a sociedade em rede: mobilidade e exclusão social

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A SOCIEDADE EM REDE: MOBILIDADE E EXCLUSÃO SOCIAL
Tadeu Alencar Arrais
Professor de Geografia da UEG
Doutorando em Geografia pela Universidade Federal Fluminense – UFF
Essa sociedade que suprime a distância geográfica
recolhe interiormente a distância, como separação espetacular.
Guy Debord, A sociedade do espetáculo, 1997.
Certo dia uma situação me fez refletir sobre algumas questões que penso estarem relacionadas
à exclusão social e a mobilidade. Ao entrar no elevador observei que uma das funcionárias que trabalha
na limpeza do prédio portava um aparelho celular, daqueles que cabem com comodidade no bolso da
camisa. A partir desse momento comecei perceber que parte significativa dos funcionários do prédio,
com rendimentos entre um e três salários mínimos, possuem aparelhos celulares, possivelmente desses
“pré-pagos”. Particularmente não tenho nada contra os celulares, mas comecei a refletir sobre o
significado de a faxineira do prédio possuir um celular e eu não. Comparei sua renda, sua necessidade
de comunicação diante das demandas da minha profissão, pensei na privatização do setor de
comunicações (talvez, entre frangos e celulares, FHC estivesse certo!). Enfim, procurava uma
explicação para justificar a ausência do celular em minha vida e sua presença no cotidiano daquela
funcionária. Naquele momento dedicava-me à leitura da trilogia do sociólogo Manuel Castells e a
pensar o par mobilidade-exclusão na Sociedade em Rede, na busca de explicação teórica para essa situação
aparentemente contraditória. Acredito que o grau de mobilidade da faxineira, moradora da periferia de
Goiânia, esconde uma das novas formas de exclusão social dos nossos tempos. Sua mobilidade é
apenas aparente, distinta daquela dos financistas do Wall Strit. Ela é apenas mais uma excluída da
Sociedade em Rede. Quando, ao fim da primeira jornada de trabalho, voltar para casa, o celular tocará. É
Raimundo, do motel que trabalha como diarista para complementar a renda familiar avisando que
Alfredo está doente e que precisa substituí-lo na recepção. Entre talk e end o descanso acabou.
A Sociedade Em Rede
Mais que uma generalização gratuita, A Sociedade em Rede foi a forma que o sociólogo Manuel
Castells encontrou para caracterizar as mudanças porque vem passando a sociedade contemporânea,
nos domínios cultura, da política e da economia. A Sociedade em Rede, O Poder da Identidade e Fim
de Milênio, títulos dos três volumes da sua trilogia sobre a Era da Informação, contem uma das mais
complexas leituras de nossa sociedade. A Sociedade em Rede, primeiro dos volumes, apresenta as
principais características da economia global. Segundo Castells (1999:87):
Chamo-a de informacional e global para identificar suas características
fundamentais e diferenciadas e enfatizar suas ligações. É informacional porque a
produtividade e a competitividade de unidades ou agentes nessa economia (sejam
empresas, regiões ou nações) dependem basicamente de sua capacidade de gerar,
processar e aplicar de forma eficiente a informação baseada em conhecimentos. É
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global porque as principais atividades produtivas, o consumo e a circulação, assim
como seus componentes (capital, trabalho, matéria-prima, administração,
informação, tecnologia e mercado) estão organizados em escala global, diretamente
ou mediante uma rede de conexões entre agentes econômicos. É informacional e
global porque, sobre novas condições históricas, a produtividade é gerada, e a
concorrência é feita em uma rede global de interação.
Essa concepção de economia global influencia todos os domínios da vida humana, com
predominância do “espaço de fluxos”, das redes, especialmente com a emergência de formas de
produzir, consumir, viver, trabalhar, protestar, baseadas na informação e na integração do espaço em
várias escalas. O conceito de rede na obra de Castells (Idem) é bastante simples, o que resultou em
críticas por parte de alguns autores, por acreditarem que a gênese das redes, sua genealogia
propriamente dita, ligada às estruturas do capital, tenham recebido pouca atenção (Prado, 2001).1 Sem
muitas delongas, para Castells (1999:498):
Rede é um conjunto de nós interconectados. Nó é o ponto no qual uma cursa se
entrecorta. Concretamente, o que um nó é depende do tipo de redes concretas de
que falamos. São mercados de bolsas de valores e suas centrais de serviços
auxiliares avançados na rede dos fluxos financeiros globais. São conselhos nacionais
de ministros e comissários europeus da rede política que governa a União Européia.
