A ILUSÃO CHAMADA AJUSTE FISCAL Gerson LIMA1 1. INTRODUÇÃO A política monetária implica em endividamento do governo e, em conseqüência, em gastos com juros. Por outro lado, a política monetária não gera receita alguma para financiar seus gastos com juros. Por isso, a teoria monetária propõe que suas despesas sejam absorvidas pelo orçamento fiscal, sendo assim pagas, ou com o aumento da receita tributária normal, ou com o corte de gastos fiscais em qualquer área, inclusive a social. Esta combinação de aumento de receitas e corte de gastos do governo é o ajuste fiscal, hoje uma imposição legal amparada na Lei de Responsabilidade Fiscal. Este artigo retoma o tema do ajuste fiscal com o objetivo de avaliar um aspecto que não é abordado nos livros-texto de macroeconomia, qual seja, o fato de que, na prática, o ajuste fiscal pode ser uma impossibilidade real. O texto desenvolve em detalhes o tratamento matemático simplificado adotado na literatura para calcular o tamanho do ajuste fiscal que é necessário para fazer com que a dívida pública pare de crescer. Neste tratamento simplificado, as contas que se fazem são em relação ao PIB, como se fosse todo o país a praticar o corte de gastos. Entretanto, é o orçamento da União o responsável maior pela geração do ajuste fiscal, e ele corresponde a uma parte relativamente modesta do PIB. Feitas as contas em relação à receita tributária do governo federal, a impossibilidade prática do ajuste fiscal teórico salta aos olhos pois, nos últimos vinte anos, ele situou-se, na média, em 50% do total de impostos arrecadados. O texto mostra ainda que, sendo impossível o ajuste fiscal, a emissão de moeda torna-se uma conseqüência, matematicamente inevitável, da própria política monetária. Portanto, a conclusão geral é que, na sua tentativa teórica de controlar a oferta de moeda, a política monetária torna-se, na prática, uma importante fonte de emissão de moeda. O item 2 trata da natureza do déficit do governo, enquanto que o conceito de ajuste fiscal é apresentado no capítulo 3. No item 4 desenvolve-se o método usual de cálculo do ajuste fiscal. O capítulo 5 enfatiza um aspecto pouco comentado do método, qual seja, o de que a emissão de moeda é uma solução matemática inerente à impossibilidade de se obter o ajuste fiscal requerido. Em outros termos, a não-emissão de moeda não pode ser uma premissa, pois ela depende do sucesso prático do ajuste fiscal, que poderá ou não ocorrer. Um último item traz algumas reflexões sobre o tema do ajuste fiscal. 2. O DÉFICIT DO GOVERNO O governo tem dois tipos de gastos. Em primeiro lugar está o gasto de natureza fiscal, assim denominado por ser o instrumento da política fiscal, cujo objetivo é o 1 PUCPR – Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Este trabalho foi apresentado no XV Congresso Brasileiro de Economistas, organizado pelo Conselho Regional de Economia do Distrito Federal, Brasília, 10 a 13 de setembro de 2003. aumento do emprego através da expansão da demanda agregada e da produção. O gasto fiscal é composto de quatro tipos de despesas não-financeiras: 1) investimentos, 2) pessoal e encargos, 3) subsídios à atividade econômica e 4) transferências às famílias por assistência e previdência. Em segundo lugar está o gasto puramente financeiro associado ao pagamento de juros da dívida pública. Coerente com esta classificação de gastos, definem-se dois tipos de déficit do governo. O primeiro é o déficit fiscal, ou primário, dado pela diferença entre o total da receita do governo e a soma dos gastos fiscais. O segundo é o déficit nominal, ou total, dado pela diferença entre a receita total do governo e o gasto total, isto é o gasto fiscal mais o gasto com juros. Seria de se esperar que o governo fosse "prudente" ao gerar um déficit, definindo-se prudência pela compatibilidade do déficit com outros objetivos macroeconômicos da política do governo, como o controle da inflação, o incentivo ao investimento privado, a credibilidade