ajuste fiscal - Macroambiente

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A ILUSÃO CHAMADA AJUSTE FISCAL
Gerson LIMA1
1. INTRODUÇÃO
A política monetária implica em endividamento do governo e, em conseqüência, em
gastos com juros. Por outro lado, a política monetária não gera receita alguma para
financiar seus gastos com juros. Por isso, a teoria monetária propõe que suas despesas
sejam absorvidas pelo orçamento fiscal, sendo assim pagas, ou com o aumento da receita
tributária normal, ou com o corte de gastos fiscais em qualquer área, inclusive a social.
Esta combinação de aumento de receitas e corte de gastos do governo é o ajuste fiscal,
hoje uma imposição legal amparada na Lei de Responsabilidade Fiscal.
Este artigo retoma o tema do ajuste fiscal com o objetivo de avaliar um aspecto que
não é abordado nos livros-texto de macroeconomia, qual seja, o fato de que, na prática, o
ajuste fiscal pode ser uma impossibilidade real. O texto desenvolve em detalhes o
tratamento matemático simplificado adotado na literatura para calcular o tamanho do
ajuste fiscal que é necessário para fazer com que a dívida pública pare de crescer. Neste
tratamento simplificado, as contas que se fazem são em relação ao PIB, como se fosse
todo o país a praticar o corte de gastos.
Entretanto, é o orçamento da União o responsável maior pela geração do ajuste
fiscal, e ele corresponde a uma parte relativamente modesta do PIB. Feitas as contas em
relação à receita tributária do governo federal, a impossibilidade prática do ajuste fiscal
teórico salta aos olhos pois, nos últimos vinte anos, ele situou-se, na média, em 50% do
total de impostos arrecadados. O texto mostra ainda que, sendo impossível o ajuste
fiscal, a emissão de moeda torna-se uma conseqüência, matematicamente inevitável, da
própria política monetária. Portanto, a conclusão geral é que, na sua tentativa teórica de
controlar a oferta de moeda, a política monetária torna-se, na prática, uma importante
fonte de emissão de moeda.
O item 2 trata da natureza do déficit do governo, enquanto que o conceito de ajuste
fiscal é apresentado no capítulo 3. No item 4 desenvolve-se o método usual de cálculo do
ajuste fiscal. O capítulo 5 enfatiza um aspecto pouco comentado do método, qual seja, o
de que a emissão de moeda é uma solução matemática inerente à impossibilidade de se
obter o ajuste fiscal requerido. Em outros termos, a não-emissão de moeda não pode ser
uma premissa, pois ela depende do sucesso prático do ajuste fiscal, que poderá ou não
ocorrer. Um último item traz algumas reflexões sobre o tema do ajuste fiscal.
2. O DÉFICIT DO GOVERNO
O governo tem dois tipos de gastos. Em primeiro lugar está o gasto de natureza
fiscal, assim denominado por ser o instrumento da política fiscal, cujo objetivo é o
1
PUCPR – Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Este trabalho foi apresentado no XV
Congresso Brasileiro de Economistas, organizado pelo Conselho Regional de Economia do Distrito
Federal, Brasília, 10 a 13 de setembro de 2003.
aumento do emprego através da expansão da demanda agregada e da produção. O gasto
fiscal é composto de quatro tipos de despesas não-financeiras: 1) investimentos, 2)
pessoal e encargos, 3) subsídios à atividade econômica e 4) transferências às famílias por
assistência e previdência. Em segundo lugar está o gasto puramente financeiro associado
ao pagamento de juros da dívida pública. Coerente com esta classificação de gastos,
definem-se dois tipos de déficit do governo. O primeiro é o déficit fiscal, ou primário,
dado pela diferença entre o total da receita do governo e a soma dos gastos fiscais. O
segundo é o déficit nominal, ou total, dado pela diferença entre a receita total do governo
e o gasto total, isto é o gasto fiscal mais o gasto com juros.
