O delito de usura, o novo Código Civil e a Emenda Constitucional nº 40/03 Andrei Zenkner Schmidt PORTO ALEGRE - O delito de usura está definido no art. 4º, “a”, da Lei nº 1.521/51, que prevê a conduta de cobrar juros, comissões ou descontos percentuais, sobre dívidas em dinheiro, superiores à taxa permitida em lei. O limite a que faz menção a alínea “a”, supra, era o estabelecido no art. 1º do Decreto 22.626/33, que remetia para o art. 1.062 do Código Civil de 1916. Este, por sua vez, fixava em 6% ao ano a taxa de juros moratórios. Acerca do assunto, e após longo debate jurisprudencial, os tribunais brasileiros consolidaram os seguintes entendimentos: a) o § 3º do art. 192 da Constituição, que estabelecia o limite de 12% ao ano para as taxas de juros, não era auto-aplicável, necessitando de regulamentação (v. STF, MI nº 611/SP); b) as instituições financeiras estavam autorizadas a realizar operações de crédito a prazo cobrando juros superiores a 12% ao ano, não se lhes aplicando as limitações do Decreto 22.626/33 (v. Súmula nº 596 do STF); c) os mútuos realizados por pessoas físicas, ou por pessoas jurídicas sem a qualidade de instituições financeiras, sujeitavam-se aos limites dos juros fixados pelo art. 1.064 do Código Civil de 1916, sendo que a cobrança de valores superiores a 6% ao ano caracterizava delito de usura (v. STJ, RHC nº 6824/PR). Uma alteração recente, entretanto, modificou consideravelmente o tratamento da matéria, qual seja, a edição da Lei nº 10.406/02 (novo Código Civil), que, em seu art. 406, veio a modificar os limites legais estabelecidos para os juros legais: em vez de 6% ao ano, o limite passou a ser a taxa que estiver em vigor para a mora do pagamento de impostos devidos à Fazenda Nacional. Conseqüentemente, inexistindo convenção legal entre as partes, a taxa a ser observada é a em vigor para a mora do pagamento de impostos à Fazenda, ou seja, Selic (art. 39, § 4º, da Lei nº 9.250/95). Nesse sentido, como bem pondera Nilo Batista, o “polêmico e milenar delito de usura, quem diria!, foi entregue, pelas mãos do direito civil, ao direito tributário. ‘Ninguém pode enriquecer-se mais que o fisco’ seria a moralidade dessa história” (O Novo Código Civil e Direito Penal: uma carta e onze questões. In Boletim do IBCCrim nº 127, junho de 2003). Um primeiro aspecto relevante acerca do novo tratamento jurídico da matéria é que a Selic compreende não só os juros, senão também a correção monetária. Assim, por exemplo, segundo a tabela de capitalização dos juros-SELIC da Receita Federal (www.receita.fazenda.gov.br/Pagamentos/jrselic.htm), um mútuo contraído em julho de 2003, com vencimento em julho de 2004, poderia sofrer uma taxa de juros e correção de 17,46% sobre o valor total, sem que tal operação fosse considerada delituosa. O interessante da alteração é que, por estarmos diante de uma elementar normativa de interpretação conceitual (Mezger), a edição do novo Código Civil retroage seus efeitos aos fatos anteriores, com base no princípio da retroatividade da lex mitior. Importante frisar que não estamos diante de lei excepcional ou temporária, caso em que não é aplicável o art. 3º do Código Penal. Em termos processuais, a conseqüência da nova disciplina é que eventual condenação exige prova pericial, a ser arcada pela acusação, capaz de evidenciar que os juros incidentes sobre o mútuo na época do negócio jurídico não extrapolavam os limites da taxa Selic vigente à época do vencimento, devidamente capitalizada. Um segundo aspecto sobre o tema também merece tratamento. O § 3º do artigo 195 da Constituição fixava em 12% ao ano as taxas de juros reais, considerando que “a cobrança acima deste limite será conceituada como crime de usura, punido, em todas as suas modalidades, nos termos que a lei determinar”. Este parágrafo foi revogado pela Emenda Constitucional nº 40/03 e, diante disso, poderiam surgir dúvidas acerca da possível abolitio criminis do delito de usura. Em que pesem os limites do presente trabalho, pode-se ressaltar a conclusão de que o crime em comento continua em vigor, apesar da revogação do § 3º. Em primeiro lugar, porque a Constituição Federal apenas possuiria a força, no máximo, de tornar inválido um dispositivo de lei ordinária, e não também de revogá-lo. Em segundo lugar, porque a competência positiva plena para a criminalização de condutas não decorre diretamente da Constituição Federal, mas sim do legislador ordinário. Nesses termos, como bem ressalta Luciano Feldens em tesina de doutorado acerca do assunto, o fato de a Constituição Federal não ter estabelecido, expressamente, a necessidade de criminalização dos crimes de homicídio ou de estupro não pode nos conduzir à conclusão de que tais delitos tornaram-se inconstitucionais a partir de 1988. Conseqüentemente, a revogação de um mandado constitucional expresso de criminalização _prossegue Feldens_ não produz, por si só, o efeito invalidante da lei ordinária que preveja tal ilícito penal. Em suma: o delito de usura ainda está em vigor, mas os limites jurídicos à cobrança de juros legais, com a superveniência do novo Código Civil, passam a ser os previstos para a taxa Selic. Caso tal solução seja benéfica em relação a fatos concretos e anteriores, a retroatividade da lex mitior complementadora impõe-se. Sexta-feira, 6 de agosto de 2004