externa, etc (DAVIS, 1992, p. 24). Mais ainda, o gasto correspondente a este déficit deveria ser suficientemente produtivo, de forma a gerar receita futura para cobrir o serviço da dívida. Assim, se o governo apresenta um déficit porque está fazendo política fiscal investindo numa certa área socialmente prioritária, o problema, se existisse, seria de menor importância. Se, entretanto, parte relevante do déficit estiver associada ao pagamento de juros, é pouco provável que se esteja tratando de um déficit que pudesse ser qualificado como produtivo - e tampouco prudente. O gráfico a seguir apresenta o gasto com juros feito pelo conjunto do governo em seus três níveis, federal, estadual e municipal, medindo-se este gasto como percentagem da receita total do governo. Este gráfico evidencia que os juros sempre foram um componente importante dos gastos públicos, apesar dos planos econômicos tentados. GASTO DO GOVERNO COM JUROS PORCENTAGEM DA RECEITA 160 140 120 100 80 60 40 20 98 96 94 92 90 88 86 84 82 80 78 76 74 72 70 0 O universo econômico pode ser visto como uma composição de apenas três esferas de atividades: o setor privado, o governo e o exterior. O setor privado é formado pelas famílias, que fazem poupança, e pelas empresas, que realizam investimentos. A diferença entre o quanto as famílias poupam e o quanto as empresas investem é o “excedente de poupança” do setor privado, que pode ser positivo ou negativo. Em termos teóricos das 2 contas nacionais, é contabilmente igual a zero a soma do resultado total do governo, do excedente da poupança do setor privado e do saldo em transações correntes com o exterior. Na prática, o saldo em transações correntes do Brasil é pouco relevante quando comparado com o resultado contábil do governo e o excedente de poupança. Desta forma, quando o governo tem um superávit como, por exemplo, na década de 1970 no Brasil, ele pode transferir recursos para o setor privado que, com isso, poderá investir mais do que os seus recursos próprios, ou seja, o excedente de poupança pode ser negativo. Vice versa, quando o governo tem um déficit, necessariamente o setor privado tem que ter um superávit, isto é, o excedente de poupança precisa ser positivo. Assim, caso o governo tenha um déficit, qualquer que seja a causa, parte da poupança das famílias será desviada do seu destino normal - o financiamento da formação de capital produtivo da sociedade – para compensar o déficit público. 3. O AJUSTE FISCAL Os recursos passam do setor público para o setor privado, num sentido ou no outro, através do mercado financeiro: aquele que tem resultado positivo aplica seus recursos no mercado financeiro e aquele que tem resultado negativo toma estes recursos emprestados no mercado financeiro. Para tanto, o tomador de recursos financeiros, governo ou setor privado, emite títulos de reconhecimento de dívida – uma espécie de cheque pré-datado - o que significa o compromisso de se resgatarem estes títulos em data futura, e pagar juros. Entretanto, o governo tem um diferencial a seu favor, pois ele pode cobrir o seu déficit emitindo um título especial que não paga juros, qual seja, o dinheiro. Formalmente, o déficit nominal do governo, composto do déficit primário (D) e do pagamento de juros, é igual à emissão de moeda (dM) mais o volume de títulos da dívida pública emitidos (dB): (D + i B) = (dM + dB) (1) onde D é o déficit primário do governo, dado pela diferença entre os gastos fiscais (nãofinanceiros) e a receita total, B é o montante de dívida pública interna, e i é a taxa de juros nominal dos títulos da dívida. Por outro lado, dB mede a variação do estoque da dívida no período, ou seja, a emissão menos os resgates de títulos da dívida interna, enquanto que dM é a emissão líquida de moeda. No setor privado a situação é semelhante, porém não é possível emitir moeda. A expressão (1) é a restrição orçamentária do governo, uma identidade contábil que mostra que o déficit nominal deverá