Seria de se esperar que o governo fosse "prudente" ao gerar um déficit, definindo-se
prudência pela compatibilidade do déficit com outros objetivos macroeconômicos da
política do governo, como o controle da inflação, o incentivo ao investimento privado, a
credibilidade externa, etc (DAVIS, 1992, p. 24). Mais ainda, o gasto correspondente a
este déficit deveria ser suficientemente produtivo, de forma a gerar receita futura para
cobrir o serviço da dívida. Assim, se o governo apresenta um déficit porque está fazendo
política fiscal investindo numa certa área socialmente prioritária, o problema, se existisse,
seria de menor importância. Se, entretanto, parte relevante do déficit estiver associada
ao pagamento de juros, é pouco provável que se esteja tratando de um déficit que
pudesse ser qualificado como produtivo - e tampouco prudente. O gráfico a seguir
apresenta o gasto com juros feito pelo conjunto do governo em seus três níveis, federal,
estadual e municipal, medindo-se este gasto como percentagem da receita total do
governo. Este gráfico evidencia que os juros sempre foram um componente importante
dos gastos públicos, apesar dos planos econômicos tentados.
GASTO DO GOVERNO COM JUROS
PORCENTAGEM DA RECEITA
160
140
120
100
80
60
40
20
98
96
94
92
90
88
86
84
82
80
78
76
74
72
70
0
O universo econômico pode ser visto como uma composição de apenas três esferas
de atividades: o setor privado, o governo e o exterior. O setor privado é formado pelas
famílias, que fazem poupança, e pelas empresas, que realizam investimentos. A diferença
entre o quanto as famílias poupam e o quanto as empresas investem é o “excedente de
poupança” do setor privado, que pode ser positivo ou negativo. Em termos teóricos das
2
contas nacionais, é contabilmente igual a zero a soma do resultado total do governo, do
excedente da poupança do setor privado e do saldo em transações correntes com o
exterior. Na prática, o saldo em transações correntes do Brasil é pouco relevante quando
comparado com o resultado contábil do governo e o excedente de poupança.
Desta forma, quando o governo tem um superávit como, por exemplo, na década de
1970 no Brasil, ele pode transferir recursos para o setor privado que, com isso, poderá
investir mais do que os seus recursos próprios, ou seja, o excedente de poupança pode
ser negativo. Vice versa, quando o governo tem um déficit, necessariamente o setor
privado tem que ter um superávit, isto é, o excedente de poupança precisa ser positivo.
Assim, caso o governo tenha um déficit, qualquer que seja a causa, parte da poupança
das famílias será desviada do seu destino normal - o financiamento da formação de
capital produtivo da sociedade – para compensar o déficit público.
3. O AJUSTE FISCAL
Os recursos passam do setor público para o setor privado, num sentido ou no outro,
através do mercado financeiro: aquele que tem resultado positivo aplica seus recursos no
mercado
financeiro
e
aquele
que
tem
resultado
negativo
toma
estes
recursos
emprestados no mercado financeiro. Para tanto, o tomador de recursos financeiros,
governo ou setor privado, emite títulos de reconhecimento de dívida – uma espécie de
cheque pré-datado - o que significa o compromisso de se resgatarem estes títulos em
data futura, e pagar juros. Entretanto, o governo tem um diferencial a seu favor, pois ele
pode cobrir o seu déficit emitindo um título especial que não paga juros, qual seja, o
dinheiro. Formalmente, o déficit nominal do governo, composto do déficit primário (D) e
do pagamento de juros, é igual à emissão de moeda (dM) mais o volume de títulos da
dívida pública emitidos (dB):
(D + i B) = (dM + dB)
(1)
onde D é o déficit primário do governo, dado pela diferença entre os gastos fiscais (nãofinanceiros) e a receita total, B é o montante de dívida pública interna, e i é a taxa de
juros nominal dos títulos da dívida. Por outro lado, dB mede a variação do estoque da
dívida no período, ou seja, a emissão menos os resgates de títulos da dívida interna,
enquanto que dM é a emissão líquida de moeda. No setor privado a situação é
semelhante, porém não é possível emitir moeda.
