Da Judicialização do Acesso à Saúde

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UNIVERSIDADE CATÓLICA DE PELOTAS
ESCOLA DE DIREITO
NÚCLEO DE INTEGRAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS
NIDHUS
Francisco Viegas Neves da Silva
CONSIDERAÇÕES SOBRE A JUDICIALIZAÇÃO DO ACESSO À
SAÚDE
Pelotas
2005
1
Disponível em:
http://www.ajuris.org.br/dhumanos/mhonrosa5.doc
Francisco Viegas Neves da Silva
CONSIDERAÇÕES SOBRE A JUDICIALIZAÇÃO DO ACESSO À
SAÚDE
Monografia
submetida
à
Comissão
Julgadora do Prêmio Ajuris – Direito
Humanos.
2
Pelotas
2005
“E quero que saibas vossa reverência que eu sou um cavaleiro oriundo da
Mancha chamado dom Quixote, e é meu oficio e exercício andar pelo mundo
endireitando tortos e desfazendo agravos.”
3
Miguel de Cervantes – Dom Quixote
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 05
CAPÍTULO I – DIREITO À SAÚDE ....................................................................... 06
1.1
Evolução Dogmática do Direito Sanitário ..................................................... 06
1.2
Posicionamentos Jurisprudenciais ................................................................. 08
CAPÍTULO II – O CUSTO DOS DIREITOS .......................................................... 11
2.1
Das Conseqüências do Acordo Trips ............................................................ 14
CAPÍTULO III - JUDICIALIZAÇÃO DO ACESSO À SAÚDE ............................ 16
3.1
Legitimação Social do Judiciário .................................................................. 16
3.2
Da Inadequação Procedimental ......................... ........................................... 18
3.3
Micro-justiça x Macro-justiça ....................................................................... 19
3.4
Teoria de Robert Alexy ................................................................................. 21
CONCLUSÃO .......................................................................................................... 22
REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 24
ANEXO - NOTAS DE FIM DE TEXTO ................................................................. 26
4
INTRODUÇÃO
Neste estudo será enfrentado o tema dos Direitos Humanos, em especial
o Direito à Saúde, que vem instigando doutrinadores e operadores do direito a
embarcar nesta odisséia de como torná-lo efetivo, em razão de ser um bem jurídico
intrinsecamente ligado à dignidade da pessoa humana.
Este direito social, encontra-se concebido dentro do contexto em que
todo indivíduo possui meios (ações) para reivindicar a tutela do Estado, uma vez que
se achar violado ou ameaçado de lesão.
O primeiro capítulo abordará, de forma sintética, a evolução dogmática
do direito à saúde, sendo posteriormente analisados alguns posicionamentos
jurisprudenciais referentes ao reconhecimento deste direito como (in)oponível ao
Estado, a fim de que este realize prestações (positivas ou negativas), com o intuito de
salvaguardar o referido direito constitucional.
No segundo capítulo será tratada a questão de que todos os direitos
possuem custos, e dentro de um sistema em que impera a escassez, emerge a
problemática de que modo concretizar este direito fundamental. Ainda, de forma
sucinta será apontada a temática da elevação das despesas estatais tendo em vista a
assinatura do acordo sobre Aspectos de Direito de Propriedade Intelectual
Relacionados ao Comércio.
Enquanto no terceiro capítulo, analisar-se-á o modo de proteção da
saúde dentro de nosso sistema jurídico que, como tecnologia para tomada de decisões,
deve ser um instrumento capaz de controlar as complicadas finalidades de longo prazo,
possuindo como preocupação central o que acontecerá no futuro.
Dentro dessa ótica, pretende-se ainda constatar possíveis repercussões
do modus operandi do sistema ao tutelarem individualmente direitos “escassos”, em
uma concepção de micro-justiça x macro-justiça, possuindo como prumo a busca por
alternativas para uma tutela mais abrangente e concreta do relevante direito sanitário.
5
CAPÍTULO I - DIREITO À SAÚDE
1.1 Evolução Dogmática do Direito Sanitário
No campo doutrinário existia controvérsia a respeito da possibilidade do
cidadão reivindicar de imediato do Estado, a proteção à saúde, conforme previsto no
artigo 196 da Constituição Federal, ou tratar-se-ia tal dispositivo de uma norma
programática, carecedora de legislação integrativa da vontade do constituinte.
A origem do posicionamento que defende a inaplicabilidade de plano
da garantia à saúde, remonta à Declaração dos Direitos do Homem (1789) em que
houve o reconhecimento dos direitos fundamentais e sociais.
Todavia, sua finalidade, na época, consistiu meramente em enunciá-los
como inerentes ao ser humano. Para corroborar tal assertiva basta observar a
denominação dada ao referido documento, sobre o qual se especula haver surgido em
decorrência de que a comunidade da época, ao redigi-lo, possuía consciência de que os
propugnados ali constantes careceriam de efetividade, em razão da realidade social em
que se encontravam, cingindo-se portanto a declarar a existência dos direitos
fundamentais sem, no entanto, criarem institutos a fim de efetivá-los de forma
universal e igualitária.
Entretanto, na atualidade, inexistiria sentido não fazermos valer normas
que procuram proteger o maior bem que possuímos, a vida, haja vista que o direito à
saúde é conexo à dignidade da pessoa humana. Tendo em vista tal vinculação e sendo
conferida equiparação a cláusula pétrea, qualifica-se como “um real limite material
implícito à reforma constitucional, ou, ainda, uma verdadeira cláusula proibitiva de
retrocesso social, nos mesmos moldes estabelecidos pela Constituição de Portugal. 1”
nas palavras do Prof. Germano Schwartz.
1
SCHWARTZ, Germano. Direito à Saúde: Efetivação em uma Perspectiva Sistêmica. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2001. p.66.
