promotoria de defesa da saúde - Centro de Apoio Operacional das

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EXMO. SR.DR. JUIZ DA
VARA DA FAZENDA PÚBLICA ESTADUAL DA CAPITAL
O Ministério Público do Estado de Minas Gerais, por seu Promotor de Justiça que esta
subscreve, com fundamento na Constituição Federal (artigos 1º, incisos II e III; 3º, incisos I, III e IV; 5º
caput e § 1º; 6º; 23, inciso II; 37 caput; 127 caput; 129, incisos II e III; 196/198 e 227 caput e §§ 1º e 7º); no
Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90, artigos 3º,4º, 5º,7º e 11º caput e § 2º; 201, incisos V e
VIII); no Código de Defesa do Consumidor (Lei Federal 8.078/90, artigos 22 e 81/100); na Lei da Ação
Civil Pública (Lei 7.347/85 – artigos 1º, inciso IV, 5º caput, 11, 12 caput e § 1º; 19 e 21); Lei Orgânica
Nacional do Ministério Público (Lei 8.625/93, artigos 1º caput; 25, inciso IV, alínea “a” e 27, incisos I e II);
na Lei do SUS (Lei Federal 8.080/90, artigos 2º , § 1º; 4º; 5º, inciso III; 6º, inciso I, letra “d”; 7º, incisos I, II,
IV e XII; 8º e 17, incisos II, III , IV e IX); na Constituição Estadual artigos 186 e 187; na Lei Orgânica do
Ministério Público do Estado de Minas Gerais (Lei Complementar 34/94, artigo 66, inciso IV e Código de
Processo Civil (artigo 273, inciso I) vem ajuizar a presente
AÇÃO CIVIL PÚBLICA
pelo rito ordinário comum, em face do ESTADO DE MINAS GERAIS, que deverá ser citado na pessoa de
sua Excelentíssima Sra. Dra. Procuradora Geral do Estado, em seu gabinete, situado na Praça da
Liberdade, s/nº, Capital, pelos fatos e fundamentos a seguir expostos.
I – DOS FATOS
No dia 8 de julho de 2002, foi publicada no Diário Oficial a Portaria n.º 449 da Secretaria de
Assistência à Saúde, que estabeleceu o Protocolo Clínico e as Diretrizes Terapêuticas para o tratamento da
Doença de Gaucher.(DOC I)
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A referida portaria substituiu a portaria 286 de 14 de agosto de 2002 e trouxe várias inovações e
benefícios para os portadores da doença. (DOC II)
Dentre as inovações, a nova portaria reconheceu a importância do estabelecimento
individualizado da dose do medicamento Imiglucerase para cada paciente; do acompanhamento constante
dos efeitos das doses prescritas; e a possibilidade de mudança nas doses (aumento ou redução), com base
na evolução de cada caso e critérios clínicos.
O medicamento necessário ao tratamento da doença, Imiglucerase, consta na lista de
medicamentos excepcionais da Secretaria Estadual de Saúde, conforme Portaria GM/MS – n.º 3916, de
30/10/98, Portaria SAS – n.º 204/96, Portaria SAS – n.º 499/99 e Portaria SAS n.º 184/99.(DOC III)
Não obstante todos estes fatos, em 24 de outubro de 2002 fomos contactados pela Associação
Mineira dos Pais, Amigos e Portadores de Gaucher que informou, através da correspondência juntada aos
autos (DOC IV), que a Secretaria Estadual de Saúde interrompeu o fornecimento junto a rede pública do
Estado de Minas Gerais (SUS) do referido medicamento.
Com base na documentação fornecida por tal associação foi enviado o ofício nº 148/2002-R-PDS
(DOC V) para a Secretaria Estadual de Saúde indagando acerca da causa de interrupção do fornecimento
gratuito do medicamento Imiglucerase via rede pública do Estado (SUS).
Em resposta ao ofício, a Secretaria Estadual de Saúde informou que o fornecimento do
medicamento Imiglucerase foi interrompido a partir do mês de outubro de 2002 devido ao seu alto custo.
Alega que o medicamento é importado e tem seu preço em dólares, US$ 740, o que equivale a
aproximadamente R$ 2.812,00 (Dois mil e oitocentos e doze reais). Além disso, argumenta que os gastos
com os portadores da Doença de Gaucher absorvem o equivalente a R$ 3.093.200,00 (Três milhões,
noventa e três mil e duzentos reais), sendo que a verba disponibilizada pelo Ministério da Saúde para os
medicamentos excepcionais é de R$ 4.838.306,89 (Quatro milhões, oitocentos e trinta e oito mil e
trezentos e seis reais e oitenta e nove centavos).(DOC VI)
No dia 17 de novembro de 2002, foi enviado à Secretaria Estadual de Saúde o ofício n.º 849/2002R-PDS (DOC VII), requerendo informações sobre a regularização do fornecimento do medicamento. Em
resposta, a Secretaria Estadual informou que o medicamento não está sendo fornecido e que foi
encaminhada proposta para que o mesmo seja fornecido pelo Ministério da Saúde, devido ao seu custo
elevado.(DOC VIII)
Assim, Exa, desde outubro do corrente ano até a presente data estão os pacientes e cidadãos
portadores da Doença de Gaucher sem a adequada e integral assistência à sua saúde estando o Estado se
omitindo de seu dever Constitucional e causando sérios danos à saúde de seus governados.
Ante tal quadro, não restou a essa Promotoria outra medida senão a presente ação.
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Para a adequada fundamentação e entendimento do pedido, impõe-se a conceituação da doença
suas causas e origens, bem como a explicitação do tratamento ambulatorial necessário e adequado à
doença.
II – DOENÇA DE GAUCHER – DEFINIÇÃO E SINTOMAS
O Parecer Técnico Do Dr. José Semionato Filho, médico pediatra do Centro Geral de Pediatria da
FHEMIG, e Dra. Eugênia Ribeiro Valadares, Professora adjunta do departamento de Pediatria da
Faculdade de Medicina da UFMG, (DOC IX), bem como a Portaria n.º 449 da Secretaria de Assistência à
Saúde (DOC I), trazem a definição e os sintomas da Doença de Gaucher.
