puc minas - pesquisa

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A problemática do crack na sociedade brasileira: o impacto na
saúde pública e na segurança pública
Resumo das principais conclusões
Pesquisa financiada com recursos do CNPq – Conselho Nacional de Pesquisa
Período de realização: Dezembro /2008 a Julho/2010
Agosto de 2010
FICHA TÉCNICA
COORDENAÇÃO: Prof. Luis Flavio Sapori, Curso de Ciências Sociais da PUC
Minas e coordenador do CEPESP – Centro de Pesquisas em Segurança
Pública da PUC Minas
EQUIPE DE PESQUISADORES
Regina Medeiros, Professora do Curso de Ciências Sociais da PUC Minas
Lucia Lamounier Senna, Professora do Curso de Ciências Sociais da PUC
Minas
Bráulio Figueiredo, Doutorando em Sociologia pela UFMG
Antonieta Guimarães Bizzotto , Pesquisadora do Centro Mineiro de
Toxicomania
Bruna de Fátima Chaves Aarão, cientista social
Gustavo Satler Cetlin, pesquisador do Centro Mineiro de Toxicomania
Oscar Antonio Cirino, pesquisador do Centro Mineiro de Toxicomania
Radamés Andrade Vieira, professor do Curso de Ciências Sociais da PUC
Minas
OBJETIVOS
A pesquisa teve os seguintes objetivos:
G e ra l
Compreender os mecanismos sociais e simbólicos envolvidos na relação entre
o tráfico do crack e a disseminação da violência, bem como aqueles envolvidos
no consumo compulsivo dessa substância e os tratamentos e serviços de
atenção ao usuário.
Específicos
 Analisar as características do comércio do crack e da epidemia de violência
que ele tende a provocar;
 Analisar as modalidades de tratamento e projetos terapêuticos –
ambulatorial, permanência dia e internação – direcionados aos pacientes
usuários do crack.
 Analisar as modalidades de encaminhamento – familiar, judicial, demanda
espontânea – dos usuários do crack aos serviços especializados de
tratamento.
 Analisar a aderência e a rotatividade dos pacientes durante o período de
tratamento.
METODOLOGIA
Foram utilizados métodos quantitativos, bem como métodos qualitativos de
coleta de dados. Optou-se por concentrar a coleta dos dados empíricos nos
municípios da RMBH. Nesse sentido, procedeu-se da seguinte maneira:
a) para a compreensão das motivações dos homicídios e sua relação com o
comércio do crack foram utilizados como base de dados os inquéritos policiais
já encerrados e remetidos à Justiça no período de 1993 a 2006, em Belo
Horizonte, focando nos Relatórios Finais. Foram consultados 671 relatórios
finais de inquéritos de homicídios ocorridos em Bem Horizonte no referido
período, escolhidos aleatoriamente;
b) a compreensão do comércio do crack exigiu, por sua vez, a realização de
entrevistas semi estruturadas com indivíduos que participam atualmente do
tráfico da droga, como também com indivíduos que já participaram do tráfico e
hoje encontram-se em tratamento em clínicas especializadas, totalizando 19
entrevistas;
c) foram realizadas também entrevistas com policiais civis que trabalham no
Departamento de Tóxicos e Entorpecentes de Belo Horizonte como também
com policiais militares com atuação operacional, totalizando 10 entrevistas;
d) para analisar os desafios do atendimento e tratamento dos usuários de
crack foram realizados grupos focais com os profissionais que atuam nas
unidades pesquisadas, totalizando 7 grupos focais com 12 participantes
cada, totalizando 84 diferentes profissionais que mantinham contato com
os pacientes. Foram reunidos psicólogos, assistentes sociais, porteiros,
auxiliares de enfermagem, enfermeiros, médicos, terapeutas ocupacionais e
motoristas de ambulância, entre outros. Além disso, foi entrevistado o gestor
de cada instituição, sendo 7 entrevistados;
e) realizamos também entrevistas com 23 usuários de crack em tratamento.
Foram priorizadas as seguintes informações: percepção da substância crack;
trajetória do uso de drogas; impacto do tratamento em suas vidas; histórico
de tratamentos (internação, permanência-dia, centros de saúde etc.); relação
entre crack e outras drogas; momentos de intoxicação e de abstinência e sua
relação com atos de violência, vínculos familiares, profissionais e afetivos;
principais problemas decorrentes do uso compulsivo de crack e percepção
de risco.
f) As entrevistas com os pacientes e com os profissionais foram realizadas nas
seguintes instituições:

Centro de Atenção Psicossocial - CAPS: optou-se pelo CAPS
Contagem e pelo NAI

Centro de Atenção Psicossocial: Álcool e Drogas - CAPS AD: optouse pelo CMT e pelo CAPS AD Ribeirão das Neves;

Comunidade Terapêutica: foram escolhidas a Terra da Sobriedade e a
Fazenda de Caná;

Hospital Psiquiátrico: escolhido o Hospital Raul Soares
PRINCIPAIS CONCLUSÕES
As entrevistas mencionadas acima propiciaram as seguintes informações e
observações a respeito da relação entre o crack e violência e a relação entre o
crack e a saúde pública.
1) A relação entre crack e violência

A entrada do crack em Belo Horizonte
O tráfico de drogas em Belo Horizonte caracterizou-se até meados da década
de 1990 pela prevalência da comercialização de duas drogas ilícitas, quais
sejam, a maconha e a cocaína. O mercado das drogas ilícitas começa a se
alterar em Belo Horizonte com a entrada de novo produto, que é o crack. A
partir de 1995, na Pedreira Prado Lopes, tradicional favela da cidade, a
nova droga é oferecida ao consumidor da capital.
O crack que chegou a Belo Horizonte naquele período era oriundo de São
Paulo. A quadrilha chefiada pela família Peixoto na favela Prado Lopes foi
a responsável pela introdução do novo produto. Nos últimos anos, contudo,
a produção do crack e sua comercialização no atacado passam a se dar no
próprio estado de Minas Gerais. Proliferam os laboratórios clandestinos que
compram a pasta base, o sulfato de cocaína, e dela extraem a cocaína em pó e
a cocaína em pedra, que é o crack.

