1 EDUCAÇÃO E ENSINO NO BRASIL: OS CONTRASTES ENTRE AS METRÓPOLES E OS SERTÕES. Ao nos depararmos com as estatísticas sobre a educação brasileira, mais especificamente sobre os níveis de escolarização da população, costuma-se deixar de lado um aspecto de fundamental importância que é o da dimensão cultural tão diversa, quanto as diversas regiões do nosso país. Esquecemo-nos de que o Brasil não é uno, mas são muitos. E para vários brasis, existem, igualmente, várias configurações culturais, variadas formas de se entender a cultura, a educação, a espiritualidade e a religiosidade, assim como a economia, a política, as relações sociais, para ficar apenas nestes exemplos. Com tamanhas diferenças não é possível negligenciar-se as particularidades que as maneiras de se ensinar e se aprender costumam ocorrer em cada região, Estado, cidade, grupo social existente. Por isso, é necessário que se tenha em mente que não bastam os dados estatísticos que resultam de critérios científicos e densamente elaborados por uma minoria de técnicos e “especialistas” no assunto. Deve-se atentar às especificidades culturais de cada grupo social inserido na sociedade brasileira. Porém, cabe uma observação importante: o que significaria, então, ser mais ou menos desenvolvido educacional e culturalmente? Será que o que se conhece – e mal -, como cultura popular não é cultura, é apenas um resquício de práticas tradicionais ou de gosto duvidoso? E o que seria cultura de elite é algo tão distante da imensa massa de brasileiros, das camadas menos favorecidas economicamente que determinaria o padrão cultural e educacional de cerca de, mais ou menos, cento e trinta milhões de pessoas? Possuir educação e ser culturalmente bem formado significaria, então, um privilégio dos que pertencem àquele um por cento desse imenso grupo que é a população brasileira? Então o padrão de cultura e educação que se tem é o econômico, ou seja, quanto mais rico, mais educado e culturalmente refinado. Estaremos então, de um lado condenados à barbárie, porque nosso país é um dos maiores exemplos de má distribuição de renda. Ou então, de outro, fazemos parte do primeiro mundo, pois estamos entre as dez economias mais desenvolvidas do globo! Não parece ser este o melhor caminho para se compreender o assunto. Rezende propõe o seguinte: “O desenvolvimento cultural aparece então como intimamente ligado à criatividade nos diversos setores da cultura. (...) A caracterização do desenvolvimento cultural pela criatividade não se baseia simplesmente na multiplicação de obras, muito embora significativas, mas na maior compreensão da expressividade dessas mesmas obras como fruto da atividade humana. O desenvolvimento cultural e a educação que o prepara visam, antes de mais nada, o cultivo da expressividade significativa. Desenvolver não consiste em acumular obras – como quer o capitalismo cultural -, mas em acrescentar sentido. Implica numa maior capacidade de discernimento entre o significante e o insignificante, entre o mais e o menos significativo. Se pudéssemos aqui evocar a tão antiga noção de sabedoria, diríamos que ela se caracteriza pela maior sensibilidade para com o sentido. Em relação a ela, o desenvolvimento cultural consiste em acumular sentido na proporção direta de uma maior capacidade em percebê-lo.”1 1 REZENDE, Antonio Muniz de. Crise Cultural e Subdesenvolvimento Brasileiro. Campinas: Papirus, 1982, pp. 10-11. 2 Ou seja, para um habitante do sertão nordestino, por exemplo, as formas de sociabilidade mais ligada à vida rural e de convivência com os ciclos da natureza são mais intensas que as dos habitantes da região Sudeste. Suas relações com a economia pastoril e com a agricultura, que são os exemplos de produção econômica para a sobrevivência mais difundidos, criam formas culturais de resistência à seca e às adversidades resultantes da escassez de alimentos, das perdas de entes queridos, da mortalidade infantil, da carência de remédios industrializados e de profissionais da saúde, de técnicos do governo para a otimização econômica de suas atividades produtivas entre outros. Isto significa que acaba por produzir um manancial educativo, criativo e cultural diferente de outros habitantes de outras regiões. Como conseqüência, a educação, entendida aqui como a forma de ensinar e aprender, não corresponderá ao modelo adotado nas cidades do Sudeste. O personagem, então tomado como exemplo nesta análise, é um cidadão educado (“adaptado”, se assim preferir o leitor) nos moldes do sistema em que habita, mas não nos moldes do sistema que vem de fora, ou seja: que é imposto por um governo central, distante da realidade daquele habitante sertanejo. Como ficam, então, as propostas governamentais sobre a educação formal, aquela que é dada nas escolas a partir de um currículo único e normalmente elaborado por técnicos que não têm nada em comum com aquele cidadão nordestino de que estamos tratando aqui? Se ainda hoje os problemas a esse respeito estão longe de acabar, no início do século XX a situação era particularmente estarrecedora. Isto porque o problema do analfabetismo e da necessidade de se erradicá-lo passou a ocupar espaço na agenda governamental do recém-nascido regime republicano. Ao lado dessa necessidade, que não pode ser superestimada, como tendo sido central para as preocupações do Estado, havia outra muito mais discutida: a modernização do país. É neste aspecto que o discurso econômico acaba por justificar a tendência em se explicar o “atraso” cultural em relação ao “progresso” material. Para