DIREITO E LITERATURA “Advertiu que o homem, uma vez criado, desobedeceu logo ao Criador, que aliás lhe dera um paraíso para viver; mas não há paraíso que valha o gosto da oposição. Que o homem se acostume às leis, vá; que incline o colo à força e ao bel-prazer, vá também; é o que se dá com a planta, quando sopra o vento. Mas que abençoe a força e cumpra as leis sempre, sempre, sempre, é violar a liberdade primitiva, a liberdade do velho Adão. Ia assim cogitando o conselheiro Aires”(Machado de Assis, Esaú e Jacó). O mundo das Leis compõe-se antes de palavras que de Leis. Às leis precedem os verbos, as construções sintáticas, a morfologia e a semântica que nos permitirá entender o que se pretende comunicar. Às Leis precede o texto. Uma pergunta fundamental que, como tudo o que é fundamental, muitas vezes escapa sorrateiramente a todos é o que, afinal, existe no texto legal que o diferencia do texto literário.? O que existe entre a Lei e a literatura que permite ao homem médio, mesmo sem tal consciência, jamais confundir o significado da Ofélia jazendo no lago, em Hamlet, com o “matar alguém” inscrito no art.121 do Código Penal Brasileiro? Simples: existe a expectativa que o leitor nutre quanto a eles ou, em outras palavras, das Leis espera-se o comando e da literatura, a expressão do belo. Ambos são textos, mas a distância que o leitor observa entre eles é imensa por buscar que eles lhe realizem desideratos em geral desencontrados como, por exemplo, o antagonismo limitação x ilimitação, ordem x loucura, indiferença x envolvimento, sociedade x indivíduo. Nesse sentido, o contexto do leitor, suas expectativas, seus sentimentos face ao que deseja conhecer é que cria o texto. Tomar consciência de que cada texto possui uma função específica, portanto, permite compreender os diferentes significados que o Direito e a Literatura possuem no mundo das letras. Contudo, enquanto textos encontram-se sujeitos a influências sociais semelhantes nas mesmas épocas em que são produzidos. A Literatura, assim como o Direito, também espelha valores e imagens, expressa realidades as quais se comunicam com o intérprete de maneira aproximada nas duas áreas. Benjamin Cardozo, juiz da Suprema Corte americana nos princípios do século XX, defendia a possibilidade de interpretar-se os textos jurídicos como textos literários, rompendo assim com a crença absoluta de que a precisão da linguagem legal tornaria as Leis infensas à mutabilidade, à divergência interpretativa, à manipulação estética do simbolismo das expressões jurídicas. Desse ponto de vista, assim como as obras literárias, as Leis podem conservar sua relevância, mas autorizar que os intérpretes atualizem o sentido de suas expressões conforme passem a plasmar outros valores no contexto da mudança social. De outro lado, o Direito muitas vezes representou e ainda representa um papel na literatura universal e brasileira. Não é possível que tenhamos o testemunho de um bacharel brasileiro do século XIX que nos possa descrever seus trejeitos característicos, o lugar social que ocupava, suas virtudes, seus maiores defeitos e preconceitos, sua posição política a não ser que recorramos a um Machado de Assis, a um Joaquim Manuel de Macedo, a um Aloísio Azevedo. Caso se deseje ampliar o estudo, a literatura ensejaria um cotejo internacional com um Tolstoi, Gogol, Balzac, Kafka, Twain, Dickens para citar alguns, dentre outros autores, que consagraram impressões sobre o mundo das Leis e seus homens nas suas sociedades. Mas ainda que se considere o argumento de que a literatura pode revelar valores e imagens sobre o mundo das Leis e que as Leis possam valer-se da visão literária para sua inteligência, é possível que sejam essas contribuições mais interessantes aos historiadores, sociólogos e filósofos do Direito que ao profissional e ao estudante. Para o historiador, para o sociólogo e para o filósofo o singular fato da literatura lidar com valores sociais já lhe justifica a importância heurística, mas o que a aproximação do mundo das Leis da literatura é capaz de dizer a todos além disso? A literatura como arte é cruamente humana. Seus requintes ou sua sofisticação, sua rudeza ou sua simplicidade, sua verborragia ou sua aridez, qualquer que seja seu estilo e forma prestam-se ao primeiro e final serviço de mostrar ao homem a medida de sua própria humanidade, na sua pequenez vexatória, quando seja assim, e na sua grandeza redentora, quando o valha. Ao pregar-se a necessidade de aproximar do texto legal o texto literário, do mundo das Leis o mundo das letras, por um lado restaura-se um pouco mais de verdade às coisas, já que as Leis nascem das letras. Doutra metade, outrossim, restaura-se uma verdade quisera mais profunda: a de que as Leis não nos servem senão pelo que de humano pretendem realizar. O que nos desumaniza deve perecer. Lembrar d’O processo, de Kafka, d’O homem sem qualidades, de Musil ou d’O estrangeiro, de Camus tem o condão de dar-nos uma consciência muito mais plena e mais abrangente da dinâmica, dos valores e das Leis na sociedade atual que qualquer texto legal, pelo drama humano que revelam. A literatura faz-nos perguntas e as perguntas devem preceder as respostas, sempre. Esse não é um manifesto, mas o Direito e Literatura pretende ser uma escola. Não é manifesto porque não há método previamente definido e os fins são muito mais variados do que podemos agora descrever. O fundamento, entretanto é claramente a liberdade intelectual, a liberdade de oposição, a irresignação a que se refere belamente o Conselheiro Aires. Estejamos irresignados com o encarceramento do pensamento, com as fórmulas repetidas incansavelmente, com a ausência de crítica, com a leitura débil e escassa, com a mediocridade. Estejamos irresignados com um Direito que nos desumaniza. As Leis e as Letras para quem busca o homem são, afinal, um só texto. Sandro Alex de Souza Simões Janeiro de 2003