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CASTELLS, Manuel. A sociedade da informação: economia, sociedade e cultura. Vol. I: a
sociedade em rede. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2006. The Rise of Network Society. Vol. 1,
The Information Age: Economy, Society and Culture, 1996.
Prof. Dr. Dennison de Oliveira (DEHIS/SCHLA/UFPR)
O sociólogo espanhol Manuel Castells é bastante conhecido do público brasileiro
pelo menos desde o final dos anos 1970 quando suas principais obras, dedicadas ao estudo
das questões urbanas sob uma perspectiva marxista de inspiração estruturalista, começaram a
serem por aqui distribuídas ou publicadas1. Em tempos recentes a repercussão dos seus
trabalhos tendeu a aumentar, quando suas preocupações começaram a se voltar para as
questões afetas à cultura e a sociedade multimidiática e informacional. Paralelamente à
mudança na delimitação de novos objetos, seus trabalhos tenderam cada vez mais a serem
identificados como uma sociologia histórica, na qual a interpretação das determinantes da
organização da vida em
sociedade se faz em estreita correlação com o processo de
transformação do modo de produção capitalista ao longo do tempo.
O marco de maior importância desta reorientação é, certamente, a coleção "A Era da
Informação", originalmente publicada em três volumes entre os anos de 1996 e 1998. Neste
trabalho a ênfase é na interpretação da sociedade pós-industrial, também denominada de
sociedade do conhecimento, sociedade globalizada ou, como prefere o autor, a sociedade em
rede. O trabalho se refere ao contexto de rápido desenvolvimento tecnológico a partir dos
anos 1970, voltado para a criação de novas tecnologias nas áreas de microeletrônica,
computação, telecomunicações, radiodifusão, optoeletrônica e engenharia genética e sua
relação com os processos históricos de “flexibilização” e
globalização das relações
capitalistas de produção.2
1
CASTELLS, M. A questão urbana. Rio de janeiro, Paz e Terra, 1985.
____, Cidade, democracia e socialismo, Rio de janeiro, Paz e Terra, 1986.
____, Problemas de investigação em sociologia. Lisboa, Presença, 1989.
____, Movimentos sociais urbanos, Madri, Siglo XXI, 1980.
Suas considerações sobre os nexos entre a evolução tecnológica e as transformações
nas sociedades do capitalismo avançado constituem o cerne de sua obra, de enorme extensão,
volume, alcance e densidade. Para os propósitos deste texto gostaria, contudo, de destacar um
aspecto que, apesar de ser de menor importância no conjunto de argumentos do autor,
considero da mais alta relevância para os que se dedicam aos estudos históricos: a
transformação do conceito de tempo nas sociedades capitalistas contemporâneas.
É sabido que sempre houve estreita relação entre a sociedade e a forma pela qual ela
vive e mensura o tempo. A substituição do tempo da natureza pelo tempo cronológico, por
exemplo, foi um processo longo, cheio de contradições, e de fundamental importância para a
superação da sociedade rural pela urbana e da economia agrícola pela industrial. Num outro
nível de abstração, seria o caso de se citar também as inovações impostas pelo Taylorismo e
pelo Fordismo ao mundo do trabalho, igualmente cheias de implicações sobre a forma pela
qual se vivia e media o tempo.
Na sociedade que se organiza em rede, pautada pela integração cada vez maior dos
processos econômicos, culturais e sociais através das novas tecnologias de informação e
comunicação, o autor defende que está se operando uma transformação fundamental na
forma pela qual vivemos e mensuramos o tempo, que ele denomina de “tempo intemporal”:
“Esse tempo linear, irreversível, mensurável e previsível está
sendo fragmentado na sociedade em rede, em um movimento
de extraordinária importância histórica... é a mistura de tempos
para criar um universo eterno que não se expande sozinho, mas
que se mantém por si só, não cíclico, mas aleatório, não
recursivo, mas incursor: tempo intemporal, utilizando a
tecnologia para fugir dos contextos de sua existência e para
apropriar, de maneira seletiva, qualquer valor que cada
contexto possa oferecer ao presente eterno... (verifica-se) a
aceleração de “praticamente tudo” nas nossas sociedades, num
empenho incansável de comprimir o tempo em todos os
domínios da atividade humana. Comprimir o o tempo até o
limite equivale a fazer com que a sequência temporal, e por
conseguinte o tempo, desapareça.”3
A partir daí o autor analisa evidências empíricas relativas às esferas de atividades
onde estas transformação se realiza de forma mais evidente: o sistema financeiro global,
2
CASTELLS, Manuel. A sociedade da informação: economia, sociedade e cultura. Vol. I: a
sociedade em rede. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2006. p. 67.