ser financiado por uma certa combinação da emissão de moeda dM e de títulos da dívida dB. Nesta expressão, dB é o nível mínimo necessário para financiar o déficit; na prática nada impede que, em função da política monetária, a emissão de títulos seja maior do que este mínimo. Neste contexto, o argumento tradicional da teoria monetária é o de que a emissão de títulos é preferível, ou até mesmo impositiva, pois assim evitar-se-ia a emissão de moeda e, portanto, impedir-se-ia, sem qualquer custo para a sociedade, que os preços subissem. Os proponentes deste argumento monetário levam na devida conta o fato de que a recomendação de se emitir títulos ao invés de moeda só faz sentido se estiverem assegurados os recursos orçamentários adequados e suficientes para, no momento certo, resgatar o título. Se tal garantia não puder ser dada, a emissão de moeda não mais será 3 uma opção, mas sim uma imposição. O princípio é o de que o governo tem que ter recursos financeiros para pagar os seus gastos, consubstanciando assim a regra popular de que o governo "só gasta o que arrecada". Baseada neste princípio, a prática de emitir títulos não apresentaria efeitos indesejados porque assume-se, como pressuposto teórico, que o governo deve apresentar sempre um superávit primário suficiente (igual ao déficit D, mas com o sinal trocado para indicar um “déficit negativo”, isto é, um superávit) para pagar os juros da dívida (indicados por i B), quaisquer que sejam a causa da dívida (B), a taxa de juros (i) e o montante destes juros. Nos termos da expressão 1, este princípio monetarista implica em que sempre aconteceria a igualdade: -D=iB Se, num certo período de tempo, não houver condições estruturais para se obter este superávit (de valor –D), o governo deverá para tanto implantar a reforma constitucional que for necessária, ou um certo ajuste fiscal, apesar do efeito recessivo deste ajuste. Admite-se tradicionalmente, como hipótese indispensável, que o ajuste teoricamente calculado pode sempre ser alcançado na prática. Ou seja, supõe-se que a natureza dos homens e das coisas, ao saber da existência de uma solução matemática para o problema, deixará o seu curso e seguirá este modelo teórico. O ajuste fiscal compõe-se de quatro medidas básicas: 1. cortar gastos com a prestação de serviços públicos como a saúde, a educação, a segurança, etc; 2. aumentar as alíquotas dos impostos antigos e criar impostos novos; 3. privatizar os ativos da sociedade, em especial as empresas estatais lucrativas, pois ninguém se interessa por adquirir empresas deficitárias. 4. privatizar serviços que o governo antes prestava à população, como por exemplo a manutenção das estradas. A sociedade continua pagando impostos e agora é obrigada a pagar de novo pelo serviço que antes já estava pago; Existe, com relação à privatização de serviços, um processo interessante. Nota-se que foi, e continua sendo, seguida uma estratégia de justificar a medida através da deterioração consciente do serviço público. Com uma queda de qualidade do serviço, as pessoas são induzidas a buscar o serviço oferecido por empresas privadas. Este fenômeno foi observado no caso da privatização das estradas, quando, depois de deixar que as rodovias chegassem a ponto de calamidade, “justificou-se” a concessão de exploração do serviço de manutenção. A população passou a pagar pedágio sem ter seus impostos reduzidos. E achou “bom”, porque assim conseguiu ter estradas. Ou melhor, conseguiu ter algumas estradas, pois as não-privatizadas continuam em estado de calamidade. Esta estratégia parece clara também nos casos da assistência médica e da educação. O contínuo corte de investimentos nestas áreas tem feito as famílias de renda menos achatada buscarem os planos de saúde particulares e as escolas privadas, deixando de freqüentar os hospitais do governo e as escolas públicas. Nestes casos, contudo, é pouco provável que esta estratégica privatizante consiga ter sucesso sem maiores