De acordo com o Parecer Técnico, “a Doença de Gaucher é uma moléstia hereditária,
caracterizada pela mutação no gene da glicocerebrosidase, acarretando acúmulo progressivo de
glicocerebrosídeo em vários órgãos do paciente, levando a graves complicações clínicas, podendo levar à
invalidez e até mesmo à morte.”
A Portaria n.º 449, define a Doença de Gaucher como “a mais comum das glicoesfingolipidoses e a
primeira a ter tratamento específico através da reposição enzimática. É uma doença hereditária
autossômica recessiva que compromete o metabolismo lipídico resultando em acúmulo de
glucocerebrosideo nos macrófagos.”
Felizmente, a doença de Gaucher é bastante rara, acometendo cerca de um a cada 200.000
indivíduos nascidos vivos.
O Parecer Técnico (DOC IX) esclarece como a doença de Gaucher se manifesta no organismo dos
portadores:
“No organismo normal, várias células morrem todos os dias e são substituídas por outras novas,
num processo contínuo de renovação. As células que morrem são destruídas e seus componentes químicos
(proteínas, açúcares e gordura) são reaproveitados. Neste processo, tais componentes são fagositados
(ingeridos) por outras células, e digeridos por enzimas no interior de estruturas denominadas lisossomas.
Isto é necessário, pois a maioria dos componentes químicos das células são moléculas grandes e complexas,
que necessitam ser “quebradas” em componentes mais simples, para que o organismo possa reaproveitá-los
na fabricação de novas células.
Uma destas substâncias é um tipo de gordura complexa, chamada glicocerebrosídeo, que é um
componente estrutural de vários tipos de células. Para ser degradado, o glicocerebrosídeo uma vez
fagositado, é quebrado em dois componentes mais simples através da ação de uma enzima, denominada
glicocerebrosidase. Esse processo ocorre no interior de células aparentadas com os glóbulos brancos do
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sangue, denominadas macrófagos. Esta enzima é produzida pelos próprios macrófagos, encarregados de
reciclar o glicocerebrosídeo. A produção da enzima é comandada por um gene específico, que contém as
instruções biológicas (a receita) para que a célula sintetize. De fato, a produção de cada componente e
característica de qualquer organismo vivo é codificada por um gene. No núcleo de cada célula viva,
encontra-se todos os genes que determinam as características do indivíduo, “escritos” quimicamente numa
molécula longa e complexa chamada DNA. Na doença de Gaucher, o paciente herdas dos pais genes
defeituosos, que determinam a fabricação de uma enzima alterada, portanto ineficaz.”
Pelo fato dos portadores de Gaucher não produzirem a enzima glicocerebrosidase adequadamente,
o glicocerebosídeo não consegue ser digerido e acumula-se no interior dos macrófagos, que passam a ser
denominados de células de Gaucher.
As células de Gaucher acumulam-se em todo o organismo, sendo mais frequente nos órgãos onde
os macrófagos são mais ativos, como o baço, o fígado e a medula óssea. Como o acúmulo ocorre desde o
nascimento, ou até mesmo antes, o fígado e o baço aumentam progressivamente de volume.
Paralelamente, ocorre infiltração óssea, devido ao acúmulo das células de Gaucher na medula óssea.
Assim, a maior parte dos sintomas e complicações da doença de Gaucher são decorrentes do
aumento do fígado e do baço (hepatoesplenomegalia) e das infiltrações ósseas.
O Parecer Técnico (DOC IX) elucida os sintomas decorrentes da doença dividindo-os entre os
causados pela hepatoesplenomegalia e pelas infiltrações ósseas:
“Da hepatoesplenomegalia:
-
Abdome volumoso, podendo chegar a extremos, com aspecto similar até mesmo a uma
gestação. Isto acarreta compressão dos órgãos abdominais, prejudicando a digestão e
causando desconforto;
-
Risco de ruptura do fígado e/ou do baço, no caso de traumatismos banais, como uma queda
da própria altura. O órgão muito aumentado fica bem mais frágil e menos protegido. Já
foram constatados casos de ruptura destes órgãos que levaram a hemorragias fatais em
pacientes de Gaucher;
-
Distúrbios psicossociais em decorrência do abdome volumoso, com perda da auto estima,
principalmente em crianças e adolescentes que podem Ter seu desempenho escolar
seriamente comprometido;
-
Diminuição da resistência do organismo, ficando o paciente mais sujeito a infecções;
-
Anemia e trombocitopenia: o baço desempenha um importante papel na reciclagem do
sangue, retirando da circulação e destruindo as hemácias (glóbulos vermelhos) e as
plaquetas (trombócitos, células do sangue responsáveis pela coagulação). O aumento do baço
leva a uma destruição excessiva destas células, que têm sua quantidade diminuída (anemia =
poucas hemácias; trombocitopenia = poucas plaquetas) no sangue. Isto acarreta:
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- Anemia: palidez, coloração amarelada da pele, fadiga e cansaço excessivos,
sonolência excessiva. Na doença de Gaucher, a anemia pode ser intensa a ponto
de ser incapacitante e, em casos extremos, fatal;
- Trombocitopenia: maior susceptibilidade a sangramentos e hemorragias. O
paciente fica com manchas roxas na pele com qualquer pancadinha. a
predisposição ao sangramento pode levar a hemorragias até mesmo fatais.
Do acometimento ósseo:
-
Alteração na estrutura dos ossos, que se tornam muito frágeis. Além disso, a infiltração da
medula óssea leva à redução de células do sangue, contribuindo para agravar a anemia e a
trombocitopenia causadas pela esplenomegalia acima descrita;
-
Fraturas patológicas: quebra espontânea dos ossos, sem traumatismo. Pode levar à invalidez
permanente, até à morte, quando ocorre na coluna vertebral;
-
Dores ósseas: podem ser intensas a ponto de se tornarem incapacitantes.
-
Retardo do crescimento: quando a doença se manifesta em crianças, a lesão óssea prejudica o
crescimento, causando acentuada limitação na estatura na maioria dos pacientes.”
O Parecer Técnico esclarece ainda que em menos de 5% dos pacientes ocorre também
comprometimento do sistema nervoso central, causando convulsões, estrabismo e alterações mentais,
levando essas crianças à morte.
