Totalitarismo econômico

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Kurz, Robert. " Totalitarismo econômico". São Paulo: Folha de são Paulo, 22 de agosto de 1999.
Totalitarismo econômico
ROBERT KURZ
O termo "totalitarismo" tornou-se uma espécie de bicho-papão para a
filosofia política ocidental. Totalitário é sempre aquilo que não passa por
economia de mercado ou democracia: a pretensão exclusiva de um partido ao
controle político; um aparato burocrático centralista; a repressão a
qualquer movimento de oposição; um sistema de poder ilimitado, que galvaniza
todas as esferas da vida e penetra até mesmo na intimidade. A democracia, ao
contrário, assim dizem, traz a todos a felicidade sem ferir idiossincrasias:
ela é sequiosa de oposição; o pluralismo das idéias e dos projetos de vida é
respeitado; a esfera privada é tabu para o poder social, permitindo-se em
paz que as pessoas sejam diferentes.
A história do século 20, dessa maneira, pode ser entendida como um conflito
básico entre a democracia liberal e a ditadura totalitária. Ao menos isso é
o que consta dos livros-textos ocidentais. Dessa perspectiva, as ditaduras
de Hitler e Stálin no passado foram totalitárias, e hoje o são talvez os
"Estados religiosos" do fundamentalismo islâmico. Seja como for, o
totalitarismo é tido como um pensamento alheio e antagônico à liberdade
ocidental, um ideário cuja existência sombria pode ser a todo momento
invocada como perigo iminente.
Salta à vista que, nessa "teoria do totalitarismo" das duas esferas polares
da sociedade moderna, somente a esfera político-estatal é mencionada,
enquanto a econômica permanece de todo ofuscada. Nesse sentido, só pode
existir um Estado totalitário, mas aparentemente não uma economia
totalitária, um modo de produção totalitário, um mercado totalitário. O
axioma dessa consideração unilateral é que apenas o Estado e a política
integram o âmbito social, enquanto a economia -como já postulavam, no século
18, os fisiocratas e Adam Smith- pertence supostamente à "natureza" e
extrapola, com isso, a teoria social em sentido estrito.
Ora, "leis naturais" não podem ser totalitárias e ameaçar a liberdade; é
preciso aceitá-las como ao tempo. Com esse truque grosseiro o liberalismo
buscou desde o princípio tornar o centro econômico da modernidade
inacessível à reflexão crítica, silenciando, ao mesmo tempo, o fato de que
as ditaduras totalitárias do período entre guerras possuíam ao menos uma
coisa em comum com a democracia: as formas econômicas do moderno sistema
produtor de mercadorias.
O conceito de totalidade é oriundo da filosofia do século 19. Em Hegel,
sobretudo, ele se vincula à tentativa de subsumir o mundo num único
"conceito total", concebendo-o, portanto, em sua plenitude. Não é difícil
reconhecer o pano de fundo social desse pensamento no fato de o ser humano e
a natureza deverem se submeter "totalmente" à máquina social capitalista, a
fim de transformar cada átomo ideal, cada idéia e cada sentimento em
material do processo de valorização. Na verdade é a própria lógica econômica
do capitalismo, portanto, que suscita a vocação totalitária; e, com a
transfiguração ideológica dessa vocação em "lei natural", o liberalismo
busca apenas camuflar seu próprio âmago ditatorial. Dizia Henry Ford que os
compradores de seu "Modelo T" poderiam adquiri-lo em qualquer cor que
desejassem, contanto que ela fosse preta; do mesmo modo, o pluralismo
liberal dá crédito a todas as idéias e a todos os objetos, desde que possam
ser comercializados.
Até meados do século 20, esse totalitarismo econômico esteve longe da
perfeição. Ainda havia elementos de um modo de produção mais arcaico, de
bases agrárias e comunais, como também esferas culturais da vida que se
furtavam ao espaço-tempo abstrato do capitalismo. Para tornar os indivíduos
material humano das máquinas capitalistas era necessário primeiro uma
mobilização política das massas: a esfera política ganhou nessa época um
aspecto de "energia armazenada", servindo como uma espécie de resistor que
se carregava, por assim dizer, a fim de pôr em funcionamento o totalitarismo
econômico.
Nesse sentido, agiu como poderoso rastilho a implementação da política de
massas por intermédio da mobilização militar. Foi nas trincheiras da
Primeira Guerra Mundial que se criou o protótipo democrático. Em seu famoso
romance de guerra "Nada de Novo no Front", escreve o autor alemão Erich
Maria Remarque: "As diferenças que a educação e a cultura criaram estão
quase apagadas e mal são reconhecidas. É como se antes tivéssemos sido
moedas de diversos países; passamos por um processo de fundição e agora
todos têm a mesma cunhagem".