A epidemia de homicídios em Belo Horizonte
A entrada do crack em Belo Horizonte é seguida de uma epidemia de
homicídios que atingiu a cidade a partir de 1997. Os resultados obtidos pela
pesquisa mostram que há uma forte evidência de que o crescimento das
ocorrências de homicídios em Belo Horizonte a partir de 1997 possa ser
explicado, em grande medida, pela intensificação dos conflitos
relacionados ao tráfico de drogas.
A observação atenta da evolução dos homicídios em Belo Horizonte nos
últimos 20 anos permite-nos identificar três momentos bem distintos. Um
primeiro momento, que pode ser definido por “evolução estável”, indo de 1990
a 1996. Um segundo momento de crescimento consecutivo dos números
absolutos de mortes em Belo Horizonte, entre os anos de 1997 e 2004, e que
pode ser considerado como um período de “deterioração gradativa” e, por fim,
o momento de reversão de tendência ou “evolução negativa” que se inicia no
ano de 2005 até o último ano dos dados disponíveis.
Fonte: DCCV – PCMG
Procuramos categorizar as principais motivações dos homicídios nos 671
inquéritos policiais analisados, para todo o período.
Tabela 1 – Motivação relacionada ao crime de Homicídio
Motivação
Frequência
Percentual
Conflitos relacionados ao comércio
de drogas ilícitas
Conflitos relacionados a vingança /
acerto de contas
Conflitos nas relações afetivas
Conflitos oriundos de discussões
em bares ou similares
Outras motivações
Indefinido
Total
124
18,48
92
78
13,71
11,62
55
263
59
671
8,20
39,20
8,79
100
Fonte: DCCV – Tabulação própria
Quando se analisou a distribuição de tais motivações por cada um dos
períodos já especificados, obtivemos evidências importantes. Fica
evidenciado que os conflitos relacionados ao tráfico de drogas tornaramse a principal motivação da ocorrência de homicídios em Belo Horizonte
a partir de 1997.
Tabela
2
–
tempo5
D
istrib*ucrack
içãoCrosstabulation
das
motivações
por
Motivação Principal
Outras
Período
de 1993 a 1996
frequência
%
de 1997 a 2004
frequência
%
de 2005 a 2006
frequência
%
Total
frequência
%
Drogas
ilícitas
Total
165
15
180
91,7%
8,3%
100,0%
316
75
391
80,8%
19,2%
100,0%
68
34
102
66,7%
33,3%
100,0%
549
124
673
81,6%
18,4%
100,0%
período
Fonte: DCCV – Tabulação própria
Nesse estudo foi usado o modelo de regressão logística para medir o grau de
associação existente entre os períodos considerados e a incidência de
homicídios cuja motivação é devida a drogas ilícitas. No período de 1997 a
2004 as chances da ocorrência de homicídios devido a conflitos relacionados a
drogas ilícitas são 2,31 vezes superiores comparadas ao período de 1993 a
1996.
Pode-se afirmar que as hipóteses desse trabalho se confirmam, isto é, tanto no
período da disseminação do crack em Belo Horizonte, que vai de 1997 a 2004
e no período imediatamente posterior a este, que vai de 2005 e 2006, a
probabilidade de homicídios devido a drogas ilícitas aumenta
consideravelmente. Nenhuma das outras motivações teve tal impacto nos
homicídios a partir de 1997.
Comparando o gráfico de número absoluto de homicídios em Belo Horizonte
com o gráfico dos valores preditos das probabilidades decorrente de homicídios
cuja motivação tenha sido o tráfico de drogas, observa-se um comportamento
muito similar ao longo do tempo. O crescimento das probabilidades a partir da
disseminação do tráfico em Belo Horizonte que se deu em 1997 coincide com o
início da epidemia de homicídios nesta cidade, que teve seu ápice em 2004,
momento no qual começa a ser verificada certa reversão das probabilidades.
.1
.15
.2
.25
.3
Gráfico 3 – Valores preditos das probabilidades ao longo do tempo
-5
0
5
10
temp_anos