De acordo com os sintomas apresentados a Doença de Gaucher é classificada em três tipos:
-
Tipo 1 (não neuropática): também chamada de forma crônica não-neuropática do adulto, é o
tipo mais frequente (mais de 95%), onde verifica-se a ocorrência de todos os sintomas
acima, porém, sem nenhum acometimento do sistema nervoso. Responde à terapia de
reposição enzimática;
-
Tipo 2 (neuropática aguda): é o tipo mais raro, verifica-se a ocorrência de todos os sintomas
descritos, inclusive comprometimento neurológico. Aparece nos primeiros anos de vida
causando a morte antes dos 2 (dois) anos de idade.
-
Tipo 3 (neuropática subaguda): chamada forma juvenil, também é um tipo raro que pode
ocorrer em qualquer fase da infância e combina aspectos das duas formas anteriores com
leve disfunção neurológica lentamente progressiva. Os portadores que sobrevivem até a
adolescência podem viver por muitos anos. Responde ao tratamento com terapia de
reposição enzimática.
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Desta forma, o quadro clínico varia de pessoa para pessoa dependendo da severidade de mutação
herdada, o que acarreta uma maior ou menor velocidade do acúmulo de glicocerebrosídeo. Quanto mais
cedo os sintomas se manifestam, mais grave a doença e mais necessário o tratamento.
III- DOENÇA DE GAUCHER – TRATAMENTO
Até o ano de 1991, não havia tratamento específico para a Doença de Gaucher. Aos portadores
eram ministradas apenas medidas paliativas que, além de oferecerem pouco alívio, não alteravam o curso
progressivo da doença. A partir desta data, o tratamento denominado “Terapia de Reposição Enzimática” –
TRE - tornou-se disponível.
O tratamento consiste na aplicação quinzenal de injeções intravenosas de Imiglucerase, enzima
que os portadores de Gaucher não conseguem produzir.
A Imiglucerase é a forma modificada por técnica de DNA-recombinante da glicocerebrosidase,
produzida mediante sofisticados métodos de engenharia genética. Atualmente, o medicamento só é
produzido por uma empresa norte-americana, sendo comercializado pelo nome de “CEREZYME”.
O Parecer Técnico (DOC XI) esclarece que “ A eficácia e segurança do tratamento da doença de
Gaucher com Imiglucerase são amplamente reconhecidas, com numerosos artigos comprobatórios
publicados na imprensa médica internacional. Sendo a única terapia eficaz disponível para esta doença,
vários países a disponibilizam para seus cidadãos, inclusive o Brasil, onde o uso da Imiglucerase na doença
de Gaucher foi recentemente regulamentado pelo Ministério da Saúde, através da portaria n.º 449, de 0807-02, publicada no D.ºU. n.º 130 – seção 1 – 09-07-2002.”
A Imiglucerase age no organismo dos pacientes como a enzima normal, degradando o
glicocerebrosídeo acumulado nos macrófagos, regredindo a infiltração dos mesmos.
A reposição quinzenal e contínua da Imiglucerase é de extrema importância, pois a enzima
administrada é degradada pelo organismo após este período, semelhante ao que ocorre com a enzima
natural dos indivíduos saudáveis.
A Terapia de Reposição Enzimática deve ser mantida por toda a vida, pois a Doença de Gaucher é
hereditária e não tem cura. Ao longo do tratamento poderá haver a redução da dosagem a critério clínico
e considerando a evolução clínica favorável do paciente.
A Portaria n.º 449 da Secretaria de Assistência à Saúde (DOC I) traz o esquema de administração
da Imiglucerase e o critério para o aumento da dose:
“6.3 – Esquemas de Administração:
6.3.1 – Pacientes adultos (maiores de 18 anos) sem critério de doença grave:
Recomenda-se a infusão intravenosa de 15 U/Kg a cada 15 dias.
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Pode-se iniciar com 15 U/Kg em administração intravenosa a cada 15 dias.
Critério para aumento da dose: a ausência de resposta clínica, hematológica, hepática, esplênica
ou de sintomas, após 6 meses de tratamento, conforme estabelecido no item 6.3 abaixo, justifica o
aumento da dose para 30 U/Kg a cada 15 dias.
6.3.2 – Pacientes com 12 anos ou menos sem critério de doença grave e pacientes com 12 a 18
anos com crescimento inapropriado:
Recomenda-se a infusão intravenosa 30 U/Kg a cada 15 dias.
Pode-se iniciar-se com 30 U/Kg em administração intravenosa a cada 15 dias.
Critério para aumento da dose: a ausência de resposta clínica, hematológica, hepática, esplênica
ou de sintomas, após 6 meses de tratamento, pode justificar o aumento da dose para 60 U/Kg a
cada 15 dias. Para tanto o paciente deverá ser avaliado pelo comitê de peritos dos Centros de
Referência e requerer relatório médico demonstrando cumulativamente:
a)
nenhum aumento da hemoglobina após 6 meses de tratamento;
b)
nenhum aumento na contagem de plaquetas após 6 meses de tratamento;
c)
nenhuma redução do tamanho do fígado ou do baço no exame ultrassonográfico após 6
meses de tratamento;
d)
nenhuma alteração na frequência e intensidade dos sintomas ósseos e ou sinais de piora
das alterações radiológicas após 12 meses de tratamento.
6.3.3 – Pacientes com doença grave ou com doença tipo 3:
Recomenda-se a avaliação pelo Comitê Estadual de Especialistas.
Critério de doença grave:
Será considerado portador de doença de Gaucher grave aquele paciente que apresentar pelo
menos um dos itens abaixo:
a) Doença óssea avançada ou fratura patológica;
b) Tamanho do fígado avaliado por ecografia representando 9% ou mais do peso corporal;
c) Tamanho do baço avaliado por ecografia representando 10% ou mais do peso corporal;
d) Hipertensão porta identificada por eco-Doppler ou por varizes esofágicas à
endoscopiadigestiva;
e) Contagem de Plaquetas igual ou menor do que 50.000/mm3 associada a qualquer tipo de
sangramento;
f)
Hemoglobina menor do que 8 mg/dl;
g) Acometimento renal ou cardio-pulmonar;
h) Limitação funcional grave caracterizada por doença incapacitante: dispnéia ou dor aos
mínimos esforços.
Nestes casos pode-se iniciar com 60 U/Kg em administração a cada 15 dias. A critério do médico
assistente, outra alternativa é administrar 10 U/Kg intravenosamente, 3 vezes por semana.