São campos de coca e de papoula, laboratórios clandestinos, pistas de aterrissagem
secretas, gangues de ruas e instituições financeiras para lavagem de dinheiro... .
As reflexões sobre o conceito de rede vão pouco além dessas referências, opção justificada pelo
autor. Se, por um lado, é dada pouca atenção ao conceito de rede propriamente dito, tendo em vista a
densidade de informação dos três volumes, existe uma descrição apurada sobre os fenômenos sociais
mais diversos (identidades de grupos, conflitos sociais, crime organizado, ambientalismo, movimentos
sociais, tipologia das empresas, crise do Estado e do patriarcalismo, acordos econômicos,
comunicações, feminismo, etc.) envoltos num tecido reticular cuja presença deu novo significado ao
modo de existir dos diversos atores e instituições da Sociedade em Rede. Foi justamente esse viés de
interpretação que chamou nossa atenção, ou seja, a interdependência entre fenômenos sociais nos mais
diversos cantos do planeta.
Na realidade Castells (1999, 1999b e 1999c) encontra a justificativa para os mais variados
fenômenos (colapso do estatismo Soviético, emergência do “quarto mundo”, crise no sudeste asiático
etc) na incorporação ou não de determinados espaços ou grupos sociais na dinâmica inexorável do
“capitalismo informacional”. Vejamos seu pensamento sobre o fim do estatismo Soviético:
No cerne da crise que levou o país à perestroika e desencadeou o nacionalismo
encontrava-se a incapacidade do estatismo soviético de assegurar a transição para o
novo paradigma informacional, paralelamente ao processo que ocorria no resto do
mundo. Tal hipótese não é, em absoluto, original. Na realidade, trata-se apenas da
Na realidade Castells (1999:506) atribui seu conceito de rede ao “diálogo intelectual com François Bar”. Prado
(2000) critica Castells por efetuado uma naturalização do conceito de rede para o capitalismo e, ao mesmo tempo,
generalizado o conceito de rede, como se não existissem diferenças significativas entre redes financeiras, de
computadores, transporte, comunicações, etc. Essa crítica é procedente, porém, dado os limites do trabalho não
nos aprofundaremos na conceituação de rede, até porque existe uma significativa literatura a esse respeito.
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aplicação de um velho ideal marxista, segundo o qual sistemas sociais específicos
podem emperrar o desenvolvimento de forças produtivas, admitidamente
apresentadas aqui em uma inversão histórica que chega a ser irônica (1999c:28).
Com tal pensamento Castells (Idem) quer ilustrar a relação entre um Estado autoritárioplanejador e o desenvolvimento dos meios informacionais inibidos pelas políticas públicas cujo
controle da informação gerou um déficit, por um lado, na produção de tecnologia, mesmo militar, e por
outro, a criação de uma burocracia horizontal controlando os diversos segmentos da sociedade, o que
resultou numa diferença substantiva de integração ao mundo global entre o Estados Unidos e a União
Soviética. Uma relação, pode-se dizer, de dependência tecnológica de um país que não conseguiu
devido questões estruturais (dentre as quais Castells não descarta a corrupção e presença da
“nomenklatura partidária”) ingressar no informacionalismo, ficando preso, ainda, no industrialismo.
Uma defasagem ainda maior, dada a situação de indigência história, é verificada na África. 2
Poucos pontos do continente africano, apenas algumas capitais, estão integrados no capitalismo
informacional. A condição histórica de exploração colonial logrou para o continente a ausência de
infra-estrutura básica (energia, telefonia, água, esgoto, etc) que não lhe permite, sequer, garantir os
modelos de produção do industrialismo, gerando, como escreveu Castells (1999c), um “apharthaid
tecnológico”.
Como na União Soviética a explicação para penúria africana não se resume à distancia do
“capitalismo informacional” muito menos estão limitadas às relações de “hostilidade entre as etnias”
(Idem:130). Para Castells (Idem):
Etnia é um elemento muito importante, tanto na África como em qualquer outro lugar
do mundo. Contudo, as relações entre etnia, sociedade, Estado e economia são
complexas demais para serem adstritas a conflitos ´tribais´.
Tais interpretações, que se estendem para diversas áreas do planeta, são possíveis porque
vivemos numa sociedade estruturada por redes que interligam, seletivamente, as diversas faces do
planeta. Como nunca a infra-estrutura técnica do planeta permite cruzar os continentes em horas, ao
mesmo tempo em que, em outras partes do planeta, pessoas caminham debaixo do sol escaldante em
busca de água potável. De um lado um potencial técnico que irrompe as antigas fronteiras dos Estados
territoriais (infovias, fluxo aéreo, turismo espacial, internet, satélites, etc) garantindo o que podemos
chamar de um grau de “mobilidade máxima”; de outro lado uma “mobilidade mínima”, suficiente para
garantir a reprodução da força de trabalho de determinados grupos excluídos, seja na África, no interior
na China ou mesmo nos guetos norte-americanos.