3
_____, p. 526.
tempo de serviço, os ciclos vitais, morte, e mídia. No exame de todos estes domínios fica
evidente que a atual sociedade operou uma ruptura fundamental com a forma pela qual se
vivia e mensurava o tempo.
As transformações operadas no sistema financeiro são bem conhecidas. O fim da
convertibilidade do dólar em 1971 estabelecida pelos acordos de Breton Woods em 1944
levou à uma significativa instabilidade e volatilidade nos mercados de câmbio, abrindo
inúmeras oportunidades de especulação lucrativa. A partir do primeiro choque do petróleo
(1973) o sistema financeiro em nível mundial foi tomado pelo “excesso de liquidez”,
resultado da necessidade de se reciclar os petrodólares que inundavam os maiores bancos da
Europa, EUA e Japão. Simultaneamente, foi operada uma enorme revolução tecnológica nos
meios de coordenação e comunicação do mercado financeiro, resultado da aplicação das
comunicações via satélite, telex e telefone às transações financeiras.
O resultado final dessas transformações foi a criação de um gigantesco e único
mercado financeiro global, operando com referência à três importantes praças bancárias
(Londres, Nova Iorque, Tókio) que, em seu conjunto, fazem funcionar transações decididas
instantaneamente vinte e quatro horas por dia. O surgimento no início dos anos 1970 de um
mercado de serviços financeiros e de mercadorias futuro também realçam aquilo que o autor
denomina de “libertação do capital em relação ao tempo”. Enfim, já há algum tempo o
capitalismo financeiro vive um “cassino global” no qual o lucro se realiza nas escolhas de
oportunidades de negócios que podem existir
tanto no aproveitamento dos segundos
(“ciranda financeira”) quanto dos anos (“mercado de futuros”).
No que se refere ao tempo de serviço, as transformações operadas pela flexibilização
das relações de trabalho, também realçam o contraste entre as concepções de tempo vigentes
à época anterior a globalização e a atual. Por um lado, contratos de tempo de trabalho com
jornadas fixas geralmente de oito horas, que previam estabilidade no emprego, descanso
previsto e remunerado, tornaram-se cada vez mais raros. Em seu lugar, surgiram empregos de
tempo parcial, caracterizados fundamentalmente pela flexibilização do tempo de trabalho, os
quais tanto podem estender quanto encurtar o horário de serviço. Em casos extremos tem-se
também a abolição pura e simples da contratação de trabalhadores e a sua substituição, pura e
simples, por funcionários terceirizados, estagiários ou empregados informais. Enfim, à
desagregação do processo produtivo em escala global corresponde à diversificação do tempo
e horário de trabalho.
Mas talvez as mudanças mais impactantes tenham se dado nas práticas que se referem
aos ciclos vitais. As enormes mudanças operadas pela transição demográfica (da pirâmide
etária de base larga à coluna demográfica) associada ao processo de modernização parecem
comparativamente pouco significativas face aos processos já firmemente estabelecidos por
todo mundo contemporâneo:
“A sociedade em rede caracteriza-se pela ruptura do ritmo,
biológico ou social, associado ao conceito de um ciclo de vida...
caminhamos para a eliminação definitiva dos nítidos limites do
fundamento biológico contido no conceito de ciclo de vida.
Pessoas de sessenta anos com bebês, filhos de diferentes
casamentos com irmãos trinta anos mais velhos sem faixa etária
intermediária, homens e mulheres que decidem procriar com ou
sem cópula, em qualquer idade, avós dando à luz a bebê
originado no óvulo da sua filha, bebês póstumos e uma lacuna
crescente entre as instituições sociais e as práticas reprodutivas
(filhos fora do casamento representam cerca de 50% dos
nascimentos na Suécia e, aproximadamente, 40% na França).”4
Para além disso, o autor ainda menciona a tendência à se ampliar o conceito de
“terceira idade” através da exclusão precoce de boa parte da mão de obra do mercado de
trabalho antes mesmo dos cinqüenta anos. Poder-se-ia mencionar também a eternização da
infância e da adolescência pelo retardamento cada vez maior do momento de ingresso dos
que desfrutam da condição de estudantes
nesse mesmo mercado de trabalho, e assim
sucessivamente.
