LÍNGUA FALADA E LÌNGUA ESCRITA

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LÍNGUA FALADA E LÌNGUA ESCRITA
Edilma de Lucena Catanduba – UEPB
Resumo:
Fala e escrita são duas instituições estanques, separadas? Numa perspectiva dicotômica,
considera-se que, a escrita é descontextualizada, autônoma, explícita, condensada,
planejada, precisa, normatizada, completa. A fala, por outro lado, é tida como
contextualizada, dependente, implícita, redundante, não-planejada, imprecisa, nãonormatizada, fragmentária. Esta dicotomização envolve questões sociais, culturais,
históricas e ideológicas e tem conseqüências diretas para o ensino de língua materna. Na
escola, de modo geral, privilegia-se a escrita. O fato lingüístico escrito é o foco de
interesse das análises. A fala, por sua vez, não é tomada como objeto de estudo uma vez
que a escola está voltada para o código, para a imanência da língua, para o
prescritivismo de uma única forma padrão, considerada a norma culta. Na realidade, os
laços entre fala e escrita são estreitos e mesmo que existam distanciamentos, estes não
são suficientes para justificar a existência de dois sistemas distintos. As relações entre
fala e escrita presentificam-se no âmbito das práticas cotidianas de comunicação
efetivadas através de variados gêneros textuais. Considerando estas questões e tomando
como base teórica, estudos empreendidos por Marcuschi, Castilho, Xavier, Araújo,
Paiva e outros pesquisadores, proponho discutir sobre a relação entre língua falada e
língua escrita numa perspectiva funcional, do uso e de diferentes gêneros textuais.
Palavras-chave: fala, escrita, gêneros textuais.
A linguagem em foco
Não podemos falar sobre fala e escrita sem antes fazermos uma reflexão sobre a
linguagem. A linguagem tem sido estudada ao longo dos séculos sob perspectivas
teóricas diferentes, assim como tem sido diversas as motivações para o estudo da
linguagem. Cantos, mitos, lendas entre outras manifestações humanas revelam o
interesse pela linguagem. Mas, foram razões religiosas que motivaram os primeiros
estudos sobre a linguagem. No século IV a.C., os hindus estudam sua língua com o
objetivo de preservar os textos sagrados reunidos no Veda de modificações que esses
textos poderiam sofrer no momento de ser proferidos. Os hindus produziram modelos
de análise com os quais descreveram sua língua. Somente no final do século XVIII é
que esses modelos foram descobertos pelo Ocidente.
Entre os gregos a motivação para o estudo da linguagem era o estabelecimento
das relações entre a palavra e o conceito por ela designado. Discuta-se se o signo era
arbitrário ou motivado. Platão focalizou bem esta questão. E Aristóteles centralizando
sua atenção na estrutura da língua, distinguiu as partes do discurso, enumerou as
categorias gramaticais e elaborou uma teoria da frase. Os latinos entendiam a gramática
como uma ciência, uma arte. E na Idade Média, os modistas acreditavam haver uma
estrutura una, universal para qualquer língua.
O séculos XVI trouxe novas luzes para o entendimento da linguagem. Neste
momento, livros sagrados são traduzidos em várias línguas, dada a efervescência
causada pela Reforma Protestante. A ampliação das relações de comércio nesse século
propicia que línguas desconhecidas venham à tona através das experiências dos
viajantes, comerciantes estrangeiros. E nos séculos seguintes XVII e XVIII consolida-se
a idéia de que, fundando-se na razão, a linguagem é a imagem do pensamento. E
portanto, os princípios de análise servem a toda e qualquer língua. São universais.
Os avanços conseguidos no século XVI em relação ao conhecimento de outras
línguas, antes desconhecidas não param. Surgem outras e outras línguas e com elas, no
século XIX, a vontade de comparar os falares, a vontade de conhecer línguas vivas. O
enfoque do estudo neste século muda. O raciocínio abstrato sobre a linguagem dá, em
certa medida, lugar ao estudo das gramáticas comparadas e à Lingüística Histórica.