Presenciamos um novo tipo de segregação que foge aos padrões tradicionais do isolacionismo
espacial. Não que essa segregação tenha deixado de existir, ao contrário, é cada vez mais forte,
Segundo Castells (1999c:117): “Não só cabe à África o título de região menos informatizada do mundo como
também o de continente privado da infra-estrutura mínima necessária ao uso de computadores, tornando
infrutíferos muitos dos esforços voltados ao fornecimento de equipamento eletrônicos a diferentes países e
organizações. ... Há mais linhas telefônicas em Manhattan ou Tóquio do que em toda África subsariana”.
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reforçada pela sua não inclusão no “espaço de fluxos” e também pela negação do direito ao “espaço de
lugares”. Em certos casos a imobilidade coloca-se em movimento, mesmo que limitado, mostrando,
como no caso dos Palestinos, Ciganos, grupos excluídos de “territórios” que se colocar em movimento
pode significar, também, exclusão. No entanto, há um desnível cada vez maior entre as condições de
mobilidade ofertadas pelo “progresso” técnico científico da Sociedade em Rede e apropriação cada vez
mais seletiva por parte daqueles que estão na base da pirâmide social. É isso que pretendemos levantar,
ou seja, até que ponto a idéia de exclusão social está relacionada com as possibilidades de mobilidade de
grupos sociais e pessoas na Sociedade em Rede. Para tanto a análise empreendida busca algumas
referências na trilogia de Castells (1999, 1999b, 1999c), mais especificamente à temática relacionada à
segregação social e mobilidade.
As Fronteiras da Mobilidade
A palavra fronteira guarda uma ambigüidade: ao mesmo tempo em que nos remete a pensar
formas objetivas de delimitação e controle do espaço a partir dos mais variados critérios (políticos,
administrativos, culturais, econômicos, etc) esconde um caráter extremamente subjetivo, uma vez que
sua rigidez ou mesmo flexibilidade depende da ação política dos diversos agentes sociais que a
delimitaram e a reconhecem como tal em determinadas circunstâncias históricas. A palavra fronteira
guardou durante muito tempo um certo romantismo por demarcar os limites do dento e do fora, do
Oriente e do Ocidente, do Leste e do Oeste. A derrocada do Muro de Berlim, bem como o colapso da
URSS, representou, simbolicamente, um dos fins desse romantismo. Simbolicamente porque as
condições técnicas da década de 80 já permitiam o avanço do front tecnológico, à revelia daqueles que
delimitaram e vigiavam as fronteiras, revelando a falência estatismo Soviético.
O fim das fronteiras é metáfora que tem repercussão na vida de todos nós, muito embora
poucos tenham mobilidade suficiente para transformá-la em realidade. Como os diamantes a
mobilidade tem um preço que pode variar de alguns milhões de dólares, no caso de um passeio numa
nave espacial Russa, ou mesmo alguns trocados, o custo da passagem de ônibus de nossa faxineira para
a periferia de Goiânia. O grau de mobilidade da elite planetária e dos grupos abastados legitima uma
delicada teia de exclusão que não consegue ser diluída pelas redes. Isso se dá pelo fato de convivermos
com duas lógicas territoriais. Uma mais antiga, que implica em deslocamento no “território-zona” do
Estado-territorial. Outra construída por uma ordem reticular que, na perspectivas de alguns autores,
pode significar o “fim dos territórios”. Seja em uma ou outra lógica convivemos com uma “mobilidade
diferencial” Massey (2000). O conceito de mobilidade trabalhado por Massey (2000) envolve, além das
questões econômicas, relações de gênero, raça, nacionalidades, culturas. Seu argumento se justifica no
fato de as pessoas se posicionarem de forma seletiva em relação aos fluxos. Massey (2000) ainda nos
alerta para os perigos da generalização de determinados conceitos como “compressão tempo-espaço”,3
Segundo Massey (2000:178): “Ademais, tanto quanto questionar a etnocentricidade da idéia de compressão de
tempo-espaço e sua aceleração atual, precisamos entender suas causas: o que determina nossas níveis de
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ou mesmo o “tempo intemporal” (isso é por nossa conta) de Castells (Idem). Para Castells (1999) o
“tempo intemporal”, como forma dominante de tempo na Sociedade em Rede provoca tensões ao
chocar-se com outras “temporalidades locais”, “enraizadas”. Uma espécie de oposição silenciosa entre
espaço de “espaço de fluxos” (“tempo intemporal”) e “espaço de lugares”, uma vez os primeiros são
próprios das elites planetárias. Segundo Castells (1999:451-452):
Segue uma esquizofrenia estrutural entre duas lógicas espaciais que ameaça romper os
canais de comunicação da sociedade. A tendência predominante é para um horizonte
de espaço de fluxos aistórico em rede, visando impor sua lógica nos lugares
segmentados e espalhados, cada vez menos relacionados uns com os outros, cada vez
menos capazes de compartilhar códigos culturais.
