O DIREITO PENAL ATRAVÉS DA CONSTITUIÇÃO: LEGITIMAÇÃO X LIMITAÇÃO. CRIMINAL LAW BY THE CONSTITUTION: LEGITIMAÇÃO X LIMITATION. Priscila Formigheri Feldens1 1. Introdução. 2. Os valores constitucionais e o Direito Penal 3. Abordagem histórica do bem jurídico 4. A escolha dos bens jurídicos-penais entre os diferentes tipos de direitos constitucionais 5. A Constituição “criminalizante” 6. A Constituição limitadora do Direito Penal 7. Conclusão 8. Referências. Resumo: O direito penal não se realiza de modo absolutamente autônomo. Ao efetivar a proteção dos bens jurídicos mais importantes à sociedade e, por conseguinte, de direitos fundamentais, vincula-se necessariamente a Constituição Federal. Com efeito, é interessante perceber que ao mesmo tempo em que o direito penal retira da Lei Maior sua legitimação, também é restrito por ela. Diante dessas duas facetas, urge a dúvida de que forma deve prevalecer a interferência constitucional sobre o direito penal. Palavras-chaves: Constituição Federal - direitos fundamentais direito penal - legitimação - limitação. Abstract: Criminal law will not proceed so completely autonomous. When effective legal protection of property more important to society and therefore of fundamental rights, binds itself necessarily the Federal Constitution. Indeed, it is interesting to hear that at the same time that the criminal law of Law Greater cut its legitimacy, it is also restricted by it. Given these two facets, urge a doubt that form should prevail interference on the constitutional criminal law. Keywords: Federal Constitution - fundamental rights - criminal law legitimacy - limitation. 1. Introdução O presente trabalho abordará, brevemente, os âmbitos de relação entre a Constituição Federal - mais especificamente os valores dos direitos fundamentais - e os bens protegidos pelo Direito Penal. De tal sorte, se analisará, primeiramente, a 1 Advogada, especialista em ciências penais pelo PUC/RS e aluna do Mestrado em direitos fundamentais da Ulbra/Canoas. influência dos valores e direitos fundamentais sobre os bens jurídicos penais. Posteriormente, verificar-se-á o fato de a Constituição determinar expressamente a criminalização de algumas condutas e, por fim, em contraponto, as situações em que os preceitos constitucionais limitam esse processo de tipificação penal. 2. Os valores constitucionais e o Direito Penal O direito penal é um ramo do ordenamento jurídico de extrema importância para o resguardo do bem estar social e, até mesmo por isso, tem a aplicação de penas privativas de liberdade como uma de suas características peculiares. Conforme Dotti, pode-se conceituá-lo como um complexo de leis que, por meio da interpretação do Estado, expressa o interesse público ao prever condutas proibidas e suas respectivas sanções, empregando normas para manter o convívio em sociedade através da proteção dos bens jurídicos fundamentais.2 Logo, cabe reparar que o direito penal não tutela direitos ou vantagens simples, mas sim, aqueles de maior proeminência à vida dos seres humanos. Destarte, é a partir dessa concepção que se compreende a noção de que o ordenamento jurídico penal tem como função primordial proteger os direitos fundamentais previstos na Constituição Federal. Esse entendimento [...] é fruto da Revolução Francesa, do pensamento humanista dos iluministas e racionalistas europeus, que, por sua vez, traduziam o resultado da luta social dos trabalhadores, e da burguesia, contra o feudalismo e o absolutismo de então. Foi deste processo social que se destacaram determinados bens a serem protegidos: vida, liberdade, honra, propriedade, etc. E, dentre esses bens a serem tutelados, destacaram-se, também, como resultado desse desenvolvimento social, os direitos fundamentais, a partir de então conquista impostergável de todas as Constituições modernas.3 Obviamente, apenas a previsão constitucional dos direitos fundamentais não basta para a sua efetivação, então o direito penal torna-se uma alternativa de realização da lei fundamental e de tutela máxima de seus bens. Consequentemente, no atual Estado Democrático de Direito, a tutela penal não pode vir dissociada do pressuposto do bem jurídico, para ser considerada legítima sob a ótica constitucional,4 pois “é preciso buscar 2 DOTTI, René Ariel. Curso de direito penal: parte geral. Rio de Janeiro: Forense, 2002. p.48. CARVALHO, Márcia Dometila Lima de. Fundamentação Constitucional do Direito Penal. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1992. p. 35. 4 PRADO, Luiz Regis. Bem jurídico penal e Constituição. 3ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003.70. 3 na Constituição a gênese da função social do bem jurídico” 5 na medida em que “os bens jurídicos protegidos pelo direito penal devem considerar-se concretização dos valores constitucionais expressa ou implicitamente ligados aos direitos e deveres fundamentais”.6 Aliás, como é sabido, a Constituição não é apenas uma declaração formal de caráter geral, obrigatórias para todos os órgãos do Estado. Daí que as leis penais, devendo ser interpretadas segundo a lei que lhes é hierarquicamente superior, precisam ser compatibilizadas, não só com os concretos preceitos dela, mas com a idéia de direito que abriga no seu texto. A lei penal necessita ficar circunscrita dentro dos limites bem definidos do texto constitucional. O resultado disso é que, na hierarquia dos valores expressos no texto da Lei Maior, capta-se a necessidade da realização de um processo despenalizador, e de outro processo de penalização, realizados, ambos, a partir de premissas constitucionais.7 “Com efeito, a fonte primária do Direito Penal é a própria Constituição, da qual haure a legitimação e fundamento para sua intervenção punitiva sobre os direitos fundamentais dos cidadãos, mormente o jus libertatis.” 