A expressão (1) é a restrição orçamentária do governo, uma identidade contábil que
mostra que o déficit nominal deverá ser financiado por uma certa combinação da emissão
de moeda dM e de títulos da dívida dB. Nesta expressão, dB é o nível mínimo necessário
para financiar o déficit; na prática nada impede que, em função da política monetária, a
emissão de títulos seja maior do que este mínimo. Neste contexto, o argumento
tradicional da teoria monetária é o de que a emissão de títulos é preferível, ou até mesmo
impositiva, pois assim evitar-se-ia a emissão de moeda e, portanto, impedir-se-ia, sem
qualquer custo para a sociedade, que os preços subissem.
Os proponentes deste argumento monetário levam na devida conta o fato de que a
recomendação de se emitir títulos ao invés de moeda só faz sentido se estiverem
assegurados os recursos orçamentários adequados e suficientes para, no momento certo,
resgatar o título. Se tal garantia não puder ser dada, a emissão de moeda não mais será
3
uma opção, mas sim uma imposição. O princípio é o de que o governo tem que ter
recursos financeiros para pagar os seus gastos, consubstanciando assim a regra popular
de que o governo "só gasta o que arrecada". Baseada neste princípio, a prática de emitir
títulos não apresentaria efeitos indesejados porque assume-se, como pressuposto teórico,
que o governo deve apresentar sempre um superávit primário suficiente (igual ao déficit
D, mas com o sinal trocado para indicar um “déficit negativo”, isto é, um superávit) para
pagar os juros da dívida (indicados por i B), quaisquer que sejam a causa da dívida (B), a
taxa de juros (i) e o montante destes juros. Nos termos da expressão 1, este princípio
monetarista implica em que sempre aconteceria a igualdade:
-D=iB
Se, num certo período de tempo, não houver condições estruturais para se obter este
superávit (de valor –D), o governo deverá para tanto implantar a reforma constitucional
que for necessária, ou um certo ajuste fiscal, apesar do efeito recessivo deste ajuste.
Admite-se tradicionalmente, como hipótese indispensável, que o ajuste teoricamente
calculado pode sempre ser alcançado na prática. Ou seja, supõe-se que a natureza dos
homens e das coisas, ao saber da existência de uma solução matemática para o
problema, deixará o seu curso e seguirá este modelo teórico. O ajuste fiscal compõe-se
de quatro medidas básicas:
1. cortar gastos com a prestação de serviços públicos como a saúde, a educação, a
segurança, etc;
2. aumentar as alíquotas dos impostos antigos e criar impostos novos;
3. privatizar os ativos da sociedade, em especial as empresas estatais lucrativas,
pois ninguém se interessa por adquirir empresas deficitárias.
4. privatizar serviços que o governo antes prestava à população, como por exemplo
a manutenção das estradas. A sociedade continua pagando impostos e agora é
obrigada a pagar de novo pelo serviço que antes já estava pago;
Existe, com relação à privatização de serviços, um processo interessante. Nota-se
que foi, e continua sendo, seguida uma estratégia de justificar a medida através da
deterioração consciente do serviço público. Com uma queda de qualidade do serviço, as
pessoas são induzidas a buscar o serviço oferecido por empresas privadas. Este fenômeno
foi observado no caso da privatização das estradas, quando, depois de deixar que as
rodovias chegassem a ponto de calamidade, “justificou-se” a concessão de exploração do
serviço de manutenção. A população passou a pagar pedágio sem ter seus impostos
reduzidos. E achou “bom”, porque assim conseguiu ter estradas. Ou melhor, conseguiu
ter algumas estradas, pois as não-privatizadas continuam em estado de calamidade.
Esta estratégia parece clara também nos casos da assistência médica e da educação.
O contínuo corte de investimentos nestas áreas tem feito as famílias de renda menos
achatada buscarem os planos de saúde particulares e as escolas privadas, deixando de
freqüentar os hospitais do governo e as escolas públicas. Nestes casos, contudo, é pouco
provável que esta estratégica privatizante consiga ter sucesso sem maiores traumas, pois
a maioria da população não tem renda para pagar hospitais e escolas particulares. Em
conseqüência, cai o nível de qualificação profissional do brasileiro e reduz a sua
4
capacidade de trabalho, ao tempo em que aumenta o custo das empresas com a saúde e
o treinamento de seus funcionários.