Importam agora, os fatos observados. E a observação evidenciou o fenômeno da
mudança. Ou seja, compreendeu-se que, independentemente da vontade dos homens, a
língua se transforma. Ela transforma-se com o tempo e de forma regular.
A publicação em 1816 da obra de Franz Bopp sobre o sistema de conjugação do
sânscrito comparado ao grego, latim, persa e germânico marca essa época, marca
precisamente o surgimento da Lingüística Histórica. A idéia de parentesco entre as
línguas e a busca pela determinação de uma família, de um tronco de origem comum, o
indo-europeu foi uma grande preocupação para os estudiosos da época. Mas, as
investigações foram mostrando-lhes que, as mudanças verificadas nos textos escritos,
que permitiam que o latim por exemplo, se transformasse em português, francês etc.,
tinham como ponto de partida mudanças ocorridas na correspondente língua falada.
No início do século XXI, o paradigma da gramática histórico-comparada sofre
uma ruptura através dos trabalhos de Ferdinand de Saussure. Neste momento, o estudo
da linguagem é reconhecido como científico e a Lingüística que, antes submetia-se à
lógica, filosofia, retórica, história, adquire agora status de ciência. O trabalho científico
exige que os fatos sejam observados e descritos a partir de pressupostos teóricos
elaborados pela Lingüística. É possível haver, para o mesmo fato lingüístico,
descrições diversas porque o lingüista observa esse fenômeno a partir de um quadro
teórico específico.
Embora Saussure não tenha tido a intenção de fundar a Lingüística como
ciência, três cursos de Lingüística Geral apresentados por ele entre 1907 e 1911 na
Universidade de Genebra e divulgados por seus discípulos Charles Bally, A. Sechehaye
e A. Riedlinger no CLG (Curso de lingüística Geral) fundaram a lingüística como
ciência. Na perspectiva saussuriana, a linguagem tem um lado individual e um outro
social indissociáveis e é ao mesmo tempo física, fisiológica e psíquica, podendo ser
objeto de estudo de várias ciências como Psicologia, Antropologia, Filologia etc. Pelo
caráter heteróclito da linguagem, Saussure vê a necessidade de definir o que seria objeto
de estudo específico da Lingüística como ciência. Para ele, enquanto a linguagem não
se deixa classificar em nenhuma categoria de fatos humanos, pois não se sabe inferir sua
unidade, a língua ao contrário, é um todo por si e um princípio de classificação. É a
língua que faz a unidade da linguagem. Ela é o lado social da linguagem. É a língua o
objeto da lingüística. Como objeto da Lingüística, a língua é entendida como sistema
de signos. Assim como outros sistemas, o sistema lingüístico constitui um conjunto
organizado em que um elemento se define em relação aos demais elementos. A língua é
ao mesmo tempo, um produto social da faculdade da linguagem e um conjunto de
convenções necessárias, adotadas pelo corpo social para permitir o exercício dessa
faculdade nos indivíduos. O caráter convencional da língua faz com que ela seja
adquirida. É uma instituição social. É exterior ao indivíduo e este não pode modificá-la.
Quanto ao lado individual da linguagem, a fala, esta é um ato individual de
vontade e inteligência, no qual distinguem-se as combinações pelas quais o falante
realiza o código da língua no propósito de exprimir seu pensamento pessoal e o
mecanismo psico-físico que lhe permite exteriorizar essas combinações. Na lingüística
saussuriana, a linguagem é dialeticamente constituída pela língua e pela fala. Isto é, o
sistema lingüístico prevê dois movimentos um social (língua) e outro individual (fala).
O movimento da língua como social a coloca como maior que o homem e ao mesmo
tempo ele está na língua através de um movimento individual.