Jovens e armas de fogo
O período da disseminação e da consolidação do comércio do crack em
Belo Horizonte coincide com o crescimento da vitimização dos jovens na
faixa etária de 15 a 24 anos de idade. Como se observa no gráfico a seguir,
a taxa de homicídios nessa faixa etária começa a se destacar, distanciando-se
da taxa de homicídios da faixa etária acima de 25 anos a partir da segunda
metade da década de 1990, contrariando o que acontecia nos anos anteriores.
A taxa de homicídios entre os jovens de 15 a 24 anos tornou-se 2,5 vezes
maior do que taxa dos adultos acima de 25 anos.
A análise das taxas médias por períodos de cinco anos confirma essa
tendência de juvenescimento dos homicídios em Belo Horizonte.
TAXA MÉDIA/BELO
HORIZONTE
15 a 24 anos
25 anos e mais
TX TOTAL
19801986- 1991- 1996- 20011985
1990
1995
2000
2005
41,7
40,5
51,2
94,2
216,7
44,4
30,9
36,9
56,9
93,9
13,9
11,3
14,3
22,4
42,1
O estudo estatístico evidencia ainda a forte presença da arma de fogo nos
homicídios ocorridos na cidade. As chances de que uma morte desta natureza
seja cometida por arma de fogo é 3,5 vezes maior que se tenha o mesmo crime
cometido por algum outro instrumento. E essa predominância da arma de fogo
nos homicídios foi bastante acentuada entre 1997 e 2004, conforme vemos no
gráfico adiante.
Taxa de Óbitos Por Arma de Fogo
Belo Horizonte - MG / 1997- 2006
50
Taxa por 100.000 hab.
45
40
35
30
25
20
15
10
5
0
1997

1998
1999
2000
2001
2002
2003
2004
2005
2006
O tráfico do crack : redes e firmas
O senso comum prevalecente na sociedade brasileira concebe a violência
como atributo de uma atividade criminosa tipicamente organizada. O
narcotráfico atuante nas favelas é tratado como uma organização
estruturalmente fechada, com rigidez de papéis e que uma vez inserido há
impossibilidade de desligamento. As situações de conflito, geradoras de
violência e homicídio são explicadas, em última instância, por essa rigidez.
Os achados de nossa pesquisa nos levam a outra direção para pensarmos o
fenômeno. Não parece que necessariamente os conflitos estão relacionados a
uma estrutura rígida, mas pelo contrário à estrutura aberta de redes. Podem
ser qualificadas como organizações criminosas, sem dúvida alguma, mas
que se estruturam como redes de relacionamentos, o que é bastante
singular.
Uma rede é sustentada pelas suas conexões e o arranjo dessa integração não
é planejada em toda a sua extensão. Uma determinada ordem, uma estrutura
de rede, é um processo emergente, condicionado pelas relações estabelecidas
entre os indivíduos que a compõem. É dessa maneira que tem funcionado o
tráfico de drogas ilícitas, em especial o tráfico do crack, na região metropolitana
de Belo Horizonte.
A rede criminosa que comercializa o crack pode se categorizada como
REDE DE BOCAS. As Bocas constituem suas conexões em rede a partir de
dois formatos: uma rede de comercialização hierarquicamente centralizada,
uma “firma reconhecida” como pertencente a um patrão. Apresenta estrutura
hierárquica de poder e divisão de atividades de trabalho. Outro formato são
as redes de conexão iniciadas por um grupo de indivíduos, ou um único
indivíduo, que assume a autoridade da revenda em um local, um ponto,
mas não necessariamente apresenta uma estrutura hierárquica.
A dimensão territorial é variável imanente à rede de Bocas. Sua formação em
uma determinada localização é dimensão estratégica em termos de uma
referência como ponto de venda. O pertencimento de um grupo/indivíduo se
relaciona a esse local consolidado como próprio de uma atividade ilícita aceita
ou tolerada pelos que habitam nessas regiões.
No caso das redes de Boca centralizadas, as firmas, instaladas nos grandes
aglomerados, a formação inicial parece estar relacionada à conexão
estabelecida entre um ou mais membros de uma comunidade e um fornecedor
fora dela. Essa ligação entre os nós permite a instalação de um ponto de
venda cuja estrutura é marcada pela presença de um gerente, figura
central desse tipo de rede, e de pessoas a ele conectados na condição de
pertencentes ou trabalhadores da Boca.
As firmas possuem propriedade relacionada a um indivíduo com força real e
simbólica. É uma figura de referência forte, com poder de decisão sobre a
dinâmica da rede. É chamado de patrão e é considerado como aquele que “põe
a droga no lugar.”
Um dos movimentos mais dinamizadores de uma rede de Bocas é o das
conexões dos moradores locais que querem se integrar à comercialização.
Podem estar conectados na condição de vapores ou guerreiros (vendedores),
aviões (acionam os vendedores e entregam a droga), correria (deslocamento
entre bocas), olheiros, fogueteiros (acionadores da segurança), faxineiros ou
ratos (cobradores e matadores).
Em geral, estas conexões são compostas por jovens a partir dos 12 anos,
(ainda que a pesquisa tenha identificado que nas firmas a presença de jovens
abaixo dessa idade é freqüente) que se conectam com o objetivo de obter um
trabalho e renda, benefício de acesso à droga e integração simbólica. O acesso
a um pertencimento é, também, um produto ofertado por uma Boca.
A centralização indica domínio sobre um território socioeconomicamente frágil
e, portanto, mais propício para a ação de um grupo centralizador que se impõe
com força real e simbólica nessas localidades. A imposição de poder local,
necessariamente, gera despotismo, tais como regras privadas de controle e
resolução de conflitos, restrição do direito de ir e vir, porte de armas para
constrangimento, dentre outras formas de dominação que possam atuar como
garantia de prevalência de poder.
Importante característica da rede de bocas é a inserção de novas conexões
para além do núcleo duro da firma. Há processo de repasse da droga de
vendedores para consumidores que, por sua vez, se transformam em
consumidores/vendedores e assim por diante. É próprio dessas redes um
movimento interno das conexões em que um conector usuário passa
eventualmente a ser conectado por referência de revenda do produto.
Nesse movimento constitui sua rede de conexões próprias, independente das
ligações com o link anterior do qual obtém a droga.
Esse movimento sustenta e estende a rede até o ponto máximo em que cada
um dos seus pontos de conexão consegue se espraiar. Nessa ampliação da
rede o usuário garante, também, o seu uso a partir do próprio produto, fator
que dinamiza a rede de comercialização.
No entanto, a capacidade de venda do vendedor/usuário não depende
simplesmente do seu voluntarismo, de um perfil empreendedor. Está, também,
condicionada à sua inserção em redes de relacionamento mais amplas. Grande
parte dos que atuam como vendedores nas Bocas pertencem a redes mais
restritas pelo próprio fato da sua condição socioespacial. Em geral, seu
relacionamento são os próprios moradores da região ou das proximidades, fato
que restringe o público consumidor.
Atualmente, as redes de Boca comercializam de maneira predominante o
crack, ainda que também a cocaína e maconha sejam vendidas. No entanto,
esses produtos foram apresentados como tendo, nesse momento, menor peso
comercial.
“Maconha todo mundo tem e todo mundo ganha,
agora o plantão da pedra é o melhor.” (traficante
entrevistado)
“ O Crack é ouro!” (traficante entrevistado)
“Eles não se interessam em vender maconha que é
barato, interessa vender o crack. Porque o crack é
uma droga pequena, de consumo muito rápido, a
pessoa vai voltar toda hora, é muito viciante.” (ex
traficante entrevistado)
“A maconha dá movimento, cheiro e pouco dinheiro.
É pra quem mexe com coisa pequena!” (traficante
entrevistado)