Esta é a dose máxima permitida por este Protocolo de tratamento, pois não há evidência de que
doses maiores aumentam a eficácia do tratamento.”
Além da Reposição Enzimática, os portadores de Gaucher necessitam de um acompanhamento
médico regular, permitindo a verificação da evolução do quadro clínico e consequente adequação das
doses de Imiglucerase.
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A Portaria n.º 449, no item 7, traz os termos do acompanhamento médico do tratamento:
“7 – Evolução e Acompanhamento:
7.1 – Nos primeiros 2 anos:
A cada 3 meses recomenda-se avaliação hematológica;
A cada 6 meses realizar ultrassonografia abdominal com estimativa do tamanho do fígado e
baço;
Aos 12 meses: reavaliação radiológica, nos casos com lesões ósseas;
7.2 – Após 2 anos de tratamento:
Já no primeiro ano de tratamento, a critério do médico assistente e do Centro Regional de
Referência recomenda-se atenção à possibilidade otimização da dosagem.
Avaliação hematológica e ultrassonográfica a cada 6 meses ou, nos casos com boa evolução,
revisão anual;
Avaliação radiológica anual ou a critério médico dependendo da presença de lesões ósseas.
A Ressonância Nuclear magnética deve ser reservada para casos especiais como: paciente adulto
com sintomas esqueléticos persistentes, ou paciente com mais de 30% de área comprometida com
rarefação óssea ao estudo radiológico.”
A realização contínua e adequada da Técnica de Reposição Enzimática, bem como o
acompanhamento médico regular, proporcionam aos portadores da Doença de Gaucher os seguintes
benefício: melhora da capacidade funcional e aeróbica, redução da hepatoesplenomegalia, redução do
hiperesplenismo e da dor óssea, além de uma melhora da qualidade de vida.
Desta forma, a suspensão do fornecimento do medicamento Imiglucerase junto a rede pública do
Estado de Minas Gerais (SUS) está causando sérios prejuízos aos portadores de Gaucher
Conforme explicitado, o tratamento da doença deve ser contínuo para que surta os efeitos
desejados. A interrupção do tratamento, conforme exposto no Parecer Técnico (DOC IX): “...acarretará na
perda de todos os ganhos terapêuticos já obtidos pelos pacientes atualmente em tratamento. Pior que isso,
estes indivíduos voltarão a padecer com anemia, cansaço, dores ósseas e demais sinais e sintomas acima
descritos, e vários deles estarão sujeitos a evoluir para a invalidez temporária ou definitiva. Além disso,
com base na evolução natural da doença exposta acima, pode-se também afirmar que a suspensão da única
terapia atualmente eficaz nos pacientes de Gaucher, potencialmente irá expor vários destes indivíduos a
risco de vida.” (grifo nosso)
IV – DO DIREITO
Relevante a transcrição das normas jurídicas que tratam do direito do cidadão, inclusive do
portador de Doença de Gaucher, à saúde, para que se tenha exata compreensão da efetiva proteção que lhe
dá o ordenamento jurídico de nosso País, possibilitando-lhe, individual ou coletivamente, o exercício
desse direito público subjetivo em face do Estado.
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Embora, em tempos não remotos, não houvesse um tratamento específico para esta doença, o
surgimento da Técnica de Reposição Enzimática, na qual se utiliza o medicamento Imiglucerase,
proporciona aos portadores de Gaucher do tipo 1 e 3 a regressão gradativa dos sintomas, e a consequente
melhora da qualidade de vida.
A doença de Gaucher pode ser descoberta em qualquer época em qualquer idade, da infância à
velhice, fato que garante ampla proteção aos portadores da doença, como adiante se verá.
Além de toda a legislação aplicável, ressalte-se a importância da Portaria n.º 449, de 8 de julho de
2002, da Secretaria de Assistência à Saúde, a qual já transcrevemos algumas partes nos itens anteriores e
anexamos à inicial (DOC XI)
V – LEGISLAÇÃO APLICÁVEL
Constituição Federal:
Art. 1º, incisos II e III:”A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e
Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como
fundamentos:... II- a cidadania; III- a dignidade da pessoa humana”,
Art. 3º “Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I- construir uma sociedade
livre, justa e solidária; ... III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e
regionais; IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer
outras formas de discriminação”.
Art. 5º caput: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos
brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à
igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:”
...
§ 1º: “As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”.
Art. 6º: São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a morada, o lazer, a segurança, a previdência
social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”.
Art. 23, inciso II: “É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios: ...II
– cuidar da saúde e assistência pública...”
Art. 37 caput: “A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados,
do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade,
publicidade e eficiência...”
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Art. 196: “A vida é direito de todos e dever do Estado, garantido políticas sociais e econômicas que visem à
redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal igualitário às ações e serviços para
sua promoção, proteção e recuperação”.
Art. 198:”As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e
constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes: I – descentralização, com
direção única em cada esfera de governo; II – atendimento integral, com prioridade para as atividades
preventivas, sem prejuízos dos serviços assistenciais; ...”
Art. 227: “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta
prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à
dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los à salvo de
toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.”.
§ 1º: “O Estado promoverá programas de assistência integral à saúde da criança e do adolescente, ...”
Estatuto da Criança e do Adolescente
Art. 3º: “A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana,
sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios,
todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral,
espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade”.
Art. 4º: “É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do Poder Público assegurar, com
absoluta prioridades, e efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao
esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência
familiar e comunitária.
Parágrafo único: A garantia de prioridade compreende:
a)
primazia de receber proteção e socorro em quaisquer circunstâncias;
b)
precedência de atendimento nos serviços ou de relevância pública;
c)
preferência na formulação e na execução das políticas sociais públicas;
d)
destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e à
juventude.”
Art. 5º: “Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação,
exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou
omissão, aos seus direitos fundamentais.”
Art. 7º: “A criança e o adolescente têm direito a proteção à vida e à saúde, mediante a efetivação de
políticas sociais públicas que permitam o nascimento e o desenvolvimento sadio e harmonioso, em
condições dignas de existência.”
Art. 11: “É assegurado atendimento médico à criança e ao adolescente, através do Sistema Único de Saúde,
garantindo o acesso universal e igualitário às ações e serviços para promoção e recuperação da saúde.