Rompendo com o historicismo comparativista, as idéias de Saussure
introduziram o paradigma estruturalista. Nesse período, a fonologia e a morfologia
foram enfatizadas. A semântica foi praticamente deixada de lado por ser considerada
área de estudo interdisciplinar que desenvolvia teorias lexicais. O termo significado
estava relacionado especificamente ao significado das palavras (unidades lexicais) e
inserir considerações de semântica lexical na estrutura sistemática da língua parecia
impossível para os estruturalistas que não viam como sistematizar a semântica na
gramática. Desta forma, se estabelecia a separação entre a sintaxe cuja formulação
propiciava a gramática de uma língua e a semântica cuja função nessa gramática era
indeterminável.
Nos anos de 1950 entra em cena o gerativismo chomskyano. Para Chomsky, a
sintaxe é central. A semântica e a fonologia atuam apenas na interpretação das
estruturas sintáticas bem formadas. Estruturalismo e gerativismo tratam a língua como
sistema abstrato, fora de uso. Mas, escritos deixados por Saussure e por Peirce reabrem
os debates em torno da linguagem trazendo a questão da Semiologia para a discussão.
A semiologia, de um modo geral é caracterizada como teoria geral dos sinais. De
acordo com Peirce, a semiosis envolve fundamentalmente três elementos: o próprio
sinal, o que ele designa e a pessoa para quem ele funciona como sinal. Uma teoria
lingüística deve, portanto, contemplar a tríade: sinais lingüísticos, suas designações e
seus intérpretes. O autor sugere uma subdivisão da tríade em três sub-disciplinas;
sintaxe, ou estudo das relações entre sinais e suas designações, e a pragmática ou estudo
das relações entre sinais e aqueles que os utilizam (seus intérpretes).
Na Pragmática há três vertentes teóricas: a Pragmática Conversacional, a
Pragmática ilocucional e a Semântica da Enunciação. Essas vertentes distinguem-se por
considerar diferentes posicionamentos para o interlocutor. A Conversacional,
desenvolvida por Grice, apesar de considerar os usuários como interlocutores, toma a
função informativa ou referencial como fundamental na linguagem. A ilocucional
(desenvolvida por Austin e Searle) considera como fundamental a questão da intenção
do locutor e o reconhecimento dessa intenção por parte do ouvinte. Nesta perspectiva a
linguagem é vista como ação entre interlocutores. A Semântica da Enunciação
(advinda dos trabalhos de Austin, Benveniste e desenvolvida por Ducrot, Anscombre e
Vogt entre outros), considera a linguagem como ação.
. O aspecto pragmático é tratado como fundamental para a significação. A
linguagem é uma forma de ação sobre o mundo e é dotada de intencionalidade, veicula
ideologia e caracteriza-se pela argumentatividade. Em suma, a Pragmática pode ser
apontada como ciência do uso lingüístico. Estuda a linguagem, levando em conta
também a fala e nunca o estudo da língua isolada de sua produção social. A pragmática
amplia a noção chomskyana de competência, no sentido de incluir, além do
conhecimento das regras gramaticais, a consciência do falante quanto ao “modus
operandi” da língua no contexto social.
A consideração da língua em uso e a análise voltada para a enunciação
abrem espaço para as discussões sobre a relação linguagem e sujeito. Nos termos de
Flores e Teixeira (2005, p. 29), Émile Benveniste talvez seja, a partir do quadro
saussuriano, o primeiro a desenvolver um modelo de análise da língua especificamente
voltado para á enunciação. Para ele, era possível articular sujeito e estrutura, ou seja, se
propôs a estudar a subjetividade na língua, o aparelho formal da enunciação.
Língua falada e Língua escrita: processos dialógicos
O estudo da subjetividade na língua requer uma investigação lingüística para
além das fronteiras do texto. A análise deve incluir a comunicação efetiva, os sujeitos e
os discursos nela envolvidos. Exige uma reconsideração da concepção de linguagem. A
linguagem passa a ser compreendida como interação. Neste sentido, entra em cena a
noção de dialogismo desenvolvida por Bakhtin.