Conflito e violência no tráfico do crack
O domínio do crack nas Bocas relaciona-se com os conflitos de natureza
mercadológica, sendo o mais recorrente o processo de endividamento que
envolve tanto os usuários (conexões externas) quanto às conexões internas, ou
seja, os indivíduos que atuam na rede exercendo papéis de frente na
comercialização.
Os relatos apurados demonstram que o crack potencializou as situações de
endividamento na rede por uma questão relacionada ao seu principal efeito
farmacológico: compulsão ao uso.
“É caro "pra carai"! Se você pega 10 reais de maconha, você faz 6,
7cigarro, você usa de manhã, à noite e depois vai... por isso que
hoje em dia os caras nem fazem muita questão de maconha, eles
vendem
mais
crack, que dá mais dinheiro, e é uma droga que controla mais
o ser humano” (traficante entrevistado)
No caso do endividamento do usuário, os relatos indicam que não
necessariamente ele está propenso a ser vítima de uma situação de violência
devido à sua dívida, a não ser quando quebra os procedimentos em relação
aos débitos. Isso significa que dever não é um mal em si, mas a traição sim.
Por exemplo, se um usuário está devendo uma Boca e compra de outra ele
está infringindo um código local, denunciado, inclusive, entre Bocas
concorrentes.
“O traficante não mata o usuário porque ele tá devendo. Ele
mata porque ele é um sem vergonha e tá devendo e foi
comprar na outra Boca. É nessa situação que ele mata o
usuário. Se ele comprou num pagou, mas num tá devendo,
não tá usando, o traficante segura mais a onda. Mas se vê
que ele tá chapado, tá tirando mercado dele, ‘cê tá achando
que eu sou otário?” ( traficante entrevistado)
Outra variável de violência relacionada ao crack são os conflitos originados do
“derrame” da droga, ou seja, a sobreposição do uso no montante da droga que
tem que ser paga através da venda. Ao contrário de outras drogas, o crack não
é um produto que permite “malhação” ou “dobra” que são estratégias para
garantir geração de um plus a partir de uma quantidade de produto adquirido.
Sendo assim, a incorporação do usuário à rede de comercialização para o
sustento do uso e, portanto, o derrame, torna-se mais recorrente devido à
fissura pelo uso.
Na cadeia de repasse, o derrame torna-se não somente um problema para o
usuário, mas para o vendedor que repassou a droga para o usuário e que
posteriormente tem que acertar contas com a sua Boca. Os conflitos se
estendem na medida em que a rede de conexões se amplia e há movimento
dos papéis de seus integrantes.
“Eles ficam ali ajudando os traficantes, os distribuidores a
distribuir, vigiando, ou até mesmo entregando pedrinha em
troca de pedrinha, porque não pode ser mais, porque se você
dá pra ele 5 pedrinhas e pede pra entregar em algum local,
antes de chegar lá eles já fumaram as pedrinhas...” (
traficante entrevistado)
“Agora tem nego que não fuma a pedra é a pedra que fuma o
cara. Bandido que é bandido não é viciado. Cê tá vendendo
50 bolinho, cê vai queimar 10? Aí cê queimou o lucro todo!” (
traficante entrevistado)
O processo de endividamento gerado pelo crack desemboca em outro tipo de
conflito interno à comunidade e/ou seu entorno, o roubo. Esse tipo de delito
torna-se prática comum na medida em que as bocas atuam muito por
escambo. O trabalho de grande parte das conexões internas à rede é mão de
obra remunerada por produto. Nesse sentido, tanto o dinheiro quanto algum
tipo de bem atua como meio de troca para o produto. Esse fato valida o roubo
como prática própria do comércio do crack.
As situações geradoras de conflitos abertos, alguns denominados como “guerra
do tráfico” geralmente são originadas de um processo de concorrência primitiva
qual seja, a tomada de uma boca. Esse fenômeno de maneira unânime foi
chamado pelos entrevistados como de “olho grande”. A rentabilidade de uma
boca atrai para si as atenções daqueles que atuam no mercado local. Essa
situação dependendo da força maior ou menor dos controladores de uma Boca
pode levar à tomada de Boca ou ao desmantelamento da mesma.
A violência relacionada ao tráfico do crack tem outra dimensão da
mercadológica. Conflitos de natureza pessoal tendem a fomentar situações
diversas de uso indiscriminado da força física. Os relatos demonstram que até
em situações em que uma disputa ou mal entendido ocorre, resoluções
extremas e/ou a prática de homicídio apresentam-se como resposta obrigatória
ao ocorrido. Mas não necessariamente há uma questão comercial como o fator
desencadeante do conflito.