11
§ 2º: Incumbe ao Poder Público fornecer gratuitamente àqueles que necessitarem o medicamentos,
próteses e outros recursos relativos ao tratamento, habilitação ou reabilitação.”
Lei nº 8.080/90
Art. 2º:”A saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as condições
indispensáveis ao seu pleno exercício.
§1º: O dever do Estado de garantir a saúde consiste na formulação e execução de políticas econômicas e
sociais que visem à redução de riscos de doença e de outros agravos e no estabelecimento de condições que
assegurem acesso universal e igualitário às ações e aos serviços para a sua promoção, proteção e
recuperação.”
Art. 4º:”O conjunto de ações e serviços de saúde, prestados por órgãos e instituições públicas federais,
estaduais e municipais, da Administração Direta e Indireta e das fundações mantidas pelo Poder Público,
constitui o Sistema Único de Saúde – SUS”.
Art. 5º:”São objetivos do Sistema Único de Saúde – SUS: ...III- a assistência às pessoas por intermédio de
ações de promoção, proteção e recuperação da saúde, com a realização integrada das ações assistenciais e
das atividades preventivas.”
Art. 6º:”Estão incluídas ainda no campo de atuação do Sistema Único de Saúde – SUS: I – a execução de
ações: d) de assistência terapêutica integral, inclusive farmacêutica;”
Art. 7º: “As ações e serviços públicos de saúde e os serviços privados contratados ou conveniados que
integram o Sistema Único de Saúde – SUS, são desenvolvidos de acordo com as diretrizes previstas no
artigo 198 da Constituição Federal, obedecendo ainda aos seguintes princípios:
I_ universalidade de acesso aos serviços de saúde em todos os níveis de assistência;
II integralidade de assistência, entendida como conjunto articulado e contínuo das ações e serviços
preventivos e curativos, individuais e coletivos, exigidos para cada caso em todos os níveis de
complexidade do sistema;
IV igualdade da assistência à saúde, sem preconceitos ou privilégios de qualquer espécie;
XXII- capacidade de resolução dos serviços em todos os níveis de assistência”.
Art. 8º: “As ações e serviços de saúde, executados pelos Sistema Único de Saúde – SUS, seja diretamente ou
mediante participação complementar da iniciativa privada, serão organizados de forma regionalizada e
hierarquizada em níveis de complexidade crescente.”.
Art. 17: “À direção estadual do Sistema Único de Saúde – SUS compete:
II – acompanhar, controlar e avaliar as redes hierarquizadas do Sistema Único de Saúde – SUS;
III – prestar apoio técnico o financeiro aos Municípios e executar supletivamente ações e serviços de
saúde;
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IV – coordenar e, em caráter complementar, executar ações e serviços ... c) de alimentação e nutrição;
IX – identificar estabelecimentos hospitalares de referência e gerir sistemas públicos de alta complexidade,
de referência estadual e regional”;
Código de Defesa do Consumidor
Art. 22: “Os órgãos público, por si ou suas empresas, concessionárias, permissionárias ou sob qualquer
outra forma de empreendimento, são obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e,
quanto aos essenciais, contínuos.
Parágrafo único: Nos casos de descumprimento, total ou parcial, das obrigações referidas neste artigo,
serão as pessoas jurídicas compelidas a cumpri-las e a reparar os danos causados, na forma prevista nesta
Código.”
Constituição do Estado de Minas Gerais
Art. 186 – A saúde é direito de todos, e a assistência a ela é dever do Estado, assegurada mediante políticas
sociais e econômicas que visem à eliminação do risco de doenças e de outros agravos e ao acesso universal
e igualitário às ações e aos serviços para sua promoção, proteção e recuperação.
Parágrafo único: - O direito à saúde implica a garantia de:
I-
condições dignas de trabalho, moradia, alimentação, educação, transporte, lazer e saneamento
básico;
...
II - dignidade, gratuidade e boa qualidade no atendimento e no tratamento de saúde;
Art. 187 – As ações e serviços de saúde são de relevância pública, e cabem ao Poder Público sua
regulamentação, fiscalização e controle, na forma da lei.
Parágrafo único – A execução das ações e serviços será feita pelo Poder Público e, complementarmente,
por pessoa física ou jurídica do direito privado.
Art. 188 – As ações e serviços públicos de saúde no âmbito do Estado integram rede nacional
regionalizada e hierarquicamente constituída em sistema único, e se pautam também pelas seguintes
diretrizes:
...
II – regionalização de ações da competência do Estado
VI – CONFRONTO ENTRE OS FATOS E A LEGISLAÇÃO
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Depreende-se, de tudo quanto foi dito nesta inicial, que a Doença de Gaucher é doença
hereditária incurável, que compromete o metabolismo lipídico resultando em acúmulo de
glucocerebrosideo nos macrófagos, com incidência de um (1) caso para cada 200.000 nascidos vivos.
Conforme informações da própria Secretaria Estadual de Saúde (DOC VI), há 54 pacientes
portadores de Gaucher cadastrados que já iniciaram o tratamento com o medicamento Imiglucerase, e
mais 05 pacientes aguardando para iniciá-lo
Com a suspensão do fornecimento do medicamento essas pessoas que já iniciaram o tratamento
correm o risco de perder todos os ganhos terapêuticos já obtidos e voltar a padecer de todos os sintomas
característicos da doença. Quanto aos que não iniciaram o tratamento, a demora acarretará o agravamento
dos sintomas e do sofrimento dos pacientes.
Tal destino ocorre exclusivamente pela decisão do Governo Estadual, através da Secretaria de
Saúde, de interromper o fornecimento do medicamento. Decisão claramente ilegal, que desrespeita o
direito público subjetivo que esses têm de receber a medicação e o tratamento de que necessitam.
A legislação anteriormente transcrita traz em suas linhas várias regras que podem assim ser
resumidas.
A primeira delas é que tais doentes, enquanto pessoas humanas, detentoras do direito
fundamental à vida e à saúde, enquanto paciente do SUS, têm direito ao tratamento integral. E
tratamento integral, para os pacientes portadores de Doença de Gaucher, consiste na administração da
Imiglucerase nas doses estabelecidas para cada caso específico e o acompanhamento médico regular.