Na perspectiva do dialogismo bakhtiniano, a fala está indissoluvelmente ligada
às situações da comunicação e estas estão ligadas às estruturas sociais. Para ele:
[...] Na realidade, toda palavra comporta duas faces. Ela é
determinada tanto pelo fato de que procede de alguém, como
pelo fato de que se dirige para alguém. Ela se constitui
justamente o produto da interação do locutor e do ouvinte. Toda
palavra serve de expressão a um em relação ao outro, isto é, em
última análise, em relação à coletividade. (Bakthin, 1995, 113)
Na palavra falada ou escrita, a consideração de que o outro pode representar a
coletividade nos leva a fazer referência aos conceitos de discurso, enunciado, e
enunciação. Bakhtin concebe a linguagem de um ponto de vista histórico e cultural, que
inclui para efeito de compreensão e análise, a comunicação efetiva e os sujeitos e
discursos nela envolvidos. O enunciado é portanto, uma unidade da comunicação verbal
que somente tem existência em um determinado momento histórico. Ele veicula
ideologia. Nas palavras de Teixeira e Flores (2005, p. 56),
[...] o enunciado não é neutro, seu conteúdo veicula
determinadas posições devido às esferas em que se realiza; este,
ainda implica referência ao sujeito, enquanto a oração não. Podese elencar critérios para se identificar um enunciado. São eles: a
alternância de sujeitos, o acabamento e a relação do enunciado
com o próprio locutor e com os outros parceiros da comunicação
verbal.
A produção de enunciados se dá no processo de enunciação. Esta última é
entendida como acontecimento sócio-histórico da produção do enunciado. O processo
da enunciação é regulado por uma exterioridade sócio-histórica e ideológica. Esta
determina as regularidades lingüísticas, seu uso, sua função. Para Bakhtin, a ideologia é
espaço de contradição e tudo que é ideológico faz parte de uma realidade, e remete a
algo situado fora de si mesmo. Portanto, tudo que é ideológico é um signo. Os signos
emergem do processo de interação social, na medida em que os indivíduos socialmente
organizados em grupos formam uma unidade social. Situação social e signo são
indissoluvelmente ligados. E a consciência lingüística é perpassada pela linguagem
numa perspectiva em que as palavras pronunciadas e ouvidas não são apenas palavras
porque estão carregadas de um conteúdo de sentido ideológico.
A concepção de linguagem como interação apóia-se na noção de dialogismo e
também no conceito de polifonia que foi introduzido nas ciências da linguagem por
Bakhtin no momento em que o filósofo investigava a prosa romanesca. O estudo da
prosa romanesca conduziu-o à distinção entre um romance monológico e um romance
polifônico. O monológico é caracteristicamente autoritário e acabado. E ao romance
polifônico estão ligados os conceitos de realidade em formação, não acabado,
inconcluso, dialógico.
Considerando que o diálogo é constitutivo da linguagem, o autor defende a idéia
de que na situação real de diálogo, ao responder a um interlocutor, o falante não retoma
no seu discurso as próprias palavras que o interlocutor pronunciou, a não ser em casos
específicos, como por exemplo para confirmar que entendeu o que o interlocutor
pronunciou.
O que ocorre é a apreensão apreciativa da enunciação, tudo que tem significado
ideológico tem expressão no discurso interior. Em outras palavras, o material percebido
é processado no discurso interior de forma que, se opera a junção do discurso interior
com o discurso apreendido do exterior. Ou seja, no quadro do discurso interior ocorre a
apreensão, a compreensão e apreciação da enunciação do outro.
O dialogismo, enquanto procedimento que constrói a imagem do homem num
processo de comunicação interativa, permite uma dupla projeção: há um eu que se
projeta no outro e um outro que se projeta no eu. Esse movimento dialógico é regido
pela polifonia.
De acordo com Bezerra (2005, p. 194-195, in Brait. Org. 2005),
A polifonia se define pela convivência e pela interação, em um
mesmo espaço, do romance, de uma multiplicidade de vozes e
consciências independentes e imiscíveis, vozes plenivalentes e
consciências eqüipolentes, todas representantes de um
determinado universo e marcadas pelas peculiaridades desse
universo. Essas vozes e consciências não são objeto do discurso
do autor, são sujeitos de seus próprios discursos. [...] essas vozes
possuem independência excepcional na estrutura da obra, é
como se soassem ao lado da palavra do autor, combinando-se
com ela e com as vozes de outras personagens.
