SEMINÁRIO: VIVIDAÇÃO E SITUAÇÃO-LIMITE: A EXPERIENCIA ENTRE O VIVER E O MORRER NO COTIDIANO DO HOSPITAL Introdução A morte é considerada como parte constitutiva da existência humana e é, sem dúvida, uma das poucas coisas de que temos certeza, e sua imprevisibilidade obriga o ser humano a conviver com a sua presença desde o início ao estágio final do seu desenvolvimento. No contato direto com a fragilidade humana, dor e morte são percebidas como ameaça constante. Alguns pacientes surpreendem desafiando a própria medicina, mas a equipe não desiste, assumindo o comando da situação. No entanto, por trás da suposta segurança da equipe, existe uma inquietação e um clima de tensão e angústia, um medo que ronda na expectativa de como o paciente reagirá ao tratamento. O texto trata da realidade da instituição hospitalar e as vivências das experiências de participantes deste cenário, envolvendo a situação limite entre o viver e o morrer dos pacientes e as condições dos cuidadores para o tratamento necessário. Reflete sobre o sofrimento do paciente queimado na busca de recursos psicológicos para enfrentar o trauma e o desafio de cicatrizar sua pele danificada pelo calor, diante da equipe de saúde. Esta experiência foi embasada na metodologia fenomenologia existencial, através da ação vivida pelos pacientes do Centro de tratamento de Queimados do Hospital da Restauração na cidade do Recife. O percurso do tratamento do paciente queimado é sempre acompanhado de uma atenção psicológica, objetivando restaurar a ordem rompida pela situação de crise, favorecendo a potencialização de recursos da experiência, capazes de reduzir os efeitos do estresse, causado pelo trauma da queimadura e das rupturas próprias da hospitalização. Partindo desta experiência e de seus questionamentos, esta pesquisa representa um esforço no sentido de tentar compreender o sofrimento e os recursos psicológicos, presentes na situação de ser queimado, visto que pelo comprometimento e complexidade da patologia, na sua experiência de ameaça e aflição, há um limite onde o paciente pode vir a óbito, vivenciando o limite entre o viver e o morrer. A medicina e a psicologia: Procurando o sentido de saúde na atualidade. Neste contexto apresenta-se não somente a complexidade humana mas também o interesse em saber o que acontece com o paciente na situação de ser queimado e como a prática está articulada com a medicina. A partir daí é possível observar que o bem estar se apresenta como decorrente do homem no mundo entre coisas e outros homens, ou seja, uma possibilidade para o contato com o mundo e uma visão do humano na perspectiva da sua condição de humanidade. De acordo com Magee (1999), na historia da humanidade a procura do conhecimento sobre a existência humana sofreu desdobramentos e transformou-se nos diversos períodos e civilizações. A filosofia, enquanto expressão desta busca preocupou-se com questionamentos sobre a natureza da percepção, da experiência e do entendimento humano, questões implicadas em todos os campos do saber, através de seus conceitos, princípios e métodos de investigação. Desde a Antiguidade os povos buscam novos conhecimentos sobre o ser humano e sua existência. O mundo ocidental foi influenciado em seu modo de viver e pensar, pela cultura grega. Na Grécia antiga surgiu o pensamento mítico, onde vida dos homens era influenciada pelas forças divinas, onde Homero, entre outros, pode ser lembrado como um poeta da existência escolhido pelos deuses do Olimpo. (Brandão, 2000). Procurando compreender paradigmas atuais para essa ciência, como o cuidado, não podemos deixar de lembrar das correntes filosóficas. Os métodos clínicos foram ampliados e novos pensamentos foram apresentados: do Behaviorismo a Psicologia Humanista. Há um processo de transformação de forças num movimento de ordem e desordem que é fator de crescimento. Assim, pensando no ser que adoece, não existe uma causa única e sim um conjunto de causas que interagem mutuamente e que são fenômenos de natureza biopsicossocial, numa visão de homem em que, afetando e sendo afetado, está em constante mudança. O fenômeno da cura e da doença orgânica pode ser visto por um outro ângulo, a singularidade, quando procedimentos iguais na mesma patologia provocam reações diversas em diferentes pacientes. Sob este prisma, fica claro que um paciente pode se curar ou não com o mesmo tipo de atendimento. Assim, considerando a singularidade de cada ser, procura-se encontrar e estimular neles os mecanismos curativos naturais que todos os organismos vivos possuem. O paciente agudo é extremamente atingido em seu aspecto emocional pela percepção de paralisação do seu processo existencial. Desse modo merece considerações pela sua especificidade, no caso do queimado, por não se tratar de um paciente terminal e sim agudo