6
No sentido de garantir plena efetividade à disposição constitucional
referente ao direito à saúde seus defensores propugnam, de acordo com o magistério
de Canotilho, que uma vez previsto na Constituição Federal como um direito social
conferido aos cidadãos (coletivo e individualmente) trata-se de um direito hábil de ser
reivindicado de forma imediata e efetiva.
Corroborando
tal
assertiva
cabe
ressaltar
que:
“Em
matéria
constitucional é fundamental que se diga, o apego ao texto positivado não importa em
reduzir o direito à norma, mas, ao contrário, em elevá-lo à condição de norma pois ele
tem sido menos que isso.2”
Nesse diapasão o Supremo Tribunal Federal firmou entendimento,
especialmente, no julgamento do Recurso Extraordinário 271.286-RS, no voto do
Relator Ministro Celso de Mello, em que foi afastado o caráter programático do art.
196 da CF, in verbis:
O caráter programático da regra inscrita no art. 196 da
Carta Política - que tem por destinatários todos os entes
políticos que compõem, no plano institucional, a
organização federativa do Estado brasileiro - não pode
converter-se em promessa constitucional inconseqüente,
sob pena de o Poder Público, fraudando justas expectativas
nele depositadas pela coletividade, substituir, de maneira
ilegítima, o cumprimento de seu impostergável dever, por
um gesto irresponsável de infidelidade governamental ao
que determina a própria Lei Fundamental do Estado.
Logo, o reconhecimento de que um direito passa a ser exigível de plano,
como vem sendo adotado pela maioria da jurisprudência, acarreta em uma ampliação
dos deveres estatais, tendo como conseqüência lógica um maior dispêndio de verbas
coletivas a fim de respaldar estes direitos pois “...é uma investigação empírica saber os
tipos de interesses que, particularmente, uma sociedade politicamente organizada
atualmente protege. Dentro desta moldura, um interesse se qualifica como direito
quando um efetivo sistema trata-o como tal usando recursos coletivos para defendêlos.3” (tradução nossa)
2
BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. São Paulo: Saraiva. 1996.
p.260 – grifo nosso.
3
HOLMES, Stephen; SUNSTEIN, Cass R. The Cost of Rights: Why Liberty Depends on Taxes. New
York: Norton & Co. 1999. p.17. O original encontra-se na nota de fim de texto I.
7
1.2 Posicionamentos Jurisprudenciais
Inobstante o afastamento do caráter programático do direito à saúde,
previsto na nossa Constituição, cabe apontar a ausência de uniformidade
jurisprudencial nesta matéria. Para ilustrar tal panorama utilizaremos os distintos
posicionamentos apontados pelo Prof. Gustavo Amaral, em sua obra “Direito,
Escassez e Escolha: em busca de critérios jurídicos para lidar com a escassez de
recursos e as decisões trágicas”, de acordo com os decisórios abaixo descritos.
O Tribunal de Justiça de Santa Catarina, ao decidir o Agravo de
Instrumento nº 97.000511-3, Rel. Des. Sérgio Paladino entendeu que o direito à saúde,
garantido pela Constituição, seria suficiente para condenar o Estado a, liminarmente,
custear o tratamento ainda experimental, nos Estados Unidos, de menor, vítima de
distrofia muscular de Duchenne, totalizando US$ 163,000.00, muito embora não
houvesse comprovação da eficácia do tratamento da doença, de origem genética.
Asseverando que “Ao julgador não é lícito, com efeito, negar tutela a esses direitos
naturais de primeiríssima grandeza sob o argumento de proteger o Erário.4”
Em sentido contrário, o Tribunal de Justiça de São Paulo ao julgar a
possibilidade de dar o mesmo tratamento para pacientes portadores da mesma doença
afastou a possibilidade da liminar, ressaltando que:
Não se há de permitir que um poder se imiscua em outro,
invadindo esfera de sua atuação específica sob o pretexto
da inafastabilidade do controle jurisdicional e o
argumento do prevalecimento do bem maior da vida. O
respectivo exercício não mostra amplitude bastante para
sujeitar ao Judiciário exame das programações,
planejamentos e atividades próprias do Executivo,
substituindo-o na política de escolha de prioridades na
área de saúde, atribuindo-lhe encargos sem o
conhecimento da existência de recursos para tanto
suficientes. Em suma: juridicamente impossível impor-se
sob pena de lesão ao princípio constitucional da
independência e harmonia dos poderes obrigação de fazer,
4
O acórdão foi obtido pela internet (http://www.tj.sc.gov.br/) como arquivo de texto, não sendo possível
citar a página do original.
8
subordinada a critérios, tipicamente administrativos, de
oportunidade e conveniência, tal como já se decidiu (...)5.