8 Vê-se, assim, que o direito Constitucional exerce uma função com via de mão dupla, ao mesmo tempo em que serve de fundamento ao direito penal, também o restringe. Daí não ser possível sustentar seja escassa, hoje em dia, a zona de interseção que compartem essa esfera da ciência jurídica e a Constituição. Um exemplo claro desse compartilhamento pode ser recolhido imediatamente do texto constitucional: por quase uma centena de vezes a Constituição de 1988 utiliza-se de expressões diretamente relacionáveis ao Direito Penal, seja instituindo competências (legislativas e jurisdicionais) em matéria penal, seja limitando a atuação de Poderes e órgãos envolvidos nessa relação, seja, inclusive, requerendo a criminalização de determinadas condutas. Tudo a indicar, em definitivo, que O Direito Penal não desfruta de existência autônoma em face da Constituição, senão que tem por ela definidos tanto os limites quanto os fundamentos de sua estruturação. Afinal se por um lado não se promulga uma Constituição com a finalidade de oferecer ao legislador penal um catálogo de bens jurídicos, não há dúvida de que através da mesma se consolidam normativamente os valores imperantes em um determinado momento na sociedade.9 Nesse sentido, observando a ordem para a atuação do Estado, denota-se que, primeiramente, deverá ele estabelecer na Constituição Federal os direitos dos cidadãos 5 CARVALHO, Márcia Dometila Lima de. Fundamentação Constitucional do Direito Penal. p. 37. DIAS, Jorge Figueiredo. Apud. FELDENS, Luciano. A Constituição Penal: A dupla face da proporcionalidade no controle de normas penais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005. p. 53. 7 CARVALHO, Márcia Dometila Lima de. Fundamentação Constitucional do Direito Penal. p. 38. 8 SILVA, Ivan Luiz da. Das bases constitucionais do direito penal. Revista de informação Legislativa, Brasília, senado federal, 2002. p. 41/52 v.156. p. 41.42. 6 9 FELDENS, Luciano. A Constituição Penal: A dupla face da proporcionalidade no controle de normas penais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005. p. 21, 22. em consonância com os valores mais caros a uma nação, para que só posteriormente, ele atue através do âmbito penal, extraindo daquela os bens que lhe cabe proteger através desse. Por conseguinte, o Estado deve estar em constante identificação e avaliação dos valores prevalentes na sociedade, tanto para poder catalogá-los como direitos constitucionais- pois em um Estado de Direito democrático, a determinação desses valores elementares deve estar delineada na Constituição”10-, como para poder definir quando outras esferas jurídicas, como a penal, devem atuar na tutela e efetivação dos mesmos. Destarte, a base do raciocínio que visa identificar os valores fundamentais ou superiores da Constituição radica na descoberta dos elementos teleológicos do documento. Trata-se de um ato decorrente de expressão da vontade constituinte ao eleger simbolicamente alguns elementos da ordem social, política, econômica, cultural, ética e jurídica como principais na explicação e explicitação do funcionamento da ordem estatal. A constituição de um sistema de valores no seio do Estado social e democrático de Direito tem sua origem na vontade popular proclamada expressamente na norma fundamental do ordenamento jurídico. As opções ético-sociais da comunidade jurídico-política representadas naqueles valores articulam-se, integram-se na realidade social através do processo sociopolítico de integração e unidade ordenada na e pela Constituição.11 (grifo do autor) Entretanto, não se pode olvidar a observação de Feldens quando assevera que o reconhecimento na sociedade dos valores ou bens a serem protegidos juridicamente ocorre anteriormente à sua recepção normativa. O autor explica que antes de serem recolhidos pelo Direito, os valores ou bens se constituem na consciência social, pois são extraídos do costume vigente e das necessidades dos cidadãos da época. 12 Por isso, é possível dizer que o conceito material de bem jurídico reside, então, na realidade ou experiência social, sobre a qual incidem juízos de valor, primeiro do constituinte, depois do legislador ordinário. Trata-se de um conceito necessariamente valorado e relativo, isto é, válido para um determinado sistema social e em um dado momento histórico-cultural. Isso porque seus elementos formadores se encontram condicionados por uma gama de circunstâncias variáveis imanentes à própria existência humana.13 10 PRADO, Luiz Regis. Bem jurídico penal e Constituição. p. 91. LOPES, Maurício Antonio Ribeiro. Teoria Constitucional do direito penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. P. 135. 12 FELDENS, Luciano. A Constituição Penal: A dupla face da proporcionalidade no controle de normas penais. p. 50. 13 PRADO, Luiz Regis. Bem jurídico penal e Constituição. p. 98. 11 No entanto, nem sempre prevaleceu essa concepção acerca de bem jurídico, o que cabe verificar a seguir. 3. Abordagem histórica do bem jurídico Efetuando uma análise histórica, verifica-se que no período iluminista a idéia de bem jurídico era incipiente e utilizava-se, em seu lugar, a noção de direito subjetivo, que tinha Paul Johann Anselm Feuerbach como defensor. 