Regulação da violência no tráfico do crack
Os dados indicam que quanto mais organizada e forte as conexões centrais de
uma rede, menor será a probabilidade de ocorrência de conflitos internos à
rede. Realização de acordos comerciais, distribuição de pontos, no sentido de
garantir a sua própria sobrevivência. Grandes conflitos atraem as atenções e
uma exposição, para além das conexões centrais podem levar a uma
desestruturação radical da dinâmica de uma rede.
Considerando esse aspecto, pode-se compreender a tendência de redução dos
homicídios em Belo Horizonte que se iniciou em 2005, mantendo-se até 2009.
A ação repressiva qualificada adotada pela Secretaria de Defesa Social,
pautando-se pela prisão de homicidas contumazes como também pela
presença mais ostensiva da PMMG nas regiões de maior violência, acabou por
reduzir a letalidade dos conflitos oriundos do tráfico do crack.
2) O crack e a saúde pública

O perfil do usuário do crack
Na trajetória da pesquisa, com observação direta nos serviços de atenção ao
usuário de crack e a partir das entrevistas com os profissionais, com gestores e
com os pacientes é possível certificar, com muita segurança, que é
equivoco, quase que imperdoável, determinar um perfil único e absoluto
para o paciente de crack, certamente se passa igual para aqueles que
utilizam outras drogas. No nosso caso, foi possível identificar três categorias
de pacientes usuários de crack:
a) – O paciente psicótico: trata-se de um paciente que apresenta um quadro
psiquiátrico de psicose e que faz uso de crack. Nesse caso, o crack pode
alterar e/ou agravar o seu quadro levando a alucinações e paranóias. Esse é
um caso, que em momentos de crise necessita de internação em hospital
psiquiátrico para tratar de sua psicose. Podendo dar continuidade em unidades
de tratamento de saúde mental em nível ambulatorial.
Nesses casos o ponto principal é a estabilização do quadro psicótico. Em
alguns momentos e dependendo do delírio do paciente a droga, principalmente
o crack, com o efeito de “nóia”, pode agravar um quadro preexistente e colocar
o paciente ou seus familiares em risco. Para esta situação, e somente quando
existe risco de auto ou hetero agressão, está prevista a internação
compulsória. Considerando que a internação em hospitais públicos tem um
prazo de mais ou menos 15 dias. Após a internação “na crise” o seguimento
dos casos pode se dar nos serviços substitutivos. Aonde não tem CAPS ad,
nos CAPS I, II, ambulatórios, etc. É fundamental tentar manter a estabilidade
do quadro psicótico para possibilitar a abordagem relacionada com o uso de
drogas. A atenção tem que ser redobrada devido à vulnerabilidade maior do
portador de sofrimento mental, de ser influenciado e/ ou “usado” no contexto
social que o cerca.
b) “O marginal travestido de paciente”: Trata-se do individuo que faz uso do
rótulo “craqueiro”, simula um quadro de fissura e/ou abstinência para
buscar/exigir uma internação ou tratamento nas instituições especializadas.
Esse é um mecanismo manipulado para fugir de traficantes, polícia demandar
auxílio doença, benefício previdenciário ou para escapar das pressões
familiares. Nos centros de tratamento esses pacientes não aderem ao
tratamento, roubam roupas ou objetos de uso pessoal de outros pacientes e
outras coisas que encontram “descuidadas” nas instituições.
Esse tipo de “paciente” não tem aderência ao tratamento, pois seu interesse é
ter um “certificado” de doente para escapar de situações embaraçosas
decorrentes do uso de drogas, além disso, representa risco para os
funcionários com constantes ameaças e para as demais pessoas que se
encontram ai em tratamento. Alguns desses pacientes levam drogas para
vender para outros pacientes nessas instituições, e apresentam
comportamento agressivo.
“Os crackeiros extremamente agressivos, extremamente violentos, nos
ameaçam de morte, o tempo inteiro, o tempo inteiro, é o que a gente
mais escuta aqui “na hora que eu sair daqui eu sei o seu horário, eu sei onde
você mora, uma hora você vai ter que sair daqui, lá fora, eu sei a cor do seu
carro, eu sei a placa
do seu carro, eu estou lá fora te esperando”
Muitas vezes, esse paciente se torna insuportável também para sua família que
implora ajuda dos profissionais.
“A mãe de um nos ligou e disse: “Vocês podem mandar ele pro inferno
porque
aqui comigo e não quero mais”. A família não quer”
Para esse tipo “marginal travestido de paciente” a equipe de saúde não dispõe
de mecanismos adequados para tratar, pois não se trata de um caso para
instituições de saúde. Pois, nesses casos invariavelmente estamos diante de
pessoas com transtorno de personalidade, perversos, psicotapas, que não
demandam, nem querem tratamento, querem “usar” as estruturas de atenção
para conseguir auferir ganhos diretos ou indiretos. O acompanhamento
medicamentoso ou psicoterapêutico costuma não ter nenhum efeito é
necessário outros dispositivos.
c) O usuário compulsivo, neurótico: Trata-se de um usuário compulsivo que
pode fazer uso descontrolado de crack e apresenta quadro de fissura. Pela
sensação que tem, da impossibilidade de se controlar, reconhece as perdas
repetidas de laços sociais, familiares e afetivos e sofre por isso, busca ajuda
nas instituições de saúde. Esse caso, na maioria das vezes, conta com a ajuda
de familiares ou cônjuges, mas não consegue sozinho dar conta de resolver
sua problemática.