traumas, pois a maioria da população não tem renda para pagar hospitais e escolas particulares. Em conseqüência, cai o nível de qualificação profissional do brasileiro e reduz a sua 4 capacidade de trabalho, ao tempo em que aumenta o custo das empresas com a saúde e o treinamento de seus funcionários. Mais ainda, mesmo em tempos em que não tenha sido implantado o ajuste fiscal, é usual na teoria monetária defender-se a idéia de que ainda é preferível emitir títulos, sob o argumento de que eles continuam evitando, se bem que agora não mais com a desejada eficiência, a emissão de moeda. Em outros termos, a emissão de títulos quando não há recursos orçamentários para o pagamento dos juros respectivos ainda seria indispensável porque, imagina-se, assim se evitaria a hiperinflação. Neste contexto, LAL observa (1993, p. 6) que a teoria monetária tem adotado sistematicamente o princípio de que o governo sempre pode e deve aumentar a receita tributária, e ou cortar gastos fiscais, em montante suficiente para pagar os juros da dívida. Note-se que o ajuste fiscal é uma variável exógena. O ajuste fiscal só pode ser feito a partir de decisões autônomas do governo, ele não é uma decorrência natural do endividamento feito em nome da política monetária. A teoria monetária considera que o ajuste fiscal é um complemento normal da política monetária. Em outros termos, a política fiscal deixa de existir por si mesma e passa a ser apenas uma coadjuvante da política monetária, uma coadjuvante que tem como finalidade única providenciar recursos para pagar os juros da política monetária. Segundo este enfoque dos autores monetaristas, o ajuste fiscal é uma necessidade teórica. Além disso, eles supõem que, na prática, o ajuste fiscal pode sempre ser alcançado, qualquer que seja o sacrifício imposto ao contribuinte e à população em geral. 4. CÁLCULO DO AJUSTE FISCAL REQUERIDO Os objetivos deste tópico são mostrar como se deduz o ajuste fiscal requerido para eliminar o déficit nominal do governo e sugerir a sua inviabilidade no mundo real. Para começar, observa-se que a emissão de um título implica no aumento imediato da dívida. Então, para que o crescimento da dívida não seja explosivo, recomenda-se estabelecer para ela um limite em termos do produto interno bruto nominal. Este limite varia de caso a caso, e fica particularmente evidente, até mesmo para a teoria monetária, quando a rolagem da dívida impõe algumas restrições sobre a administração prática da política monetária (BALIÑO, 1994). Trata-se, pois, de uma análise dinâmica do comportamento da razão dívida/PIB. Dividindo toda a expressão (1) pelo produto interno bruto nominal (identificado por Y) tem-se: (D/Y + i B/Y) = (dM/Y + dB/Y) (d + i b) = (dM/Y + dB/Y) (2) onde d (igual a D/Y) é o déficit primário como proporção (não percentual) do PIB e b = B/Y é a dívida interna em relação ao PIB, ou seja, a razão dívida/PIB. O que se busca agora são as condições matemáticas necessárias para que b, a razão dívida/PIB, pare de crescer, ou melhor, fique estabilizada. Em termos dinâmicos, o que se procura é o ponto no qual o diferencial da razão dívida/PIB (db) seja zero. Como a dívida (B) e o PIB (Y) são variáveis, o diferencial db é calculado pela expressão: 5 db = (Y dB – B dY)/Y2 que se transforma em: db = dB/Y – (B/Y) (dY/Y) e finalmente em: db = dB/Y - b (dY/Y) Observando que o último termo (dY/Y) é a taxa de crescimento do PIB nominal e chamando esta taxa de y, pode-se reescrever a expressão acima de forma a obter-se: db = dB/Y - b y (3) Retomando e rearranjando a expressão (2) pode-se escrever: dB/Y = d + i b - m onde m (igual a dM/Y) é a expansão da moeda (dM) como proporção do PIB. Substituindo (dB/Y), dado por esta expressão, na equação (3), obtém-se que a variação da dívida pública como proporção do PIB será dada por: db = d + i b - m - b y Reordenando: db = d + b (i - y) - m Lembrando que a taxa de juros real (r) é igual à taxa de juros nominal (i) menos a inflação, e