo similar ocorreu no Brasil com a aquisição por firmas estrangeiras de boa parte do setor de autopeças (Cofap, Metal Leve) e do setor eletrônico e de equipamento de telecomunicações sediado em Campinas. De novo, em muitos casos, o setor de pesquisa foi radicalmente reduzido ou teve sua natureza alterada, passando a ocupar-se apenas da adaptação da tecnologia da matriz a condições locais, o que se chama no jargão de “tropicalização” da tecnologia. Engenheiros de pesquisa foram reciclados em gerentes de vendas. Um estudo de Mario Cimoli e Jorge Katz observa que, em 1974, o lançamento do Taurus pela Ford Argentina demandou 300 mil horas de trabalho de uma equipe de 120 engenheiros, ao passo que hoje, para produzir o world car, a Ford não emprega nenhum engenheiro na Argentina. O que houve, portanto, foi que a parte de “destruição” ocorreu na Argentina, enquanto a parte mais interessante, a da “criação”, foi transferida para o país exportador ou sede da empresa transnacional. O problema foi agravado por algumas das privatizações de empresas estatais que, em certos países, eram responsáveis, juntamente com universidades e instituições públicas, por 80% dos gastos em pesquisa tecnológica, em áreas como telecomunicações e energia, como era o caso do Brasil. Frequentemente, repetiu-se aqui o padrão de muita destruição e pouca criação. O balanço líquido foi um retrocesso na geração local de tecnologia e no aumento de uma dispendiosa dependência tecnológica em relação ao estrangeiro. Essa foi uma das razões que levaram a uma mudança na composição da produção e das exportações de países da região, que se concentraram mais ainda do que no passado nos produtos oriundos de recursos naturais, distanciando-se dos setores com maior potencial de aumento da produtividade. Não é de admirar, nessas condições, que, fora exemplos esporádicos como o da indústria aeronáutica, cuja existência, aliás, se deve a uma política de Estado, seja extremamente limitada a oferta de países como o Brasil em matéria de manufaturas de alta tecnologia e valor agregado capazes de competir com os produtos asiáticos em mercados altamente competitivos como os dos Estados Unidos e dos países europeus. Que tipos de indústria conseguiram sobreviver a essas condições adversas? Como é sabido, muitas das indústrias de ponta, responsáveis pelos produtos mais dinâmicos do comércio mundial – computadores, componentes eletrônicos, máquinas e equipamentos de escritório, química fina, fármacos –, praticamente desapareceram do panorama produtivo da América Latina, salvo sob o aspecto de linhas de montagem. O que sobrou foi basicamente: a) indústrias de processamento de recursos naturais a fim de produzir commodities industriais, tais como papel, celulose, suco de laranja, farelos e óleos vegetais, ferro, aço, alumínio, metais, cimento; b) indústrias de alimentos, de material de limpeza, cosméticos, de móveis etc.; c) linhas de montagem de equipamento eletrônico, aparelhos de TV e vídeo, de telecomunicações, como os telefones celulares; d) indústrias têxteis, de vestuário e calçados, crescentemente pressionadas pela concorrência chinesa; e) petroquímica em alguns países, graças à significativa proteção tarifária; f) indústria de automóvel e de equipamento de transporte, objeto de tratamento protetivo especial, às vezes no contexto de acordos subregionais como o Mercosul. Fora poucas exceções, como a da indústria automobilística, esses não são em geral os tipos de setor que desempenham papel decisivo para aumentar a competitividade internacional por meio da pesquisa e desenvolvimento de produtos e do progresso tecnológico. No caso do Brasil, o panorama é mais diversificado, já que o país foi capaz de preservar uma estrutura industrial bem mais ampla e completa do que na maioria das outras nações do continente. Essa estrutura, felizmente para nós, inclui até mesmo um setor bastante razoável de bens de capital, maquinaria e equipamento. Alguns ou muitos desses setores sofrem hoje outro tipo de “choque de competição”, o da concorrência chinesa, que opera como uma espécie de segunda geração de pressões e desafios em relação ao primeiro impacto da liberalização dos anos 1990. A sobrevivência até o instante de uma base industrial mais diversificada no Brasil é uma razão a mais para identificar políticas e medidas de indiscutível qualidade econômica, que sejam capazes de evitar que a indústria, sobrevivente do primeiro choque, não se afogue agora no segundo. O processo de rápida liberalização produziu na América Latina dois padrões específicos, mas contrastantes na especialização industrial. Os países mais estreitamente ligados ao mercado dos Estados Unidos, seja pela vizinhança geográfica, seja por acordos comerciais, se concentraram nas indústrias de linha de montagem do tipo maquiladoras, que produzem quase exclusivamente para o mercado norte-americano ou para reexportação para terceiros a partir dos Estados Unidos, criando empregos de baixa especialização e modestos salários. Por outro lado, as economias da América do Sul, tais como as da Argentina, do Chile e, com as qualificações e diferenças expostas, no exemplo particular do Brasil, expandiram as indústrias baseadas em recursos naturais, aumentando a intensidade em capital de tais atividades, mas sem impacto correspondente na geração de empregos. Ambos os tipos de atividade possuem conteúdo relativamente baixo de valor agregado interno e nenhuma delas proporciona o gênero de transformação da produção nacional e do padrão exportador capaz de fazer do comércio um motor de crescimento. O que fazer? Acima de tudo, evitar fórmulas simplistas e simplórias. Por exemplo, a do famoso “choque de competitividade” de vez em quando ressuscitada por assessores do Ministério da