Ainda em estreita relação com estes fenômenos relacionados ao ciclo de vida o autor
menciona outras dimensões da transformação nas nossas concepções de vivência e medida do
tempo, como aquelas afetas ao retardamento do envelhecimento e à negação da morte. Por
um lado, nossa sociedade mantém e cultiva toda uma cultura de culto ao corpo focada no
combate ao envelhecimento. A indústria da estética pessoal, as cirurgias plásticas, e toda
uma gama de novidades tecnológicas, nutricionais e comportamentais são lançadas e
divulgadas a cada ano, sempre trazendo em si embutidas a promessa de evitar ou adiar a
velhice.
Pode-se acrescentar aqui que, como corolário dessa cultura, os comportamentos
sociais relativos à nossa concepção de tempo (social e biológico)
4
Idem, p. 543.
também serão
decisivamente afetados. O exemplo mais visível é o prolongamento da vida sexual de pessoas
que, noutras circunstâncias, não mais a exerceriam, confinadas que estariam à cuidar de seus
netos e bisnetos, por um lado. Por outro, verifica-se a adesão destas mesmas pessoas à
estilos de vida e concepções estéticas que, em tempos não muito recuados, seriam encarados
como incompatíveis com sua faixa etária, como se vê na generalização à todas as faixas
etárias da prática do piercing e da tatuagem.
Simultaneamente, o autor confere importância também àquilo que ele denomina de
“negação da morte”, ou seja, a progressiva proscrição dos rituais relacionados à morte e o
correspondente sentimento de luto. Proporção cada vez maior de óbitos tem privilegiado o
espaço impessoal e sanitarizado dos hospitais para se realizar. Morrer em casa entre seus
parentes e amigos tem se tornado uma prática cada vez mais rara. O que predomina é o uso
do hospital, geralmente da unidades de terapia intensiva, como espaço
cada vez mais
freqüente para a ocorrência do ato de morrer. A própria idéia do luto está em visível declínio,
o que coloca como questão o impacto sobre a função social e os benefícios individuais do
ritual e do sentimento à ele associados.
Finalmente, o autor interpreta o impacto da mídia sobre nossas concepções de tempo.
Aqui o destaque é para a idéia do “tempo virtual”, marcado tanto pela simultaneidade quanto
pela intemporalidade. A simultaneidade se manifesta na cobertura jornalística em tempo
real, no qual o acontecer da história pode ser acompanhado no momento mesmo em que o
eventos acontecem.
Essa simultaneidade se verifica tanto nos meios tradicionais de comunicação de
massa quanto na Internet. Nela diferentes pessoas em espaços distintos podem manter uma
permanente troca de informações e experiências com um grau de coordenação em tempo real
que, noutros tempos, seria impossível. A proliferação de web cams, sites de conversação
(salas de chat), sites de divulgação de filmes (como o Youtube) ou fotos (como o Fotolog)
permitem essa simultaneidade de trocas de experiências em tempo real que, ao anular o
lapso temporal antes inerente ao processo comunicativo, tanto comprime quanto anula o
tempo. Assim, o tempo torna-se – no dizer do autor - intemporal.
Essa intemporalidade, contudo, não pode ser encarada como uma dimensão isolada
mas parece ser mesmo inerente ao conceito do hipertexto, que é a base de toda Internet.
Afinal de contas, a internet fornece acesso à informação de acordo com os desejos e
interesses do consumidor. Vivemos uma conjuntura na qual praticamente todos os produtos
culturais estão ou estarão disponíveis na internet, conferindo ao tempo em que vivemos uma
dimensão de eternidade, onde toda seqüência passada e futura de criações culturais estará ao
alcance de um clic no mouse. Por outro lado, esse tempo ao mesmo tempo em que é terno é
também intemporal ou, talvez, efêmero, já que estes mesmos produtos poderão ser acessados
(aliás, já são) de forma totalmente independente do contexto histórico específico no qual
foram criados, rompendo-se desta forma os nexos entre o contexto histórico de utilização e
criação.
Para além destas considerações, o autor enumera e interpreta diversas outras
manifestações da forma pela qual o padrão usual que usamos par viver e medir o tempo vem
sendo decisivamente transformado pela sociedade da informação. Trata-se, enfim, de uma
contribuição intelectual da mais alta importância para o entendimento de como nossas
formas de viver e pensar a história tem sido transformadas nos últimos tempos e como se
transformarão ainda mais no futuro imediato.
Curitiba, PR, 28 de outubro de 2007.
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