De certa forma Massey (2000:179-180) coloca o mesmo problema:
Num certo sentido, no final de todo espectro, encontram-se aqueles que estão fazendo
o movimento e a comunicação e estão, de alguma forma, numa posição de controle em
relação à mobilidade – os jet-setters, aqueles que mandam e recebem faz e e-mail, que
participam de conferências internacionais, distribuem filmes, controlam notícias e
organizam os investimentos e as transações monetárias internacionais. Esses são os
grupos realmente responsáveis pela compressão tempo-espaço, que podem, de fato,
fazer uso dessa compressão e transformá-la em vantagem, cujo poder e influência ela
com certeza aumenta. Em suas extremidades mais prosaicas, esse grupo provavelmente
abrange um bom número de intelectuais e jornalistas ocidentais – aqueles que, em
outras palavras, mais escrevem sobre a própria compressão tempo-espaço.
Não se trata de uma mobilidade de uma classe homogênea em detrimento de outra classe
também homogênea, por isso a noção de “mobilidade diferencial” (Massey, 2000) é útil. A mobilidade é
diferencial tanto do ponto de vista horizontal quanto virtual, tanto no “espaço de fluxos” quanto no
“espaço de lugares”. Do ponto de vista horizontal refere-se aos deslocamentos físicos dos corpos em
direção a um lugar qualquer, que tanto pode ser uma viagem de férias de Niterói para Cuba, por um
professor universitário ou gerente de uma casa de câmbio, ou mesmo o deslocamento de uma massa
de trabalhadores chineses transportados como escravos para os EUA pela máfia chinesa (Castells,
1999c). A mobilidade virtual refere-se ao acesso aos lugares sem sair do seu lugar, ao acesso “ilimitado”
ao “espaço de fluxos”. Na realidade é o lugar que vem a você, seja pelo acesso às teleconferências,
compras via internet ou mesmo ligações de um celular via satélite, o que, não raro, oferece todas as
demais vantagens. É o “ciberespaço” de Lévy (1999) onde a mobilidade é total, “desterritorializada e
virtual” (Idem:47), uma vez que interconecta pessoas nos diferentes lugares do mundo para os mais
diversos fins.
Como podemos perceber essa mobilidade, seja na sociedade territorial-moderna ou mesmo na
Sociedade em Rede, que também é territorial, não é para todos. Certamente essa apropriação seletiva
mobilidade e de influência o senso que temos de espaço e de lugar? A compressão tempo-espaço refere-se ao
movimento e à comunicação através do espaço, à extensão geográfica das relações sociais e a nossa experiência de
tudo isso. A interpretação habitual é a de que isso resulta quase exclusivamente das ações do capital e de sua
internacionalização crescente. Assim, segundo essa interpretação, é o tempo-espaço e o dinheiro que fazem o
mundo agir – e nós giramos (ou não) em torno do mundo. Sustenta-se que é o capitalismo e seu desenvolvimento
que determinam nossa compreensão e nossa experiência do espaço”.