Fazenda e gente vinculada ao mercado financeiro. A última versão foi a da redução substancial das tarifas industriais. Embora pareça supérfluo, não custa repetir que é absurdo falar de “choque de competitividade” no momento em que o setor produtivo enfrenta no Brasil condições incomensuravelmente mais adversas do que os concorrentes potenciais em todos os fatores- chaves determinantes da competitividade internacional, a saber, a taxa de juros, a taxa de câmbio, a carga tributária e o custo de transação resultante da infraestrutura de serviços. Um fenômeno de causas tão complexas e variadas como é a desindustrialização precoce só poderá ser combatido por terapêutica igualmente diversificada, que contenha ingredientes capazes de atacar as raízes macroeconômicas descritas, assim como os problemas de diferente natureza aqui exemplificados na área de ciência e tecnologia, de pesquisa e desenvolvimento de produtos, de inovação etc. Identificar os diversos componentes de tal terapêutica foi precisamente o objetivo do seminário realizado na Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), em 28 de novembro de 2006. Na ocasião, um dos mais importantes objetivos foi estimular um esforço sistemático e constante com vistas a valorizar o papel transformador e de liderança da indústria manufatureira no processo de desenvolvimento, reatando com a tradição de pioneiros como Roberto Simonsen e Euvaldo Lodi. Para isso, é indispensável reagir contra o verdadeiro preconceito que, consciente ou inconscientemente, se criou contra o setor, voltando a dar-lhe condições normais para poder concorrer internacionalmente e sobreviver no âmbito interno. Um elemento indispensável em tal sentido é uma estratégia para as negociações internacionais que não aumente ainda mais as dificuldades enfrentadas em função das condições hostis de juros, câmbio e tributos internos. Esse perigo existe não só nas negociações de acordos de livre-comércio como nas da Rodada Doha, da Organização Mundial do Comércio (OMC). Nestas últimas, ficou claro que a tática dos usual suspects em matéria de protecionismo agrícola (França et caterva) é repetir o bem-sucedido jogo utilizado na Rodada Uruguai: alegar a impossibilidade de qualquer movimento em agricultura se não houver antes concessões substanciais do Brasil, principalmente, da Índia e de alguns outros em NonAgricultural Market Access (Nama), isto é, em produtos industriais (e também em serviços). Conforme se sabe, pagamos, naquela ocasião, um preço altíssimo em reduções tarifárias industriais, propriedade intelectual, medidas de investimento relacionadas ao comércio (como a proibição do conteúdo local ou índice de nacionalização no processo manufatureiro), em perda de flexibilidade ou policy space para adotar políticas de estímulo à indústria, de amplo e irrestrito uso pelos países avançados quando ainda se encontravam em fase de industrialização. Nossos ganhos em agricultura, em compensação, foram modestos e mais conceituais do que concretos. No momento, algumas das fórmulas propostas em Genebra por países desenvolvidos implicariam reduções, da parte de países em desenvolvimento, de mais de dois terços na média ponderada das tarifas aplicadas e de mais de três quartos dos níveis atuais da média ponderada de suas tarifas consolidadas. Conforme tem sido demonstrado nos estudos dos economistas da Unctad, Santiago Fernández de Córdoba, Sam Laird e David Vanzetti, tais reduções constituiriam cortes incomparavelmente mais profundos do que os efetivados pelos principais países ricos ao longo dos trinta anos após a Segunda Guerra Mundial. A experiência histórica indica que, no processo de industrialização, o que conta não é tanto o nível médio das tarifas, mas seu perfil setorial. A tarifa ideal é a desenhada para proteger o processo de aprendizagem e de aquisição de competitividade nos setores dinâmicos, não nas indústrias em declínio. Um dos fatores que diferenciaram Coreia do Sul e Taiwan e explicam o êxito da industrialização dessas duas economias foi justamente uma estrutura tarifária racional inspirada no princípio da proteção seletiva e temporária (Yilmaz Akyuz,The WTO negotiations on industrial tariffs: what is at stake for developing countries [As negociações da OMC sobre tarifas industriais: o que está em jogo para os países em desenvolvimento], TWN, Penang, 2005). Essa verdade nos aconselha extrema cautela nas atuais negociações, uma vez que as fórmulas mais favorecidas pelos negociadores representariam perdas substanciais e súbitas de proteção em setores como o automobilístico e o eletrônico, exatamente os que apresentam as características desejáveis de dinamismo e alta capacidade multiplicadora de efeitos benéficos para a indústria como um todo. Rubens Ricupero – Diplomata e ex-ministro do Meio Ambiente e da Fazenda, é diretor da Faculdade de Economia da Faap. Foi secretário-geral da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (Unctad) entre 1995 e 2004. Nota: Salvo algumas observações pessoais, sobretudo em relação ao Brasil, o presente trabalho é, em grande parte, extraído do 2003 Trade and Development Report, da Unctad, época em que desempenhei as funções de secretário-geral da organização. Busquei aqui organizar e sintetizar as principais teses e demonstrações do relatório, com ênfase nos capítulos IV (Economic growth and capital accumulation), V (Industrialization, trade and structural change) e VI (Policy reforms and economic performance: the Latin American experience). O mérito do trabalho cabe aos redatores do relatório, entre os quais o Dr. Yilmaz Akyuz, então diretor da Divisão sobre Globalização e Estratégias de Desenvolvimento e chief economist da Unctad, e a seus principais colaboradores, Richard Kozul-Wright e Jorg Meyer.