A igualdade democrática perante a moeda, que até então só fora posta em
prática de maneira insatisfatória, não pôde ser preparada senão na forma de
uma igualdade da morte e da mutilação nos "moinhos de sangue" da Primeira
Guerra Mundial. Essa forma arquetípica de democracia no século 20 brindou
finalmente os indivíduos com a igualdade de exemplares isolados.
Sob determinadas condições históricas, como na Rússia e na Alemanha, o
avanço desse processo social assumiu a forma do movimento totalitário de
massas e da ditadura; mas também nos Estados Unidos a mobilização do "New
Deal" foi acompanhada de paradas militares, cortejos de mísseis e o
foguetório da propaganda política. Tratava-se de abarcar a sociedade "como
um todo" e de lhe "dar uma sacudida", para muito além dos objetivos
políticos e militares imediatos.
O escritor alemão Ernst Jünger cunhou para tanto, em 1934, o conceito de
"mobilização total". A "mobilização parcial" prendia-se à "essência da
monarquia", que, como dizia ele, "transgride seus limites à medida que é
obrigada a inserir as formas abstratas do espírito, do dinheiro, do "povo",
em suma, das forças da crescente democracia, no contexto armamentista".
Jünger divisava por isso na democracia ocidental sobretudo uma forma mais
elevada de exaurir todas as reservas sociais: "Foi assim que a mobilização
nos Estados Unidos, um país de constituição muito democrática, pôde ser
efetuada com medidas de uma virulência que teriam sido impossíveis no Estado
militar prussiano (...). Já nessa guerra não se tratava de saber se um
Estado era militarizado ou não, mas de saber se era capaz da mobilização
total".
Que esse processo transcendia em muito os propósitos puramente militares não
escapou também ao general alemão Ernst Ludendorff, que em 1935 escreveu num
tratado sobre a "guerra total": "A guerra total, que não é assunto apenas
das forças beligerantes, mas fala de perto também à vida e à alma (!) de
cada membro isolado dos povos em pé de guerra, aqui teve seu início (...).
Desde então a guerra total ganhou em profundidade com a melhoria e a
multiplicação das aeronaves, das bombas de toda espécie, mas também das
folhas volantes e dos demais materiais de propaganda despejados sobre o
povo, e com a melhoria e a multiplicação da aparelhagem de radiodifusão
voltada contra o inimigo".
Mas, se o propósito secreto dessa "mobilização total" consistia, em última
análise, em pôr em prática a vocação totalitária da economia capitalista,
então o "movimento" político-militar na primeira metade do século 20 pode
ser facilmente decifrado como um estágio preparatório para cortar as peias
ao "mercado total", coisa que se deu a partir de 1950. Nas democracias
comerciais do pós-guerra, as "bombas de toda espécie, as folhas volantes e
os demais materiais de propaganda" de Ludendorff transformaram-se na
metralha giratória da publicidade e na tagarelice da mídia, que como apelo
visual e acústico preenche todo o espaço público, assumindo traços
francamente terroristas: eis que ninguém é capaz de esquivar-se a esse
lero-lero infindo e a sua despudorada impertinência. O que aqui "volta-se
contra o inimigo" (e o "inimigo" são tudo e todos na guerra permanente pela
clientela, por postos de trabalho, carreiras, prestígio etc. num mundo
capitalizado até a medula) excede em todos os aspectos os primórdios
militares da "guerra total" entre 1914 e 1945.
Lemos assim o conceito de totalitarismo a contrapelo da ideologia
legitimadora ocidental. Isso é tanto mais evidente num clássico da "teoria
do totalitarismo", o livro da filósofa norte-americana Hannah Arendt sobre
as "Origens do Totalitarismo". Nele podemos ler: "Nada é mais característico
dos movimentos totalitários em geral, e da natureza da glória de seus
líderes, do que a espantosa rapidez com que eles podem ser esquecidos e a
espantosa facilidade com que podem ser substituídos (...). Essa
instabilidade tem certamente algo a ver (...) com a avidez de mobilidade dos
movimentos totalitários, que só conseguem subsistir enquanto se mantiverem
em movimento e puserem em movimento tudo a seu redor (...); é justamente
essa capacidade extraordinária de adaptação e essa falta de continuidade que
constituem sem dúvida seu marco distintivo, se é que existe mesmo algo como
um caráter totalitário ou uma mentalidade totalitária".
