DÍVIDA PÚBLICA E POLÍTICA FISCAL

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DÍVIDA PÚBLICA E POLÍTICA FISCAL
A dinâmica da dívida pública é um dos principais indicadores das condições de
solvência fiscal. Se por um lado é certo que não é possível determinar um nível ótimo de
endividamento, que poderia ser visto como um montante adequado para qualquer
economia, por outro lado os determinantes de sua dinâmica são claramente definidos. Dado
o estoque inicial de dívida, a sustentabilidade intertemporal do setor público, expressa pela
relação dívida/PIB, é uma função da taxa de juros real, do crescimento real do produto e do
superávit primário.
A questão da sustentabilidade intertemporal enseja três questões fundamentais para
a gestão da política fiscal: a) dadas as condições macroeconômicas, o estoque e a
composição inicial da dívida, qual é o superávit primário mínimo requerido para assegurar
sua sustentabilidade? b) o superávit primário requerido é compatível com as condições
objetivas para gestão da política fiscal, notadamente no que diz respeito à estrutura das
receitas e despesas públicas e ao arcabouço institucional para definição e execução da
política fiscal? c) o estoque inicial da dívida reflete adequadamente as obrigações efetivas
do setor público ou existem passivos contingentes e dívidas não registradas que poderão
alterar a trajetória de endividamento associada ao estoque de dívida conhecido? O objetivo
deste artigo é o de avaliar as condições de sustentabilidade da dívida pública brasileira a
partir destes três condicionantes.
A definição do superávit primário requerido numa economia com as características
da brasileira, assim como em grande parte das economias emergentes, enseja um forte
complicador quando comparada com as economias mais desenvolvidas, que decorre da
maior volatilidade de dois preços fundamentais: câmbio e juros. Neste contexto, a
percepção sobre a sustentabilidade intertemporal decorre menos de um simples exercício
sobre dinâmica de dívida, mas, fundamentalmente, da percepção acerca do realismo das
hipóteses sobre o comportamento futuro da inflação, dos juros nominais e da taxa de
câmbio nominal. Cabe lembrar que maior volatilidade de câmbio e juro implica também
maior volatilidade do produto, dificultando ainda mais a análise.
Considerando-se que a dívida líquida do setor público equivale a 56% do PIB, a
manutenção de um superávit primário inferior à meta atual, que é de 3,75% do PIB, levaria
a uma trajetória de crescimento da dívida. Ainda mais grave é que a mera percepção de
insuficiência de superávit primário intensificaria a volatilidade do câmbio e pressão sobre
os juros, deteriorando, conseqüentemente, as condições de rolagem da dívida. Neste
contexto, o objetivo de política fiscal no Brasil para os próximos anos deveria ser não o de
estabilizar, mas o de reduzir a relação dívida/PIB. Este objetivo implica, necessariamente, a
manutenção do atual nível de superávit primário por um período mais longo, seguramente
superior ao tempo de mandato do próximo presidente.
Mesmo considerando-se os atuais níveis de taxa de câmbio (R$/US$ = 2,85) em
termos reais, taxas reais de juros de 10%a.a. e crescimento real de 3,5%a.a. do produto nos
próximos cinco anos, o superávit primário de 3,75% do PIB permitiria estabilizar a relação
dívida/PIB. Considerando-se juros reais de 8,5%a.a. e crescimento real do produto de
4,0%a.a. a partir de 2003, a relação dívida/PIB seria da ordem de 53% do PIB em 2007 e de
46% do PIB em 2010. Em todas as hipóteses considerou-se a incorporação de
aproximadamente R$ 60 bilhões de passivos não registrados ao estoque da dívida até 2007.
Estes números nos permitem chegar a duas conclusões importantes. Em primeiro
lugar, a meta atual de superávit primário é consistente com uma trajetória sustentável da
dívida. Em segundo lugar, corroboram claramente a afirmação anterior sobre a necessidade
de manutenção dos superávits primários no patamar atual.