As normas definidoras desse direito constitucional têm aplicação imediata, não se tratando de
meras regras programáticas.
O Governo Estadual não está obedecendo à lei, muito menos sendo eficaz, quando suspende o
fornecimento do medicamento Imiglucerase, violando manifestamente o disposto no artigo 37 da CF. É
seu dever assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à vida
digna, ao desenvolvimento físico, moral e social, o que somente é possível, aos portadores de Gaucher
atendidos pelo Sistema Único de Saúde, se receberem, gratuitamente, o tratamento medicamentoso, o que
parou de ocorrer por culpa exclusiva da Secretaria Estadual de Saúde.
Também se pode afirmar que é diretriz do SUS, neste Estado, a equidade como meio para o
tratamento desigual de casos desiguais. Se os portadores de Gaucher, para viverem por mais tempo,
mantendo qualidade de vida satisfatória, exigem o medicamento específico, mesmo que de alto custo, tal
tratamento está plenamente garantido pela Lei, que garante o respeito às necessidades de todos os
seguimentos da população.
Outras conclusões jurídicas importantes:
a) a situação ilegal descrita no item “Dos Fatos” não pode ser justificada sob o argumento da
discricionariedade administrativa. Este princípio, criado para garantir a agilidade exigida na administração
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da coisa pública, com vistas ao interesse público, não pode servir de justificativa para a decisão ilegal,
violadora da Lei e dos princípio da Administração Pública, previstos no artigo 37 da CF. Não tem a pessoa
jurídica de direito público estadual o poder de decidir, em última análise, sobre onde e como negará ao
cidadão direitos públicos subjetivos.
b) não se pode concluir, quando se sabe que alguns medicamentos excepcionais estão sendo
fornecidos regularmente, enquanto outros não, que estamos tratando de matéria sujeita à
discricionariedade administrativa. Esse poder não pode servir como fundamento para decidir sobre a vida
ou a morte de doentes atendidos pelo SUS, principalmente quando envolve crianças e adolescentes. É
preciso atentar para a seguinte conclusão, única possível diante da Lei: nas doenças onde se dá o
atendimento integral, a Constituição Federal, o Estatuto da Criança e do Adolescente e a Lei do SUS estão
sendo cumpridos. Onde não se presta o atendimento integral, descumpre-se, pura e simplesmente, a Lei.
c) assim, não exorbita o Poder Judiciário quando, provocado pelo Ministério Público, interfere na
Administração Pública para defender direitos dos cidadãos expressos na Legislação, contra decisão do
Poder Público ensejadora de situação manifestamente ilegal. Fere o ordenamento jurídico permitir-se,
com fundamento em critérios de oportunidade e conveniência, que estabelecimentos público de saúde,
referências para portadores de Gaucher, não disponham do medicamento que seus doentes necessitam,
maxime quando tal omissão gera maior número de internações hospitalares, com prejuízo aos cofres
público (é muito mais caro ao Poder Público tratar o doente internado, do que na própria casa) e à saúde
dessas pessoas.
d) não se está, aqui, estabelecendo prioridade na atuação da administração pública, colocando-se
na posição do Poder Executivo Estadual. A fixação de prioridades de governo é amplamente acobertada
pela Lei, desde que, na sua execução, não se deixe direitos fundamentais e indisponíveis ao desamparo da
atuação Estatal. Mesmo na área dos direitos sociais, como a saúde, pode-se estabelecer prioridades, no
exercício da discricionariedade. Todavia, sua efetivação não pode ensejar situações ilegais, porque a
criança e o adolescente têm prioridade prevista em Lei quanto ao atendimento de saúde e o respeito à Lei
é dever fundamental de qualquer esfera de governo.
e)não há que se falar em limites orçamentários ou em observância da Lei de Responsabilidade
Fiscal, como desculpa para a manutenção da situação ilegal narrada nesta inicial. A sociedade, a
população, o cidadão têm direitos aqui extraídos do ordenamento jurídico em vigor, identificados em
normas jurídicas auto-aplicáveis. Submetê-los ao saldo do “caixa” do Poder Público, de qualquer esfera,
significa, na verdade, negá-los. Note-se que a legislação supratranscrita não sujeita o direito do cidadão
portador da Doença de Gaucher, em nenhuma passagem, ao “saldo bancário” da Administração. O
Legislativo, sábio, percebeu que, assim não fosse, tais direitos seriam sempre negados sob a desculpa da
falta de dinheiro, o que jamais poderia ser posto em dúvida, pois a ninguém é dado conhecer o movimento
financeiro de qualquer pessoa jurídica de direito público interno. Por outro lado, antes da
“Responsabilidade Fiscal” há a Responsabilidade Social”, muito mais importante - quer nos direitos
hierarquicamente superiores que ampara, quer nas consequências legais àqueles que a desrespeitam.
E não pode ignorar que nenhum administrador público seria alcançado pelas penalidades
previstas na “Lei de Responsabilidade Fiscal” se demonstrar estar agindo em defesa da vida, no
cumprimento da Lei e de Decisão Judicial.
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Sobre a questão, em casos semelhantes, já se manifestaram os Tribunais:
“O Judiciário não desconhece o rigorismo da Constituição ao vedar a realização de
despesas pelos órgãos públicos além daquelas em que há previsão orçamentária;
este Poder, todavia, sempre consciente de sua importância como integrante de um
dos Poderes do Estado, como pacificador dos conflitos sociais e defensor da Justiça
e do bem comum, tem agido com maior justeza optando pela defesa do bem
maior, veementemente defendido pela Constituição – A VIDA – interpretando a
lei de acordo com as necessidades sociais imediatas que ela se propõe a satisfazer”
(Apel. Cível nº 98.006204-7, Santa Catarina, Rel. Nilton Macedo Machado,
08/09/98).