complexo, devido às dificuldades orgânicas e mentais que pode levá-lo à morte. A queimadura, por ser considerada uma patologia de alta complexidade, envolve aspectos orgânicos e psicossociais. No entanto, nota-se que a preocupação maior e natural da medicina é tratar das patologias e saber as causas das doenças, sem dar muita importância ao funcionamento do ser humano em sua singularidade. Nosso cenário e a questão: o centro de tratamento de queimados – CTQ – do Hospital de Restauração O Hospital da Restauração é o maior hospital da rede pública em Pernambuco, que atende a várias demandas, dentre as quais está o grande queimado. No hospital, o cuidado é direcionado ao sujeito que se encontra entre a vida e a morte como possibilidade de acolher e potencializar seus recursos, para que possa lutar e até se recuperar. O CTQ possui 40 leitos ocupados invariavelmente. É um local suportado por poucos, dada a presença do intenso sofrimento humano e da morte. Este contexto favorece a mobilização de angústia e estresse. Os pacientes, dependendo da profundidade da lesão, apresentam deformidades e mutilações corpóreas, além de infecções e mau odor. O paciente grande queimado necessita de apoio para suportar a aparência de seu corpo ferido e desfigurado; adoecido e sem pele, encontra-se frágil e vulnerável a infecções. Nestas circunstâncias, os primeiros oito ou dez dias de internação são decisivos para determinadas intervenções médicas. Através da escuta, o serviço psicológico prestado neste panorama, objetiva facilitar ao paciente certas reflexões sobre a experiência vivida, levando o indivíduo a re-significar sua experiência e tornar-se mais confiante, participativo e colaborativo no tratamento. Procurando uma compreensão sobre a angustia e a morte no contexto hospitalar. A súbita hospitalização e o trauma agudo são capazes de paralisar a força de sustentação do sujeito. Ao confrontar-se com tal situação, a angústia, já inerente a condição humana, confunde-se com a condição real de ameaça e aniquilamento provocadora de mais angústia e sofrimento. Sendo assim, esse sofrimento tem indicação de urgência psicológica, pois o psicólogo se inclui num campo de forças situacional confuso e complexo, caracterizando as enfermarias de um hospital, procurando considerar as experiências do paciente e o modo como ele enfrenta e suporta o tratamento. A estratégia básica utilizada é o manejo da incerteza e os vínculos de confiança nos membros da equipe, compreendendo a vividação como um movimento que objetiva despertar padrões de enfrentamento que favoreçam a suportabilidade da situação-limite na qual o paciente se encontra. O psicólogo pode atuar possibilitando a potencialização de recursos normalizadores e reintegrativos da experiência, que são capazes de reduzir os efeitos do estresse, do trauma e das rupturas próprias da hospitalização. De acordo com Viktor Frankl (1989), humanista existencialista, parece ser possível o sujeito superar o caos apoiado na esperança, pois através da busca do sentido diante do sofrimento extremo, o sofrimento pode promover um modo de crescimento e amadurecimento. Um dos conceitos fundamentais propostos por esse autor se caracteriza pela vontade de sentido que é a motivação primária da vida humana. Destaca três possibilidades que dão sentido a vida, sendo elas, o amor, o trabalho e o sofrimento. Segundo Frankl o sujeito é capaz de permanecer otimista diante das adversidades, tendo em vista transformar o sofrimento em algo positivo ou construtivo. Para Heidegger somos ser-no-mundo, inseridos num mundo com présignificados, onde somos lançados, e não fazemos nenhuma escolha, caracterizando o existencial da facticidade. O ser é lançado no mundo, podendo encontrar infinitas possibilidades, ser único e singular, ser abertura e possibilidades. A angústia leva o homem a compreensão de si mesmo, à possibilidade de suportar a finitude radical, e, sendo ser-para-a-morte, dá sentido a vida, num viver mais autêntico. No entanto nos refugiamos na cotidianidade, na impropriedade que é inevitável, por não suportarmos assumir plenamente nossa mortalidade. No contexto hospitalar, na situação do grande queimado o sujeito em contato com sua angústia e fragilidade, se percebe a partir da sua nulidade, assim, sua finitude não pode ser negada está presente no cotidiano da enfermaria. Assim, o paciente se encontra em permanente contato com a angústia e o desamparo, paralisante para o paciente e mobilizadora de cuidados para a equipe. Dessa forma, na clínica psicológica, ocorre a tentativa de transformar a angústia em um sentido da existência através do cuidado, e em força mobilizadora capaz de dar sentido para suportar e superar o trauma sofrido. Uma metodologia clinica através da angustia da morte. A partir da busca de uma melhor compreensão sobre