14 Nessa linha, vigorava o ideário de que o contrato social substitui a matriz divina do Estado e da sociedade por uma matriz meramente terrena, na qual o direito subjetivo surge como eixo central, capaz de sustentar e promover os princípios da liberdade e igualdade, para além de outros princípios estruturantes da visão de mundo liberal, de modo a propiciar as condições fundamentais da vida em sociedade. A consideração de do direito subjetivo de cada um diante do direito dos demais permite traçar simultaneamente os limites da liberdade garantidos pela ordem jurídica e o início do seu exercício arbitrário, violador de direitos alheios, o que, considerado em conjunto, confere a cada indivíduo um determinado Lebenskreis (âmbito de vida), demarcador da fronteira entre o lícito e o ilícito, entre a violação e a não-violação de direitos subjetivos alheios, de modo que, neste preciso cenário, outra não poderia ser a essência do crime, senão a violação do Lebenskreis, ipso facto, a violação de um direito fundamental.15 No entanto, tal “concepção apresentava também limitações de difícil solução, nomeadamente no que se refere à sua capacidade explicativa e ao conteúdo de ofensividade que pretende expressar”, sendo que o problema maior centrava-se nos crimes onde não é possível identificar o sujeito titular do direito violado.16 Surgiam, portanto, aos poucos, os elementos que iriam propiciar uma nova compreensão do conteúdo material do crime, que iriam propiciar o surgimento do modelo de crime como ofensa a bens jurídicos. A teoria da proteção de bens jurídicos (Lehre vom Rechtsguterschutz) tem o seu primeiro desenvolvimento em um conhecido escrito de Birnbaum (1834), no qual o autor afirmava que o conteúdo do crime deveria ser buscado não na violação de direitos subjetivos, mas na ofensa a valores assim reconhecidos pela sociedade, isto é, na ofensa a bens protegidos pela norma. Para Birnbaum, o crime deveria ser reconhecido na lesão ou pôr-em-perigo, atribuível à vontade humana, de um bem a todos garantido igualmente pelo poder do Estado. Uma formulação que põe em destaque a incipiente noção de bem jurídico 14 D’AVILA, Fábio Roberto. Elementos para a legitimação do direito penal secundário. In: DÁVILA, Fábio Roberto. SOUZA, Paulo Vinícius Sporleder de. Direito Penal Secundário: Estudo sobre crimes econômicos, ambientais, informáticos e outras questões. São Paulo: Revistas dos Tribunais, 2006. p.76. 15 D’AVILA, Fábio Roberto. Elementos para a legitimação do direito penal secundário. In: DÁVILA, Fábio Roberto. SOUZA, Paulo Vinícius Sporleder de. Direito Penal Secundário: Estudo sobre crimes econômicos, ambientais, informáticos e outras questões. p. 76. 16 D’AVILA, Fábio Roberto. Elementos para a legitimação do direito penal secundário. In: DÁVILA, Fábio Roberto. SOUZA, Paulo Vinícius Sporleder de. Direito Penal Secundário: Estudo sobre crimes econômicos, ambientais, informáticos e outras questões. p.78. como objeto de proteção da norma penal incriminadora. Mas não só. Também a emergente noção de ofensividade em suas duas formas fundamentais, dano e perigo, encontram-se já delineadas na proposta de Birnbaum.17 Nesse diapasão, foi na Alemanha, em especial, que “vicejaram as teorias sociológicas do bem jurídico que o situaram diretamente na realidade social [...]”.18 Karl Binding também foi quem afirmou, inicialmente, a utilização do termo bem jurídico (Rechtsgut). Baseado no positivismo, o pensador aduzia que a tutela da lei a um bem depende do juízo de valor do legislador, que o realiza através da verificação do grau de danosidade social se tal bem não for protegido.19 Também, “Honing, ainda em uma compreensão intra-sistemática, com seu conceito metodológico, esvazia o conteúdo liberal de garantia do bem jurídico, relegando-lhe apenas uma modesta função de orientação na interpretação do tipo. 20 Logo, denota-se que foi somente com Von Liszt que se apelou a uma fase préjurídica para a estipulação dos bens jurídicos. Liszt sustentava que, antes do legislador decidir sobre a proteção de determinados bens, é o homem integrado à sociedade o qual seleciona seus valores mais representativos e essenciais.21 É interessante consignar que, ao trazer essa teoria em sua obra Tratado de direito penal allemão, Liszt, em nota de rodapé, chega a afastar expressamente as teorias de Binding e Feuerbach, ao aduzir que o bem jurídico não é bem do direito como pensava Binding, mas um bem do homem que o direito reconhece e protege, sendo a idéia do bem jurídico mais ampla que a do direito subjetivo de Feuerbach. Segundo Liszt, tanto ele quanto Binding partiram do mesmo ponto, separando-se na seqüência, pois, a seu ver, Binding fez da norma a pedra angular de todo o sistema do Direito Penal, tendo sido seu vício capital conceber o delito de modo puramente formal, como ofensa ao dever de obediência.22 Diante disso, reitera-se a importância do viés material do bem jurídico, pois nele estão expostos os anseios de proteção retirados da sociedade quando se adentra na esfera criminal. Nessa esteira, evidencia-se que, “a norma (penal) não cria valores, D’AVILA, Fábio Roberto. Elementos para a legitimação do direito penal secundário. In: DÁVILA, Fábio Roberto. SOUZA, Paulo Vinícius Sporleder de. Direito Penal Secundário: Estudo sobre crimes econômicos, ambientais, informáticos e outras questões. p. 79, 80. 18 PRADO, Luiz Regis. Bem jurídico penal e Constituição. p. 62. 19 GUIMARÃES, Isaac Newton Belota Sabba. A intervenção penal para a proteção dos direitos e liberdades fundamentais: Linhas de acerto e desacerto da experiência brasileira. Revista Jurídica, Porto Alegre, notadez informação, 2001. p. 52-67.v. 286. p. 55. 20 DIAS, Figueiredo. Apud: D’AVILA, Fábio Roberto. Elementos para a legitimação do direito penal secundário. In: DÁVILA, Fábio Roberto. SOUZA, Paulo Vinícius Sporleder de. Direito Penal Secundário: Estudo sobre crimes econômicos, ambientais, informáticos e outras questões. p. 82. 