As diferentes concepções de linguagem elaboradas através dos séculos têm
conseqüências diretas para o ensino. O entendimento de linguagem como imagem do
pensamento e a língua como sistema de signos conduzem a falsa idéia de
homogeneidade da língua. Como fenômeno homogêneo, a língua poderia ser examinada
independentemente de suas condições de produção. Já o entendimento da linguagem
como interação permite perceber a língua como fenômeno heterogêneo, cujas regras de
funcionamento são variáveis e socialmente motivadas.
É portanto, no paradigma da Lingüística da Enunciação, e a partir da
compreensão da língua como interação que situamos a nossa abordagem sobre a língua
falada e a língua escrita. Neste espaço teórico, não há mais lugar para um ensino de
Língua Portuguesa concentrado apenas na língua escrita. De fato a língua falada tem
presentificado-se nas salas de aula, mas muito timidamente. Isto deve-se também ao fato
de que a língua falada começou a ser considerada como objeto de estudo científico
muito recentemente. Ainda há muitas questões sobre a língua falada que precisam ser
melhor investigadas. Uma destas questões diz respeito à desmistificação da dicotomia
fala e escrita. Marcuschi (2003) faz uma discussão interessante sobre essa questão.
Marcuschi (2003) inicia sua abordagem sobre fala e escrita fazendo referência a
dois conceitos intimamente relacionados a esses dois processos: o conceito de oralidade
e o de letramento. Para ele, oralidade e letramento são práticas sociais e neste contexto
devem ser observadas. Da mesma forma, a fala e a escrita devem ser abordadas a partir
da consideração da distribuição e de seus usos na vida cotidiana. Esta perspectiva
implica a compreensão de língua e de textos como um conjunto de práticas sociais.
Segundo o autor, o letramento, como prática social relaciona-se à escrita. E esta
última, em nossa sociedade tem status de um bem social essencial para a vida no mundo
moderno. Este status tem a ver com a forma violenta como foi imposta à sociedade. A
escrita representa educação, desenvolvimento e poder. Mas, esta suposta primazia são se
justifica, o fato é que,
Oralidade e escrita são práticas e usos da língua com
características próprias, mas não suficientemente opostas para
caracterizar dois sistemas lingüísticos nem uma dicotomia.
Ambas permitem a construção de textos coesos e coerentes,
ambas permitem a elaboração de raciocínios abstratos e
exposições formais e informais, variações estilísticas, sociais,
dialetais e assim por diante. (Marcuschi, 2003, p. 17)
Não há primazias entre oralidade e letramento. E o que interessa é a natureza das
práticas sociais que envolvem o uso da língua de um modo geral porque são essas
práticas que determinam o lugar, o papel e o grau de relevância da oralidade e das
práticas do letramento. É preciso perceber o entrelaçamento, a mesclagem entre
oralidade e letramento como pertinentes ao eixo de um contínuo sócio-histórico de
práticas. É nesse eixo de um contínuo sócio-histórico que as comunicações síncronas ou
em tempo real pela internet podem ser observadas. As comunicações produzidas nas
salas de bate-papos constituem textos mistos com características da oralidade e da
escrita, situam-se no entrecruzamento de fala e escrita. Neste novo tipo de comunicação
se estabelece uma mudança na relação do sujeito com a escrita.
É certo que a fala é adquirida naturalmente e mais que uma disposição
biogenética representa uma forma de inserção cultural e de socialização. Já a escrita, é
de certa forma institucional e como tal é adquirida em contextos formais o que
empresta-lhe um caráter prestigioso. Mas isso não justifica a elaboração de dicotomias.