O terceiro posicionamento também do Tribunal de Justiça de São Paulo,
envolvendo novamente menor vítima de mesma enfermidade genética:
O direito à saúde previsto nos dispositivos constitucionais
citados pelo agravante, arts. 196 e 227 da CF/88, apenas
são garantidos pelo Estado, de forma indiscriminada,
quando se determina a vacinação em massa contra certa
doença, quando se isola uma determinada área onde
apareceu uma certa epidemia, para evitar a sua propagação,
quando se inspecionam alimentos e remédios que serão
distribuídos à população, etc, mas que quando um
determinado mal atinge uma pessoa em particular,
caracterizando-se, como no caso, num mal congênito a
demandar tratamento médico-hospitalar e até transplante de
órgão, não mais se pode exigir do Estado, de forma
gratuita, o custeio de terapia, mas dentro do sistema
previdenciário.6
O referido autor, asseverando o dissenso na exegese do que seja o
direito à saúde, relata uma situação insólita ocorrida no processo nº 351/99 na 14ª Vara
da Fazenda Pública de São Paulo, em que um menor impúbere, vítima de distrofia
muscular progressiva de Duchenne obteve liminar para que o Estado de São Paulo
arcasse com R$ 174.500,00 equivalentes ao valor em dólares necessários ao
tratamento, sob a égide que o direito à vida preponderaria sobre qualquer outro, ao
passo que a sentença julgou improcedente sua demanda e revogou a antecipação de
tutela, determinado a devolução da quantia levantada, “sob as penas civis e criminais
cabíveis”, ao argumento de que o direito à saúde garantido pela Constituição deveria
ser cumprido dentro dos limites das verbas alocadas à saúde, devendo o Governante:
(...) segundo critérios de conveniência e oportunidade,
procurar atender aos interesses de toda a coletividade de
maneira ‘universal e igualitária’ para cumprir a norma
constitucional. Assim, o benefício a um único cidadão,
como no caso do autor, prejudica o restante da coletividade
de cidadãos, que vêem as verbas destinadas à saúde
diminuírem sensivelmente, em detrimento de suas
necessidades.7
5
TJSP, 2ª Câmara de Direito Público, Rel. Des. Alves Bevilacqua, Ag. Inst. nº 42.530.5/4, j.
11/11/1997.
6
TJSP. 9ª Câmara de Direito Público. Rel. Des. Rui Cascaldi, Agr. Instr. 48.608-5/4, j. em 11/02/1998,
unânime.
7
Sentença proferida no processo.
9
Conforme se verifica através da análise dos entendimentos acima
apresentados, pode-se observar que há o reconhecimento, de forma subjacente, de uma
dicotomia entre direitos positivos (sociais) e negativos (de liberdade).
Nos julgados em que é negada a tutela à saúde, sustenta-se de que não
seria incumbência do judiciário interferir em feitos, quando há necessidade de previsão
orçamentária, acarretando elevados riscos econômicos e políticos, em razão da
necessidade de criação de uma política estatal adequada a fim de realizar este direito.
Logo, não sendo legitimado a agir nos casos em que a procedência de
determinada ação ocasionasse um alargamento dos poderes-deveres do Estado.
Dentro desta concepção, somente poderiam ser reivindicados direitos
perante o Estado, a fim de que este se abstenha de agir ou de intervir, levando portanto
a denominação de direitos negativos ou de liberdade.
Nas palavras de Norberto Bobbio a distinção entre tais direitos é
concebida da seguinte forma:
Enquanto os direitos de liberdade nascem contra o
superpoder do Estado – e, portanto, com o objetivo de
limitar o poder -, os direitos sociais exigem, para sua
realização prática, ou seja, para a passagem da declaração
puramente verbal à sua proteção efetiva, precisamente o
contrário, isto é, a ampliação dos poderes do Estado.8
Em decorrência da referida classificação, formam-se três correntes: a
dos que nega eficácia aos direitos sociais, já que a carga positiva depende de mediação
do legislador e de meios materiais; a dos que vêem os direitos sociais com o mesmo
nível dos direitos individuais, muitas vezes decorrendo uns dos outros e uma terceira,
que vê os direitos sociais vigendo sob a reserva do possível, eis que a realização
demanda emprego de meios financeiros.
No entanto, como bem apontam Holmes & Sunstein não faria muito
sentido existir uma dicotomia entre direitos positivos e negativos uma vez que para a
proteção de todos necessitam de uma vigorosa atuação estatal e, ironizando,
argumentam que se o Estado somente pudesse proteger os direitos negativos, como
alguns defendem, não exerceria sua função pois, in verbis:
8
BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992. p. 72.
10
Se os direitos fossem meramente imunidades de
interferência pública, a maior virtude do governo (no
tocante ao exercício de direitos) seria a paralisia ou sua
inépcia. Mas um Estado não ativo é incapaz de proteger
liberdades pessoais, até mesmo aquelas que parecem ser
inteiramente ‘negativas,’ como o direito de não ser
torturado por policiais ou guardas de prisão. (...) Todos os
direitos são custosos porque pressupõem fundos angariados
pelos contribuintes a fim de constituir um efetivo
maquinário para supervisionar, monitorar e aplicar a lei. 9
(tradução nossa)
Com efeito, apesar da existência de argumentos contrários, fica evidente
que devemos caminhar no sentido de reivindicar a tutela do direito à saúde, para qual
se torna necessária uma prestação estatal.
Destarte, com a evolução do reconhecimento da efetividade dos direitos
positivos há, paulatinamente, um crescimento das demandas, haja vista que a tendência
natural revela que à medida que um antigo problema social desaparece ou diminui um
novo surge. E esta constatação pode ser aproveitada também quando verificada a
complexidade dos cuidados demandados, os quais correspondem ao progresso das
ciências médicas.
Por via de conseqüência, o crescimento da necessidade de proteção à
saúde acarreta, real dispêndio de recursos, como bem destaca o artigo de autoria do
Professor Timothy Stolrzfus Jost:
O fator mais relevante para o aumento dos custos em todo
o mundo, e em particular nos Estados Unidos, é o contínuo
progresso da tecnologia médica.(...). Ao contrário de outras
indústrias, investimentos de capital e desenvolvimento
tecnológico raramente resultem em substancial economia
de custos de trabalho na indústria da saúde. A demanda por
tecnologia de cuidados de saúde parece que não irá deixar
de crescer. (...) Por definição, todos recursos valiosos são
escassos, mas a preocupação com a escassez no âmbito dos
cuidados de saúde tornou-se mais aguda nos últimos anos,
com o aumento da demanda.10
CAPÍTULO II - O CUSTO DOS DIREITOS
9
Op. Cit. p.17. O original encontra-se na nota de fim de texto II.