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das redes de computadores, se analisada sua origem, tanto nos EUA quanto na França, partiu de
agentes sociais diversos, entre os quais a juventude metropolitana, o aparelho Estatal, além de grande
grupos e organizações financeiras, isso porque há uma simetria entre a infra-estrutura de rede de
computadores e os sistemas operacionais militar e financeiro. Mas a apropriação da rede por estudantes,
professores universitários, membros de ONGs, movimentos sociais, entre outros, é diferente da
apropriação que ocorre por parte das elites que utilizam as condições técnicas atuais para apropriar,
explorar e depois, como gafanhotos, fugirem para um “nó” qualquer da rede, utilizando a “compressão
espaço-tempo” (Massey, 2000) a seu favor.4
Essas elites são, para utilizar a expressão de Bauman (1999) “extraterritoriais”, pois tem
mobilidade suficiente para escapar das trágicas conseqüências da expropriação de espaços nos mais
remotos cantos do planeta. Por isso não devemos nos enganar. O acesso às possibilidades locomoção
ainda são destinados às elites planetárias. O contato via e-mail, o acesso à internet, são apenas migalhas
diante do grau de mobilidade que é destinado às elites planetárias cada vez mais “desterritorializadas”
(Haesbaert, 2002). No fundo a passagem da “primeira modernidade” para a “segunda modernidade”
identificada por Bech (1999) como a passagem da “topomonogamia” para a “topopoligamia” revela
uma condição própria para a apropriação da mobilidade pelos vencedores da globalização e poucos
outros que ainda se sentem confortáveis na pirâmide social.. A “topopoligamia” é um privilégio de
poucos, uma vez que tem sido cada vez mais difícil atravessar o mediterrâneo ou mesmo o rio Grande
na fronteira norte do México.
Essa mobilidade “diferencial” é extremamente estratificada, não podendo, em nossa opinião,
corresponder aos enunciados generalizantes como: “as elites tem mobilidade e os pobres não”. Entre as
elites móveis e os pobres imóveis existe um hiato tão grande quanto entre os “nós” que interligam
Nova York, Londres e Tókio, as “cidades globais” de Sassen (1999)5. Se a medida de inclusão é estar
conectado nas redes globais, podemos festejar, dado o incremento anual das conexões, a cada dia o
número de excluídos diminui. Mas o acesso à Sociedade em Rede não garante a eliminação da exclusão,
ao contrário, reafirma as exclusões.
A idéia de “nó” na rede é interessante. Mesmo quando Castells (1999:498) define “nó” como “um ponto no qual
uma curva se entrecorta” podemos perceber um forte componente zonal. Se o “nó” (cidade ou lugar qualquer de
estabilidade) pode ser entendido com forte componente zonal-territorial não há motivos para pensar que, em
qualquer perspectiva, o fluxo seja “aistórico”, como insinuou Castells (1999). Nem o “nó” nem as redes são
“aistóricos”.
5 Argumenta-se, como prova evidente da articulação do mundo numa rede informacional em tempo real, a
coexistência das bolsas das três cidades globais, em fusos diferenciados que permite que uma abra seus mercados
enquanto outra fecha. Isso não seria, ao contrário, uma demonstração de que a pretensa virtualidade dos
mercados é apenas mais uma metáfora para explicar a dominação do sistema financeiro em todo o mundo?
Objetivamente essas três cidades estão acordadas ao mesmo tempo?
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Mobilidade e Exclusão Social
O desafio é realmente espantoso: negar aos outros o mesmíssimo direito à
liberdade de movimento que se elogia como a máxima realização do mundo
globalizante e a garantia de sua crescente prosperidade.
Zygmunt Bauman, Globalização, as conseqüências humanas, 84.
Castells (1999c:98) define exclusão social assim:
o processo pelo qual determinados grupos e indivíduos são sistematicamente
impedidos do acesso a posições que lhes permitiriam uma existência autônoma
dentro dos padrões sociais determinados por instituições e valores inseridos em um
dado contexto.
Nesse sentido a mobilidade como exclusão pode ser entendida como imobilidade, incapacidade
de ascender socialmente, via padrões econômicas ou mesmo impossibilidade de expressar sua
individualidade, identidade cultural diante de um modelo econômico perverso ou mesmo instituições
vigilantes. Uma espécie de mobilidade vigiada, controlada, parcial, “resignificada” pelo processo de
reestruturação da Sociedade em Rede. A exclusão social na Sociedade em Rede delimita espaços,
fronteiras. Ao referir-se à esses processos, Castells (1999b:192) escreve:
Esse processo generalizado e multiforme de exclusão social leva à formação do que
chamo, tomando a liberdade de uma metáfora cósmica, de buracos negros do
capitalismo informacional. Referem-se a áreas da sociedade nas quais, do ponto de
vista estatístico, não há escapatória da dor e da destruição infligida no elemento
humano para aqueles que, de uma forma ou de outra, adentram esse cenários
sociais.