Mais ainda, mesmo em tempos em que não tenha sido implantado o ajuste fiscal, é
usual na teoria monetária defender-se a idéia de que ainda é preferível emitir títulos, sob
o argumento de que eles continuam evitando, se bem que agora não mais com a
desejada eficiência, a emissão de moeda. Em outros termos, a emissão de títulos quando
não há recursos orçamentários para o pagamento dos juros respectivos ainda seria
indispensável porque, imagina-se, assim se evitaria a hiperinflação. Neste contexto, LAL
observa (1993, p. 6) que a teoria monetária tem adotado sistematicamente o princípio de
que o governo sempre pode e deve aumentar a receita tributária, e ou cortar gastos
fiscais, em montante suficiente para pagar os juros da dívida.
Note-se que o ajuste fiscal é uma variável exógena. O ajuste fiscal só pode ser feito a
partir de decisões autônomas do governo, ele não é uma decorrência natural do
endividamento feito em nome da política monetária. A teoria monetária considera que o
ajuste fiscal é um complemento normal da política monetária. Em outros termos, a
política fiscal deixa de existir por si mesma e passa a ser apenas uma coadjuvante da
política monetária, uma coadjuvante que tem como finalidade única providenciar recursos
para pagar os juros da política monetária. Segundo este enfoque dos autores
monetaristas, o ajuste fiscal é uma necessidade teórica. Além disso, eles supõem que, na
prática, o ajuste fiscal pode sempre ser alcançado, qualquer que seja o sacrifício imposto
ao contribuinte e à população em geral.
4. CÁLCULO DO AJUSTE FISCAL REQUERIDO
Os objetivos deste tópico são mostrar como se deduz o ajuste fiscal requerido para
eliminar o déficit nominal do governo e sugerir a sua inviabilidade no mundo real. Para
começar, observa-se que a emissão de um título implica no aumento imediato da dívida.
Então, para que o crescimento da dívida não seja explosivo, recomenda-se estabelecer
para ela um limite em termos do produto interno bruto nominal. Este limite varia de caso
a caso, e fica particularmente evidente, até mesmo para a teoria monetária, quando a
rolagem da dívida impõe algumas restrições sobre a administração prática da política
monetária (BALIÑO, 1994). Trata-se, pois, de uma análise dinâmica do comportamento
da razão dívida/PIB. Dividindo toda a expressão (1) pelo produto interno bruto nominal
(identificado por Y) tem-se:
(D/Y + i B/Y) = (dM/Y + dB/Y)
(d + i b) = (dM/Y + dB/Y)
(2)
onde d (igual a D/Y) é o déficit primário como proporção (não percentual) do PIB e
b = B/Y
é a dívida interna em relação ao PIB, ou seja, a razão dívida/PIB. O que se busca agora
são as condições matemáticas necessárias para que b, a razão dívida/PIB, pare de
crescer, ou melhor, fique estabilizada. Em termos dinâmicos, o que se procura é o ponto
no qual o diferencial da razão dívida/PIB (db) seja zero. Como a dívida (B) e o PIB (Y) são
variáveis, o diferencial db é calculado pela expressão:
5
db = (Y dB – B dY)/Y2
que se transforma em:
db = dB/Y – (B/Y) (dY/Y)
e finalmente em:
db = dB/Y - b (dY/Y)
Observando que o último termo (dY/Y) é a taxa de crescimento do PIB nominal e
chamando esta taxa de y, pode-se reescrever a expressão acima de forma a obter-se:
db = dB/Y - b y
(3)
Retomando e rearranjando a expressão (2) pode-se escrever:
dB/Y = d + i b - m
onde m (igual a dM/Y) é a expansão da moeda (dM) como proporção do PIB. Substituindo
(dB/Y), dado por esta expressão, na equação (3), obtém-se que a variação da dívida
pública como proporção do PIB será dada por:
db = d + i b - m - b y
Reordenando:
db = d + b (i - y) - m
Lembrando que a taxa de juros real (r) é igual à taxa de juros nominal (i) menos a
inflação, e que a taxa de crescimento do PIB real (g) é igual à taxa de crescimento do PIB