se entender esse processo, vários são os trabalhos existentes a respeito e muitos de nós já ouviu falar dos debates sobre políticas de organização financeira e monetária no país. Certamente não é um assunto inédito na História brasileira. As formas de o governo interferir na economia para ajudar aos produtores, como na “política dos governadores”2, ou ainda na política do café com leite, podem ser resumidamente explicadas como a “valorização” dos produtos agrícolas, sobretudo o café, feita com a utilização do dinheiro estrangeiro, ou seja, a partir dos empréstimos de capital originários de empresas com sede em outros países.3 Em troca, o país que recebe o dinheiro deve demonstrar que está aplicando efetivamente esse recurso em prol do desenvolvimento (leia-se econômico do ponto de vista internacional) interno. Isto, juntamente com outra política de descentralização em nível “Tratava-se de entregar cada Estado federado, como fazenda particular, à oligarquia regional que o dominasse, de forma a que esta, satisfeita em suas solicitações, ficasse com a tarefa de solucionar os problemas desses Estados, inclusive pela dominação, com a força, de quaisquer manifestações de resistência. (...). Para isso, aquelas oligarquias ou organizavam forças irregulares próprias, à base de um banditismo semifeudal, ou valiam-se de organizações policiais assemelhadas em tudo e por tudo a verdadeiros exércitos regionais”. (Sodré, 1973: 304). Apud, RIBEIRO, Ana Luísa Santos. História da Educação Brasileira: A Organização Escolar.Campinas: Editora Autores Associados, 2000, p. 78. 3 RIBEIRO, A. L. S. Op. cit, pp. 78-79. 2 3 federal, dando mais poderes aos Estados e originando-se oligarquias regionais até hoje conhecidas de muitos de nós. Resultam dessas políticas a descentralização estratégica para a modernização do aparato técnico e industrial, de um lado e o abandono de outras áreas, como a educação do outro. Em resumo, o país cresceu economicamente?, sim cresceu, mas separou [ainda mais] pobres e ricos, ignorantes e analfabetos de cultos e educados! “Assim, a sociedade brasileira continua a modernizar-se, mas a um custo muito alto, pesadamente pago pela maioria da população, excluída de tais benefícios por viver no campo. E, curiosamente, sendo aquela que produz a riqueza, uma vez que é a mão-de-obra da lavoura cafeeira. As condições de trabalho e o isolamento em que vivia esta população rural impossibilitavam manifestações de descontentamento. Este fato e a representação eleitoral manobrada pelo coronelismo, pelos ‘currais eleitorais’, garantiriam o sucesso do regime sem maiores problemas até o final da Primeira Guerra Mundial, quando as manifestações urbanas de descontentamento vão se intensificando.”4 Ribeiro observa que o período foi caracterizado por uma sucessão de reformas na organização do ensino, o que revela a dicotomia entre as posições que aprovavam um ensino de caráter humanista e outro mais cientificista e realista. Os positivistas, ou os autores que legislavam segundo a proposta da educação calcada na ciência, vinham tomando corpo desde Benjamin Constant. Como a proposta de um Estado positivista havia sido posta de lado, em virtude do modelo liberal norte americano ter obtido maiores adesões, restava à educação uma forma de resistência das idéias de Comte. A liberdade e laicidade do ensino seriam seus princípios norteadores, bem como a gratuidade da escola primária. “Atingia, por força da descentralização reinante, a instrução pública primária e secundária no Distrito Federal e a instrução superior, artística e técnica em todo o território nacional. A escola primária ficava organizada em duas categorias, isto é, de 1º grau para crianças de 7 a 13 anos e de 2º grau para crianças de 13 a 15 anos. A secundária tinha a duração de sete anos. No nível superior afetou o ensino politécnico, o de direito, o de medicina e o militar. Quanto à escola de Minas, nem chegou a ser colocada em execução. Uma das intenções era tornar os diversos níveis de ensino ‘formadores’ e não apenas preparadores dos alunos; com vistas ao ensino superior. Para que este aspecto fosse conseguido no ensino secundário, por exemplo, foi criado o exame de madureza, destinado a verificar se o aluno tinha a cultura intelectual necessária ao término do curso. A partir do 3º ano, seria introduzido tempo para a revisão da matéria e, no 7º, isto ocuparia a maior parte do horário.” 5 Embora não se tenha seguido devidamente o modelo pedagógico de Comte, em quesitos como a idade para a introdução dos estudos científicos além de muitos dos positivistas terem criticado a proposta, o que ocorreu, na verdade foi “o acréscimo de matérias científicas às tradicionais, tornando o ensino enciclopédico”. Exagerando a relação com esse “modelo”, é possível observar que ainda resiste em muitas das disciplinas constantes nos currículos escolares e demarca uma séria barreira entre o conhecimento científico ou pseudo-real e o humanístico ou de formação do cidadão a partir do seu universo sócio-cultural, por exemplo. A título de conclusão, restam as observações pertinentes a respeito da utopia de tratar a educação como troca de conhecimento e não de imposição de um saber oficializado e pretensamente científico à uma massa de pessoas como se fosse um corpo amorfo e inanimado. É necessário buscar e encontrar no “outro” as suas expectativas a respeito de um padrão vindo de fora. Isto poderá nos capacitar a aprender com este “outro” mais do que fomos efetivamente ensinar. 4 5 RIBEIRO, op. cit., p. 79. Id., pp. 73-74.