Mais adiante, nessa mesma Decisão:
“Com relação à previsão orçamentária para o custeio dos medicamentos
específicos, basta relembrar que já há no orçamento do Estado, dotação
apropriada; da mesma forma não pode o apelante pretender eximir-se de suas
responsabilidades sob a alegação de que enfrenta sérios problemas financeiros, em
face da escassez de recursos, o que soa falso em face dos gastos publicitários que se
vê nos meios de comunicação, apregoando obras e realizações governamentais
(...)”. Citando o Ministro Celso de Mello em caso também relativo à saúde: “A
singularidade do caso (...), a imprescindibilidade da medida cautelar concedida
pelo Poder Judiciário do Estado de Santa Catarina (...) e a impostergalidade do
cumprimento do dever político constitucional que se impõe ao Poder Público, em
todas as dimensões da organização federativa, de assegurar a todos a proteção à
saúde CF, art. 6º, c.c art. 227, Parágrafo 1º) constituem fatores que, associados a
um imperativo de solidariedade humana, desautorizam o deferimento do pedido
ora formulado pelo Estado de Santa Catarina (...). Entre proteger a inviolabilidade
do direito à vida, que se qualifica como direito subjetivo inalienável assegurado
pela própria Constituição da República (art. 5º, caput), ou fazer prevalecer, contra
essa prerrogativa fundamental, um interesse financeiro e secundário do Estado,
entendo – uma vez configurado esse dilema – que razões de ordem ético-jurídica
impõem ao julgador uma só e possível opção: o respeito indeclinável à vida”.
“...Sendo a saúde direitos e dever do Estado (CF, art. 196, CE, art. 153), torna-se o
cidadão credor desse País para o tratamento reclamado. A existência de previsão
orçamentária própria é irrelevante, não servindo tal pretexto como escusa, uma
vez que o executivo pode socorrer-se de créditos adicionais. A vida, Dom maior,
não tem preço, mesmo para uma sociedade que perdeu o sentido da solidariedade,
num mundo marcado pelo egoísmo, hedonista e insensível. Contudo, o
reconhecimento do direito á sua manutenção (...) não tem balizamento caritativo,
posto que carrega em si mesmo, o selo da legitimidade constitucional e está
ancorado em legislação obediente àquele comando”.
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(TJSP, Des. Xavier Vieira, Agravo de Instr. Nº 96.012721-6).
“A respeito, cabe ver que a Portaria nº 21, de 21.3.95, do Ministério da Saúde, já
recomendava a utilização da combinação de novos medicamentos com o então
conhecido AZT, de modo que, somente atribuível à incúria da Administração não
Ter ela já licitado, - inclusive com previsão orçamentária – de modo a permitir, de
modo continuado, o fornecimento de tais medicamentos aos dele necessitados, em
quantidades adequadas. Portanto, não socorre a agravante o argumento de
necessidade de licitação prévia ou previsão orçamentária, muito menos cabe-lhe
colocar em dúvida a eficácia dos remédios em questão, os quais, aliás, são sempre
receitados pelos médicos” ( Agravo de Instrumento nº 82.036-5, 8ª Câm. Dir.
Público do TJSP, Rel. José Santana).
Como se percebe, mostra-se irrelevante eventual falta de prévia dotação orçamentária ou mesmo
insuficiência de recurso, prevendo o atendimento integral dos doentes de Gaucher , ou seja, o
cumprimento da Lei. Consoante enfatiza com lucidez João Angélico (contabilidade Pública , Ed. Atlas,
pág. 35), “durante a execução orçamentária, o Poder Executivo pode solicitar ao Legislativo, e este
conceder, novos créditos orçamentários. Eles serão adicionados aos créditos que integram orçamento em
vigor. Por essa razão, denominam-se créditos adicionais. Os créditos adicionais aumentam a despesa
pública do exercício, já fixada no orçamento”.
Por fim, vale tanscrever parte da obra de Germano Schwartz (Direito à Saúde – Efetivação em
uma Perspectiva Sistêmica, pág. 80/81, Ed. Livraria do Advogado):
“...Não é por falta de aporte financeiro que o Estado poderá se eximir de seu dever. A saúde
reclama prestação sanitária tão-somente. Sarlet (1998), a respeito da negação das prestações sanitárias com
base na ausência orçamentária estatal, refere que: “em relação aos habituais argumentos da ausência de
recursos e da incompetência dos órgãos judiciários para decidirem sobre a alocação e destinação de recursos
público, não nos parecer que esta solução possa prevalecer, ainda mais nas hipóteses em que está em jogo a
preservação da vida humana” (p. 298). Ora, a hipótese de não-existência de previsão orçamentária não
pode ser alegada pelo Estado, até porque não se pode antever com eficácia as necessidades da população,
ou ainda, de outra banda, não se pode favorecer a omissão do ente responsável, premiando-o por sua
negligência e/ou inércia. Ao se referir ao Sistema Único de Saúde e à sistemática sanitária brasileira
instalada pela CF/88, Cláudio Barros Silva (1995) se posiciona expressamente quanto à impossibilidade de
condicionantes para o exercício do direito à saúde: “Como consequência do sistema, o acesso à assistência, à
saúde, passou a ser universal e igualitário, não havendo, por ser direito subjetivo do cidadão, qualquer
condicionante ao exercício. O papel do Estado é garantir a satisfação desse direito público subjetivo” (p.100).
O Supremo Tribunal Federal – STF, em acórdão nos autos do Agravo Regimental em Agravo de
Instrumento nº 238.328-0 (Julgado em 16.11.99), no voto do Relator Ministro Marco Aurélio, quando
provocado a se pronunciar sobre a matéria, afirmou que a falta de dispositivo legal para o custeio e
distribuição de remédios para AIDS não impede que fique comprovada a responsabilidade do Estado, pois
“decreto visando-a não poderá reduzir, em si, o direito assegurado em lei”. E, esclareça-se desde já, com
base no art. 23 da CF/98, que o cidadão pode demandar contra qualquer dos entes federados na busca da
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proteção de saúde: “SAÚDE PÚBLICA. FORNECIMENTO GRATUITO DE MEDICAMENTOS POR
ENTIDADE PÚBLICA MUNICIPAL PARTICIPANTE DO SUS. CONCESSÃO DE TUTELA ANTECIPADA
EM PLEITO ORDINÁRIO. DIREITO À VIDA. DEVER COMUM DOS ENTES FEDERADOS. ARTS. 196 E
198 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. PRECEDENTES PRETORIANOS. AUSÊNCIA DE PREVISÃO
ORÇAMENTÁRIA QUE NÃO PODE PENALIZAR O CIDADÃO. AGRAVO NÃO PROVIDO. DECISÃO
CONFIRMADA. AS entidades federativas têm o dever ao cuidado da saúde e da assistência pública, da
proteção e garantia das pessoas portadores de deficiência de saúde, a teor do disposto no art. 23 da
Constituição Federal. Assim, não se pode prestar à fuga de responsabilidade a mera arguição de violação ao
princípio do orçamento e das normas de realização de despesa pública, quando verificado que o Estado, na
condição de instituição de tributo especial dirigido a suplementar verbas da saúde, não o faz com
competência devida”. (Agravo de Instr. Nº 1999.002.12096, 9ª Câm. Cível, TJRJ, Rel.: Des. Marcus Tullius
Alves, Julgado em 02.05.2000)”.