Conforme AARON, Henry J.; SCHWARTZ, William B., citado e traduzido por AMARAL, Gustavo.
Direito, Escassez & Escolha: Em busca de critérios jurídicos para lidar com a escassez de recursos e as
decisões trágicas. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p.143.
10
11
Na obra “The Cost of Rights: Why Liberty Depends on Taxes” os
autores defendem a ausência de direitos absolutos, afirmando que costumam os
mesmos serem descritos como invioláveis, peremptórios e decisivos. Sustentam que
trata-se de mero floreio retórico, pois nada que custe dinheiro pode ser absoluto.
Assim, nenhum direito cuja efetividade pressupõe um gasto seletivo dos
valores arrecadados dos contribuintes pode ser protegido de maneira unilateral pelo
Judiciário sem considerações às conseqüências orçamentárias, pelas quais, em última
instância, os outros dois poderes são responsáveis.
Além disso, os referidos autores argumentam que na ausência de um
governo inexistem direitos uma vez que:
Como uma regra geral, indivíduos desafortunados que não
estão subordinados a um governo capaz de cobrar impostos
e entregar um efetivo ‘remédio’ não possuem direitos.
Ausência de Estado soletra-se ausência de direitos. Um
direito positivo existe, na realidade, somente quando e se
há gastos orçamentais.11 (tradução nossa)
Apesar de, a primeira vista, parecer um posicionamento deveras radical,
cabe recordarmos o caos gerado no Estado da Bahia em 2001 quando houve a greve
dos policiais militares (longa manus estatal), e que em razão desta inexistência de
atuação estatal, eram poucos os cidadãos que se sentiam protegidos, não ousando,
portanto, saírem de suas casas para não terem seus direitos violados (patrimônio,
integridade física, etc.).
No tocante à não concessão de tutela estatal em razão da escassez, cabe
apontar que o Prof. Germano Schwartz posiciona-se diferentemente, pois concebe que:
Somente alguns direitos sociais possuem uma dimensão
específica: a prestação pecuniária. Nestes casos há um
evidente condicionante ao exercício de tais direitos: a
prévia existência de disponibilidade financeira por parte do
erário. Ocorre que a saúde não possui tal dimensão, pois o
objeto final do direito à saúde é a prestação sanitária, e não
a pecuniária. Isto torna infundados os argumentos de que é
necessária anterior dotação orçamentária em relação ao
direito à saúde.12
11
12
Op. Cit. p. 19. O original encontra-se na nota de fim de texto III.
Op. Cit. p.73.
12
Ocorre que as demandas, especialmente por tratamento médico, são
vorazes: elas devoram recursos, parafraseando o filósofo Charles Fried.
Cabe esclarecer, portanto, qual o conceito de escassez abordado neste
capítulo, uma vez que não se trata somente de uma ausência de meios financeiros, mas
aborda, principalmente, a incapacidade de satisfazer a necessidade de todos, estando
tal idéia devidamente sintetizada neste trecho:
Dizer que um bem é escasso significa que não há
suficiente para satisfazer a todos. A escassez pode ser,
em maior ou menor grau, quase-natural, ou artificial. A
escassez natural severa aparece quando não há nada que
alguém possa fazer para aumentar a oferta. Pinturas de
Rembrandt são um exemplo. A escassez natural suave
ocorre quando não há nada que se possa fazer para
aumentar a oferta a ponto de atender a todos. As reservas
de petróleo são um exemplo, a disponibilização de órgãos
de cadáveres para transplante é outra. A escassez quasenatural ocorre quando a oferta pode ser aumentada, talvez a
ponto da satisfação, apenas não por condutas não coativas
dos cidadãos. A oferta de crianças para adoção e de
esperma para inseminação artificial são exemplos. A
escassez artificial surge nas hipóteses em que o governo
pode, se assim decidir, tornar o bem acessível a todos, a
ponto de satisfação. A dispensa do serviço militar e a oferta
de vagas em jardim de infâncias são exemplos.13
Partindo dessa premissa, se os direitos não podem ser concebidos de
forma absoluta em razão dos gastos existentes para protegê-los e de sua natureza
escassa, há a constatação de que para priorizar a proteção de determinado direito
importa em deixar outros de lado, ocasionando o surgimento de decisões trágicas.
Assinalando este aspecto da realidade, Holmes & Sunstein prosseguem
afirmando que:
Orçamentos radicalmente parcos implicam [no campo de
atuação do serviço social] que algumas potenciais vítimas
de abuso infantil irão ser na realidade vítimas de abuso
infantil, e que o Estado terá feito pouco ou nada a respeito.
Isso é deplorável, mas em um mundo imperfeito de
recursos limitados, é também inevitável. Levar direitos à
sério significa levar a escassez a sério.14 (tradução nossa)
13
Conforme ELSTER, Jon, citado e traduzido por AMARAL, Gustavo. Direito, Escassez & Escolha:
Em busca de critérios jurídicos para lidar com a escassez de recursos e as decisões trágicas. Rio de
Janeiro: Renovar, 2001. p.133/134. – grifo nosso.
14
Op. Cit. p.94. O original encontra-se na nota de fim de texto IV.
13
Ressaltando a necessidade de decisões alocativas podemos observar que
em razão da inerência da escassez sempre houve e haverá distribuições desta ordem,
restando-nos estudar a maneira de abranger o atendimento ao maior número de
cidadãos com o mínimo possível de exclusão pois:
Decisões políticas de primeira ordem relacionam-se com a
alocação de recursos fungíveis (monetários) dentre várias
atividades. A principal conseqüência dessas decisões é
favorecer certos bens e serviços às custas de outros.