21 GUIMARÃES, Isaac Newton Belota Sabba. A intervenção penal para a proteção dos direitos e liberdades fundamentais: Linhas de acerto e desacerto da experiência brasileira. p. 56. 22 PASCHOAL, Janaina Conceição. Constituição, Criminalização e Direito Penal mínimo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p. 33. 17 senão que, alinhada à metodologia de controle social – por intermédio da qual o Direito Penal está conectado a outros mecanismos -, os absorve, por meio de sua positivação, como forma de protegê-los”.23 Contudo, interessante é a observação de Bitencourt, que independente dessa posição, ainda defende a natureza primária e constitutiva (e não somente acessória) do Direito Penal, pela razão desse, além de proteger bens que outros ramos não protegem, fazer isso de forma peculiar que dá nova feição e distinta valoração a tais bens.24 4. A escolha dos bens jurídico-penais entre os diferentes tipos de direitos constitucionais De qualquer forma, por mais que o viés do referido autor proceda, [...] não é suficiente dizer que o legislador o escolhe em inteira liberdade e que o intérprete só terá de ir buscar à lei. A solução terá, antes, de se alcançar por uma via apontada para a “descoberta” (hoc sensu, a “criação”) de uma solução justa do caso concreto e simultaneamente adequada ao (ou comportável pelo) sistema jurídicopenal. O que se supõe a “penetração axiológica” do problema jurídico penal, a qual, no âmbito da dogmática, tem de ser feita por apelo ou com referência teleológica a finalidades valorativas e ordenadas de natureza político-criminal, numa palavra a valorações político-criminais co-naturais ao sistema. Por esta via se rejeita o puro dedutivismo conceitualista (típico de uma “jurisprudência dos conceitos”, ainda que “teleológica”) que infelizmente não se pode dizer de todo ultrapassado na dogmática jurídico-penal.25 Ademais, reforçando a idéia de que não é uma tarefa simples a escolha dos bens jurídico-penais, convém advertir que “não há num Estado Democrático de Direito nenhuma preponderância do bem jurídico transidividual sobre o individual. Muito pelo contrário. O que se está em debate aqui nada mais é que a tutela de bens jurídicos que se encontram além do indivíduo em si.” 26 Conforme Welzel alerta, antes de tudo, “a missão do Direito Penal consiste na proteção dos valores elementares da consciência, do caráter ético social e, só por acréscimo, a proteção de bens jurídicos particulares.” 27 23 FELDENS, Luciano. A Constituição Penal: A dupla face da proporcionalidade no controle de normas penais. p. 50. 24 BITENCOURT, César Roberto. Manual de direito penal: parte geral. vol. 1. 6 ed. São Paulo: Saraiva, 2000.p. 62. 25 DIAS, Jorge Figueiredo. Questões Fundamentais do Direito Penal Revisitadas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. p. 35. 26 PRADO, Luiz Regis. Bem jurídico penal e Constituição. p. 105. 27 WELZEL. Hans. Apud: CARVALHO, Márcia Dometila Lima de. Fundamentação Constitucional do Direito Penal. p. 37. Nessa linha, é irrelevante definir as categorias ou gerações dos direitos fundamentais que são tutelados pelo direito penal, até mesmo porque estão relacionadas, de alguma forma entre si. Logo, ao direito penal interessa que, conforme Bustos Ramírez visualiza, existem [...] dois grandes grupos de bens jurídicos: os que se relacionam com a base existencial do sistema social e os que se relacionam com o funcionamento do sistema social. Tal autor entende que os bens referidos, sem os quais o próprio Estado não existiria, basicamente são a vida, a liberdade, a saúde ou a integridade física e o patrimônio. Acrescentaríamos que nada mais são que aqueles bens preexistentes ao ordenamento jurídico penal e que nascem na relação dialética do eu e do outro. Já os bens relacionados ao funcionamento de tal sistema têm por objeto não só assegurar o próprio funcionamento, mas também equilibrar os desajustes que se produziriam no seu interior. [...]pode-se afirmar que há, em realidade, dois grupos de bens jurídicos os microssociais e os macrossociais. Estes destinados, em última análise a proteger “as condições mínimas para que as relações macrossociais (vida, liberdade, saúde, individual, patrimônio) possam se desenvolver”.28 Em consonância, Figueiredo Dias argui dois tipos de Direito Penal: um primário (referente às liberdades e garantias das pessoas) e outro secundário ou extravagante (ligado aos direitos sociais e econômicos).29 Entretanto, percebe-se, na atualidade, uma aparente troca dessa a ordem, quando se percebe a ênfase cada vez maior dispensada ao último tipo, como se o primeiro fosse. Dissipa-se a idéia que os instrumentos de controle amplamente providos pelo Direito Penal são considerados adequados para emprego indiscriminados nestas áreas. Já não se trata mais de proteção ultrapassados bens jurídicos individuais concretos, como a vida e a liberdade, mas dos modernos bens jurídicos universais, por mais vaga e superficial que seja a sua definição: saúde pública, regularidade do mercado de capitais ou credibilidade de nossa política externa. A elas correspondem os tipos de delitos em que o moderno Direito Penal se realiza [...] Este tipo de Direito Penal não tem nenhum núcleo delimitado, a idéia da punição à ofensa de bens jurídicos individuais há muito se desfez. O Novo Direito Penal derrama-se sobre todos os campos em que nossa vida se tornou “moderna” e arriscada. Porém, é curioso também notar que a tendência moderna de penas mais brandas não está presente na criminalização abrangente e flexível dos modernos tipos penais.30 Esse fato deve-se a mudança na concepção das funções do Estado, que passou a ser visto como devedor de prestações sociais, pois depois do Estado Social, entende-se que a intervenção Estatal deve ser obrigatória, principalmente quando se trata de valores 28 RAMIREZ, Bustos .Apud: DIAS, Fábio Figueiredo. Intervenção mínima: Infrações tributárias. In: DÁVILA, Fábio Roberto. SOUZA, Paulo Vinícius Sporleder de. Direito Penal Secundário: Estudo sobre crimes econômicos, ambientais, informáticos e outras questões. São Paulo: Revistas dos Tribunais, 2006. p. 135, 136. 