Quanto à factibilidade da manutenção de superávits primários na magnitude
requerida, desde 1999 o setor público tem apresentado resultados superiores a 3,0% do PIB,
contra um déficit da ordem de 1% do PIB em 1997. Esta melhora no resultado fiscal reflete
importantes mudanças no regime fiscal brasileiro, assegurando as condições necessárias
para sua manutenção. No que diz respeito aos governos estaduais e municipais, o acordo de
refinanciamento de dívidas, assinado por 25 dos 27 estados da federação e 180 municípios,
foi acompanhado por um vigoroso programa de ajuste fiscal, que tem permitido a geração
de significativos resultados primários nas sub-esferas de governo. O resultado primário de
estados e municípios passou de um déficit da ordem de 0,3% do PIB em 1998 para um
superávit de 1,1% do PIB em 2001. A permanência destes resultados está assegurada pela
Lei de Responsabilidade Fiscal, que proíbe expressamente a mudança nos contratos de
refinanciamento de dívidas assinados junto ao governo federal.
No que diz respeito ao governo federal, a manutenção de superávits primários da
ordem de 2,0% do PIB no orçamento fiscal e da seguridade social foi acompanhada por
uma importante elevação das despesas sociais, notadamente em saúde e educação. Não
obstante, coloca-se aqui um desafio para que a manutenção destes superávits não afete a
adequada prestação de serviços públicos no futuro. Faz-se necessária uma profunda revisão
do sistema de vinculações hoje existente, que resulta num significativo grau de rigidez do
Orçamento Geral da União. Importante lembrar que esta discussão tornar-se-á ainda mais
relevante a partir do próximo ano, já que a elaboração do OGU para 2004 não poderá
contar com os efeitos da Emenda Constitucional que assegurou a Desvinculação das
Receitas da União - DRU.
Quanto ao registro da dívida pública, o atual governo vem promovendo um
importante esforço de reconhecimento de obrigações não registradas do setor público. Entre
1994 e 2001 foram incorporados ao estoque da dívida pública passivos não registrados em
montante equivalente a 10% do PIB, com destaque para o saneamento de instituições
financeiras, o ajuste de empresas incluídas no processo de privatização e as obrigações
decorrentes do Fundo de Compensação das Variações Salariais – FCVS. Estes fatores
responderam por 23% da variação da dívida bruta no período. O esforço atual não se
limitou ao reconhecimento de dívidas e ao ajuste de contas com o passado, mas também foi
acompanhado por um processo de explicitação dos passivos que deverão afetar a dívida nos
próximos anos. A este respeito, o Anexo de Riscos Fiscais da Lei de Diretrizes
Orçamentárias representou um importante avanço institucional, provendo informações
sobre os principais fatores que podem afetar negativamente a evolução da dívida e do fluxo
fiscal. Evidentemente que estes fatores, já quantificados, são considerados para efeito de
qualquer exercício de dinâmica da dívida.
Outro aspecto de fundamental importância é que a dívida já absorveu os impactos
decorrentes da mudança do regime cambial. Vale dizer, o efeito da desvalorização real
verificada desde janeiro de 1999 já foi plenamente incorporado ao estoque, representado
cerca de 13% da variação da dívida bruta observada entre 1994 e 2001. Cabe lembrar que
parcela do impacto negativo da desvalorização cambial foi compensada pela elevação das
metas de superávit primário a partir de 1999. Por fim, considerando-se que a taxa efetiva de
câmbio apresentou desvalorização real superior a 30% desde dezembro de 1998, a hipótese
de que a trajetória da dívida possa ser negativamente afetada pela taxa de câmbio não
parece plausível no médio prazo.
Em síntese, mesmo em condições adversas como as aqui sugeridas, o setor público
brasileiro é capaz de gerar o superávit primário necessário para assegurar a sustentabilidade
da dívida. A dívida pública brasileira é plenamente administrável e poderá apresentar uma
trajetória de redução já a partir do próximo ano. A condição necessária é não apenas a
manutenção do superávit primário no patamar atual, mas também a percepção e confiança
de que o processo de consolidação fiscal em curso será mantido.
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