Uma conseqüência secundária pode ser favorecer alguns às
expensas de outros, quer dizer, aqueles que podem mais ser
beneficiados pelo bem favorecido. Apesar de o efeito nos
indivíduos também depender do princípio alocativo de
segunda ordem, alguns bens têm características que
excluem vários grupos do universo de possíveis
beneficiados. Assim, dedicas uma larga parcela de fundos
públicos à moradia popular equivale a dar tratamento
preferencial aos pobres, a despeito de qual esquema
alocativo seja escolhido. Dar prioridade à educação
necessariamente ocorre às expensas dos idosos, já que eles
não se tornarão jovens novamente. Em contraste,
concentrar recursos em equipamentos médicos necessários
para salvar vidas, usados principalmente por idosos, pode
eventualmente beneficiar os jovens.15
2.1 Das Conseqüências do Acordo Trips
Outro assunto que vem merecendo elevada atenção, não só da mídia
mas também no âmbito Legislativo, trata-se do acréscimo no custo dos tratamentos
médicos em relação à concessão estatal de medicamentos excepcionais.
O referido acréscimo ocorre em razão da existência de dois fatores: o
primeiro consiste na instituição do Sistema Único de Saúde com a Constituição
Federal de 1988 em que houve a universalização do acesso à saúde garantido pelo
Estado, e segundo tendo em vista a adesão do Brasil ao acordo sobre Aspectos de
Direito de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (Trips), em 1994 através
15
Conforme ELSTER, Jon. Citado e traduzido por AMARAL, Gustavo. Em busca de critérios jurídicos
para lidar com a escassez de recursos e as decisões trágicas. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p.149. –
grifo nosso.
14
do qual houve o comprometimento de que o país deve respeitar o direito das empresas
privadas de obter lucro sobre suas invenções (patentes).
Com a consolidação desse binômio, nas palavras de Andrei Netto: “fez
do mercado brasileiro o éden das gigantes da indústria farmacêutica na última
década.”16
Em razão de constituir o Brasil um dos maiores comércios mundiais,
devido ao fato de que a saúde é sustentada, em sua grande maioria, pela iniciativa
pública, resulta em pagar mais por drogas excepcionais do que os países
desenvolvidos, sendo exemplo disto o Interferon Peguilado utilizado para o tratamento
de Hepatite C que nos EUA custa R$ 481,00 enquanto no Brasil, mesmo isento de
impostos federais sai por R$ 1.185,00.
A situação dos elevados gastos despendidos no Brasil é de forma cabal
demonstrada com a verificação de que, a grama do medicamento que combate a
Hepatite C (Interferon) equivale em pecúnia a cem quilos de ouro.
No entanto, não é somente a obediência às patentes que acarretam
aumentos de gastos e sim a ausência de fiscalização governamental, pois como aponta
a notícia veiculada na Zero Hora, apesar da reputação de “super remédios”, os
excepcionais em sua maioria são drogas já conhecidas que sofrem alterações nas
fórmulas, proporcionando aumento percentual reduzido de sua eficácia ou apenas mais
conforto. Daí a discussão sobre quanto são, de fato, novas, uma vez que sob cada nova
“descoberta” há a criação de uma nova patente, qualificando assim uma verdadeira
“capitalização” de patentes. Nas palavras da consultora de preços da Organização
Mundial da Saúde: “É preciso resgatar o valor da palavra ‘patente’ e destiná-la a
produtos que ninguém jamais havia feito.” 17
Soma-se a este fato a ausência de normas que vedem a prescrição de
remédios que não sejam aprovados pelo Ministério da Saúde, pois em outros países ,
como a Grã-Bretanha, um medicamento produzido pelos laboratórios é avaliado por
universidades e, somente se demonstrado que seja eficaz e tenha custo-benefício
16
NETTO, Andrei. O Brasil virou refém de medicamentos caros. Zero Hora, Porto Alegre, p.44, 24 de
abril de 2005.
17
NETTO, Andrei. Remédios caros são ainda mais caros no Brasil. Zero Hora, Porto Alegre, p.4-5, 15
de maio de 2005.
15
coerente é patenteado e registrado, só então podendo ser prescrito por médicos e
distribuído à população.
CAPÍTULO III - JUDICIALIZAÇÃO DO ACESSO À SAÚDE
3.1 Legitimação Social do Judiciário
Em decorrência das próprias transformações do Estado, notadamente da
decadência e omissão do Estado e do descrédito do povo na Administração, o
Judiciário tem sido legitimado popularmente a intervir em decisões dos outros poderes
em razão de um pré-conceito, especialmente forte nos dias de hoje, de que as decisões
governamentais, executivas ou legislativas, não possuem a res publica e o bem comum
em tão elevada conta como deveriam.
Somando-se a tal constatação podem-se apontar as conclusões da
pesquisa “Corpo e Alma da Magistratura Brasileira” em que 83% dos juízes
assinalaram que: “o Poder Judiciário não é neutro” e que “em suas decisões, o
magistrado deve interpretar a lei no sentido de aproximá-la dos processos sociais
substantivos e, assim, influir na mudança social.” 18
Assim, os magistrados passam a conhecer matérias que outrora eram
vistas como essencialmente políticas, de tal maneira que questões basilares do Brasil
passam a transitar pelos pretórios nacionais. Corroborando tal assertiva basta
observarmos os dados estatísticos que constatam que existem em trâmite
aproximadamente 4,7 mil ações judiciais exigindo que o Estado conceda
medicamentos às pessoas carentes.
Nas palavras de Marcelo Estevão de Moraes19, o Brasil não é um País
pobre, mas é um País desigual. A renda anual per capita do brasileiro é de R$ 6.783,00
(IBGE, 2001), o que permite incluir o Brasil entre os países de renda intermediária.