que a taxa de crescimento do PIB real (g) é igual à taxa de crescimento do PIB nominal (y) menos a inflação, elas podem ser expressas, respectivamente, por: r = (i - p) g = (y - p) onde p é a taxa de inflação. Substituindo na expressão anterior tem-se que: db = d + b (r - g) - m Conclui-se então que, para que a razão dívida/PIB pare de crescer, isto é, para que a emissão líquida de títulos (db) seja zero, o déficit primário (d) terá necessariamente que ser negativo, isto é, terá que ser de fato um superávit primário, dado por: d= - b (r - g) + m Assim, o superávit primário SP que assegura a estabilidade dinâmica da dívida é: SP = b (r - g) - m (4) Como a teoria monetária parte do princípio de que a expansão de moeda m é puramente inflacionária e por todos os motivos indesejada, a questão da estabilidade da razão dívida/PIB a longo prazo fica supostamente resolvida assumindo-se teoricamente que, em princípio, m é zero e de que o superávit primário expresso por: AF = b (r - g) (5) será, de alguma forma, ou de qualquer forma, obtido. Este resultado significa que, desde que o superávit primário dado pela expressão (5) seja alcançado, a dívida estará dinamicamente estabilizada e o pagamento dos juros da dívida poderá ser feito com 6 recursos fiscais de forma não inflacionária; com isto, o governo não pressionaria a taxa de juros r na busca de recursos para cobrir seu déficit operacional e a economia poderia crescer à taxa g. Seguindo o enfoque teórico tradicional, toda a questão se resume em obter o superávit AF dado pela expressão (5). Visto do ângulo monetarista, a razão dívida/PIB só pode explodir se a política fiscal for conduzida de modo irresponsável e não gerar o ajuste fiscal requerido pela teoria monetária para pagar juros da dívida pública. 5. AJUSTE FISCAL INSUFICIENTE E EMISSÃO DE MOEDA No gráfico abaixo apresenta-se a estimativa, baseada na expressão (5) acima, do ajuste fiscal AF teoricamente requerido e o superávit primário efetivamente obtido pelo governo a nível consolidado (federal, estadual e municipal), no período de 1980 a 1998, e medida em termos de porcentagem do produto interno bruto. AJUSTE FISCAL E RESULTADO PRIMÁRIO DO TESOURO NACIONAL 25 % DO PIB AJUSTE FISCAL 20 15 10 5 0 80 -5 81 82 83 84 85 86 87 88 89 90 91 92 93 94 95 96 97 98 RESULTADO PRIMÁRIO Observa-se neste gráfico que o ajuste requerido, ou “necessário", tem sido sistematicamente superior ao superávit de fato verificado as contas nacionais. Seria de se esperar, porém, que os planos econômicos tradicionais e heterodoxos implantados neste período fizessem com que o resultado operacional fosse, em alguns anos, pelo menos igual ao ajuste AF requerido pela política econômica. A evidência estatística indica que, desde 1980, quando então entrou para o cenário econômico nacional, o ajuste fiscal teórico esperado pela política econômica não tem sido, por alguma razão, viabilizado na prática. Talvez isto se dê em virtude do ajuste requerido ser de montante elevado, montante este cuja importância fica obscurecida pelo método de se elaborar e discutir as estimativas em termos de porcentagem do PIB. O esforço fiscal a ser feito na prática ficaria melhor aquilatado se o ajuste fiscal requerido (AF) fosse medido em termos da receita tributária do governo federal. O governo federal é o responsável maior pela dívida pública mobiliária, que tem sido feita em nome da política monetária, oficialmente justificada por sua suposta capacidade de controlar a inflação. O gráfico abaixo mostra 7 esta estimativa em termos percentuais da receita do Tesouro Nacional, podendo-se observar que, com muita freqüência, a reforma fiscal exigida ultrapassaria o patamar dos cinqüenta por cento da receita total do governo da União. AJUSTE FISCAL (% DA RECEITA DO TESOURO) 300 250 200 150 100 50 0 80 81 82 83 84 85 86 87 88 89 90 91 92 93 94 95 96 97 98 A discrepância entre a demanda teórica e a possibilidade prática fica assim bastante clara quando se