Abordagem e tratamento dos usuários
Nesses casos o importante é uma abordagem precisa e consistente de
médicos e de outros profissionais. Evidências internacionais apontam para uma
maior possibilidade de sucesso em abordagens que associem: tratamento
medicamentoso e psicoterapia e com suporte de profissionais de outras áreas
de conhecimento. Essa abordagem pode ser bem variada construindo
momentos de afastamento do convívio social como forma de tentar quebrar a
certeza da impossibilidade de se controlar e seguimento do tratamento em
dispositivos abertos como CAPS e ambulatórios. Ou admissão em programas
de redução de danos para os momentos em que, apesar do uso estar
continuado, o paciente aprende a preservar a vida, reduzindo riscos
associados, até que esteja disposto a construir uma abstinência.
Na maioria dos casos esses indivíduos chegam aos serviços especializados
por demanda própria, por demanda da família, sugestão de amigos e ou
colegas de trabalho, por encaminhamento judicial ou para escapar das
ameaças de traficantes
É um equívoco tratar o usuário de crack de forma homogênea e absoluta. É
necessário medidas de intervenção e de cuidado para os tipos diferenciados de
usuários. Para tal são necessários critérios para definição dos casos e
impressões diagnosticas (se não for possível um diagnóstico diferencial claro)
para encaminhamentos adequados para cada tipo de paciente. Esses
dispositivos podem ser: na área de saúde para os pacientes neuróticos e
psicóticos e medidas de segurança pública para os “travestidos de pacientes”.
A equipe de profissionais que trabalha nas instituições de tratamento de drogas
e crack é deficitária para atender a demanda o que se averigua é: um
psicólogo, um enfermeiro e assistente social, com formação acadêmica
especializada. As instituições são organizadas pela lógica instrumental
sistêmica, na qual prevalece a competência técnica do perito e que não
privilegia o provimento de condições para a restituição do dependente de
drogas a uma rede social que lhe ofereça o suporte para sua recuperação e
intervenção em seu contexto social.
Existe uma inércia do Poder Público em definir estratégias para um estudo e
para uma atenção especial no contexto em que o paciente de crack está
inserido e sua rede social no sentido de estimular o toxicômano a restituir e
renovar os laços interrompidos com os o uso compulsivo da substância. Em
decorrência, é notória a rotatividade episódica e a reincidência dos pacientes
aos serviços de atendimento ao usuário de drogas/crack. Além disso, é notório
os riscos sociais e físicos (principalmente de saúde) que os pacientes correm e,
em conseqüência, têm uma qualidade de vida precária e resignados à própria
sorte são mal compreendidos e intoleráveis aos olhos do Estado e da
sociedade civil.
Percebe-se a necessidade elaboração de uma política governamental dos
serviços de atenção; ampliação qualitativa da equipe - com a participação de
sociólogos, antropólogos e outras categorias profissionais-, para atuar de forma
interdisciplinar em outros campos da vida do sujeito e em suas redes
interpessoais. Buscar redes formais de suporte – com juízes, agentes da
defensoria pública, promotores, agentes de segurança pública, agentes da
assistência social, agentes da rede escolar, agentes promotores de cultura,
juizados da infância e da juventude, enfim, com as organizações
governamentais e não-governamentais, além de conclamar a atenção da
iniciativa privada etc.
Evidenciação de espaços urbanos vulneráveis e identificados como território
das drogas ou cracolândia. Esses lugares acolhem não só os usuários de crack
como também os “outros fora da lei”. Aí, esses grupos encontram as
possibilidades de interação social, proteção, visibilidade e construção de
identidade. Muitos dos usuários consideram esses lugares harmoniosos,
diferentemente das relações sociais e familiares que se tornam conflitivas e
insuportáveis. É possível encontrar nesses lugares usuários procedentes de
classe media alta, de zona sul da cidade, que mudam para esses territórios
para minimizar os riscos decorrentes dos constantes deslocamentos para ter
acesso às drogas ilegais, como também por identificar com os habitantes
desses lugares.
O fracasso da política proibicionista está inscrita na transformação ou
demonização do consumo de drogas de forma indiscriminada. Não vale afastar
a culpa das instituições e dirigir para a inadequação do individuo, pois isso
ajuda a difundir a raiva potencialmente rompedora, ou a redistribuir seu papel
nas paixões de autocensura e autodepreciação, ou até mesmo a recanalizá-la
para a violência e a tortura dirigidas contra o próprio corpo. O grande desafio é
discutir como o consumo se caracteriza, qual é a motivação para o uso de
determinadas substancias; compreender se o uso dessas substâncias se
caracteriza como risco ou como proteção ao individuo; trata-se de uma
transgressão ou um estilo de vida?Além disso. o crack chama para o debate as
normas jurídicas e policiais e sobre quem elas devem incidir.