nominal (y) menos a inflação, elas podem ser expressas, respectivamente, por:
r = (i - p)
g = (y - p)
onde p é a taxa de inflação. Substituindo na expressão anterior tem-se que:
db = d + b (r - g) - m
Conclui-se então que, para que a razão dívida/PIB pare de crescer, isto é, para que a
emissão líquida de títulos (db) seja zero, o déficit primário (d) terá necessariamente que
ser negativo, isto é, terá que ser de fato um superávit primário, dado por:
d=
- b (r - g) + m
Assim, o superávit primário SP que assegura a estabilidade dinâmica da dívida é:
SP = b (r - g) - m
(4)
Como a teoria monetária parte do princípio de que a expansão de moeda m é
puramente inflacionária e por todos os motivos indesejada, a questão da estabilidade da
razão dívida/PIB a longo prazo fica supostamente resolvida assumindo-se teoricamente
que, em princípio, m é zero e de que o superávit primário expresso por:
AF = b (r - g)
(5)
será, de alguma forma, ou de qualquer forma, obtido. Este resultado significa que, desde
que o superávit primário dado pela expressão (5) seja alcançado, a dívida estará
dinamicamente estabilizada e o pagamento dos juros da dívida poderá ser feito com
6
recursos fiscais de forma não inflacionária; com isto, o governo não pressionaria a taxa
de juros r na busca de recursos para cobrir seu déficit operacional e a economia poderia
crescer à taxa g. Seguindo o enfoque teórico tradicional, toda a questão se resume em
obter o superávit AF dado pela expressão (5). Visto do ângulo monetarista, a razão
dívida/PIB só pode explodir se a política fiscal for conduzida de modo irresponsável e não
gerar o ajuste fiscal requerido pela teoria monetária para pagar juros da dívida pública.
5. AJUSTE FISCAL INSUFICIENTE E EMISSÃO DE MOEDA
No gráfico abaixo apresenta-se a estimativa, baseada na expressão (5) acima, do
ajuste fiscal AF teoricamente requerido e o superávit primário efetivamente obtido pelo
governo a nível consolidado (federal, estadual e municipal), no período de 1980 a 1998, e
medida em termos de porcentagem do produto interno bruto.
AJUSTE FISCAL
E RESULTADO PRIMÁRIO DO TESOURO NACIONAL
25
% DO PIB
AJUSTE FISCAL
20
15
10
5
0
80
-5
81
82
83
84
85
86
87
88
89
90
91
92
93
94
95
96
97
98
RESULTADO PRIMÁRIO
Observa-se neste gráfico que o ajuste requerido, ou “necessário", tem sido
sistematicamente superior ao superávit de fato verificado as contas nacionais. Seria de se
esperar, porém, que os planos econômicos tradicionais e heterodoxos implantados neste
período fizessem com que o resultado operacional fosse, em alguns anos, pelo menos
igual ao ajuste AF requerido pela política econômica. A evidência estatística indica que,
desde 1980, quando então entrou para o cenário econômico nacional, o ajuste fiscal
teórico esperado pela política econômica não tem sido, por alguma razão, viabilizado na
prática.
Talvez isto se dê em virtude do ajuste requerido ser de montante elevado, montante
este cuja importância fica obscurecida pelo método de se elaborar e discutir as
estimativas em termos de porcentagem do PIB. O esforço fiscal a ser feito na prática
ficaria melhor aquilatado se o ajuste fiscal requerido (AF) fosse medido em termos da
receita tributária do governo federal. O governo federal é o responsável maior pela dívida
pública mobiliária, que tem sido feita em nome da política monetária, oficialmente
justificada por sua suposta capacidade de controlar a inflação. O gráfico abaixo mostra
7
esta estimativa em termos percentuais da receita do Tesouro Nacional, podendo-se
observar que, com muita freqüência, a reforma fiscal exigida ultrapassaria o patamar dos
cinqüenta por cento da receita total do governo da União.