29 DIAS, Jorge Figueiredo. Questões Fundamentais do Direito Penal Revisitadas. p. 67-68. 30 HASSEMER, Winfried. Três temas de direito penal. Porto Alegre:AMP, 1993. p. 48. sociais expressos na Constituição. Destarte, o Direito Penal torna-se um instrumento para isso, ocasionando-se, consequentemente, o seu alargamento.31 Em acordo, Palazzo explica que As obrigações da tutela penal no confronto de determinados bens jurídicos, não infrequentemente característicos do novo quadro de valores constitucionais e, seja como for, sempre de relevância constitucional, contribuem para oferecer a imagem de um Estado empenhado e ativo (inclusive penalmente) na persecução de maior número de metas propiciadoras de transformação social e da tutela de interesses de dimensões ultraindividuais e coletivas, exaltando, continuadamente, o papel instrumental do direito penal com respeito à política criminal, ainda quando sob auspícios- por assim dizer da Constituição.32 5. A “Constituição criminalizante” Por conseguinte, vê-se a utilização da atual Carta Magna para a incrementação do Direito Penal, como também para a indicação, para a determinação e até para a obrigação de criminalizar condutas lesivas aos bens jurídicos por ela identificados.33 Destarte, aproveita-se da força hierarquicamente superior da Constituição para fortalecer os fundamentos favoráveis ao maior uso da esfera jurídica penal, argumentando-se pela necessidade de uma atuação estatal mais rígida e severa para a efetivação do controle social. Corroborando para isso, analisa-se que, entre as Constituições do mundo, [...] é a Constituição Brasileira que mais estabelece regramentos no sentido de incentivar o uso do Direito Penal. Nesse aspecto, só há similar, entre as Constituições brasileiras, na Constituição de 1937, que bem o sabemos, é uma Constituição nutrida do regime ditatorial. Não deixa de ser curioso que uma Constituição extremamente democrática, votada com toda liberdade, tenha trazido dispositivos programáticos de Direito Penal, destinados à repressão de delitos, e de feição mais marcante contundente do que própria Constituição de 1937. A Constituição de 1988, nesse sentido, é bem mais dura dos que ambos os textos constitucionais havidos ao tempo do regime militar brasileiro, a de 1967, e a Emenda Constitucional n. 1 de 1969.34 Essas determinações em excesso e, muitas vezes expressas, de criminalização devem-se a abertura axiológica e cultural da Constituição que sempre permite, de algum modo, mesmo que remoto, meios de (links constitucionais) permitir a conecção entre o 31 PASCHOAL, Janaina Conceição. Constituição, Criminalização e Direito Penal mínimo. p. 120. PALAZZO, Francesco. Valores Constitucionais e Direito Penal. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1989. p. 103. 33 PASCHOAL, Janaina Conceição. Constituição, Criminalização e Direito Penal mínimo. p. 69. 34 BENETI, Sidnei Agostinho. A constituição e o sistema penal. Ajuris: Revista da Associação Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 1992. p. 57. 32 bem jurídico penalmente protegido a algum valor constitucional.35 Ainda, na opinião de Paschoal, “a Constituição criminalizante” é resultado não da necessidade de tutela penal, mas de fatores históricos e/ou reclamos sociais predominantes quando da elaboração da Carta. Ocorre, contudo, que estes argumentos podem não justificar uma criminalização em momento posterior,36 vindo a ocasionar desarmonia entre o que a sociedade espera da Constituição e o que essa protege e estipula. Outrossim, quando se parte da Constituição como fundamento do Direito Penal, como norma que traz as indicações das condutas a serem criminalizadas, permite-se seja cobrado do legislador um movimento no sentido de efetivar a tutela criminal, muitas vezes menos útil e eficaz que a proteção representada por outros ramos do Direito.37 Também, deve-se lembrar que o direito constitucional e o direito penal não tutelam necessariamente os mesmos bens, mas sim, que o segundo auxilia o primeiro na sua efetivação. Nessa linha, Prado salienta que nem todos os bens jurídicos constitucionais requerem a proteção penal, ou seja, nem sempre eles são convertidos em bens jurídicos penais.38 Dessa forma, a concepção, de pensandores como Peter Haberle, por exemplo, de que o Direito Penal define e delimita os direitos fundamentais, “parece uma verdadeira inversão de valores, pois o fato de o Direito Penal tutelar a maior dos direitos fundamentais não significa que aqueles não tutelados não sejam fundamentais.”39 6. A Constituição limitadora do Direito Penal Não obstante, indispensável atentar-se à noção de Figueiredo Dias, o qual destaca que no tocante à valoração, o legislador penal não possui total de liberdade para suas escolhas, pois deve buscá-la na lei. Logo, a intervenção penal não se legitima unicamente por uma ordem absoluta de valores, mas sim, por uma ordem axiológicaconstitucional.40 Nesse passo, observa-se 35 FELDENS, Luciano. A Constituição Penal: A dupla face da proporcionalidade no controle de normas penais. p. 53. 36 PASCHOAL, Janaina Conceição. Constituição, Criminalização e Direito Penal mínimo. p. 83. PASCHOAL, Janaina Conceição. Constituição, Criminalização e Direito Penal mínimo. p. 72. 