Castro, Antonio Barros de. "Deflação: o outro dragão." São Paulo: Folha de São Pa ulo, 24 de maio de 2000. fsp 24-05 Deflação: o outro dragão ANTONIO BARROS DE CASTRO Um conjunto de más notícias procedentes do exterior -prontamente refletidas na conduta de certos atores econômicos- introduziu dúvidas quanto ao vigor da retomada do cre scimento. Enquanto vão sendo aprofundados os argumentos acerca das possíveis implic ações da volatilidade do mercado de capitais norte-americano -e da luta que ali se trava visando o desaquecimento da economia-, é bom olhar para o vizinho argentino. O êxito do plano argentino de estabilização foi incomparavelmente maior do que o aqui alcançado. Naquele país, não apenas a inflação literalmente desapareceu como o cre scimento da economia de 1991 a 94 atingiu a excepcional média de 8,2% ao ano. Mais que isso, após o grande tombo ( -5%) provocado pelo chamado "efeito tequila", a ec onomia argentina rapidamente se recuperou, voltando a expandir-se mais do que 8% em 1997. Diante de um su cesso de tal ordem, tendeu a cristalizar -se naquele país a convicção de que o Plano de Conversibilidade era, de fato, uma conquista definitiva. E isso não apenas porque sua arquitetura institucional praticamente impede mudanças, mas também porque todas as tendências políticas passaram a tomá -lo como um dado. No Brasil, apesar do sucesso da estabilização promovida pelo Plano Real, o desempenho da economia mostrou-se sempre instável e, em média, medíocre. A par disso, jamais verificou -se aqui o clima de comemoração que levava certos economistas argentinos (fazendo eco às opiniões de certos gurus de circulação internacional) a insinuar ou mesmo abertamente indagar: quando é que os brasileiros vão entender que não dá para ser original no mundo globalizado? Contra esse pano de fundo, a inversão das expectativas na Argentina revela -se hoje brutal. Pesa, no caso, fortemente, a percepção generalizada de que a política econômica do país não poderá tentar sequer compensar os impulsos negativos procedentes do ext erior. Mais precisamente no caso argentino uma redução da liquidez internacional impl ica, automaticamente, retração da economia doméstica. Pior que isso: diante de uma d eterioração no plano fiscal, a política econômica está condenada (no quadro criado pelo regime monetário daquele país) a ser contracionista. Em tais circunstâncias, um novo e enorme problema, que parecia definitivamente supe rado pelas mudanças político-institucionais que acompanharam ou se seguiram à Grande Depressão dos anos 30 e à Segunda Guerra Mundial, ressurge presentemente naquele país. Refiro -me à ameaça de uma espiral deflacionária. Explica-se: não é só o governo que é levado a fazer novos cortes de gastos; as empresas e as próprias famílias, possuídas de denso pessimismo, limitam o quanto p odem o gasto e evitam obstinadamente tomar crédito. Torna -se, em consequência, mais difícil vender ou pagar dívidas. E mais, na medida em que os preços passam a cair, as contas fiscais apresentam deterioração adicional -o que teoricamente poderia até ser benéfico, mas, no quadro de uma economia altamente devedora, tende a ressuscitar o fantasma da insolvência externa. Em uma palavra, parece recriar-se na Argentina um quadro no qual a prudência de cada um corre o risco de se converter no veneno de todos. Sem aprofundar o tema, lembremos que no caso brasileiro a sequência é totalmente d iversa. Quando mais não seja, porque a piora da liquidez externa age no sentido da de svalorização da moeda -o que beneficia a renda dos exportadores e estimula, em princ ípio, a substituição de importações. Só num segundo tempo e desde que o aumento do câmbio se traduza (na percepção das autoridades monetárias) em pressão inflacionária é que a economia será possivelmente travada, via aumento de juros. Observe-se, no entanto, que, ao estimular a produção de bens comercializáveis ("tradeables") -e repor a ameaça da alta de preços-, a elevação da taxa de câmbio praticamente impede a formação da temível cadeia deflacionária. Ironicamente isso significa que, por não haver inteiramente aderido à onda do automatismo dos mercados, a economia brasileira poderá mais uma vez contribuir para suste ntar o nível de atividades da Argentina.