AJUSTE FISCAL
(% DA RECEITA DO TESOURO)
300
250
200
150
100
50
0
80
81
82
83
84
85
86
87
88
89
90
91
92
93
94
95
96
97
98
A discrepância entre a demanda teórica e a possibilidade prática fica assim bastante
clara quando se toma por base apenas o governo federal, pois a sua receita tributária é
da ordem de grandeza de 13% do PIB. Com isto, um ajuste fiscal proposto de, por
exemplo, 4% do PIB, implicaria num aumento de receita ou queda de gastos fiscais de
aproximadamente 30% da receita federal. Tudo que se pode dizer deste ajuste é que ele,
como a história tem mostrado, é inviável.
Admitindo-se que, nas situações potencialmente problemáticas, a taxa de juros real r
seja maior do que a taxa de crescimento da economia g, se não for gerado o superávit
AF, "tem-se inevitavelmente uma explosão da razão dívida/PIB, quando então haveria
apenas duas soluções possíveis: a insolvência (do governo) ou a monetização da dívida"
(ROSSI, 1987, p. 370). Na hipótese em que seja atingido esta situação de inevitável
monetização, seja ela permanente ou intermitente, a política monetária perderia sua
eventual efetividade, pois o estoque de moeda cresceria em grande parte de modo
autônomo.
Em outros termos, para manter-se a estabilidade dinâmica da dívida, a emissão de
moeda só será evitada se for obtido o superávit primário indicado por (5), ou seja, m só
será zero se esta condição for cumprida. A não obtenção do superávit fiscal primário
requerido, AF, implicará necessariamente na emissão de novos títulos da dívida e/ou na
emissão de moeda. Se a opção for pelos títulos, estará criado o compromisso de pagar
juros numa certa data futura. Se até aquela data futura não tiver havido um aumento
suficiente no superávit primário, através do aumento da receita tributária e ou do corte
dos gastos fiscais, o déficit operacional será ainda maior e, naturalmente, a dívida não
será estável como pretendido.
8
Aliás, mesmo partindo-se de uma situação de superávit fiscal, se a emissão de títulos
não for controlada e limitada, a dívida (em valores absolutos e em relação ao PIB)
continuará crescendo, até um ponto em que os respectivos juros serão de um montante
tão elevado que será virtualmente impossível gerar um superávit primário suficiente para
pagá-los. A partir do ponto onde não é mais viável a obtenção prática do ajuste fiscal AF
calculado em termos teóricos, para que a dívida pare de crescer a emissão de moeda
torna-se uma conseqüência matematicamente inevitável. De fato, a expressão (4) pode
ser invertida para mostrar m de modo explícito:
m = [b (r - g)] - SP
Ou seja, sendo o ajuste fiscal impossível, se o plano econômico pretender assegurar
a estabilidade dinâmica da dívida, ou se o mercado impuser restrições ao seu
crescimento, a emissão de moeda será igual à diferença entre o ajuste fiscal AF requerido
pela teoria e o superávit fiscal "bruto" SP:
m = AF – SP
Como o superávit primário SP é muitas vezes menor que o ajuste fiscal requerido AF,
resulta que, na prática a emissão de moeda cresce com a dívida pública b. Quanto maior
a dívida, maior será o estoque de moeda. Seria irônico, se não fosse um desastre para o
contribuinte e o desempregado, observar que quando mais se faz dívida para retirar
moeda de circulação, mais moeda é emitida. Alguma coisa como jogar gasolina para
apagar o fogo.
5. COMENTÁRIOS FINAIS
Este texto apresenta o conceito de ajuste fiscal e desenvolve seu cálculo através de
um tratamento matemático simplificado. O objetivo é mostrar que o ajuste fiscal, fácil de
ser calculado em teoria, é uma impossibilidade na vida prática. O trabalho não explora a
idéia de que a facilidade de se calcular o ajuste fiscal teórico se deve à adoção de
premissas monetaristas que, passando por simplificadoras, podem ser, na realidade,
potencialmente ilusórias. Por exemplo, admite-se neste cálculo o princípio de que a oferta
agregada é vertical, em um nível que é dado exogenamente e que não depende do gasto
fiscal. Contudo, a oferta agregada é ascendente (LIMA, 1999) e a produção cresce com a
expansão da demanda agregada causada pelos gastos fiscais. Assim sendo, o ajuste fiscal
é recessivo, causa a contração do PIB real e, em conseqüência, a redução da arrecadação
tributária. Ou seja, o corte de gastos ontem causa uma queda nos impostos e reduz o
tamanho do ajuste fiscal obtido hoje. Isto cria um processo matemático explosivo que
inviabiliza, teoricamente, o ajuste fiscal.