38 PRADO, Luiz Regis. Bem jurídico penal e Constituição. p. 104. 39 PASCHOAL, Janaina Conceição. Constituição, Criminalização e Direito Penal mínimo. p. 75. 40 DIAS, Jorge Figueiredo. Questões Fundamentais do Direito Penal Revisitadas. p. 17-20. 37 [...] um confronto entre dois termos que parecem antitéticos: a plena liberdade do legislador e as pautas que lhe são subministradas pela Constituição. Com efeito, não pode ser plena a liberdade de quem tem pautas a observar. Logo, pode-se afirmar, categoricamente, que a liberdade de configuração do legislador penal não é absoluta. É relativa. Embora detentor de um amplo espaço de atuação, não lhe é lícito uma lei qualquer em nome de sua legitimidade democrática. 41 Diante disso, hodiernamente, há diferentes posições entorno das modalidades de limites que a Constituição impõe ao Direito Penal. Com efeito, aquelas que defendem ser de espécie negativa as limitações constitucionais sustentam que “o Estado pode tipificar condutas atentarias a valores que não tenham sido reconhecidos pela Constituição, desde que tal criminalização não fira os valores constitucionais.”42 De outra sorte, paralelamente à tomada da Constituição como limite negativo ao Direito Penal, existem as teorias que vêem, a Constituição como um limite positivo ao Direito Penal. De acordo com essas teorias, o legislador ordinário só pode utilizar a tutela penal para proteger bens reconhecidos pela Constituição como caros a uma determinada sociedade. Significa que, para a máxima intervenção estatal ser admissível, não basta que a lei penal não entre em conflito com a Constituição, devendo, necessariamente, recair sobre condutas que infiram os valores de relevância constitucional.43 Por todos os argumentos já abordados nesse texto, é notório que no atual Estado Democrático Brasileiro prevalece a segunda idéia de limitação da Constituição sobre o direito penal, ou seja, a de limitação positiva. Além disso, isso é reforçado através da ampla previsão de princípios expostos no texto constitucional, os quais são premissas primeiras para a atuação estatal no âmbito criminal. Historicamente, foi a partir do desenvolvimento das doutrinas liberais do iluminismo no século XVIII, resultante na queda dos governos absolutistas, que passaram a ser desenvolvidas idéias de contenção do poder estatal. Como explica Zeidan: Na doutrina do liberalismo, o Estado foi sempre o fantasma que atemorizou o indivíduo. O poder, de que não pode prescindir o ordenamento estatal aparece, de início, na moderna teoria constitucional como maior inimigo da liberdade, levando efetivamente a reconstituição da autoridade, em bases completamente novas que 41 FELDENS, Luciano. A Constituição Penal: A dupla face da proporcionalidade no controle de normas penais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005. p. 38, 39. 42 PASCHOAL, Janaina Conceição. Constituição, Criminalização e Direito Penal mínimo. p.55. 43 PASCHOAL, Janaina Conceição. Constituição, Criminalização e Direito Penal mínimo. p. 59. dessem ao indivíduo, com a Carta de seus direitos fundamentais, ideologia fundada em valores rígidos e absolutos. 44 O autor ainda complementa que a eclosão da Revolução Francesa, com a intensa propagação de seu lema “liberdade, fraternidade e igualdade”, foi um marco para a garantia dos direitos dos cidadãos frente a eles mesmos e ao Estado.45 Ademais, nesse mesmo período, com a Declaração dos Direitos do Homem, em 1791, foram expressos muitos princípios defensivos da atuação limitada do poder estatal, principalmente na esfera criminal. Entre esses princípios, impossível deixar de referir alguns que limitam a utilização do direito penal justamente quando na tutela de bens jurídicos: intervenção mínima, necessidade, subsidiariedade e fragmentariedade. O primeiro define que a atividade penal deve ser utilizada em última hipótese para a resolução dos conflitos, não protegendo de forma absoluta todos os interesses sociais. Em outras palavras, ele opera [...] uma transformação nos valores abstratamente selecionados para compor o sistema penal, importando um maior rigorismo nas eleições das condutas, observando-se o seu grau de gravidade no ambiente social para determinar a valorização do bem jurídico objeto de seu conteúdo. Implica definir o princípio da intervenção mínima como regra de determinação qualitativa abstrata para processo de tipificação das condutas. O princípio da intervenção mínima está diretamente afeto aos critérios do processo legislativo de elaboração das leis penais, sendo sua utilização judicial mediata, cabível apenas como recurso para dar unidade sistêmica ao Direito Penal e indica que o sistema penal não se ocupa de todos os comportamentos ilícitos que surgem nas relações sociais senão apenas aqueles mais intoleráveis e lesivos para os bens jurídicos e que se reconhece e sanciona estes fatos quando tenha falhado todos os demais meios de controle formais ou informais.46 Com isso têm-se o intuito de precaver a sociedade do “efeito freqüentemente contraproducente da ingerência penal do Estado”,47 ou seja, dos possíveis prejuízos que a interferência rígida do sistema criminal possa causar na medida em que penaliza os cidadãos com a restrição de um dos bens humanos mais importantes: a liberdade. Por outro lado, não se está afirmando que tal atuação, entendida como severa, não é útil, 44 ZEIDAN, Rogério. Ius puniendi, Estado e direitos fundamentais: aspectos de legitimidade e limites da potestade punitiva. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2002. p. 36. 