Nessa nova cartografia-mundo a exclusão social no espaço urbano, por exemplo, não mais
corresponderia ao acesso a infra-estrutura básica social, como rede de água tratada, moradia, escolas,
enfim, algumas características herdadas do Estado previdenciário. A ausência não seria propriamente
de hospitais, creches, transporte coletivo, mas “de uma infra-estrutura tecnológica básica que nos
permite comunicar, inovar, produzir, consumir e, até mesmo, viver no mundo de hoje” (Castells,
1999c:99). Essa nova exclusão social, resultado da
ordem econômica globalizada, traz a tona a
emergência do “quarto mundo”, não como uma categoria fechada, como o “terceiro mundo”, ou
mesmo o “segundo mundo”. É uma categoria horizontal, presente, poderíamos dizer, em todos os
“outros” mundos. Vejamos a explicação de Castells (1999c:194):
Neste final de milênio, o que costumava ser chamado de Segundo Mundo (o universo
estatista) desintegrou-se, demonstrando-se incapaz de dominar as forças da Era da
Informação. Ao mesmo tempo, o Terceiro Mundo desapareceu enquanto entidade
pertinente, esvaziado de seu significado geopolítico e extraordinariamente diversificado
em termos de desenvolvimento socioeconômico. Não obstante, o Primeiro Mundo
não se transformou no grande universo da mitologia neoliberal. Por que um novo
mundo, o Quarto Mundo surgiu, constituído de inúmeros buracos negros da exclusão
social em todo o planeta. O Quarto Mundo compreende vastas áreas do globo, como
por exemplo boa parte da Africa subsaariana e áreas rurais empobrecidas da América
Latina e Asia. Mas também esta presente em literalmente todas as cidades, nessa nova
geografia das exclusão social. É formado por guetos norte-americanos do centro das
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grandes cidades, enclaves espanhóis criados pela massa de jovens desempregados,
banlieues franceses repletos de norte-africanos, bairros yoseba no Japão e favelas de
megalópoles asiáticas.
O “Quarto Mundo” como expressão da polarização da riqueza emerge como forma de
resistência social ao modelo econômico dominante, principalmente nos Estados Unidos, berço da
revolução informacional. Ao mesmo tempo em que se constituía o Vale do Silício, na década de 1970, a
marginalização e guetização dos habitantes das grandes cidades norte-americanas era a evidência
empírica de que a Sociedade Em Rede já nascera imersa de grandes contradições sociais. Por estranho
que pareça a citação abaixo não retrata a Cidade do México ou mesmo o Rio de Janeiro, mas a situação
dos guetos em algumas das maiores cidades norte-americanas:
As gangues transformaram-se em formas importantes de organização de jovens de
padrões de comportamento. As armas de fogo adquirem, a um só tempo, as funções
de ferramentas de trabalho, sinal de auto-estima e bom motivo para conquistar respeito
dos colegas... As transações econômicas nessas áreas são comumente permeadas pela
economia do crime, como fonte de ocupação e renda, como atividades geradoras de
demanda como a unidade operacional para cobrança de proteção na economia
informal. (Castells, 1999c:169).
Retrato contundente desse “Quarto Mundo” nos Estados Unidos nos é oferecido Loic
Wacquant, no livro As prisões da Miséria. Analisando as relações entre a política neoliberal e a idéia de
“tolerância zero”, o autor classifica o Estado norte americano com “estado penal”. Na realidade, a
produção midiática de repostas à crescente pobreza, guetização e violência urbana na sociedade norteamericana, tem sido vendida como solução para os problemas de segurança pública. Os dados
impressionam. Citando números do ano de 1997, a população carcerária nos Estados Unidos é de
1.785.079, com índice de 648 presos para cada grupo de 100.000 habitantes. Sem dúvida, é maior
população carcerária do mundo. Maior que a população carcerária de toda a Europa. A Inglaterra, por
exemplo, tinha em 1997, 68.124 pessoas encarceradas, a maior população carcerária da Europa.
Segundo Wacquant (2001:84):
Por outro lado, além das penas ditas intermediárias, tais como a prisão domiciliar ou
em um centro disciplinar (boot camp), dos “testes intensivos” e da vigilância telefônica
ou eletrônica (com a ajuda de grampos e outros dispositivos técnicos), a autoridade do
sistema penal se ampliou consideravelmente, graças a proliferação dos bancos de dados
criminais e à decuplicação dos meios e dos pontos de controle à distância que estes
permitem.
São aproximadamente, segundo Wacquant (2001), 5,7 milhões de pessoas vivendo algum tipo
de controle por parte da “justiça” norte-americana. A descrição de Castells (1999c) é semelhante, porém
menos profunda. Tal política de segurança tem um preço e uma cor. Na Califórnia cada preso custa
aproximadamente 22.000 dólares por ano (Wacquant, 2001, um custo maior que o destinado à
educação individual. “Na Califórnia dos anos 90, cerca de quatro em cada dez homens afro-americanos
encontravam-se de alguma forma submetidos a algum tipo de controle criminal” (Castells, 1999c:175).