A impossibilidade de se gerar um ajuste fiscal suficiente faz com que o déficit
nominal seja, há muitos anos, uma decorrência direta do pagamento anterior de juros da
dívida interna, formando-se assim um processo auto-alimentado e crescente. A política
monetária tem sido impotente para conter este processo, pois a emissão de moeda é uma
inevitável e incontrolável conseqüência da emissão de títulos da dívida. Mais ainda, a
emissão de títulos do Banco Central com o objetivo de reduzir a liquidez tem de fato
contribuído para aumentar a criação de moeda. A colocação de títulos do Tesouro
Nacional e do Banco Central provoca a alta da taxa de juros real de mercado, o que faz
aumentar ainda mais o déficit nominal do governo e a emissão de moeda. A eliminação
9
do processo explosivo da dívida e da emissão de moeda exige, portanto, que se pare de
emitir novos títulos da dívida pública interna.
Os dados disponíveis mostram que o gasto com os juros da dívida pública interna
supera, há mais de vinte anos, a capacidade de pagamento do Tesouro Nacional. Neste
período, o poder executivo esgotou a sua capacidade de criar poupança fazendo cortes
nos gastos do governo com investimentos e aumentando os impostos pagos pela
população, mas os recursos ainda eram poucos para se pagar tanto juro. Por isso, na
década de 1990 o executivo começou a encaminhar ao Congresso Nacional algumas
propostas de “reformas constitucionais”. Ainda que tocando em alguns problemas
estruturais reais, o objetivo destas reformas é apenas o de ampliar o ajuste fiscal exigido
pela área monetária.
Como o ajuste fiscal é um processo infinito, sempre surgirão novas propostas
“reformistas”, atacando-se o contribuinte através de reformas tributárias e, por exemplo,
cortando-se “privilégios” de aposentados através de reformas da previdência. O gasto
com juros continuará sendo considerado “um sagrado dever”, sendo pago com receita
tributária desviada da previdência e de outras finalidades sociais. Tendo gasto uma
grande parte da sua receita pagando juros, ao governo restará um orçamento deficitário,
portanto incapaz de atender às necessidades do contribuinte e de promover o
crescimento do país. Mesmo assim, o orçamento fiscal e o contribuinte estarão sujeitos a
novos cortes, a critério e discrição da política monetária. É um mistério o modo como a
teoria monetária consegue impor-se por tanto tempo sem que ninguém note que são
estas reformas que causam desemprego e queda da renda da população. Se não fosse
uma tragédia, seria irônico observar que a política monetária, na sua tentativa de evitar a
emissão de moeda, leva a uma emissão de moeda ainda maior.
REFERÊNCIAS
BALIÑO, T. J. "Coordination of Monetary and Public Debt Management And Central Bank
Independence: Institutional Issues". Seminário "Macroeconomic Structural and Social
Policies for Growth" promovido pelo Fundo Monetário Internacional, Banco Central do
Brasil e Pontifícia Universidade Católica, Mangaratiba (Rio de Janeiro), março de 1994.
DAVIS, M. (editor), "Macroeconomic Adjustment: Policy Instruments and Issues".
International Monetary Fund Institute, julho de 1992.
LAL, D. "Notes on Money, Debt and Alternative Monetary Regimes for Brazil".
Development Policy Group, World Bank, janeiro de 1993.
LIMA, G. “Um Modelo Geral de Oferta e Demanda Agregadas”. Texto de Discussão do
Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Econômico da Universidade Federal do
Paraná, CMDE/UFPR, Texto nº 04/99, 1999. http://www.economia.ufpr.br/publica/textos/
1999/txt0499%20Gerson.rtf, acesso em 15/12/2002.
ROSSI, J. W. "A Dívida Pública no Brasil e a Aritmética da Instabilidade". Pesquisa e
Planejamento Econômico, vol. 17, no. 2, agosto de 1987.
Curitiba, abril de 2003.
10
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