Maschuschi (2003) assume uma perspectiva socionteracionista segundo a qual
fala e escrita são processos vistos sob uma perspectiva dialógica. Neste quadro teórico,
fala e escrita apresentam dialogicidade; usos estratégicos, funções interacionais,
envolvimento; negociação; situcionalidade; coerência; dinamicidade. Dizer que fala e
escrita apresentam dialogicidade significa dizer que são processos dinâmicos de coautoria. A produção de sentido situa-se em contextos sócio-historicamente marcados por
atividades de negociação.
Os usos quotidianos da língua apontam para o fato de que oralidade e escrita não
são domínios estanques, dicotômicos. Há práticas sociais mediadas pela escrita e outras
mediadas preferencialmente pela fala. Mas numa mesma área discursiva e numa mesma
comunidade de práticas convivem duas tradições diversas. Marcuschi (2003, p.42)
afirma que:
O contínuo dos gêneros textuais distingue e correlaciona os
textos de cada modalidade (fala e escrita) quanto às estratégias
de formulação que determinam o contínuo das características
que produzem as variações das estruturas textuais-discursivas,
seleções lexicais, estilo, grau de formalidade etc., que se dão
num contínuo de variações, surgindo daí semelhanças e
diferenças ao longo de contínuos sobrepostos.
O autor exemplifica esta questão mostrando que uma carta pessoal, que é um
texto escrito assemelha-se a uma narrativa oral espontânea, ou seja, é um texto escrito
com características de língua falada. O oposto desta situação verifica-se no caso de uma
conferência universitária. Esta embora seja proferida oralmente certamente foi
minuciosamente preparada e tem características de língua escrita.
Colocar a prática da fala e da escrita no campo dos gêneros textuais significa
reconhecer que assim como os gêneros, fala e escrita são fenômenos históricos
indissociáveis da sociedade e de suas necessidades. Hoje, na era da cultura eletrônica,
particularmente do computador muitos novos gêneros e novas formas de comunicação
têm surgido e a dinâmica de criação de novos gêneros apontam para a mescla, de língua
falada e língua escrita em maior ou menor grau de acordo com a necessidade
comunicativa que motivou o surgimento deste ou daquele gênero.
Considerações finais
Numa perspectiva dicotômica, fala e escrita caracterizam-se num quadro de
oposições. A fala é contextualizada, dependente, implícita, redundante, não planejada,
imprecisa, não-normatizada, fragmentaria e a escrita é descontextualizada, autônoma,
explicita, condensada, planejada, precisa, normatizada, completa.
Mas, como nos apontam pesquisadores como Marcuschi, Castilho, a fala não é
esse caos que se opõe a pratica planejada da escrita. O que se verifica é que a fala
também é planejada. Esse planejamento é simultâneo. Ou seja, a pessoa planeja sua fala
ao mesmo tempo em que a executa. A enunciação, as condições de produção são
essenciais para a contextualização da fala, assim como também são essenciais para a
contextualização da escrita. Portanto, não é possível afirmar que a fala é
descontextualizada e a escrita contextualizada. Ambos os processos são
contextualizados.
Não há razão para caracterizar a fala como dialogada e a escrita como
monologada uma vez que o outro é constitutivo da linguagem. A linguagem é dialógica.
Mesmo que o momento da escritura seja encenado apenas por aquele que escreve, várias
vozes falam no texto escrito, o outro a quem se dirige a palavra presentifica-se. O
mesmo se dá quando alguém fala solitariamente. Muitas vozes emergem em seu falar,
muitos outros compõem seu discurso.
Enfim, as reflexões sobre fala e escrita levam-nos a compreender que não apenas
é possível como também necessário contemplar a fala nas aulas de língua portuguesa.
O trabalho com textos orais não exclui o texto escrito. Ao contrario. Ambas as práticas
pertencem ao dinamismo da linguagem entendida como interação. O que não é mais
possível é trabalhar apenas com o paradigma estrutural, com a língua fechada em si
mesma, excluindo a sociedade e os sujeitos que por ela são constituídos ao mesmo
tempo que a constituem.
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