toma por base apenas o governo federal, pois a sua receita tributária é da ordem de grandeza de 13% do PIB. Com isto, um ajuste fiscal proposto de, por exemplo, 4% do PIB, implicaria num aumento de receita ou queda de gastos fiscais de aproximadamente 30% da receita federal. Tudo que se pode dizer deste ajuste é que ele, como a história tem mostrado, é inviável. Admitindo-se que, nas situações potencialmente problemáticas, a taxa de juros real r seja maior do que a taxa de crescimento da economia g, se não for gerado o superávit AF, "tem-se inevitavelmente uma explosão da razão dívida/PIB, quando então haveria apenas duas soluções possíveis: a insolvência (do governo) ou a monetização da dívida" (ROSSI, 1987, p. 370). Na hipótese em que seja atingido esta situação de inevitável monetização, seja ela permanente ou intermitente, a política monetária perderia sua eventual efetividade, pois o estoque de moeda cresceria em grande parte de modo autônomo. Em outros termos, para manter-se a estabilidade dinâmica da dívida, a emissão de moeda só será evitada se for obtido o superávit primário indicado por (5), ou seja, m só será zero se esta condição for cumprida. A não obtenção do superávit fiscal primário requerido, AF, implicará necessariamente na emissão de novos títulos da dívida e/ou na emissão de moeda. Se a opção for pelos títulos, estará criado o compromisso de pagar juros numa certa data futura. Se até aquela data futura não tiver havido um aumento suficiente no superávit primário, através do aumento da receita tributária e ou do corte dos gastos fiscais, o déficit operacional será ainda maior e, naturalmente, a dívida não será estável como pretendido. 8 Aliás, mesmo partindo-se de uma situação de superávit fiscal, se a emissão de títulos não for controlada e limitada, a dívida (em valores absolutos e em relação ao PIB) continuará crescendo, até um ponto em que os respectivos juros serão de um montante tão elevado que será virtualmente impossível gerar um superávit primário suficiente para pagá-los. A partir do ponto onde não é mais viável a obtenção prática do ajuste fiscal AF calculado em termos teóricos, para que a dívida pare de crescer a emissão de moeda torna-se uma conseqüência matematicamente inevitável. De fato, a expressão (4) pode ser invertida para mostrar m de modo explícito: m = [b (r - g)] - SP Ou seja, sendo o ajuste fiscal impossível, se o plano econômico pretender assegurar a estabilidade dinâmica da dívida, ou se o mercado impuser restrições ao seu crescimento, a emissão de moeda será igual à diferença entre o ajuste fiscal AF requerido pela teoria e o superávit fiscal "bruto" SP: m = AF – SP Como o superávit primário SP é muitas vezes menor que o ajuste fiscal requerido AF, resulta que, na prática a emissão de moeda cresce com a dívida pública b. Quanto maior a dívida, maior será o estoque de moeda. Seria irônico, se não fosse um desastre para o contribuinte e o desempregado, observar que quando mais se faz dívida para retirar moeda de circulação, mais moeda é emitida. Alguma coisa como jogar gasolina para apagar o fogo. 5. COMENTÁRIOS FINAIS Este texto apresenta o conceito de ajuste fiscal e desenvolve seu cálculo através de um tratamento matemático simplificado. O objetivo é mostrar que o ajuste fiscal, fácil de ser calculado em teoria, é uma impossibilidade na vida prática. O trabalho não explora a idéia de que a facilidade de se calcular o ajuste fiscal teórico se deve à adoção de premissas monetaristas que, passando por simplificadoras, podem ser, na realidade, potencialmente ilusórias. Por exemplo, admite-se neste cálculo o princípio de que a oferta agregada é vertical, em um nível que é dado exogenamente e que não depende do gasto fiscal. Contudo, a oferta agregada é ascendente (LIMA, 1999) e a produção cresce com a expansão da demanda agregada causada pelos gastos fiscais. Assim sendo, o ajuste fiscal é recessivo, causa a contração do PIB real e, em conseqüência, a