VII – DO PEDIDO
Diante de todo o exposto, o Ministério Público do Estado de Minas Gerais requer a citação do
ESTADO DE MINAS GERAIS (FAZENDA PÚBLICA ESTADUAL DE MINAS GERAIS), na pessoa da
Excelentíssima Procuradora-Geral do Estado na Praça da Liberdade,s/nº para, querendo contestar no
prazo legal a presente ação, sob pena de suportar os efeitos da revelia (CPC, art. 319), a qual deverá, ao
final, ser julgada inteiramente procedente, para condenar o ESTADO DE MINAS GERAIS (Fazenda
Pública Estadual de Minas Gerais):
VII.a – A obrigação de fazer, no prazo de quinze dias, consistente na disponibilização gratuita em caráter
permanente, sem interrupção do medicamento Imiglucerase aos pacientes cadastrados, atual e
futuramente pelo Sistema Único de Saúde, junto aos postos de distribuição de medicamentos da Secretaria
de Estado de Saúde;
VII.b – sob pena de, nos termos do art. 11 da Lei nº 7.347/95, pagamento de multa no valor de R$ 500,00
(quinhentos reais) por dia de atraso no fornecimento, para cada paciente, do medicamento Imiglucerase,
quantia que deverá ser revertida para o fundo de reconstituição dos interesses metaindividuais lesados,
criado pelo art. 13 daquela lei.
VIII – DO PEDIDO DE ANTECIPAÇÃO DE TUTELA
O atendimento de saúde, por guardar estreita relação com a manutenção da vida humana, é
sempre relevante e urgente. Diante da urgência reclamada pela espécie, requer-se a concessão liminar da
antecipação dos efeitos da tutela pretendida, nos termos do disposto nos artigos 273, inciso I, e 461 do CPC
e artigo 84, § 3º, do Código de Defesa do consumidor.
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O acolhimento liminar dos efeitos da tutela urge e impera, porquanto o provimento da pretensão,
somente ao final, poderá ser inócuo para prevenir os danos à saúde dos portadores da Doença de Gaucher,
ou mesmo para evitar a morte de alguns deles. Os doentes que já iniciaram o tratamento, na maioria
crianças e adolescentes, conseguiram grandes progressos no combate aos sintomas e melhora da qualidade
de vida. A decisão do Estado de interromper o fornecimento do remédio, sob argumentos ilegais,
acarretará a perda dos ganhos terapêuticos ganhos e ocasionará a volta de todos os sintomas da doença,
podendo, em alguns casos, causar até a morte.
Relevante é o fundamento da lide, pois pretende-se, em última análise, a manutenção da saúde e
da vida de pessoas neste Estado e presentes estão, por tudo quando foi demonstrado no inquérito civil
público em anexo, o “fumus boni juris” e o “periculum in mora”.
Não se cogita, por outro lado, de “perigo de irreversibilidade do provimento antecipado”, pois
obtido o medicamento aqui mencionado e disponibilizado aos portadores de Gaucher, o mesmo
indiscutivelmente será usado, mais cedo ou mais tarde, porque consiste em um medicamento de uso
contínuo, mas acima de tudo, de uso indispensável. Assim, deferida a antecipação de sua disponibilização,
não há o menor risco desse medicamento não ser utilizado, já que a sobrevida desses doentes depende
diretamente do seu uso contínuo.
Os prazos estabelecidos no pedido, para cumprimento das obrigações de fazer, não deve iludir o
Julgador quanto ao perigo da demora. É facilmente perceptível que as providências reclamadas nesta
inicial não se resolvem da noite para o dia . A administração pública estadual terá de quantificar a
demanda desse medicamento, consultando o cadastro dos portadores da doença que são atendidos pelo
SUS e os pedidos de inclusão no tratamento, em todo o Estado, para a aquisição racional deles. Talvez
necessite adquiri-lo emergencialmente num primeiro momento e, depois, mediante procedimentos
licitatórios rotineiros.
Todavia, é perfeitamente justificado o receio de ineficácia do provimento final, caso a
Administração não seja obrigada, desde já, a tomar as providências que ensejarão a observância da ordem
Judicial no prazo estabelecido na respectiva Decisão. Esta a razão da necessidade da concessão liminar dos
efeitos da tutela pleiteada. Há risco à vida e à saúde dos portadores da Doença de Gaucher deste Estado,
facilmente evitável se o Poder Público Estadual for compelido a atuar desde agora, com tempo razoável
para alcançar o resultado consubstanciado no pedido desta ação civil pública.
Requer-se, por fim, que as intimações do Ministério Público sejam realizadas pessoalmente, na
forma da lei, na Promotoria de Defesa da Saúde localizada na Av. Augusto de Lima, n.º 1740, em Belo
Horizonte-MG.
Protesta-se pela produção de provas, por todos os meios admitidos em direito, sobretudo pela
juntada de novos documentos e perícias, além de oitiva de testemunhas e peritos, caso se faça necessário.
Em virtude de expressa previsão legal de dispensa de custas, tanto para o demandante quanto para
o demandado, e da vedação constitucional ao recebimento de honorários advocatícios por parte do
Ministério Público, deixa-se de postular nesse sentido.
Apesar de inestimável dá-se à causa o valor de R$ 250.000,00.
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Termos em que,
P. e E.
Procedência
Belo Horizonte, 29 de Novembro de 2002
Rodrigo Filgueira de Oliveira
Promotor de Justiça
Especializado na Defesa da Saúde
Rogério Felipeto de Oliveira
Promotor de Justiça
Especializado na Defesa da Saúde
Cristiana Mundim Melo
Estagiária do Ministério Público
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