a vividação dos pacientes queimados utilizaram-se métodos onde averiguava o cuidado e o resgate daquilo que o trauma ocasionou. Entre os participantes estavam 4 pacientes internados no CTQ, de ambos os sexos e idade entre 20 a 40 anos, sem nenhuma patologia instalada antes da situação de queimadura. De modo que pudesse entender como reagiram ao enfrentamento do trauma vivenciado. Os relatos referiam-se a momentos desde a hospitalização até a recuperação de cada um. Após a cicatrização os pacientes foram questionados sobre a experiência de ter sobrevivido ao trauma. Também participaram profissionais que trabalhavam diretamente com pacientes queimados, foram 6 participantes e entre eles estavam: cirurgião, clínico intensivista, enfermeira, auxiliares de enfermeira e fisioterapeuta. A eles foi direcionado questões sobre como eles percebiam os pacientes diante do viver e o morrer. As respostas refletiram no desejo de cuidar dos pacientes, acreditando na vida. Através dos dados colhidos entendeu o sentido do fazer psicológico, e o olhar para o outro em um momento difícil. A pesquisa foi respaldada pela fenomenologia, a qual pode proporcionar reflexões diante da experiência dos pacientes dentro do hospital entre a vida e a morte, e o sentido de enfrentar a situação. No decorrer das entrevistas pode ser feito acolhimento e compreensão de cada ponto de vista dos pacientes e profissionais. Em relação ao termo vividação define-se como as ações do paciente. Apontou para a ação do próprio paciente como um meio de recuperação, minimizando as ações dos profissionais. Mostra a importância da comunicação dentro do hospital, visto que é o meio mais adequado para saber a experiência que cada um enfrentou e o sentido que dá a vida, podendo ressignificar sua enfermidade. Na seqüência da transcrição das entrevistas foi retomado o contato com os participantes a fim de legitimar as entrevistas como depoimentos. Assim, com os depoimentos fizeram-se reflexões em busca do que poderia contribuir a respeito da vividação, a direção que cada um daria a sua situação, como enfrentaram seu trauma e como os profissionais percebem o sofrimento do paciente. Compreendendo a crise: O sentido dado à situação vivida. Nos tratamentos das queimaduras graves, tudo leva o paciente a desistir da luta, pela dor ser muito grande, o confronto com seu corpo ferido, sangrando, a cada troca de curativo seus ferimentos ficam pior, sobreviver é encontrar sentido na dor. Frankl (1991) reforça essa idéia quando ele fala das três fases distintas: - Choque e desespero. - Apatia e insensibilidade emocional. - Momento após a liberdade (alta hospitalar). Na primeira fase, o pavor faz com o paciente perca a capacidade de avaliar o grau de dependência, pedem para morrer ou fugir da situação, esse é momento critico, o momento da virada, porque nesse momento eles têm que compreender que eles fazem parte do tratamento mais a dor continua e o mal estar também, assim eles oscilam entre suportar e não suportar, Segundo Frankl o interesse religioso também ajuda na recuperação, como refugio que abriga a angustia e o desamparo. Na segunda fase, a apatia e a indiferença fazem com que a pessoa vai aos poucos morrendo interiormente, porém muitos buscam nas lembranças do passado, no amor dos familiares, procurando assim alimentar a esperança, e essa esperança ajuda a escapar do “vazio” do momento atual, a luta interior de cada paciente vai nós mostrar a sobrevivência dele, pois a sua fé interior faz com que a recuperação seja alcançada ou se não tiver fé interior a morte vem certeira. A ultima fase, pós libertação sobrevivência ainda representa um grande sofrimento devido às marcas deixadas em seu corpo e no psicológico, porém os piores momentos já passaram agora o sofrimento começa a diminuir por conta da alta hospitalar, “já são todos sobreviventes”. REFLEXÕES “Quando o paciente não quer mesmo que invista 100% não adianta essa recuperação não depende só da equipe medica e sim do paciente.” “Aquele que tem motivação la fora (família, amigos, etc...) encontra motivação aqui dentro ..... ai ele acredita e saí. “ “Eu jamais vou falar com ele o que aconteceu com ele, a dor dele, vou conversar sobre outros assuntos como novela, futebol, roupa nova”, não dando motivo para ele lembrar o que aconteceu com ele. A trama trágica a luz de Heidegger: Finitude e Cuidado. Para explicar o termo vividação é relevante esclarecer a escolha do autor pelos pacientes com queimadura acidental. Isso porque visa compreender o enfrentamento do trauma físico como decorrência de circunstancia de vida, ou seja, como acontecimento. Na situação-limite do trauma agudo, o paciente corre grande risco de vida inerente à patologia, sendo esse primeiro momento de importância no que se refere às intervenções da equipe médica. Superada