O usuário e a sociedade
Dificuldade de perfilar com precisão o paciente de crack. É notável a demanda
de tratamento por paciente de classe média e classe média alta, grau de
escolaridade média e superior e de condições sócio econômica privilegiadas,
faixa etária que pode variar de 18 a 60 anos de idade. Assim, o craqueiro
apresentado pela mídia é uma imagem negativa é construída com base em
preconceitos para reforçar o estigma em relação a esse individuo ou grupos
sociais. Foi surpreendente encontrar pessoas que não são exatamente como
se vê retratado o craqueiro na mídia.
O crack, pelo efeito rápido e de pouca duração leva à compulsão e
possivelmente á dependência. Para a manutenção do uso, os usuários
compram pequenas e repetidas doses/pedras de crack. Assim, uma droga que
é considerada barata, acaba por surtir um efeito danoso nas economias do
usuário. Os indivíduos de classes sociais mais abastadas começam a gastar
suas economias, não dispondo mais delas, vendem os imóveis e carros,
passando para os objetos pessoais, objetos de sua casa e de seus familiares, e
por fim, envolvimento em delitos mais graves. Enquanto que a população de
baixa renda, gasta seu salário, vende objetos de uso pessoal e domésticos e
passa por um caminho mais curto para os delitos mais graves..
Em uma das entrevistas, um profissional comenta que o crack é a única droga
que “o pobre tira vantagem” e justifica que o comércio está geralmente nas
zonas de periféricas, assim próximo ao seu ambiente onde domina normas,
regras e formas de comunicação, dá acesso a uma forma de consumo rápida,
barato, dá prazer a baixo custo e permite relacionar com outras classes sociais,
que de outra forma não teria acesso.
Ainda que não exista esse perfil definido, o fato de usar crack é suficiente para
designar o sujeito como transgressor e marginal, portanto fora de acesso aos
direitos civis e sociais. Um entrevistado explica: uma paciente do sexo
feminino, de 42 anos de idade, classe média, casada com dois filhos,
organizadora de festa infantil, usava crack há 14 anos. Explica que saía uma
ou duas vezes ao mês para comprar crack, armazenava-o na própria casa e
fazia uso rotineiro, sem que ninguém na sua casa tivesse conhecimento, nem
seu marido. O fato de usar crack não a impedia de ser mãe, esposa e
trabalhadora. Cumpria seus papeis com cuidado e administrava seu uso sem
compulsão. Um certo dia seu marido descobriu e ainda que ela tenha explicado
a forma de uso e o tempo -14 anos- ele entrou com processo, conseguiu sua
internação e a guarda dos filhos. Além disso, denunciou seu uso para a rede
familiar e em seu local de trabalho. A partir desse momento a paciente perdeu
seu direito como cidadã, até mesmo de mãe.
Ainda que o uso de crack esteja disseminado dificultando a definição de um
perfil de usuário, predomina ainda a imagem negativa e o discurso popular
discriminatório. Esse lugar pode ter um caráter ambivalente, pois pode dar ao
sujeito um status de perigoso, doente e valente, contribuindo para um ganho
secundário, seja como doente, louco, bandido, entre outros. Dessa forma
retroalimenta as narrativas articuladas em torno do craqueiro.

Novos grupos de usuários
Constata-se o aumento substancial na demanda de tratamento, assim como a
gravidade das conseqüências que o consumo de crack promoveu nos últimos
10 anos. No inicio da epidemia de crack houve a demanda de clientela
constituída por jovens, do sexo masculino, em condições precárias de saúde,
higiene e em condições de vulnerabilidade social. Essa população apresentava
envolvimento com atos infracionais. A demanda de tratamento era motivada
pelo afrouxamento dos laços sociais e familiares, envolvimento com justiça,
forma de escapar das dívidas e das ameaças dos traficantes, por problemas
clínicos ou para recuperação física.
Nos últimos 4 anos esse quadro vem se transformando agregando pessoas de
nível sócio econômico e social elevado. Em contra partida a equipe
responsável pela atenção a esse novo cenário no campo das drogas, não
recebeu suporte técnico, formação específica, modificação e ampliação do
número de pessoal. Igualmente, as instituições de atendimento não receberam
nenhum suporte específico de recursos humanos e materiais para adequação
desse novo paciente. Esse fato provocou resistência dos profissionais que
compõem a equipe dos serviços especializados e dos serviços
complementares de saúde. Em conseqüência, houve uma desapropriação do
saber do profissional sobre o seu próprio trabalho, gerando sentimento de
medo, frustração e desvalorização profissional na medida em que o saber que
sustenta sua prática não encontra um retorno positivo do lado do usuário.
Ademais, o abandono do tratamento, as situações de constrangimento e as
constantes ameaças aos profissionais ficaram mais freqüentes, provocando
maior resistência dos profissionais em receber o usuário de crack. Trata-se de
um movimento duplo de segregação do saber do profissional, que passa a não
ter sentido, e do paciente, que é vestido do estigma e despido de sua
responsabilidade. Os dois caem nessa dialética do fracasso e da exclusão no
engodo da impotência.
Houve uma mudança do perfil da população que demanda os serviços de
atenção ao usuário de drogas com a proeminência de usuários de crack, esse
fato provoca desencanto profissional, desapropriação do saber e pouca
disposição do profissional de saúde para investir nesse campo específico.
O conceito de fissura é ambíguo e sua imprecisão pressupõe a perda da
autonomia e da responsabilidade daquele que nela se encontra. O sujeito
fissurado será então entendido como aquele que precisa de uma tutela, de um
lugar ou pessoa que se responsabilize temporariamente por ele. A fissura é
pouco compreendida, transforma qualquer demanda no campo do sujeito em
algo incerto e tendencioso, de modo que se torna tarefa das mais difíceis de
identificar. A fissura foi descrita como a manifestação de ansiedade e de
agitação, tendo sua causa atrelada tanto à intoxicação, quanto à abstinência, o
que denuncia um paradoxo já que a primeira diz respeito aos efeitos da
substância no organismo, enquanto a segunda se sustenta nas conseqüências
de sua retirada.
A confusão terminológica e de interpretação foi muitas vezes reconhecida,
principalmente a partir da comparação com termos similares aplicados ao
álcool, que goza de protocolos clínicos e listagem de sinais para se reconhecer
um ou outro termo. Existe uma confusão bastante importante entre fissura –
que é um desejo compulsivo de usar a droga – e abstinência – que é o
aparecimento de sintomas na interrupção do uso de drogas que provocam
dependência física.