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É, sem sombra de dúvida, “a criminalização da miséria” (Wacquant, 2001), como resposta aos
problemas estruturais da maior economia do mundo.6
O aprisionamento, enclausuramento, forma mais eficaz de inibir a mobilidade tem sido,
especialmente nos Estados Unidos e também na Europa, a forma de tirar a mobilidade daqueles que
incomodam a ordem social. A “eficácia” de tal modelo não é a mesma, por exemplo, no Brasil, onde
traficantes, no interior das prisões, se conectam com facilidade à “rede global do crime”, ordenando
execuções, comprando, vendendo, distribuindo, armas e drogas. Segundo Castells (1999c:216):
A chave para o sucesso e a expansão do crime global na década de 90 encontra-se na
flexibilidade e versatilidade de sua organização. A formação de redes é o seu modos
operandi, tanto internamente, isto é, em cada uma das organizações criminosas (por
exemplo, a máfia siciliana, o cartel de Cali), como em relação a outras organizações
criminosas.
Tanto a máfia Russa quanto a Chinesa, os narcotraficantes da Colômbia e do Brasil, ou mesmo
a Yakuza japonesa, estão se apropriando das vantagens “locacionais” do capitalismo informacional,
ampliando seu poder de ação, ao mesmo tempo que Estado Nacional e as instituições e as sociedade
locais são tomadas por uma sensação de insegurança absoluta. A “tolerância zero” torna-se apanágio do
liberalismo econômico.
Mas as respostas ao Capitalismo Informacional e à nova ordem global não vem apenas do
crime organizado. Movimentos sociais pululam em diversas partes do planeta, utilizando como infraestrura de contestação as redes informacionais. Castells (1999b) destaca e ao mesmo tempo relaciona
movimentos como os Zapatistas no México, as milícias norte-americanas e a Verdade Suprema, seita
Japonesa. Segundo Castells (1999b:95): “parto do princípio de que todos representam indícios
significativos de novos conflitos sociais, germes de resistência social e, em alguns casos, de
transformação social”. A relação entre os três movimentos, com objetivos, identidades e estratégias
diferentes, nasce da contestação de valores globais, da afirmação ou mesmo a negação da exploração
social (Chiapas), pela afirmação da tradição “patriarcal e federalista”, no caso das milícias norte
americanas. Também, do ponto de vista das estratégias de luta, o acesso à infra-estrutura de
comunicação (internet, fax, mídia etc) e informação, o que aproxima a análise de movimentos tão
distintos.
As novas condições infra-estruturais da Sociedade em Rede garantem por um lado um
aumento dos mecanismos de vigilância e controle, mas por outro aumentam significativamente as
possibilidade de acesso à contra-informações que tem servido de meio de comunicação e integração e
ação à diversos movimentos contra ordem vigente. A ação terrorista em Nova York prova isso. A
comunicação via internet garantida por sua inserção no “ciberespaço” (Levy, 2000) camuflou sua
existência territorial (Haesbaert, 2001) garantindo mobilidade suficiente para organizar um atentado de
O trabalho de Wacquant (2001) aprofunda a questão da cor na política de tolerância zero, tanto nos Estados
Unidos como na Europa. É uma referência fundamental sobre uma das respostas ideológicas mais fortes em
relação a punição da pobreza e da marginalidade.
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tais proporções e depois se refugiar no território (político e natural) Afegão onde acreditavam estarem
protegidos. Tanto quanto a morte, lição pedagógica de G. W. Bush, a imobilidade em Guantanamo
tem sido uma estratégia eficaz. Com isso a mobilidade é utilizada como arma de contestação tanto
quanto repressão. Essa relação pode ser representada pela confrontação do “espaço de fluxos” com os
“espaços de lugares” de Castells (1999, 1999c). Mas é preciso entender que, antes de tudo, a exclusão
diz respeito à negação do espaço de vivência, da produção reprodução da vida, em suas dimensões
culturais, políticas e até mesmo biológicas.
O problema não parece ser o de estar incluído numa infra-estrutura de redes informacionais.