45 ZEIDAN, Rogério. Ius puniendi, Estado e direitos fundamentais: aspectos de legitimidade e limites da potestade punitiva. p. 143. 46 LOPES, Maurício Antonio Ribeiro. Princípios penais constitucionais: O sistema das constantes constitucionais. p. 417- 451 RT, n. 779, set./2000, ano 89. p. 440. 47 ZAFFARONI, José Henrique Pierangeli; Eugenio Raúl. Manual de Direito Penal. 5 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,2004 .p. 341. somente que será propicia quando na ocorrência de lesões graves a bens jurídicos de grande relevância à vida social. Desse modo, traduz-se uma proposição substitutiva do Estado Penal por um Estado (mais) Social, de modo a que o direito penal, como soldado de reserva, só seja convocado a atuar como derradeira alternativa. 48 Propõe-se [...] direito penal maximamente condicionado e maximamente limitado, isto é, limitado às situações de absoluta necessidade - “pena mínima necessária”- que corresponda, assim, não só ao máximo grau de tutela de liberdade dos cidadãos frente à potestade punitiva do Estado, senão também a um ideal de racionalidade e de certeza, razão pela qual não terá lugar a intervenção penal sempre que sejam incertos ou indeterminados os seus pressupostos. 49 Nesse diapasão, relacionado aos preceitos da intervenção mínima, há o princípio da necessidade, o qual defende seja evitada a utilização do direito penal, ocorrendo somente quando extremamente necessária. Oportuno apontar que princípio da necessidade ou da economia do direito penal tem sua proclamação desde a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789), a qual, em seu artigo 8º, versa que “a lei apenas deve estabelecer penas estritas e evidentemente necessárias [...]”. 50 Ademais, tal preceito é de suma importância, pois sua ausência [...] dá margem ao surgimento de uma série de situações vexatórias, para não dizer de um sistema punitivo vexatório. A presença do princípio da economia ou da necessidade não expressa propriamente uma técnica punitiva, mas um critério de política criminal, cuja satisfação está condicionada, mas não é condicionante das demais garantias. Essa deficiência de nosso sistema tem possibilitado a presença em nossos textos legais de proibições e penas supérfluas que se chocam frontalmente com as razões de utilidade individual e coletiva que justificam o direito penal; tem tornado também possível a previsão legislativa de proibições penais totalmente injustificadas por elas mesmas serem lesivas de direitos fundamentais, não só pela impossibilidade de sua execução, mas também por não estabelecerem proteção a nenhum bem jurídico, bem como por se absolutamente possível a sua substituição por proibições civis ou administrativas; e, por fim, tem facilitado significativamente a inserção no sistema legal de penas injustificadas por serem totalmente excessivas, não pertinentes ou desproporcionais em relação à relevância do bem jurídico tutelado.51 Ainda, em consonância com esse entendimento, vige também sobre o ordenamento jurídico-penal o princípio da fragmentariedade. Esse foi alegado pela primeira vez através de 48 ZAFFARONI, Eugenio Raúl PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal: parte geral. p. 50. 49 QUEIROZ, Paulo. A justificação do direito de punir na obra de Luigi Ferrajoli: algumas observações críticas. Revista IBCCRIM, São Paulo, n. 27, ano 7, p. 143- 148, jul/set, 1999. p.145. 50 DOTTI, René Ariel. Curso de direito penal: parte geral. p. 69. 51 COPETTI, André. Direito Penal e Estado Democrático de Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002. p. 123, 124. Binding que defendia a necessidade de um direito penal fragmentário, ao perceber que ele não encerra um sistema exaustivo de proteção dos bens jurídicos, mas, sim, um complexo descontínuo de ilícitos decorrentes da necessidade de criminalizá-los, por ser este uma forma indispensável de tutela jurídica. Seguindo esse pensamento, Toledo afirma que o direito penal “só vai até onde seja necessário para proteção do bem jurídico. Não deve se preocupar com bagatelas”.52 Na realidade, deve-se entender óbvio que o direito penal de uma sociedade com vincando cariz pluralista elegerá somente aqueles valores mais representativos para a manutenção da conformação social ao estado de pax publica. Para tanto, evitará imiscuir-se em determinadas zonas nas quais inexiste o consenso ético-social a exigir sua intervenção. Sob pena de criar paradigmas de comportamento que desprezam, ao menos em nível ontológico, a esfera de desenvolvimento da pessoa humana, já para não se falar, em nível das concepções do estado de direito material, de um inegável conflito com os princípios fundamentais da igualdade e da universalidade, que regem os direitos e liberdades individuais. 53 Por fim, interligado a esse contexto, não se pode deixar de referir também outro princípio limitador do direito penal: o princípio da subsidiariedade. Esse estabelece que aquele deve aquele deve consistir na ultima ratio do Direito, a última alternativa para a solução dos problemas sociais. “Diante disso, a legitimação do Direito penal não se faz por ação ordinária, qual fosse sempre um instrumento para ser livre e discricionariamente utilizado pelo Estado. Constitui ele conjunto operativo de reserva, daí sua legitimação extraordinária.”54 7. Conclusão Diante de todo o exposto, denota-se a inter-relação indissociável existente entre o Direito Penal e os preceitos constitucionais. Além do Direito Penal efetivar a tutela dos direitos fundamentais, representa diretamente em seu texto valores que não lhe são próprios, mas que foram retirados da Lei Maior. Outrossim, Feldens aduz que, diante desse panorama, surge-se a noção de Constituição Penal, aqui concebida como conjunto de diretrizes normativas estabelecidas à organização e ao funcionamento do sistema jurídico-penal requerido pela Constituição, as quais compreendem os princípios e regras gerais 52 TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal. 5 ed. São Paulo: Saraiva, 1994. p.121-122. 