Percepções acerca da cura do usuário
O surgimento do crack nas instituições coloca em debate a cura do usuário.
Mas de que doença estamos falando? Se o termo cura significa “livrar-se de”
algum sintoma que inquieta e incomoda o individuo. Então o que o paciente
busca nos serviços de atenção à saúde? O termo cura do crack é apoiado, na
perspectiva dos profissionais, no modelo biomédico de abstinência. Embora
seja um termo comprovadamente controverso, a abstinência ganha força no
plano jurídico, médico e religioso, apesar de sua aplicação ainda produzir como
conseqüência uma indefinição sobre a justificativa de um acompanhamento
posterior à abstinência. O critério temporal usado no pareamento
alta/abstinência revelou-se variável e pouco consistente, sendo justificado por
pré-conceitos aplicado ao consumo de drogas.
Para o paciente a cura está associada à ver-se livre de um comportamento ou
incômodo as avessas dos modelos sociais, ou seja, da delinqüência, das
perdas de vínculos sócio afetivos laborais; de decadência física e problemas
clínicos. Assim, o paciente não parece querer ficar livre do crack (embora faça
referencia a ele como diabo, demônio) e sim daquilo que atravessa na sua
relação com ele, ou de suas conseqüências.
Nesse contexto, a imprecisão terminológica na definição de que a cura interfere
diretamente no abandono recorrente de tratamento, dado que representa o
alívio inicial do mal-estar e do desgaste físico, na continuidade do tratamento,
nas práticas de redução de danos, ainda vista com suspeita e descrença,
obviamente, pela imobilidade da abstinência enquanto conceito a ser mais bem
delimitado.
O que determina uma toxicomania é a maneira pela qual o sujeito vai fazer uso
de uma dada substância caracterizado por um remodelamento dos circuitos de
satisfação construídos pelo sujeito e que provoca o curto-circuito do prazer. O
uso de drogas será uma técnica de administração do prazer e da evitação da
angústia na vida. O toxicômano é aquele cuja técnica fracassou e passou a
responder não ao manejo do gozo, mas ao seu imperativo. O estabelecimento
de um diagnóstico, que deveria auxiliar na abordagem do usuário, longe de
auxiliar na construção do caso, opera na segregação do paciente entre os
serviços e nas restrições em ser acolhido em serviços reservados à saúde
mental e aos transtornos mentais severos. Esta operação de segregação tornase evidente quando estas duas “entidades” estão presentes no mesmo caso,
dividindo o sujeito em seu psiquismo e produzindo um ponto cego na rede de
atenção.
A questão diagnóstica é fundamental na clínica da toxicomania na medida em
que a droga terá funções diferenciadas entre as estruturas clínicas, o que
pressupõe que um tratamento via abstinência pode desencadear diferentes
reações, inclusive conduzindo para uma piora do quadro.
O crack é uma forma de administrar a cocaína e se apresenta como um
problema social na sociedade contemporânea, especialmente nas metrópoles.
Em outros períodos da história e em outras sociedades outras drogas também
foram apontadas como bode expiatório capaz de ordenar o equilíbrio estrutural.
Ou seja, o crack é uma “tradução” das narrativas míticas elaboradas sobre as
folhas de coca e a cocaína, em outros períodos da história da humanidade.
Essa tradução é veiculada pela mídia, que trata de resignificar os sentidos
simbólicos atribuídos a essas substâncias. Isso contribui para o processo de
exclusão social, elemento importante para a manutenção da ordem e do status
quo dos grupos hegemônicos.
Existem poucos estudos sobre o crack, o que pode conduzir a criação de
fantasias em torno do mesmo e a utilização desses dispositivos para atender
aos mais diferentes interesse sócio-economico-político e ideológicos.
A discussão em torno da problemática das toxicomanias, em especial o crack,
transcende os embates ideológicos entre proibição e liberação, abstinência ou
redução de danos e entre CONAD e Ministério da Saúde.
É necessária a promoção de mais debates políticos, norteados por uma
racionalidade razoável, que tenham o foco no sujeito usuário de drogas e que
os atores envolvidos com a questão tenham, independentemente de sua
posição, um objetivo comum, que é a promoção da qualidade de vida a esse
público que, no atual contexto, se encontra socialmente marginalizado e se
tornou vítima de um sistema político atrasado e pouco articulado.
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