Entretanto, o IPEA estima que 53 milhões de brasileiros estejam abaixo da linha de
pobreza, dos quais 23 milhões encontram-se em situação de indigência.
18
VIANNA, Luiz Werneck, et al. Corpo e Alma da Magistratura Brasileira. Rio de Janeiro: Revan,
1997. p. 241.
19
MORAES, Marcelo Estevão. Seguridade Social e Direitos Humanos, AJURIS, Porto Alegre, Ano
XXX – n.90, jun. 2003.
16
Logo, se considerarmos que a renda per capita brasileira é superior
quatro vezes à linha de pobreza e em oito vezes à linha de indigência, percebe-se que
ambas não decorrem de uma escassez absoluta de recursos, mas de sua má
distribuição. Importante assinalar que a má distribuição de renda deriva também no
Brasil da má distribuição de ativos (capital, terra e, fundamentalmente, educação).
Destarte, uma vez constatado de que as grandes desigualdades sociais
do Brasil decorrem mais da má distribuição de recursos do que sua escassez em si,
bem como a verificação de que atualmente o Judiciário trata-se do órgão mais
legitimado a fim de dirimir tais enfermidades sociais, cabe buscarmos possíveis
soluções para uma tutela mais efetiva do direito à saúde dentro do sistema jurídico.
Outrossim, o quadro da desigualdade igualmente se constata através da
análise das demandas que requerem o saneamento de determinadas endemias (seja
através da concessão de medicamentos ou até mesmo de tratamento hospitalar
propriamente dito), uma vez que a maioria dos casos sub judice tratam-se de doenças
raras/modernas como a Aids, Hepatite C, etc. Enquanto as denominadas doenças da
pobreza como cólera, febre amarela ou malária são de rara incidência.
Em razão de tais argumentos pode ser compreensível que o Brasil seja
um dos países latino-americanos que mais gasta em saúde sem que haja um
decréscimo substancial nos índices de mortandade que, na maioria dos casos são
ocasionadas por essas enfermidades mais comuns.
A partir da legitimação do Judiciário como “campeão da cidadania”, há,
de forma acentuada, uma sobrevalorização dos meios judiciais de controle e,
conseqüentemente uma subvalorização dos meios não judiciais, como as
manifestações inerentes à cidadania como o voto.
No entanto, ao tutelar o direito à saúde deve o Judiciário atentar para
que, ao proteger o referido bem jurídico, não passe a substituir totalmente a
competência do poder que possua competência originária para isso. Como assevera o
Des. Genaro Baroni Borges, integrante da 21ª Câmara Cível do TJRS que: “O sistema
de saúde se tornou ‘judicializado’ porque chegam ao TJ questões que não deveriam
chegar.”20 tendo como conseqüência: “O Judiciário, tanto quanto o paciente, é vítima
20
CECONELLO, Douglas. Sistema de Saúde se tornou judicializado. Diário da Justiça/RS, Porto
Alegre, p.1, 24 de agosto de 2004.
17
da situação carente do Estado e se vê incumbido de administrar a escassez de recursos
públicos, quando essa não é a sua função.”21
Cabe ressaltar que, ao exercer função imprópria sem no entanto
requerer como condição da ação que, primeiramente, os pacientes intentem o acesso
aos seus direitos mediante as vias administrativas, o Judiciário passaria a exercer não
subsidiariamente a função de fiscalizador das decisões dos outros poderes, passando a
exercê-las de forma plena. Logo, deixando de atuar dentro da teoria de checks and
balances, em que um poder é autorizado a fiscalizar a atuação dos outros zelando pelo
equilíbrio entre os mesmos e pelo respeito aos direitos fundamentais, como bem
assevera Germano Schwartz:
A atuação judicial far-se-á em um momento posterior ao da
constatação de que as ações positivas estatais não
garantiram o direito à saúde. É, portanto, uma atuação
secundária (mas não suplementar) em relação ao dever dos
Poderes Públicos – especialmente o Executivo, pois
inexistiria necessidade de uma decisão derivada do sistema
jurídico caso tais Poderes cumprissem o seu papel. 22
3.2 Da Inadequação Procedimental
Conforme abordado no item 2.1 deste trabalho, pode-se observar que há
dissenso até mesmo entre os médicos e especialistas da saúde sobre a comprovação
efetiva de cura ou melhoria da condição de saúde com os “novos” medicamentos
excepcionais, agravando ainda mais a situação a ausência, até o presente momento, de
uma fiscalização governamental sobre a concessão de patentes a estes remédios.
Ora, ante este panorama esboça-se a dificuldade dos magistrados
decidirem acerca de casos sem possuir conhecimentos médicos, eis que nem mesmo os
próprios médicos sabem precisar a concretude dos efeitos destas drogas.
Comprovando este quadro, Andrei Netto em notícia veiculada na Zero
Hora23 em 12/06/2005 verificou que há atualmente a concessão judicial de
medicamentos, no caso o Iressa, que custa aproximadamente R$ 23 mil por três meses,
21
Idem.
Op. Cit. p.162.
23
NETTO, Andrei. Remédios que o SUS tem de engolir. Zero Hora, Porto Alegre, p.38-39, 12 de junho
de 2005.
22
18
sendo que após pesquisas realizadas chegaram à conclusão de que seria uma pílula
ineficaz (placebo). A Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) seguindo
decisões européias recusou o registro.
No entanto, conforme a mesma nota, em dezembro, por indicação
médica uma paciente, movida pelas promessas de cura, solicitou à Justiça Gaúcha o
tratamento com Iressa. Apesar de tratar-se de uma droga sem registro e fora dos
protocolos brasileiros, o Judiciário lhe foi favorável. Em outra reviravolta, o Estado
não foi obrigado a pagar o tratamento em razão da morte da paciente, sendo em São
Paulo, o governo é obrigado pelo Superior Tribunal de Justiça a importar o referido
remédio.