Dispor ou não dessa infra-estrura não demarca o terreno sólido do sofrimento humano. O “espaço de
fluxo” é uma abstração, pois não existe independente dos lugares. Há, sim, uma mobilidade cada vez
maior, diferencial entre grupos de pessoas. Não se trata de uma questão de integrar a África ao
capitalismo informacional. Trata-se, sim, de reconhecer que sua miséria e penúria é resultado histórico
de uma relação desigual entre as nações e dos grupos e elites no interior dessas mesmas nações
preocupadas em pilhar o produto coletivo. Existem conflitos sociais no cerne da questão da exclusão
social7. Visões evolucionistas, especialmente ligadas ao progresso técnico, indicam que, naturalmente,
alguns países ou mesmo regiões estariam progressivamente incluídos num sistema social que criou e
sustentou essa mesma exclusão. Aliás, a idéia de exclusão a partir de padrões institucionais, presente em
Castells (1999c) é contraditória, uma vez que são esses próprios padrões, capitalistas, por assim dizer,
que fomentam a exclusão. Pensando por esse viés fica difícil pensar em projetos de autonomia
alternativos. Por isso ss excluídos continuam no mesmo lugar social que lhes é destinado a séculos:
onde falta água potável, nos lixões, nas palafitas, no sertão do Piauí, na periferia de São Paulo, nos
morros do Rio de Janeiro, nas favelas de Brasília, nas margens do Capibaribe, etc, coincidentemente
nos mesmos lugares carentes da louvada “infra-estrutura informacional” (Castells, 1999b). Por que,
então, entender o acesso às redes como medida da inclusão? Até que ponto as redes informacionais,
como ferramentas básica da mobilidade garantem o acesso à uma globalização autônoma que prime
pela justiça social?
Esse tipo de pensamento, criticado por Baumam (1999), esconde o fato de a exclusão social
agora estar relacionada a processos globais e, portanto, a política de inclusão social deveria empreender
esforços para garantir a integração nesse sistema global. Já que a riqueza vem da “mobilidade”, como
quer Badie (1995) para justificar o seu “fim dos territórios” é preciso entendê-la como medida da
inclusão. Ora, essa mobilidade, como já discutirmos, é “diferencial” (Massey, 2000) e o acesso às redes
não garantem a inclusão, podendo até mesmo aumentar as formas de vigilância e opressão. A
mobilidade da sociedade em rede é expressão da exclusão social constituída e própria da ordem
capitalista. A luta contra a exclusão social é a velha luta, agora renovada, pela mobilidade no interior da
Paris de Baudelaire, da Londres de Dikens e da Nova York de Rudolph Giuliani.
O texto de Viana (2002) apresenta boa contribuição ao analisar os equívocos do conceito de exclusão social na
sociedade capitalista.
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Mobilidades Finais
Enfim Waldirene chegou ao motel. Seu turno foi até as três horas da madrugada. Na portaria,
como sempre, observou com a descrição que a atividade exige casais pagarem, alguns com mais outros
com menos entusiasmos, 40.00 reais por uma permanência de duas horas. É a promoção de terça-feira.
Seu turno acabou. Pega o celular e liga para o moto-taxi. Vai para casa descansar no tempo que lhe
resta. Olha para o celular e suspira aliviada: “o que seria da minha vida sem você...”.
Bibliografia
BADIE, Bertran. O fim dos territórios. Lisboa: Instituto Piaget, 1995.
BAUMAN, Zygmunt. Globalização – as conseqüências humanas. Jorge Zahar Editor, 1999.
BECK, Ulrich. O que é globalização? Equívocos do globalismo. Respostas à globalização. São Paulo: Paz e
Terra, 1999.
DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.
HAESBAERT, Rogério. Os múltiplos territórios do terror. In.: Cibergeo. AGB NACIONAL. 2001.
(www.cibergeo.org/agbnacional/documentos/textoaberto40).
______. Territórios alternativos. São Paulo: Contexto, 2002.
LEVEY, Pierre. Cibercultura. São Paulo: Editora 34, 1999.
MANUEL, Castells. A sociedade em rede. São Paulo: Paz e Terra, 1999.
______. O poder da identidade. São Paulo: Paz e Terra, 1999b.
______. Fim de milênio. São Paulo: Paz e Terra, 1999c.
MASSEY, Doreen. Um sentido global do lugar. In.: Arantes, A . A. O espaço da diferença. São Paulo,
Campinas: Papirus, 2000.
PRADO, José Luiz Aidar. O enredo globalizande de Castells. In.: PRADO, José Luiz & SOVIK, Liv. (Org.).
Lugar global e lugar nenhum: ensaios sobre a democracia e globalização. São Paulo: Hacker Editores,
2001.
SASSEN, Saskia. As cidades na economia mundial. São Paulo: Nobel, 1999.
WACQUANT, Loic. As prisões da miséria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
VIANA, Nildo. Exclusão social ou lumpemproletarização? Goiânia: 2002. Inédito.
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