a fase, permanece o risco; no entanto, sua disponibilidade e participação no tratamento são elementos cruciais no sentido da sua recuperação. Disso surge o termo vividação, referindo-se ao conjunto de ações nas quais o movimento do paciente é fundamental ao tratamento pela necessidade de cicatrização da suas lesões, sua participação poderá ser decisiva nesse processo, apesar da extrema dor de tal situação de injuria física. De acordo com Heidegger (1999), compreende-se a vividação como mais uma possibilidade, ao passo qual a morte é. Heidegger impõe a questão da angustia como central em seu pensamento. O encontrar-se com a condição do doente aproxima-nos da nossa própria finitude e da morte como acontecimento, em toda sua concretude, e não somente como uma concepção existencial de Heidegger. Desse modo, essa experiência pode ser vivida ou com espírito de luta, ou de modo indiferente, ou distante, ou misteriosa ou improvável. Outras vezes é ardentemente vivida como possibilidade provável, apesar de indesejada e despertando medo. A hospitalização e o trauma são acontecimentos da dimensão de vida cotidiana; são fatos, particularidades concretas. Nessa perspectiva, os recursos utilizados pelo paciente na vividação são modos de enfrentamento do mundo, revelando a singularidade do sujeito. Assim a angustia, constituída pelos estados de ânimo, pode ser propiciadora ou não do enfrentamento da situação. Dessa forma o modo de ser é expresso pelos vários modos de enfrentamento: não se oferecem, no entanto, como possibilidade para impossibilitar a morte. Sendo o homem, segundo Heidegger, uma existência angustiada por ser um ser-para-a-morte, ao se confrontar com o adoecimento agudo, como nas queimaduras graves, pode se perceber vulnerável a essa possibilidade, que é mais originaria, radical e extrema. Tal possibilidade pode ser experienciada, na hospitalização, pela concretude da fragilidade física em que se encontra. Nesse sentido a morte é experienciada pelo paciente como acontecimento possível, súbito ameaçador em toda a sua intensidade, e é possível de se sobrepor a todas as demais possibilidades do ser como a vida. Afinal carregamos conosco a nossa própria mutilidade dado sermos, na perspectiva existencial, um serpara-a-morte. Assim psicologicamente o desespero e a aflição ocupam o sujeito paralisando seu sentido de ser. Angustia-se diante do poder-não-sermais e não permite o poder-ser que ainda é. E assim, vê-se que na cotidianidade da existência, ou seja, no viver cotidiano, o sujeito valendo-se do controle como modo de abrigar a angustia do desamparo, na impropriedade do suposto saber. Pelo controle, é possível distanciar-se da angustia do desamparo, ou seja, do vazio da morada. Contudo, esse distanciamento apresenta-se como um modo paralisante de ser. O sujeito, entretanto, pode valer-se de outra possibilidade, agindo para transformar a angustia improdutiva: podendo encontrar-se pelo sentido de ser pelo cuidado. Considerações finais O profissional da saúde, finito como todo e qualquer ser humano, também enfrenta profundos dilemas existenciais quanto ao enfrentamento da situação limite entre o viver e o morrer em seu cotidiano. Esse profissional, quando ainda em nível acadêmico, deve ser estimulado a refletir sobre a morte e o morrer, podendo ser tomado de forma abrupta pelo pesar, e com a dificuldade de não mais conseguir assistir à pessoa que está morrendo em razão da morte poder se configurar como momento sofrimento e fracasso da ação principal em manter a vida. Foi possível perceber que o enfrentamento da morte é difícil e angustiante tanto para quem a vivencia, quanto para quem a observa, visto que a morte provoca rupturas profundas entre quem morreu e o outro que continua vivendo. Isso requer ajustamentos no modo de entender, de perceber e de viver no mundo. Percebe-se que o profissional necessita do saber teórico-filosófico sobre o processo de morrer e de suporte emocional para lidar com seus sentimentos com vistas a sua formação profissional, já que a falta de preparo dificulta o cuidar nessas circunstâncias, apontando para a necessidade de incorporar discussões sobre a temática no intuito de preparar o futuro profissional para lidar com o humano no seu processo de vida e morte, ou seja, que a morte seja vista como parte do processo de trabalho em saúde que não dispensa atitude de acolhimento e humanização de cuidados. Referencias Bibliográficas BRANDÃO, JS. Mitologia grega. 14ª ed. Petrópolis: Vozes, 2000, v.I. FRANKL, V. E. Em busca de sentido: um psicólogo no campo de concentração. São Leopoldo. RS, 1991. _________. Um sentido para a vida: psicoterapia e humanismo. São Paulo. Santuário, 1989. HEIDEGGER, M. Ser e tempo. Petrópolis/RJ. Vozes, 1999 – parte I e II. MAGEE, B. História da Filosofia. São Paulo. Loyola, 1999.