Nas palavras de Gustavo Amaral o dilema deste capítulo pode ser
devidamente resumido da seguinte maneira:
(...) sentença tardia é injusta independentemente de seu
conteúdo material. A se assegurar a mais ampla
possibilidade de argumentação e de produção de provas,
em todos os processos, a solução final tardaria bem mais
que o suportável, tornando-a intrinsecamente injusta, como
já colocado. Um procedimento célere, com limitações à
argumentação, à produção de provas e à possibilidade de
recursos gerará um percentual de decisões incorretas,
indetermináveis a priori, mas entre entregar na grande
maioria dos casos sentenças injustas porque tardias e
assumir o risco de um grau de imperfeição no exercício
jurisdicional, optamos pela segunda possibilidade.24
3.3 Micro-justiça x Macro-justiça
Outro aspecto que se avulta na problemática do Direito à Saúde,
consiste no fato de que o Judiciário está aparelhado para decidir casos concretos, lides
específicas que lhe são postas. Trata ele, portanto, da micro-justiça do caso concreto,
que lida com a concepção de que a verdade é o que está contido no processo.
Caso inexistisse o custo destes direitos ou melhor sua escassez não
haveria problema uma vez que desta forma poderia ser assegurado a todos que estão
ou possam vir a estar em situação similar, a possibilidade de recorrer ao Judiciário para
24
Op. Cit. p.39.
19
que tutele seu direito, não surgindo estes questionamentos ressaltados por Gustavo
Amaral:
(...) os recursos são escassos, como são, é necessário que se
façam decisões alocativas: quem atender? Quais são os
critérios de seleção? Prognósticos de cura? Fila de espera?
Maximização de resultados (número de vidas salvas por
cada mil reais gastos, por exemplo)? Quem consegue
primeiro uma liminar? Tratando-se de uma decisão, nos
parece intuitiva a necessidade de motivação e controle dos
critérios de escolha, uma prestação de contas à sociedade
do porquê preferiu-se atender a uma situação e não outra.25
Cabe apontar outros impasses recorrentes quando da análise dos
requerimentos judiciais para a proteção à saúde, como a ausência de uniformização no
conceito e no grau de proteção que deve ser despendida a estes. Além do fato de que,
conforme constatamos ao se analisar individualmente (micro), inexiste escassez pois
ante o pedido de um cidadão e os cofres públicos não há que se falar em ausência de
recursos suficientes.
Todavia, em razão da massificação destas demandas necessariamente o
Judiciário deve preocupar-se com o futuro e com as teias de conseqüências que estas
escolhas de caráter disjuntivo trazem, que, dentro de uma ótica de micro-justiça não
podem ser constatadas. Como por exemplo, em decorrência de determinado mandado
judicial a quantos indivíduos o prolator estaria preterindo posto se a ordem não fosse
obedecida acarretaria, como tem acontecido, em prisão do responsável pela
desobediência.
O problema da individualização da concessão de um direito coletivo
consiste, sinteticamente, em uma disputa entre interesse social e o interesse individual,
pois concebida da forma como se encontra a tutela à saúde são raras as pessoas que
prefeririam “abdicar de direito seu” em prol de beneficiar um maior número de
indivíduos. Neste sentido a manifestação do filósofo Joseph Raz:
Se eu tivesse que escolher entre viver em uma sociedade
que goza de liberdade de expressão, mas não possuindo
este direito, ou exercendo o direito em uma sociedade que
não a tem, eu não hesitaria em julgar que o meu interesse
25
Op. Cit. p.37.
20
pessoal é melhor servido pela primeira opinião. 26 (tradução
nossa)
3.4 Teoria de Robert Alexy
Tendo em vista a ausência de uma estruturação judicial adequada que
leve em consideração toda a complexa problemática concernente à efetivação da
saúde, cabe apontar o posicionamento adotado por Robert Alexy que nos parece ser o
mais adequado, para atender uma maior gama de indivíduos no contexto de microjustiça.
A teoria adotada pelo referido autor encontra-se magnificamente
sintetizada no artigo de Giovani Bigolin27, o qual leciona, que Alexy visa harmonizar
os argumentos favoráveis e contrários a direitos subjetivos sociais numa concepção
calcada na idéia da ponderação entre princípios, ressaltando que os direitos
fundamentais são posições jurídicas tão relevantes, que a sua concessão ou denegação
não podem ficar nas mãos da simples maioria parlamentar -, pois identificar os direitos
fundamentais sociais que o indivíduo possui é uma questão de ponderação.
Por outro lado, o princípio da reserva parlamentar em matéria
orçamentária, tanto quanto os demais, não é absoluto, sendo possível que os direitos
individuais apresentem mais peso que as razões de política financeira. Para o
constitucionalista o referido “peso” corresponde, na esfera dos direitos sociais, a um
padrão mínimo, como é o caso dos direitos a condições existências mínimas, direito a
formação escolar e profissional, uma moradia simples e um padrão mínimo de
atendimento na área da saúde.
Ou seja, estabelecendo como condição para sua efetivação a
fundamentalidade, assim abordada:
A segunda concepção é que o interesse ou a carência seja
tão fundamental que a necessidade de seu respeito, sua
proteção ou seu fomento se deixe fundamentar pelo direito.
A fundamentalidade fundamenta, assim, a prioridade sobre
todos os escalões do sistema jurídico, portanto, também
26
Op. Cit. p.117. O original encontra-se na nota de fim de texto V.
BIGOLIN, Giovani. A reserva do possível como limite à eficácia e efetividade dos direitos sociais,
Revista do Ministério Público, Porto Alegre, n. 53, p. 49-70, 2004.