53 GUIMARÃES, Isaac Newton Belota Sabba. A intervenção penal para a proteção dos direitos e liberdades fundamentais: Linhas de acerto e desacerto da experiência brasileira. p. 57, 58. 54 LOPES, Maurício Antonio Ribeiro. Princípios penais constitucionais: O sistema das constantes constitucionais. p. 443. respeitantes à matéria criminal (penal e processual) positivados na ordem constitucional; ademais, uma vez assentada a missão precípua do Direito Penal como instrumento de proteção de bens jurídicos, o conceito de Constituição Penal assumirá uma perspectiva material para abranger, em seu núcleo de problematização, as categorias que, produto do desenvolvimento dogmático dos direitos fundamentais enquanto imperativos de tutela, sejam por essa razão mesma, diretamente referíveis à Constituição, ainda que nela não ostentem uma consagração explícita.55 Há casos em que a Constituição determina expressamente a proteção de alguns bens através do direito penal, como se estivesse o convocando, sem receios, para a efetivação dos direitos fundamentais. Ocorre, entretanto, que nem sempre essa parece a solução mais adequada, pois, pode-se estar desembocando-se num perigoso uso simbólico da esfera jurídica criminal. Na atualidade, muitas teorias argumentam a favor da face simbólica do direito penal, como modo de conferir a esse a legitimidade que parece ter perdido diante da sua ineficiência constatada através dos índices de violência e criminalidade. Todavia, Zaffaroni sustenta, com propriedade, que essa intenção [...] trata-se da negação dos defeitos dos estados de direito reais pela construção de uma teoria do direito penal como se tais defeitos não existissem e o estado real fosse análogo ao ideal que, por outro lado, ninguém pode afirmar ser inteiramente realizável: tais teorias põe em sério perigo os estados de direito reais, desde que estabeleçam a racionalidade de suas propostas a partir de uma ficção do estado ideal, seja porque o dão por realizado, por não proporem sua realização, seja porque, renunciando ao ideal, dão por ideal o existente. 56 Nesse passo, mostra-se indispensável o ideário de limitação do Direito Penal pela Constituição para uma possível busca de (re) legitimação do direito penal e, assim, ele seja dirigido [...] para a tutela dos direitos fundamentais dos cidadãos contra as agressões de outros associados. Significa, antes, que o direito penal tem como finalidade uma dupla função preventiva, tanto uma como outras negativas, quais sejam a prevenção dos delitos e a prevenção geral das penas arbitrárias ou desmedidas. A primeira função indica o limite mínimo, a segunda função indica o limite máximo das penas. Aquela reflete o interesse da maioria não desviante. Esta, o interesse do réu ou de quem é suspeito ou acusado de sê-lo. Os dois objetivos e os dois interesses são conflitantes entre si, e são trazidos pelas duas partes do contraditório no processo penal, ou seja, a acusação, interessada na defesa social e, portanto, em exponenciar a prevenção e 55 , Luciano. A Constituição Penal: A dupla face da proporcionalidade no controle de normas penais. p.23, 24. 56 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro e SLOKAR, Alejandro. Direito Penal Brasileiro: tomo I. Rio de Janeiro: Revan, 2003. p. 615-616. punição dos delitos, e a defesa, interessada na defesa individual, e via de conseqüência, a exponenciar a prevenção de penas arbitrárias. 57 Desse modo, não se ignora a relevante função protetiva que o direito penal possui aos direitos fundamentais. No entanto, põe-se em dúvida como e se está sendo realizada essa tarefa. Tão logo, os fundamentos da intervenção penal devem ser ponderados e estarem em equilíbrio com seus limites, também estabelecidos pela Constituição, pois, somente assim, o direito penal brasileiro estará em harmonia com o atual Estado Democrático de Direito. 8. Referências BENETI, Sidnei Agostinho. A Constituição e o Sistema Penal. Ajuris: Revista da Associação Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 1992. v. 56, p. 154-176. BITENCOURT, César Roberto. Manual de direito penal: parte geral. vol. 1. 6 ed. São Paulo: Saraiva, 2000. BOSCHI, José Antonio Paganella. Das penas e seus critérios de aplicação. 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Curso de direito penal: parte geral. Rio de Janeiro: Forense, 2002. 57 FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: Teoria do Garantismo Penal. São Paulo: Revista do Tribunais, 2002. p. 269. FELDENS, Luciano. A Constituição Penal: A dupla face da proporcionalidade no controle de normas penais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005. FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: Teoria do Garantismo Penal. São Paulo: Revista do Tribunais, 2002. GUIMARÃES, Isaac Newton Belota Sabba. A intervenção penal para a proteção dos direitos e liberdades fundamentais: Linhas de acerto e desacerto da experiência brasileira. Revista Jurídica, Porto Alegre, notadez informação, 2001. v. 286, p. 52-67. HASSEMER, Winfried. Três temas de direito penal. Porto Alegre:AMP, 1993. LOPES, Maurício Antonio Ribeiro. Princípios penais constitucionais: O sistema das constantes constitucionais. RT, n. 779, set./2000, ano 89, p. 417- 451. LOPES, Maurício Antonio Ribeiro. Teoria Constitucional do direito penal. 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