redução da arrecadação tributária. Ou seja, o corte de gastos ontem causa uma queda nos impostos e reduz o tamanho do ajuste fiscal obtido hoje. Isto cria um processo matemático explosivo que inviabiliza, teoricamente, o ajuste fiscal. A impossibilidade de se gerar um ajuste fiscal suficiente faz com que o déficit nominal seja, há muitos anos, uma decorrência direta do pagamento anterior de juros da dívida interna, formando-se assim um processo auto-alimentado e crescente. A política monetária tem sido impotente para conter este processo, pois a emissão de moeda é uma inevitável e incontrolável conseqüência da emissão de títulos da dívida. Mais ainda, a emissão de títulos do Banco Central com o objetivo de reduzir a liquidez tem de fato contribuído para aumentar a criação de moeda. A colocação de títulos do Tesouro Nacional e do Banco Central provoca a alta da taxa de juros real de mercado, o que faz aumentar ainda mais o déficit nominal do governo e a emissão de moeda. A eliminação 9 do processo explosivo da dívida e da emissão de moeda exige, portanto, que se pare de emitir novos títulos da dívida pública interna. Os dados disponíveis mostram que o gasto com os juros da dívida pública interna supera, há mais de vinte anos, a capacidade de pagamento do Tesouro Nacional. Neste período, o poder executivo esgotou a sua capacidade de criar poupança fazendo cortes nos gastos do governo com investimentos e aumentando os impostos pagos pela população, mas os recursos ainda eram poucos para se pagar tanto juro. Por isso, na década de 1990 o executivo começou a encaminhar ao Congresso Nacional algumas propostas de “reformas constitucionais”. Ainda que tocando em alguns problemas estruturais reais, o objetivo destas reformas é apenas o de ampliar o ajuste fiscal exigido pela área monetária. Como o ajuste fiscal é um processo infinito, sempre surgirão novas propostas “reformistas”, atacando-se o contribuinte através de reformas tributárias e, por exemplo, cortando-se “privilégios” de aposentados através de reformas da previdência. O gasto com juros continuará sendo considerado “um sagrado dever”, sendo pago com receita tributária desviada da previdência e de outras finalidades sociais. Tendo gasto uma grande parte da sua receita pagando juros, ao governo restará um orçamento deficitário, portanto incapaz de atender às necessidades do contribuinte e de promover o crescimento do país. Mesmo assim, o orçamento fiscal e o contribuinte estarão sujeitos a novos cortes, a critério e discrição da política monetária. É um mistério o modo como a teoria monetária consegue impor-se por tanto tempo sem que ninguém note que são estas reformas que causam desemprego e queda da renda da população. Se não fosse uma tragédia, seria irônico observar que a política monetária, na sua tentativa de evitar a emissão de moeda, leva a uma emissão de moeda ainda maior. REFERÊNCIAS BALIÑO, T. J. "Coordination of Monetary and Public Debt Management And Central Bank Independence: Institutional Issues". Seminário "Macroeconomic Structural and Social Policies for Growth" promovido pelo Fundo Monetário Internacional, Banco Central do Brasil e Pontifícia Universidade Católica, Mangaratiba (Rio de Janeiro), março de 1994. DAVIS, M. (editor), "Macroeconomic Adjustment: Policy Instruments and Issues". International Monetary Fund Institute, julho de 1992. LAL, D. "Notes on Money, Debt and Alternative Monetary Regimes for Brazil". Development Policy Group, World Bank, janeiro de 1993. LIMA, G. “Um Modelo Geral de Oferta e Demanda Agregadas”. Texto de Discussão do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Econômico da Universidade Federal do Paraná, CMDE/UFPR, Texto nº 04/99, 1999. http://www.economia.ufpr.br/publica/textos/ 1999/txt0499%20Gerson.rtf, acesso em 15/12/2002. ROSSI, J. W. "A Dívida Pública no Brasil e a Aritmética da Instabilidade". Pesquisa e Planejamento Econômico, vol. 17, no. 2, agosto de 1987. Curitiba, abril de 2003. 10