27
21
perante o legislador. Um interesse ou uma carência é, nesse
sentido fundamental quando sua violação ou não-satisfação
significa ou a morte ou sofrimento grave ou toca o núcleo
essencial da autonomia. Daqui são compreendidos não só
os direitos de defesa liberais clássicos, senão, por exemplo,
também direitos sociais que visam ao asseguramento de um
mínimo existencial. 28
Aderindo, portanto, à noção de um padrão mínimo de segurança
material a ser garantido por meio de direitos fundamentais, que têm por objeto evitar o
esvaziamento da liberdade pessoal, assegurando, de tal sorte, uma liberdade real.
Na esfera de um padrão mínimo em prestações sociais, também será
mínima a restrição na esfera dos princípios conflitantes com a realização dos direitos
sociais, afirmando ainda Alexy, que o reconhecimento de um direito subjetivo a
prestações sociais básicas, indispensáveis para uma vida com dignidade, sempre
deverá prevalecer, no caso concreto, quando em conflito com o princípio da reserva do
possível e o princípio democrático, igualmente fundamental, mas não absoluto.
CONCLUSÃO
Como verificamos, com a superação do pensamento retrógrado, que
negava eficácia aos direitos sociais, sob a égide de sua programatividade ou de seu
suposto aspecto negativo, necessário salientar que o fato da saúde ser um direito
subjetivo fundamental e reivindicável de plano, consiste em avanço que não deve
retroceder, mesmo que não configure uma panacéia a concretização do referido direito.
O argumento dos custos e da escassez dos direitos é um aspecto em que,
principalmente o Judiciário, deve levar em consideração, não como forma de omitir-se
de fiscalizar ou interferir em funções típicas de outros poderes, mas em razão de
possuir ciência das repercussões de seus julgados, sejam estas de natureza
orçamentária, financeira, material ou de outra espécie.
Em razão do reconhecimento da escassez abrem-se os olhos para outras
dinâmicas, que permeiam ou obstaculizam a concretização do direito à saúde, seja de
natureza administrativa (má-gestão), tributária (destinação da CPMF e isenção para
28
ALEXY, Robert. Direitos Fundamentais no Estado Constitucional Democrático, trad. Luís Afonso
Heck, Revista da Faculdade de Direito da UFRGS, Porto Alegre, v. 16. 1999. p.203-214.
22
medicamentos excepcionais) ou até mesmo legislativa (quebra das patentes), que com
a sua superação, ou pelo menos diminuição, ocasionará mudanças consideráveis no
panorama social.
No tocante à impossibilidade de proporcionar uma justiça aristotélica
(“dar a cada um o que é seu”), torna-se necessária a adoção de maior transparência nas
decisões distributivas de recursos públicos, por parte de todos os poderes, bem como a
busca de uma uniformização de critérios para a tutela do direito sanitário, a fim de que
não se quebre a isonomia e universalidade prevista na Constituição Federal.
Assim, conforme intentou-se abordar, apesar da ausência de meios e
não ser do Poder Judiciário a responsabilidade originária, para concretizar o direito à
saúde, nossos pretórios exercem relevante papel de agentes de mudança social, ao
exigirem fidelidade dos demais poderes aos preceitos constitucionais, que prevêem a
concessão de um mínimo existencial de saúde e dignidade aos seres humanos.
23
REFERÊNCIAS
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Políticos y Constitucionales, 2002.
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Afonso Heck, Revista da Faculdade de Direito da UFRGS, Porto Alegre, v. 16. 1999.
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MORAES, Marcelo Estevão. Seguridade Social e Direitos Humanos, AJURIS, Porto
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NETTO, Andrei. O Brasil virou refém de medicamentos caros. Zero Hora, Porto
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24
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SCHWARTZ, Germano. Direito à Saúde: Efetivação em uma Perspectiva Sistêmica.
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Palácios Cunha; BURGOS, Marcelo Baumann. A judicialização da política e das
relações sociais no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 1999.
_____. Corpo e Alma da Magistratura Brasileira. Rio de Janeiro: Revan, 1997.
25
ANEXO - NOTAS DE FIM DE TEXTO
I – “... it is an empirical inquiry into the kinds of interests that a particular politically
organized society actually protects. Within this framework, an interest qualifies as a
right when an effective legal system treats it as such by using collective resources to
defend it.”29
II – “If rights were merely immunities from public interference, the highest virtue of
government (so far as the exercise of rights was concerned) would be paralysis or
disability. But a disabled state cannot protect personal liberties, even those that seem
wholly ‘negative,’ such as the rights against being tortured by police officers and
prison guards. (…) All rights are costly because all rights presuppose taxpayers
funding of effective supervisory machinery for monitoring and enforcement.”30
III – “As a general rule, unfortunate individuals who do not live under a government
capable of taxing and delivering an effective remedy have no legal rights. Statelessness
spells rightslessness. A legal right exists, in reality, only when and if it has budgetary
costs.”31
IV – “Hard budget constraints imply that some potential victims of child abuse will
become actual victims of child abuse, and the state will have done little or nothing
about it. This is deplorable, but in an imperfect world of limited resources, it is also
inevitable. Taking rights seriously means taking scarcity seriously.”32
V – “If I were to choose between living in a society which enjoys freedom of
expression, but not having the right myself, or enjoying the right in a society which
29
HOLMES, Stephen; SUNSTEIN, Cass R. The Cost of Rights: Why Liberty Depends on Taxes. New
York: Norton & Co. 1999. p. 17.
30
Ibid, p.44.
31
Ibid, p.19.
32
Ibid, p.94.
26
does not have it, I would have no hesitation in judging that my own personal interest is
better served by the first option.”33
33
Ibid. p.117.
27
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