Hannah Arendt tem em vista aqui somente o lado político-estatal do
totalitarismo, isto é, as ditaduras do período entre guerras. Mas só na
aparência a massa anônima, mobilizada política e militarmente pelas
ditaduras ou pelos regimes de transição democráticos, opõe-se ao culto
comercial do indivíduo igualmente anônimo, do "consumidor" das democracias
do pós-guerra. Na verdade, a primeira, a massa mobilizada nas paradas
militares, pode ser entendida como um embrião do segundo, o indivíduo como
consumidor isolado. O indivíduo democrático "livre" do pós-guerra nada mais
é senão o "exemplar" originalmente moldado e regulado pela máquina
político-militar, exemplar este que somente foi libertado para se ajustar à
marcha comercial da máquina capitalista no mundo.
Atendo-se às ditaduras totalitárias de Estado (algo compreensível em 1951),
Hannah Arendt ignora completamente quanto suas formulações sobre a essência
do totalitarismo aplicam-se com exatidão ao caráter de um mercado cada vez
mais totalitário e, portanto, à própria democracia ocidental. Que outro
enunciado, senão a "espantosa rapidez do esquecimento", caracterizaria
melhor as conjunturas capitalistas, que não se caracterizam mais como
evolução humana, sendo antes um processo de conteúdos indiferentes, cujo
combustível é o dinheiro? E "facilidade da substituição", que descrição
seria mais precisa da personalidade rebaixada a objeto do ser humano
universalmente intercambiável?
E o que poderia ser mais "ávido de mobilidade" do que o próprio capitalismo,
o qual, na condição de sistema econômico do tipo "bola de neve", de fato "só
consegue subsistir enquanto se mantiver em movimento e puser em movimento
tudo a seu redor"? Onde a "extraordinária capacidade de adaptação" seria uma
virtude mais excelsa senão nas economias democráticas de mercado, da forma
como ela voltou a ser apregoada hoje pelos paladinos da "adaptação
permanente" a uma cega "mudança estrutural"? E o que, finalmente, poderia
representar uma "falta de continuidade" mais radical do que o mercado
universal sem história, que realiza seu movimento sempre idêntico numa
espécie de nirvana atemporal?
Essa correspondência torna-se ainda mais nítida quando Hannah Arendt tenta
esmiuçar a "lei de movimento" do totalitarismo: "Por trás da pretensão de
dominar o mundo, típica de todos os movimentos totalitários, existe sempre a
pretensão de criar um ser humano que corporifique ativamente as leis que, de
outro modo, ele só suportaria passivamente, cheio de resistência e jamais em
sua plenitude. A paz sepulcral que, segundo a teoria clássica, a tirania
instala no país (...) permanece tão vedada ao país de regime totalitário
quanto a paz em geral. É verdade que seus habitantes são despojados de toda
ação que nasce da livre espontaneidade; mas eles são mantidos em permanente
movimento como exponentes do gigantesco processo sobre-humano da natureza ou
da história, que passa zunindo por eles (...). O terror, nesse sentido, é
como a "lei" que não pode mais ser transgredida".
O que nessa passagem é denunciado, porém, como essência do totalitarismo
nada mais é do que a própria essência do liberalismo. Isso porque não foi
ninguém mais senão a nata da economia política burguesa e da filosofia
iluminista que, desde o princípio, fez sua a pretensão de executar nos
homens "as leis da natureza e da história". E é o capitalismo totalizado
que, no espaço social em que impera, despoja seus habitantes "de toda ação
que nasce da livre espontaneidade", uma vez que toda atividade nesse espaço
é axiomaticamente modelada pelo imperativo econômico. Bem mais implacável do
que as ditaduras dos Estados totalitários, os indivíduos economizados pelo
livre mercado mundial são "mantidos em permanente movimento como exponentes
do gigantesco processo sobre-humano" de uma cega dinâmica de crescimento
marcada por falhas estruturais, dinâmica essa que "passa zunindo por eles" e
é proclamada pelos ideólogos neoliberais como "processo objetivo da natureza
e da história".
Na verdade, estamos às voltas com uma patente continuidade da história
capitalista, na qual as ditaduras dos Estados totalitários e a "mobilização
total" das guerras mundiais não são um modelo fundamentalmente oposto, antes
representam um determinado continuum histórico e uma forma de imposição da
própria "economia de mercado" e da "democracia": a sociedade como um todo
foi posta em movimento acelerado em todos seus níveis e esferas, a fim de
poder suportar a acumulação acelerada e concentrada do capital. No final do
século 20, a transformação do totalitarismo capitalista (que de Estado total
passou a mercado total) conduziu a um inusitado "terror da economia" -a uma
"lei" que, como nos dizem ironicamente, "não pode mais ser transgredida". E
o controle da realidade imposto pela mídia capitalista só pode falar
ininterruptamente de liberdade porque há muito deixamos "1984" para trás.
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